Linguagem transcendental (frye) na Divina Comédia (Auerbach) figura, alegoria
Sabemos que a língua é um aspecto decisivamente cultural, ela carrega
história, ideologias e dinamismo social de seus falantes. Some-se a isso o grau de sofisticação envolvido no tratamento do idioma em textos literários, em alguns mais que outros, alargando as possibilidades linguísticas de um povo, em novos registros, criações, refazimentos. Logo, o fato de um texto literário ter sido escrito em determinada língua diz muito sobre a cultura a que tal obra está ligada, ao menos em sua gênese. Todavia, uma tradução pode representar um afastamento dos pesos culturais da língua original. Além disso, há idiomas, como o português, falado em países de culturas diversas, o que faz com que o contexto geográfico em que a obra foi produzida, além da própria língua, seja um elemento importante na identificação de características relacionadas ao lugar em que a obra foi escrita.
Fatores externos à obra — como biografia do autor; local em que foi
produzida e publicada; dados históricos e geográficos nela citados, compondo seu enredo — não são, via de regra, fundamentais para o que mais importa em um texto literário: sua compreensão e o envolvimento lúdico e afetivo deste com seu leitor. Porém, o conhecimento de tais fatores, em alguns casos, pode influir na recepção da obra, acrescentando informações que alarguem o entendimento de determinados temas ou passagens, ou, ainda, estreitando laços afetivos entre o texto e o leitor, quando aquele cita ou descreve, por exemplo, lugares que este já frequentou.
Digamos que um leitor distante de Pernambuco leia O cão sem plumas,
de João Cabral de Melo Neto. Esse leitor não convive fisicamente com a realidade geográfica e social aludida no poema para a construção das metáforas cabralinas. Ainda assim, sua leitura pode ser rica em razão da coesão dos elementos textuais da narrativa do poema, que descreve um rio metafórico e a dura realidade que lhe margeia, e das associações que esse leitor fará com os versos e sua própria realidade, com seu arcabouço íntimo de memória e leituras anteriores. O cão sem plumas pertence ao mundo, a quem lê-lo. O que não negamos, porém, é que essa leitura se daria de um modo diferente daquela realizada por um morador de Pernambuco, por exemplo, que tenha frequentado pessoalmente o contexto social denunciado pelo poeta e o próprio rio que serve como mote do poema. Não se trata necessariamente de uma leitura mais intensa ou reflexiva, mais de uma relação de estreitamento de laços afetivos entre o poema e o leitor, pelo fato de este reconhecer na leitura um objeto de experiência pessoal compartilhada. Além disso, o imaginário particular desse segundo leitor se ampliaria indo ao encontro do imaginário popular já enriquecido com a metáfora criada por João Cabral com a descrição do rio que corta várias cidades do estado. O sentido universal do poema se mesclaria com a identificação particular do leitor com o cenário sociogeográfico, originando um tipo singular de recepção e suas possíveis consequências no sistema literário.
Mesmo os cidadãos do mundo globalizado pertencem a um lugar, que
pode não ser melhor que qualquer outro, mas possui características próprias que podem oferecer a seus habitantes um sentimento de pertencimento. A literatura
No entanto, nem toda obra literária apresenta tais características, ligadas
ao tempo e ao lugar em que foi produzida. Há autores em que as marcas de universalidade dominam o texto, tornando difícil ou até impossível, sem conhecimento prévio da autoria, identificar onde ou até mesmo quando a obra foi escrita. Nesses casos, de autores “sem-lugar” ou “sem-tempo”, não existem aspectos que lhe determinem um pertencimento geográfico; sua obra pertence, porque se identifica com, todos os lugares.
Uma história da literatura deveria, antes de tudo, construir-se sob a
defesa do elemento literário (literariedade) como essencial na análise dos processos que envolvem a produção, a circulação e recepção das obras. Desse modo, uma obra não estaria automaticamente atrelada a uma escola literária tão somente porque seu autor viveu em determinados lugar ou época. Antes, as características verbais significativas de uma obra a colocariam em diálogo com este ou aquele grupo artístico, ou ainda com nenhum, tratando-se, nesse caso, de uma obra extremamente peculiar sem conexões possíveis no horizonte vigente.