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Peças

Soltas

ARTIGO POR
J U L I E TA J E R U S A L I N S KY

SER BEBÊ, CRIANÇA E


ADOLESCENTE NA
PANDEMIA:
CUIDAR E EDUCAR
NAS ENCRUZILHADAS
ENTRE A ESTRUTURAÇÃO
PSÍQUICA E O RISCO
DE COVID-19
A experiência da qua- de, buscando o que é possível
rentena tem levantado uma fazer, mas também os limites
série de interrogações acerca implicados nesse meio virtu-
dos rumos dos cuidados com al.
a estruturação psíquica e Para os clínicos, tornou-se atingidos, já que a vulnerabi-
aprendizagem de bebês, necessário sustentar e repen- lidade faz com que não se
crianças e adolescentes para sar o contexto das interven- conte com recursos seme-
pais, educadores e terapeu- ções com seus pacientes em lhantes para atravessar o
tas. Embora tenhamos vários uma encruzilhada nas quais risco de contágio, bem como
canais virtuais, são poucos se conflitos psíquicos preexis- com recursos para tratar a
comparados aos que temos tentes, que exigiam trata- doença (desde ter água para
quando a vida está normal e mento, se cruzaram com os lavar as mãos, casas que per-
estamos afastados de experi- impasses que a humanidade mitam isolamento, até acesso
ências que só em presença se encontra nesse momento a leitos com respiradores).
pode ter. O contato, o olhar, a histórico diante do risco pro- O vírus explora as fraquezas
conversa ainda são necessi- duzido pelo vírus Sars-Cov 2. biológicas das pessoas,
dades fundamentais para Todos estão atingi- também oriundas de causas
nossa vida. dos por essa pandemia, sociais, como desigualdades
Para os pais se mas não igualmente. Se de acesso à saúde, saneamento
produz uma sobrecarga de um mesmo vírus incide básico, moradia, precariedade
cuidados das crianças, já que de um modo diferente em de condições de trabalho, ou
os mesmos não têm como cada organismo (sendo seja, os mais vulneráveis são
serem compartilhados com a preciso considerar fatores de sempre os mais atingidos.
família, escola ou funcioná- riscos que produzem comor- Desde o aspecto psíqui-
rios. bidades, tais como problemas co, tampouco são indiferentes
Para os educadores respiratórios, cardíacos, dia- os conflitos pré-existentes, nos
comparece a dura tarefa de betes, entre outros), não são quais as “cavilhas” dessa pan-
sustentar o processo educa- nada indiferentes as condi- demia se prestam a encaixe,
cional através da virtualida- ções sociais de cada um dos assumindo significações e pro-

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vocando consequências proposta interessante: pode tenham, fazem um maior ou
psíquicas diversas, dependen- ser um prato cheio para repen- um menor registro da extensão
do da estrutura subjetiva que sarmos cada um o seu modo de dessas questões. Mas é certo
esteja em jogo, bem como do vida, o modo como se vive em que, para todas elas, isso
momento de estruturação no família, como cuidamos de nós impacta diretamente em seu
qual alguém se encontre. mesmos e dos nossos laços dia-a-dia: na suspensão da ida
Ao longo da estrutura- fraternos, de nossa casa, o à escola, que para muitos
ção há certos representa o lugar exclusi-
momentos lógicos vo de convívio com
em que se atraves- outras crianças; na
sam problemáticas Estamos todos vivendo um mediação de ativida-
cruciais: no tempo de acontecimento que impõe uma des de aprendizagem
ser bebê (dos zero aos descontinuidade nas pequenas e nas junto aos professores
três anos), pequena grandes questões da vida, desde a na escola; na reclu-
criança (dos 3 aos 6 organização do cotidiano, passando são dentro de casa; e
anos), criança ou ado- pela sustentação dos projetos de vida no isolamento em
lescente se conta com de cada um, chegando a se interrogar relação a outras pes-
recursos psíquicos soas implicadas em
os modos de restabelecimento de laços
diferentes para poder seus cuidados, sejam
coletivos como humanidade a partir de
responder às contin- babás ou família
gências que se apre- agora. extensa, passando a
sentam na vida, prin- ser cuidadas exclu-
cipalmente àquelas sivamente pelos
contingências históricas que adultos que moram
atingem todo o conjunto da quanto somos mesmo solidá- com elas – às vezes por apenas
humanidade. rios e percebemos com posição um adulto.
Estamos todos vivendo crítica as injustiças, ou seja, Além dos aspectos mais
um acontecimento que impõe esta é uma oportunidade de pragmáticos do dia-a-dia, tais
uma descontinuidade nas fazermos uma reflexão ética. impactos revelam para as
pequenas e nas grandes ques- Mas também pode ser um crianças que os adultos estão
tões da vida, desde a organiza- momento para se fechar cada confrontados com suas pró-
ção do cotidiano, passando um mais em seu próprio prias incertezas e não saberes,
pela sustentação dos seja em relação ao cuidado
projetos de vida de da casa (frequente-
cada um, chegando Além dos aspectos mais mente relegado a
a se interrogar os pragmáticos do dia-a-dia, tais terceiros nas classes
modos de restabeleci- impactos revelam para as crianças que média e alta deste
mento de laços coleti- os adultos estão confrontados com suas país), a educar (ativi-
vos como humanida- próprias incertezas e não saberes, seja dade fortemente
de a partir de agora. em relação ao cuidado da casa delegada à escola),
Por isso se discutem ao cuidar no cotidia-
(frequentemente relegado a terceiros
os efeitos da retirada no (tantas vezes
humana dos espaços e nas classes média e alta deste país), a terceirizado a babás
seus efeitos para a educar (atividade fortemente delegada ou compartilhado
ecologia, a necessida- à escola), ao cuidar no cotidiano com familiares). Os
de de distribuição de (tantas vezes terceirizado a babás ou adultos também
uma renda mínima compartilhado com familiares). estão surpreendidos
universal, o reinvesti- por algo que não
mento em um estado de calcularam, perple-
bem-estar social que zele pela xos e atônitos.
saúde e educação de todos, mundo, ou ainda, achar que Depois de imaginar terem
entre tantas questões que está tudo bem. domesticado o espanto que as
exigirão refazer o pacto civili- Diante de tamanha crianças costumam ter diante
zatório. encruzilhada, as crianças, do mundo, estão novamente
Entretanto, esse pode dependendo da idade ou pro- habitados por ele.
ser um tempo que tem uma blemáticas psíquicas que

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AS CRIANÇAS: sas famílias, porque muitas ções e chegando às suas pró-
das pessoas mais velhas mor- prias conclusões, terapeutica-
DO ESPANTO À reram. mente lhe aponto que temer a
ELABORAÇÃO Um menino um pouco morte é amar viver, e que
maior, de 9 anos, dizia em então temos que fazer a vida
O mundo é muito sessão virtual que estava com valer a pena, cuidando dela a
surpreendente para as crian- muito, muito medo do corona- cada dia. Viver só pensando na
ças, e, diante das menores vírus. Avançando na conversa, morte e temendo a morte é já
minúcias, como a pôde me dizer de seu medo da estar mortificado. Passou
sombra, a folha, a então a falar de viagens,
faísca ou a formiga, ou seja, do que queria
as crianças trilham da vida e de planos
As crianças têm no brincar um
um caminho que vai para depois da qua-
importantíssimo recurso psíquico:
do espanto à repre- rentena.
brincando as crianças elaboram o que
sentação, que liga um É preciso, por-
as atinge. É por isso que as crianças
acontecimento a tanto, que se abra
brincam de covid-19.
outro, estabilizando lugar à conversa
as suas significações. e ao brincar
As crianças têm no brincar diante do que
um importantíssimo recurso morte, mas principalmente acomete às crianças justa-
psíquico: brincando as crian- medo de não saber o que acon- mente para não adoecer.
ças elaboram o que as atinge. É tece depois da morte: se seria
por isso que as crianças brin- “outra fase” (como a de um
cam de covid-19. Esses dias, videogame) ou simplesmente
AS CRIANÇAS
durante uma sessão virtual, “como apagar a luz e acabou”. DIANTE DO ENSINO
um pequeno menino de 5 anos Assim, do coronavírus, VIRTUAL: LIMITES DO
encaixava e soltava da borda passa a elaborar uma das gran-
de um copinho uma bolinha
ENSINO A
des questões da humanidade,
verde toda pontilhada de espi- que, como qualquer grande DISTÂNCIA E DO
nhos e pequenas ventosas na questão, recebe respostas HOMESCHOOLING
ponta, semelhante à imagem culturais diversas, tocando a
do coronavírus. Enquanto isso, vivemos
As crianças uma discrepância
desenham o coro- O modo como um objeto de abissal entre as esco-
navírus, brincam de aprendizagem é apresentado e las públicas e parti-
lutar fisicamente com mediado faz toda a diferença para culares. Enquanto
ele como com um apreender, seja pelo encanto que um nas primeiras se
personagem de qua- professor tem em relação a esse objeto, produz uma suspen-
drinhos, representan- transmitindo-o aos alunos, seja pelo são das atividades,
do o vírus (morto) compartilhamento que se produz com nas segundas se
com os olhos em cruz. os colegas da mesma idade na troca de produz uma polêmi-
Encenam com bone- ideias e nas formulações coletivas de ca entre pais e educa-
cos mundos imaginá- hipóteses por um grupo, que são dores. Há pais que
rios em que todos componentes centrais para apreender. exigem mais tarefas
voltam a habitar as escolares, preocu-
praças em uma grande pados com que as
festa junina, ou até crianças não
mesmo mundos em que há borda do saber e não-saber. percam tempo em sua
muitas crianças cuidadas por Além da importância de que escolarização. Outros clamam
poucos adultos, que passaram fale sobre isso com seus fami- pela suspensão das mesmas,
a ser os novos pais de numero- liares, fazendo suas investiga- pelação de tarefas que implica

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terem que se ocupar de acom- que nos coube viver, mas Entendendo que, para atraves-
panhar as atividades escolares disponíveis para um com- sar um momento crucial, é
em meio a seus próprios com- partilhamento lúdico do preciso não recuar dos cuida-
cotidiano. Cozinhar junto,
promissos de trabalho. dos do modo em que os
arrumar a cama junto, pendu-
Fica a descoberto que rar roupa junto, conversando mesmos sejam possíveis. O
aprender não é simplesmente sério sobre as aflições que que tampouco implica avançar
um encontro de um estudante temos e brincando também, como se houvesse uma simples
com um conteúdo. As crianças pois isso pode dar lugar a continuidade entre os encon-
não têm como fazer das ativi- muito mais aprendizagens que
dades escolares uma espécie tros presenciais e os virtuais.
qualquer atividade pré-pro- Por meio das telas o
de home office, mantendo-se gramada. É preciso nesses
ocupadas diante de um com- tempos conviver muito, ou olhar se achata de modo bidi-
putador enquanto os pais seja, fazer a vida em comum mensional. Além disso,
fazem o mesmo. O modo como acontecer, sustentando o quando olhamos nos olhos de
um objeto de aprendizagem é prazer de viver e também os nosso interlocutor virtual, ele
apresentado e mediado faz limites e as angústias que atin-
toda a diferença para apreen- não encontra o nosso olhar e,
gem a todos nesse momento. se olhamos para o “olho de
der, seja pelo encanto que um Educação é muito mais
professor tem em relação a que ensinar conteúdos e vidro” do pequeno orifício da
esse objeto, transmitindo-o desenvolver habilidades e câmera, para que nosso inter-
aos alunos, seja pelo comparti- competências, educação é locutor tenha a ilusão de que
lhamento que se produz com formação humana no sentido estamos olhando em seus
os colegas da mesma idade na mais amplo, não só de capaci-
troca de ideias e nas formula- olhos, perdemos de vista as
dades, mas de desenvolvimen- reações faciais que nele provo-
ções coletivas de hipóteses por to de sensibilidade e humani-
um grupo, que são componen- dade, uma formação ética e ca o nosso dizer.
tes centrais para apreender. estética.Nesse contexto, o Por sua vez, em tais
Nesse momento é encontro entre família e escola dispositivos, a voz é mecânica,
preciso lembrar que educar, tantas vezes tem carecido do fazendo com que se percam
muito mais do que tentar ensi- diálogo necessário para cuidar
nar conteúdos apostilados sem nuances da entoação e articu-
conjuntamente da formação lação, bem como todas as con-
ser professor, é transmitir o de uma criança, que é algo
que importa na vida. Boa muito maior do que reduzir dições gestuais, sendo todos
pergunta aliás para fazermos essa relação a uma prestação esses aspectos importantíssi-
diante de tantas crianças que de serviços na lógica do consu- mos para o contexto de enun-
vinham de uma vivência de midor. ciação, ou seja, para o entorno
agendas cheias de atividades,
mas que tantas vezes carecem no qual se decide a significação
de ideais desde os quais cons- OLHAR E VOZ NA do que dizemos.
truir suas narrativas e brinca- Nos contextos virtuais,
deiras, ficando dependentes de VIRTUALIDADE: os silêncios tendem a ser com-
que outros lhes proponham ENCONTROS preendidos como falhas técni-
atividades pautadas.
Por isso, mais do que POSSÍVEIS DURANTE cas, sendo preciso a todo
momento preenchê-los ou
entreter as crianças durante a A QUARENTENA confirmar que se escutou, que
quarentena, achando que
precisaríamos rechear as suas A virtualidade é um se viu ou se entendeu. Isso
vidas de um sem fim de ativi- recurso possível para alguns torna bastante difíceis os
dades prazenteiramente edifi- durante a quarentena (ainda diálogos, já que o silêncio
cantes, ou quebrar a cabeça que haja uma grande maioria arma o turno para cada um,
com o homeschooling como se bem como cria um espaço de
fosse possível prosseguir no de pacientes e alunos do
mesmo ritmo, ou ainda deixá- ensino e da educação pública elaboração antes de se tomar a
-las sós com eletrônicos fora do acesso digital). Para palavra, ou depois de escutar o
enquanto os adultos fazem aqueles com acesso, tem se dito.
todas as tarefas do seus traba- procurado sustentar encontros Por isso os encontros
lhos e as da casa, é preciso de aprendizagem, bem como virtuais não são equivalentes
estar junto do modo em aos presenciais. Estamos
que é possível diante do os atendimentos clínicos.

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virtualmente ao mesmo vocadas pelo olhar e pela voz cio, olhando o que ela olha ou
tempo, mas em espaços dife- exige um grande trabalho do falando-lhe do que ela faz, sem
rentes, geralmente enquadra- clínico, mesmo em presença. que o seu fazer seja inicial-
dos como cabeças flutuantes. Pela via virtual colocam-se mente dirigido a nós. Outras
Sem corpo. Será que sem obstáculos a mais na tentativa evocando uma música do brin-
corpo presente podemos apre- de produzir encontros possí- quedo que ela tem na mão ou
ender, transmitir, nos relacio- veis com a criança. um gesto ou brincar comparti-
nar? Além da bidimensionalidade lhado de uma outra sessão...
Certamente faz aí bas- da visão, do desencontro do Trata-se de sustentar o tempo
tante diferença a idade que se olhar, da deformação da voz, e o espaço para o desenrolar de
tenha, pois sabemos que, da ausência de um espaço em um fazer imprevisível, em que
quanto maior for a possibilida- comum para o contexto da a criança possa entrar e sair do
de de representação enquadramento, se dispon-
de alguém pela do ou não a esse encon-
palavra, mais pos- tro junto a seus pais.
sível é sustentar uma Por isso os encontros virtuais não são Lembro de um
relação com outro, equivalentes aos presenciais. Estamos menininho de três
mesmo em ausência virtualmente ao mesmo tempo, mas em anos que, quando
real do seu corpo, tal espaços diferentes, geralmente a mãe pega o celu-
como muito antes da enquadrados como cabeças flutuantes. lar, diz “música,
internet o revelaram Sem corpo. Será que sem corpo música”, chorosa-
as relações epistola- presente podemos apreender, mente, frustran-
res. Mas, para um transmitir, nos relacionar? do-se pelo fato
bebê ou pequena de me encontrar
criança, a situação aí não é ali, em lugar de
simétrica à de um adolescente enunciação, da falta de olfato poder assistir o
ou adulto. Tampouco o é em (que no caso de bebê exige que aplicativo. No entanto, a
função das dificuldades os pais possam pôr em pala- sessão se desdobra
psíquicas que estejam em jogo vras se o barulho escutado quando lhe canto uma
para cada um. Daí que exija correspondeu ou não ao fato música da sessão e, na
um grande cuidado clínico do bebê ter feito cocô, por sequência, ele me canta
considerar como proceder em exemplo) – todos aspectos uma nova, saindo da con-
cada caso, restabelecendo o técnicos desse modo de comu- dição de passividade em
marco e enquadre do trata- nicação –, é preciso também que se fica diante de apli-
mento para este contexto levar em conta como os gad- cativos para uma de ativi-
virtual durante a quarentena. gets estão impregnados por dade, em uma estrutura
Não dá na mesma fazer uma certa lógica de encontro dialógica, com turnos e
sessões ao telefone (prio- performático que se opõe à endereçamento a outro,
rizando a voz) e por vídeo lógica de uma sessão. mesmo que através do
(nos casos em que o olhar Assim, é frequente que, na celular.
é imprescindível), e inclu- intervenção com bebês e crian- Em outro caso, no
sive tampouco é equiva- ças pequenas, os pais queiram início da filmagem, um bebê
lente a duração da sessão que a criança nos mostre algo, de dois anos está olhando
ou a frequência de atendi- nos diga oi, se endereça a nós para um pedacinho de
mento em cada caso assim que a chamada comple- papel. A mãe pede que ele
durante a quarentena. ta, sendo preciso retomar um me olhe pela câmera do
Quando tratamos de marco que faz com que essa celular, mas ele não res-
pequenas crianças para as videochamada se coloque ponde a essa demanda.
quais o endereçamento aos desde a condição de nossa Pergunto o que será que
outros não está estabelecido, disponibilidade para a criança, tem nesse papel, ele bal-
fazer com que se sintam con- às vezes partindo de um silên- bucia e a mãe traduz

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“abelha”. Faço então o dos nos cuidados das crianças, ças compartilhando e de
zunido da abelha e imito contando histórias, as familia- modo disponível é decisi-
seu vôo com minha mão. res e as da humanidade, as da vo nesse momento. Aliás,
Ele então me olha, justa- ficção e as da realidade, já que é o que a humanidade fez
mente quando dou voz ao ambas comportam verdades, nos momentos mais críti-
objeto que captu- cos. Recentemente evoca-
ra o seu olhar. va em um encontro
Depois imito a com colegas para
Quando compartilhamos os saberes
picada de uma discutirmos “a virtu-
engendrados pela elaboração do viver,
abelha com o dedo alidade e os encon-
o que um transmite pode contribuir
indicador sobre o tros possíveis na qua-
para a vida de outro, a fim de que não
meu braço fazendo passe pelas mesmas dificuldades e não rentena” o livro “No
o som “pim”. Na repita os mesmos erros. he visto mariposas
segunda vez a mãe por aqui”, que traz
faz o gesto sobre o desenhos e poemas
braço do filho, transfor- das crianças do
mando em toque o meu cultivando o estofo simbólico campo de concentração de
gesto e som. Todos rimos desde o qual se ganha coragem Terezin. Ali, mesmo às portas
juntos, pois ali havia se para atravessar os duros da morte, os adultos contavam
realizado um encontro momentos que comparecem para as crianças o que sabiam
possível. ao longo do viver. da vida e de seus objetos de
Trata-se de quebrar Quando compartilha- interesse. Físicos davam aula
uma lógica, a das de física, artistas de suas
intoxicações eletrô- artes, e assim permi-
nicas, que é a que tiam que as crianças
As crianças não devem ser expostas
predomina na utiliza- não só aprendessem
cruelmente à realidade de forma
ção desses gadgets, conteúdos, mas prin-
brutal. É preciso poupá-las para que
sustentando a possi- cipalmente produzis-
possam sonhar brincando (e essa é a
bilidade do compare- sem recursos psíqui-
infância roubada de tantas crianças do
cimento do sujeito em cos e epistêmicos que
mundo expostas à miséria, à doença e à
encontros pelo meio violência da privação dos direitos as fortaleciam sim-
virtual. humanos ). bolicamente.
Certamente
TRANSMISSÃO E trata-se de uma
situação incompará-
INFÂNCIA mos os saberes engendrados vel com a que estamos viven-
pela elaboração do viver, o que do. No entanto ela revela a
Depois de um período um transmite pode contribuir importância da transmissão
ao longo do qual se tornou para a vida de outro, a fim de simbólica, pois recordar e
crescente a exposição de crian- que não passe pelas mesmas passar adiante o saber de uma
ças a telas de cristal líquido, dificuldades e não repita os geração para outra é impres-
experimentamos os limites da mesmos erros. Por isso, fazer o cindível para elaborar e não
virtualidade, diante do qual simbólico circular é o modo de repetir, seja na vida de cada
talvez se imponha a necessária produzir a elaboração de um um, seja na história de toda
retomada do termo educação, fato histórico e a transmissão uma sociedade.
menos como ensino de um de um saber, por contos orais As crianças não devem
conteúdo a ser passado e mais ou escritos, filmes, peças, ser expostas cruelmente à
na direção da transmissão esculturas, pinturas, quadri- realidade de forma brutal. É
simbólica, ou seja, de compar- nhos, grafites, piadas, comidas preciso poupá-las para que
tilhar experiências vividas por familiares ou cantigas infantis. possam sonhar brincando (e
adultos diretamente implica- Estar com as crian- essa é a infância roubada de

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tantas crianças do mundo ta que as crianças não per- afora que permitam o exercício
expostas à miséria, à doença e cebem a perplexidade amoroso, social e sexual na
à violência da privação dos estampada no rosto dos exogamia. Também é preciso
direitos humanos ). Mas tam- adultos quando o mundo considerar como, justamente
pouco se deve negar suas também se torna espanto- em um momento de passagem
percepções sobre o mundo e as so para eles? da família para a construção de
respostas às suas questões, um lugar no mundo (laboral e
porque se viverem dissociadas A ADOLESCÊNCIA amoroso), as contingências de
da realidade, extirpadas da uma pandemia apresentem
interrogação acerca de qual- PRIVADA DA um mundo tão incerto, tornan-
quer conflito ético, em um con- CIRCULAÇÃO do muito mais difícil calcular
tinuum de satisfações capaz de os rumos da própria caminha-
causar torpor às suas percep- Os recursos da infância da. Daí a importância de
ções, se tornarão “pobres não são os mesmos da adoles- sustentar diálogos, ler livros,
meninos ricos”, condenados à cência, mas tampouco o são as ver filmes acerca dos impasses
estúpida assepsia da “garantia suas urgências. A passagem que cada geração teve que
do final feliz”, não só frágeis adolescente, da condição de atravessar diante do momento
psiquicamente, mas com criança para a entrada na vida histórico social próprio de sua
muito pouco a contribuir com adulta, vem acompanhada por juventude, bem como poder
um projeto maior de civilida- uma sede de experimentar dar um “rolê virtual” com os
de, já que centradas em um vivências que permitam pro- amigos em que se possa trocar
hedonismo narcisista. duzir um saber que se apoie experiências com os seme-
Não devemos pintar em experiências próprias. lhantes, mesmo diante de
para as crianças um falso cená- Um adolescente me todos os limites da virtualida-
rio festivo na ilusão de que dizia que havia feito as contas e de.
poderíamos tapar o sol com a que provavelmente só poderá
peneira. As crianças não se voltar a beijar em 2021. Outra
E OS BEBÊS NA
enganam, elas sabem buscar falava que estava fazendo a PANDEMIA?
nos pequenos detalhes as “rotina da Rapunzel”, justa-
Frequentemente se diz
incongruências que os adultos mente a história de contos de dos bebês “eles não enten-
buscam ocultar. Essa é a dife- fada em que a protagonista dem”. Certamente os mais
rença entre o que os adultos está presa em uma torre. Outro pequenos ainda não estão
fizeram no campo de concen- contava da dor de perder o dentro de todos os códigos que
tração de Terezin - no qual convívio com seus colegas no implicam uma compreensão
falavam com as crianças de último ano de escola, um da significação de palavras
que não estão atreladas ao seu
história, arte, astronomia, momento da vida em que cada cotidiano. Mas um bebê é
desenhavam e inventavam dia é tão único e transforma- afetado pelo contexto que o
poesias - e o personagem do dor. Outro ainda falava das cerca, pelas significações que
filme “A vida é bela”, no qual o incertezas do futuro,entre elas, se outorgam ou não às suas
pai procura disfarçar para o da data do Enem. Outro, primeiras experiências, pela
seu filho as atrocidades do ainda, devido à dificuldade de preocupação de seus pais, bem
como pela solidão com que
campo de concentração, como privacidade em casa para ter muitos têm exercido os cuida-
se tudo fosse um grande jogo. ( suas sessões online, busca o dos dos bebês durante a qua-
Artigo: As Crianças e o Paraí- sótão numa bela metáfora rentena.
so,1999, Correio da APPOA) dessa experiência de buscar o Os bebês que estão nas-
Conversar para privado em si que é se analisar. cendo nesse período, e que por
valer sobre as questões da Certamente se apresen- algum motivo precisam
permanecer internados em
vida não está em oposição ta uma perda imediata em
UTI, têm sofrido uma privação
com poder sonhar, brin- ficar recluso em um momento
de contato e relação com os pais
car, desenhar ou fazer um da vida em que é preciso expe-
ainda maior do que já ocorria
chiste. Ou alguém acredi- rimentar encontros mundo

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anteriormente em circunstân- os outros, estando muito expostos revela a grande potência de
cias de internação. Às vezes os às condições do contexto em que estímulos presentes nas atividades
bebês são apenas “mostrados” vivem. Por isso é preciso conside- de vida diária para a linguagem,
para os pais por uma tela, sem rar muito bem o que se fala com psicomotricidade e aprendizagem,
que haja interação ou qualquer eles para que possam entender o por meio das quais se produzem
possibilidade de diálogo. que está acontecendo e também o experiências estruturantes sem
Quanto aos que que seja preciso recorrer a
podem ir para casa nenhuma intervenção
com os seus pais, na tecnicista ou artificiosa.
falta de um suporte de Um bebê não conta com os Na primeiríssi-
avós ou comadres que recursos ficcionais – de faz de conta, de
ma infância o brin-
junto à mãe sustentem desenho ou de narrativas fantásticas –
car se sustenta em
o exercício da função que uma criança maior tem. Por isso,
uma relação com-
materna, interpretando os bebês respondem com a organização
partilhada. São os
o que se passa com o ou desorganização de seu corpo em
bebê nas cenas do pais aqueles que
relação à fome-saciedade, sono-vigília,
cotidiano, os pais introduzem peque-
modulação emotiva, disponibilidade ou
frequentemente se nas brincadeiras em
não a olhar ou a escutar os outros,
vêem lançados a signifi- estando muito expostos às condições do meio aos cuidados,
car o que se passa com o contexto em que vivem. com musiquinhas,
bebê exclusivamente cócegas ou olhares
por informações retira- que produzem
das de blogs, em lugar de uma condição de
poderem atrelà-las ao mito fami- que se diz na frente deles. prazer no encontro
liar. Nesse caso acima, ao se com o bebê. (J.Jerusalinsky,
Lembro aqui o caso de falar com ela sobre o que estava 2011). Esse prazer comparti-
uma menininha de pouco mais de acontecendo e ao poupá-la da lhado é estruturante das dife-
dois anos que voltou a acordar tensão da conversa dos adultos, rentes funções desde o comer
durante a noite e a ter pesadelos. seu sono voltou a se apaziguar. e dormir, ao caminhar e
As sessões vêm ocorrendo parte A sustentação dos atendi- falar(Bergés, 1988). Assim
com ela, que me mostra e
muito mais do que produzir
me conta coisas do
uma intervenção que
sítio de sua avó, e
submeta o bebê a fazer
parte com a mãe. Junto a intervenção em estimulação precoce algo, é preciso conside-
a esta percebemos que que parte de um paradigma rar o que pode convocar
ela tem testemunhado psicanalítico, não se restringe a “fazer o bebê a desejar realizar
conversas de trabalho do com que o bebê faça”, mas busca “fazer essa produção. Em
pai em que transparece a com que o bebê deseje fazer”. outras palavras, a
preocupação com o
intervenção em
momento atual, sendo eles
estimulação precoce
pais muito implicados com a saúde
mentos clínicos em estimulação que parte de um paradig-
a educação coletivas que temem
precoce com a primeiríssima ma psicanalítico, não se restringe a
por toda uma sociedade.
infância é, portanto, muito impor- “fazer com que o bebê faça”, mas
Um bebê não conta com os
tante durante a quarentena. Por busca “fazer com que o bebê deseje
recursos ficcionais – de faz de
um lado, mantendo-se na condição fazer”. Questão pertinente de
conta, de desenho ou de narrativas
de interlocutores privilegiados dos retomar em meio a suspensão de
fantásticas – que uma criança
pais, escutando suas angústias e atividades pré-programadas, que
maior tem. Por isso, os bebês
construindo com eles saídas em tantas vezes enrijecem os encon-
respondem com a organização ou
um momento de grande intensida- tros com os bebês e as pequenas
desorganização de seu corpo em
de de convívio com o bebê. Por crianças, suprimindo a espontanei-
relação à fome-saciedade, sono-vi-
outro, testemunhando situações de dade do prazer compartilhado do
gília, modulação emotiva, disponi-
encontro com o bebê em que se brincar.
bilidade ou não a olhar ou a escutar

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OS BEBÊS E AS prosseguir (Harari, Byung e do dia aquilo que diz respeito
Zizek já vem apontando isso). aos princípios de trabalho que
QUESTÕES DA, No que tange à saúde, fica a compartilhamos coletivamen-
PREVENÇÃO E descoberto que: te na REDE-BEBÊ: conside-
GESTÃO EM SAÚDE - Não existe saúde individual, rando-se a importância de
já que o lugar de cada um se apoio à RAPS, bem como a
PÚBLICA sustenta em uma rede, tornan- inscrição de um acompanha-
LEVANTADAS PELA do imprescindível o acesso à mento de desenvolvimento na
PANDEMIA um sistema único de saúde primeiríssima infância perme-
universal. ados por critérios de estrutura-
Por último, não pode- - Também fica evidente que ção psíquica do bebê na rela-
mos deixar de lembrar que pretender situar saúde e eco- ção com os outros, que permi-
estamos completando dois nomia em campos opostos é tam sustentar as condições
anos da REDE-BEBÊ. Um querer negar que eles estão favoráveis para essa estrutura-
trabalho conjunto, sustentado indissociavelmente articula- ção, bem como para o exercício
por colegas de diferentes dos pela gestão de saúde públi- da função materna.
núcleos locais, articulado em ca. Esta, quando mal conduzi- Enquanto bebês em
torno da questão de cuidados, da, produz danos à população sofrimento psíquico conti-
intervenção, educação e clínica que poderiam ser evitados ou nuarem sendo excluídos
com a primeira infância: bebês minimizados, empurrando os por falta de visibilidade,
de 0-3 anos e pequenas crian- mais desprotegidos ao risco do recebendo tratamentos
ças de 3-6 anos. adoecimento. apenas quando neles,
Se a covid-19 é causada - Ainda que, um país que não anos mais tarde, se reali-
por um vírus, tal acontecimen- investe na saúde acaba pagan- zam os diversos sintomas
to natural assume as dimen- do um preço econômico muito de quadros psicopatológi-
sões de uma pandemia em mais alto por isso. Torna-se cos, seguirá operando o
uma sociedade que tem dado também inquestionável que a paradigma da doença e da
pouquíssima importância à prevenção no sentido de criar medicalização em lugar de
prevenção, bem como a um ações de promoção de saúde e fazer valer o da detecção
estado de bem estar social, precoce detecção de riscos, precoce de riscos para
causando danos muito maio- além de ser o mais ético, é apostar na estruturação,
res pela falta de cuidados sempre o menos custoso, a intervindo o antes possí-
preventivos. longo prazo, em termos huma- vel quando algo não vai
Não sairemos dessa nos e econômicos do que o bem. Por isso seguiremos
pandemia para o mesmo tratamento de doenças instala- trabalhando.
mundo que deixamos, tornan- das – e o mesmo vale para a
do-se imprescindível pensar saúde mental.
em que direção desejamos Por isso está na ordem

Texto da REDE-BEBÊ, organizado por Julieta Jeru-


salinsky (Núcleo São Paulo) com a participação dos
integrantes da comissão de organização do III
encontro da REDE-BEBÊ: Luciana Oltramari Cesar
e Vivian Nolasco (Núcleo Passo Fundo), Maribel de
Salles de Melo (Núcleo de Paraná) Zulema Garcia
Yañez (Núcleo de Porto Alegre) e apoio dos Núcleos
Locais de: Goiânia, Cuiabá, Paraná, Vitória, Santa
Cruz do Sul, Florianópolis, Criciúma, Porto Alegre,
São Paulo, Passo Fundo, São José do Rio Preto.

9 PEÇAS SOLTAS - REVISTA CRIANÇAS - JUNHO 2020

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