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David Viñas: “!Mario, por favor, peruano do Peru, fique quieto!

(*) Por Jorge Wolff

O autor de Literatura argentina y política y Cuerpo a cuerpo faleceu aos 83 anos, em Buenos
Aires, neste mês de março em que se trava uma intensa polêmica sobre a presença de Mario
Vargas Llosa na abertura da Feira do Livro de Buenos Aires, em abril próximo. Em 1996, Viñas
proferiu a frase acima, a propósito do livro que Vargas Llosa publicara sobre Flaubert, mas que
se poderia atualizar e utilizar em relação ao debate atual. Retomo então aqui a entrevista que
*
gentilmente me concedeu naquele ano. Estudante de pós-graduação em literatura no Brasil
com pesquisa sobre a literatura argentina, mantive três encontros com David Viñas nos últimos
dias de outubro de 1996. Na primeira tentativa de entrevistá-lo, indicou-me o endereço do
Instituto de Literatura Argentina, que então dirigia, no maltratado prédio da Faculdade de
Filosofia e Letras – 25 de Mayo, 217 – “à sombra do menemato”, como fez questão de enfatizar
horas antes, ao telefone. Cheguei no horário combinado e tive de esperar cerca de duas horas,
o que não foi um problema já que estava em busca de vários livros que me rodeavam na
biblioteca do Instituto. Viñas estava sendo entrevistado por uma estudante espanhola e, ao fim
do depoimento, faz menção de partir. O secretário interfere: “El brasileño...” Durante alguns
segundos parece ter esquecido do encontro, mas de repente exclama: “Sí, el brasileño” e
chega à mesa onde eu simulava ler, enquanto ouvia o diálogo. Antes mesmo de me saudar,
declara: “!Puede insultarme!”... Então pede desculpas e marca novo encontro para o dia
seguinte, no café da antiga Livraria Gandhi (Corrientes, 1551). Chego ao café às 15 horas e já
me esperava, lendo De la démocratie en Amérique, de Tocqueville. Cumprimento-o
preocupado com o ruído, há muita gente no lugar, além de uma pequena loja de discos.
Algumas interrupções – cafés, cigarros, vários conhecidos – e o fim da sessão inicial às 16
horas em ponto, quando retorna a estudante espanhola para continuar sua conversa. O
derradeiro encontro fica para o outro dia, mesmo horário e lugar, quando é possível falar e falar
por mais tempo. Depois, saímos para outro café em outro bar das imediações, enfrentando a
rotineira multidão de gente e automóveis do bairro em que nasceu. Cordial, Viñas demonstra
desde o início toda a sua conhecida verve e termina a entrevista com o seu “cala-te” ao último
prêmio Nobel de literatura. Resgato o depoimento a seguir como forma de agradecimento e
homenagem.

Entrevista de David Viñas, Buenos Aires, outubro de 1996.

Jorge Wolff – Gostaria de começar falando sobre De Sarmiento a Cortázar...

*
Publicada em Wolff, J. Julio Cortázar. A viagem como metáfora produtiva. Florianópolis: Letras
Contemporâneas, 1998.
David Viñas – Este é um livro que foi composto fundamentalmente por algo como panfletos.
Não sei como se lê agora. Qual é a idéia do livro? Diante da coisa canônica desse momento –
creio que foi mais ou menos 1970, 71. Não sei se você viu que ele agora se converteu em dois
tomos e está como que mais articulado. Era uma versão quase ficcional, polêmica, não
convencional, algo assim como um romance crítico, jogando aí uma e outra possibilidade
diante do canônico e da chatice. Nem te conto o que era a versão acadêmica que corria e
ainda corre um pouco. Tratava-se de dramatizar, usar a idéia brechtiana de desteologizar,
dessacralizar a coisa convencional. Não sei ao lê-lo agora o que passa: se soa simplesmente
“gritão” ou desproporcionado, ou arbitrário. Entre a chatice e o arbitrário, fico com a
arbitrariedade. Pelo menos este tipo não vai estar repetindo o Pai Nosso.

JW – Como você analisaria o Cortázar dos anos 60 agora?

Viñas – Aí está o cânone. A quem canonizaram, sobretudo a partir da zona liberal-


conservadora, que aqui ainda detém – como em outros lugares – o poder cultural, sobretudo a
literatura. Consabido cânone: Borges, Cortázar, depois aparece Bioy, e pode-se pôr Sábato.
Mas em Borges é preciso situar-se. O velho lá sabia! Era um filho-da-puta, mas sabia muito de
literatura! O maior risco, ao menos aqui, é lê-lo e ficar “colado”, impregnado de coisas,
assumindo uma espécie borgiana. Está bem, dez pontos. Como para Machado de Assis! Está
bem, está no céu, conquistou-o. O resto é muito mais discutível. E, no caso de Cortázar, uma
coisa que se vai vendo, ao ler os romances, é que são intragáveis. Rayuela... Está bem, contos
sim, tem sete contos que te diria de primeira, mas os romances...

JW – Lezama Lima comentou que os dons de crítico seriam maiores que os de criador em
Cortázar. O que você pensa disso?

Viñas – Eu, se tenho que reivindicá-lo, voltar a lê-lo ou propor um curso, um trabalho sobre
Julio, digamos, uns quantos contos. E Rayuela. Mas se você toma El libro de Manuel, dirá
então: - Isto é um disparate, isto me parece quase uma bobagem. Além do mais, creio que foi
muito supervalorizado. Não era um romancista, não era alguém que tinha capacidade de
manejar um aparato com muito volume. Creio que é alguém que pode fazer um tipo de conto
muito bem desenhado, mas criticamente... É uma coisa norte-americana, um tipo que de
repente colocou um problema de fronteira. Se vê como funciona, o problema de fronteira vai
decifrando toda uma série. Ou seja, descobrir um certo Aleph, propor algo que tenha uma
produtividade muito forte. E que lhe siga servindo para decifrar determinado tipo de coisa.
Perdoe-me, Julio, lamento, mas não! Algo que de repente me permita dizer: - Este tipo até viu –
mas você não viu -, aí dentro há algo que funciona. O Brasil, digamos: Gilberto Freyre, este tipo
alguma coisa viu. Não sei como está a polêmica em torno dele no Brasil, mas ele viu um eixo,
um Aleph. A partir disso, vamos ver que coisas podemos descobrir. Os sertões, muito bem,
você diz: - Este tipo viu o Nordeste. Ou isto já não me serve para nada. É alguém que viu
alguma coisa. E no caso de Julio, não poderia dizer isto, não?

JW – Entendi a colocação de Lezama Lima como uma crítica a suas limitações como criador.
Viñas – Provavelmente que não queria dizer-lhe explicitamente: - Julio, perdão, não gosto do
que você faz... E note que estou citando isto do Aleph, ou seja, o velho Borges, desde sua
perspectiva. Ele acerta precisamente com isso, com um Aleph. Dá uma chave que pode servir
para uma série de coisas. No caso de Julio, perdão...

JW – Você situaria o jovem Cortázar entre a esquerda liberal da revista Sur?

Viñas – Não a esquerda, Victoria Ocampo e tudo mais. Note que, a esse respeito, o velho
Borges tomava sua prudente distância, não estava superposto com Victoria. Um aleitura
possível é de que toda a transposição de “Cartas a Mamá” são cartas a Victoria. Há coisas
que, além do mais você pode ir juntando. Note como ele joga quando escreve explicitamente
“Julio Cortázar a Victoria” [refere-se a um artigo de 1950]. O que era este personagem para ele,
o que era Sur para ele. Quando ele se vai da Argentina em 1951, simplesmente tem uma
reação muito conservadora, muito liberal frente a este fenômeno que era – sei lá – o
varguismo, digamos, o varguismo, o trabalhismo. O que é isto? O que é este fenômeno?
Saíram os negros à rua! O que é esta história? Simplesmente uma coisa reativa: - Eu já não
agüento! E se foi. Está bem, era uma alternativa. Creio que está em sua literatura, sobretudo
no começo de sua literaura. Está bem, Julio, aprendizagem todo mundo a tem. Mas, no
começo do que ele vai produzindo, o que entra em circulação, Bestiario e etc., até os anos 60,
o componente antiperonista está aí. E então seguramente se pode confrontar com coisas
escritas por ele sobre o peronismo onde explicita – já não através da mediação narrativa - qual
era sua reação frente à coisa peronista. Depois, a sedução e o impacto da sedução da
revolução cubana. Digo 1959, 60, 61, que era a sedução por esse lado. E com uma presença
que ainda segue funcionando, e por muitas razões era inevitável, que era Guevara. Um
argentino com o qual se podia identificar – ele e qualquer um – te diria, polemicamente, sem
objeções. O mundo da utopia, etc., etc. O descobrimento da coisa revolucionária e da América
Latina desde Paris. Aí a proposta é o cruzamento com Régis Debray. Ou seja, como se teria
que ler a fronteira de Debray, a descoberta de Debray. Como se cruza isto, não? Alguém que
sai daqui – creio que está no texto –, da escola normal daqui e vai para lá. E o outro que vem
da Ecole Normale Supérieure e toda a historieta e que se cruzam em Cuba. E a sedução de
Cuba. Mas sobretudo, mais que a presença de Fidel, a presença de Che. Aí este
descobrimento – descobrimento que depois lhe serve ou lhe dá apoio para aderir também à
revolução nicaragüense. Eu poderia dizer-lhe bruscamente: ele de política não entendia nada.
Politicamente não tinha categoria. Se virava legitimamente em termos de visão, simpatia, etc.
Eu vi um filme sobre ele em que, visto daqui e naquele momento, você pode tomá-lo como um
revolucionário. Houve toda uma adesão, que foi muito ampla e que muita gente teve, inclusive
Debray, e que incluiu as dois no processo inicial da revolução cubana e os iluminou, os
favoreceu. Nem te conto o problema com Debray agora... Era um homem de boa vontade,
Julio.

JW – Como você vê o caso de um escritor argentino atual que está na França, como Juan José
Saer?
Viñas – Saer, sem dúvida. Mas este circuito creio que se acaba com Cortázar. Porque Cortázar
o estende ao máximo. Note que o seguinte é o bom Héctor Bianciotti, a quem fazem
acadêmico na França. Para mim isto é um emblema: a prolongação da viagem – daria para
fazer um ensaio – da viagem de Cortázar e da coisa cortaziana, incluindo a Saer, é que te
façam acadêmico, imortal. A não ser que se goste disso... – Se gosta, vive tua vida. Mas que te
transformem em acadêmico... Termina com a imagem de Claudel, ou quem? De Corneille? Ou
quem vem, o cardeal Richelieu? Que loucura, o que estou fazendo aqui? É um delírio, é um
carnaval isso. Bianciotti creio que é o complemento, te repito, da viagem de Cortázar. É quase
sua redução ao absurdo. Note: recém-soube que Mario Vargas Llosa foi feito acadêmico na
Espanha.

JW – Previsível neste caso, não?

Viñas – É um circuito. Em que mais dá isto? Tudo implica em que te façam acadêmico. Nessa
zona eu não entro. Mas no caso de Saer, creio que é uma espécie de prolongação, de
sobrevivente. Ele escreve para a Argentina. A quem interessa o que ele escreve? Pode ser que
nas cátedras de literatura latino-americana. Mas como presença de escritor, de um tipo que faz
alguma coisa, é aqui. Você pode recuperar sentido, e sentido de tudo o que faz, de seus textos,
e toda a história. Quem sabe em outro lado, mas lá? Pode ser que lhe digam: - Muito bem, este
escritor argentino... é um meteco! Ou não? Porque a culminação disso é Cortázar. Depois
disso, este tipo é um meteco, ou te fazem acadêmico. Francamente, isso de mteco não me
convence: não, olhe, isso me deixa mal. E que me transformem em acadêmico, francamente, é
a melancolia. É outro projeto, não? Te proponho: consiga o número da revista de Sartre,
Temps modernes, que foi o número que fizemos dedicado à Argentina. É de 1981. Aí também
falamos de Sartre. Mas dizemos: - Mestre não, que mestre? Companheiro! Ou seja, de que
vamos falar aqui? Da relação com os franceses? – Não, querido, colonialismo não, nem louco!
Não me interessa o Gómez Carrillo, não sei quem, Elísio de Carvalho da literatura brasileira.
Sei lá, os cronistas de Paris de mil e... Não me interessa, francamente, não. Digo da época, e
muito menos agora. Bianciotti é um fantoche, pobrezinho. Faz um ano vi uma comédia
francesa chamada “El fraque verde” que era toda uma historieta sobre os acadêmicos. É um
pouco assim isto: tem que colocar o fraque verde, não te parece? Pode ser que goste e se
gosta, está bem. – Se está bem, querido, vive tua vida, coloque um verde e um violeta. Mas
como decisão de vida! Você escreve ou o que faz? O que é? Cartão de visita, de fim de ano? –
Queridos meus, está bem, saúde! É uma decisão, não?

JW – Você atribui a Cortázar, como a Borges, o defeito de “poner limites a los otros” a partir da
zona sagrada e inexpugnável de “su cabina de escritor supertécnico”. O que devemos entender
como seu oposto, como uma literatura aberta, em sua opinião?

Viñas – Walsh, para nos entedermos rapidinho, rapidinho. Aí o paradigma de escritor.


Excelente contista, tem três ou quatro contos... – Julio, por favor, leia Walsh, velho! Olhe: “Nota
al pie”, “Esa mujer”, “Irlandeses detrás de un gato”, “Fotos”, mas sobretudo “Esa mujer” e “Nota
al pie” são contos internacionais. Em “Irlandeses” é muito evidente a incidência da coisa
joyceana, que não está mal – Joyce naquele momento, sim. Diante de “Nota al pie” e “Esa
mujer”, você diz: - Aqui tem um grande escritor”! Você diz: - Como dá conta de todas as coisas!
O que lá estava enunciado, no melhor dos casos, aqui de imediato, concretamente, a coisa se
materializa, não há saída, não? É outro modelo de intelectual, creio que fundamental. E Walsh,
olhe: um pedinte que andava por aqui, te pedia vinte centavos para pagar o café com leite.
“Esa mujer” é Eva, que não se nomeia. Digo, para lê-lo antagonicamente a um best-seller,
totalmente mercantilizado que é Santa Evita. E todas Evitas que se está fazendo. O filme, você
não imagina a bobagem a respeito desta figura – que é preciso desmontar em termos políticos
muito concretos e aí ver de que estamos falando. Vargas, ou quem te dê ganas, Pedro II, quem
era este tipo? Falemos sério, digamos, Prestes também. A mim não enternece mais. Digo
quando da coluna, não depois – pobre, sei lá, envelheceu. Mas então era preciso dizer-lhe: -
Pare, velho! Estava louco... Sobre Walsh, é outra aposta, menos mal que existe Walsh.

JW – Você deu uma entrevista à revista Hispamérica em 1972 que provocou uma resposta de
Cortázar. Referia-se a sua condição de escritor na “torre de marfim” em Paris. E então Cortázar
diz em tom autocrítico que não está em Paris para santificar ninguém “sino que me ahogaba
dentro de um peronismo que era incapaz de comprender en 51, cuando un alto-parlante em la
esquina de mi casa me impedía escuchar los cuartetos de Bartók”.

Viñas – Está bem, Julio! Ele era assim. Mas isso é definidor, é quase caricaturesco. – Está
bem, Julio, já não pode ficar. Vale dizer: não à música, está bem. Tratava-se de compreender o
que passava, até onde o esforço de compreender o que passava com o processo peronista,
que era muito complicado – tão complicado como pode ser o processo do trabalhismo no
Brasil. – Mas isso quer dizer que você está feito, amassado por esse tipo de coisa. – Você opta
por uma posição que implica uma coisa elusiva, muito tradicional, tradicionalíssima, que é ir
para Paris, pronto! De repente, de Paris, fulgura uma coisa revolucionária, como certa história.
O descobrimento se dá de lá. No entanto há aí um jogo em duas faixas. – Julio, como é essa
história? A coisa contraditória: - Que imagem você tem do processo revolucionário?, com todas
suas limitações, desde já. Este processo histórico tenho que entendê-lo, pelo menos para um
intelectual que queira ser lúcido. Vou a Paris e depois então de lá adiro à revolução cubana –
que aparentemente tem uma prolixidade – porque se declara marxista-leninista. E veja, o
processo da revolução é uma coisa contraditória, muito contraditória. Evidentemente, e desde
já, não é um teorema, é todo o pacote que está metido aí dentro. Não é diagramar
simplesmente um conto, é toda uma complexidade fenomenal. – Está bem, Julio... Mas como é
a história? O que descende... o bom senhor Bianciotti, a redução ao absurdo de Julio – e creio
que é uma redução ao absurdo. E em que medida também Debray é uma redução ao absurdo,
hoje. – Porque, Debray, querido, eu te conheci em Havana. Teu livro Revolução na revolução?,
o atiramos por baixo da porta, no hotel. Nesse momento era fenomenal estar em Cuba. Mas
quando o vento vem contra, já nem tudo é tão certinho, nem tão nítido, aí você toma distância.
– Perdão, Régis!...
JW – A propósito, como você vê Cuba hoje?

Viñas – Como um pacotão fenomenal, imagine! Eu resgato um elemento: aí está o Papa. Note
você com que companhia vou. Digo-lhe: - Velho, este paisinho, que é “isto” pensando em
termos de Brasil, agüenta os companheiros norte-americanos. Vindo de onde vem, com as
limitações fenomenais, com todas as carências internas, note que não o transformaram, não
puderam transformar – o que teria sido o ideal – Fidel Castro em um narcotraficante, dizendo
que tinha um harém de putas ou que estaria vinculado à “branca” colombiana. Se não o fizeram
é porque não lhes deram essa possibilidade. Eu não voltei mais a Cuba. Fui em 1981 e tive um
problema muito sério com os cubanos porque não nomeavam a ditadura argentina. Foi uma
discussão, da qual foi testemunha o bom Osvaldo Soriano. Enfim, se eu fosse religioso, te diria:
“que deus os ajude”. Não se pode ajudar... E como bancar-se frente ao bom Clinton e toda a
alcagueteria, a lei esta... Eu não voltei, apesar dos vários convites. Inclusive, isso de estar
como turista convidado e o povo aí que não tem nem para almoçar, não me convence. Uma
relação distante. Quando há uma coisa tão arbitrária como o bom Sumo Pontífice. Me parece
uma injustiça fenomenal que sigam fazendo isto, sem dúvida. Não sei como vão sair. Quem
sabe se ponham meio místicos. Que deus os ilumine. Não sei, velho, francamente não sei...

JW – Gostaria que falasse um pouco dos anos da revista Contorno (1953-1959).

Viñas – Era uma coisa de garotos, velho...

JW – Minha questão talvez seja mais perene. Você escreveu que Sarmiento explica a
Argentina...

Viñas – Evidentemente que era um burguês lúcido, justo calhou o momento. E note que é um
intelectual que chega a ser presidente da República. É preciso ler sua correspondência
com Pedro II. Está na Correspondência, é uma maravilha, uma maravilha. A sedução pelo
Jardim Botânico... As palmeiras daqui da Praça de Maio, ele as trouxe porque viu as palmeiras
no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, você sabia? Quero dizer, como condensação, Facundo
é uma jogada essencial da burguesia de 1850. Porque é uma coisa muito lenta. Para entender
esta jogada, é preciso ler a coleção completa de El alma que canta, que era uma revista
popular. A semente, o burguês que vê a semente. Digo, como manipula, como faz. É um
burguês conquistador, sim.

JW – Sarmiento explica de alguma forma a Argentina e a proposta do grupo Contorno era


também, em sua teoria da cidade, explicar o país.

Viñas – Ricardo Piglia diz uma coisa que eu resgato. Estou distanciado dele, mas creio que
isso está certo. O delírio secreto dos escritores argentinos – aqueles que não querem fazer
simplesmente best-sellers – é escrever o Facundo do século XX. O que seria no Brasil?
Alguém que escrevesse Os sertões. Porque o delírio é ver como encontrar o velho Borges, o
do Aleph. É um pouco isto a relação em Contorno. Mas, imagine: um pouco à base de
improvisação, de intuição. Como logramos, como se diz no bairro, encontrar “la madre del
borrego”. Se diz no Brasil “la madre del borrego”? A chave. “Borrego” é a ovelha cria.

JW – Sim, o cordeiro.

Viñas – Claro, o cordeiro, para ver como encontrar a chave disto. Te diria, o velho Sarmiento,
sem dúvida e desde já. E tudo o que queira. Por isso continuamos discutindo. Digo: tem
vigência. O resto... Talvez a fantasia de Contorno fosse isto. E sim, já que se joga, vamos fazer
Os sertões. Digo: era jogo. E por aí, não sai, para sorte! O Macunaíma, não sei, algo assim.

JW – Sua leitura da literatura argentina é feita pelo viés da viagem à Europa. Qual a
importância desse tópico, hoje e antes?

Viñas – Quem sabe o ponto de partida inevitável aí tenha sido o de Sarmiento, a viagem de
Sarmiento. O momento anterior está ainda impregnado de uma coisa colonial. A viagem em
direção a Madrid, por um critério um pouco administrativo. De imediato, sempre está a idéia da
viagem como um bumerangue. Se vai até lá com vistas a voltar, ou seja, a santificação inerente
a isto. E já aí a possibilidade de uma certa periodização e de rasgos definidores, distintos.
Sobretudo, talvez, no salto ou na passagem do modelo Sarmiento – o burguês com uma
perspectiva muito de construção de um país, não? E, no caso de Sarmiento, ele corrige sua
viagem à Europa e passa nos Estados Unidos. Ou seja, ele se sente muito desconforme, sente
que a coisa é muito a decadência – as relações que estabelece com algumas pessoas de lá
antes o desanimam. Ele recupera então um enorme, quase delirante entusiasmo pelos Estados
Unidos. E, de fato, o modelo passa a ser Estados Unidos, sobretudo no campo pedagógico. O
que não descarta que o eixo europeu, e particularmente França e Paris, lhe sirvam como apoio
de seus projetos, inclusive pessoais. Por outra parte, cultiva uma espécie de desembaraço. Ele
leva o Facundo para abrir seus contatos na Europa, além de publicá-lo. E ele já está como que
acumulando, com sua viagem aos Estados Unidos, que é complementar, imediatamente: 45,
46 e já em 47 está nos Estados Unidos. Como acumulação de sua fantasia de presidente da
República.

JW – Cento e cinqüenta anos depois, como você encara o predomínio cultural norte-
americano?

Viñas – Me parece obsceno tudo o que seja a cultura norte-americana da televisão.


Francamente, não me interessa. Não me propõem Faulkner. Não me propõem o grande jazz
norte-americano, nem o grande cinema. Me propõem um cinema que é a idiotice. Digo, isto é o
que solicita um público norte-americano. Não sei, seria preciso analisar muito atentamente
como funciona uma produção deste tipo em função de determinado público. Eu não o tolero. E
quero além do mais que as pessoas não o tolerem... Pelo menos na zona em que se pode ter
certa incidência cultural e política. Me parece uma imbecilidade. E é uma proposta de uma
homogeneização que pressupõe, sobretudo, isto: um achatamento fenomenal, entre outras
coisas, não diria já por um problema de alta especulação, senão simplesmente porque me
entedia. Vejo esta produção, leio a última produção literária norte-americana em geral. Acabo
de ler, faz uma semana, uma coisa chamada Trilogia de Nova York e já nem lembro o nome do
autor. Me parece uma idiotice. Digo, disto francamente vocês mesmos têm que se dar conta!
Bem, isto em função dos clássicos, sei lá, Melville ou Thomas Wolfe. Isso talvez seja o ponto
de partida, não tanto como resultado de uma honrosa reflexão, senão uma coisa de tipo
visceral.

JW – O que significa o exílio na tradição cultural e política argentina e na sua própria trajetória?

Viñas – Para a geração fundacional – Sarmiento, Echeverría, Alberdi e outras figuras – o exílio
é a mitificação do país, a nostalgia do país, a identificação do país com uma mulher, com o
amoroso, a correspondência, esse lugar dos afetos. Quem sabe se poderia contribuir
pessoalmente com isso. De 76 a 83, quando da ditadura militar, eu pessoalmente fui exilado.
Mas, na verdade, só do que posso falar um pouco é de Buenos Aires – o prolongamento do
corpo, o conhecimento, os tons de linguagem, não? É de uma complexidade fenomenal. Sim,
perfeito, São Paulo ou Rio de Janeiro, o que seja. Mas a densidade disto, não? Digo pensando
no exílio. Essa densidade em direção a uma corporeidade é minha densidade. No exílio verifico
esse assunto, isto é, no exílio recorto e focalizo no que implica isto que pode soar como uma
abstração metafísica da identidade. Está bem, é o pouco que eu sei, do pouco que eu posso
falar, do meu corpo, minha corporeidade. E não creio que tenha o monopólio para nada disto.
Claro que se pode aspirar à nostalgia, se pode ir para uma mitificação, se pode ir a negócios
certamente – porque disto nem se fala, tango, Gardel e tal. Eu não sou, especialmente, um
traficante disto...

JW – No embate entre as correntes críticas de Angel Rama e de Emir Rodríguez Monegal,


quem sobrevive hoje para você?

Viñas – Angel! Angel tinha uma paixão por tudo isso e tinha uma grande dignidade, como
intelectual e como pessoa. Monegal creio que se transformou em um burocrata da cultura
universitária norte-americana. Eu o encontrei no México e notei que havia perdido tudo, já era
uma espécie de professor norte-americano convencional. Angel tinha uma capacidade de ver
globalmente. Porque, em sentido contrário, digamos, Monegal tinha uma grande capacidade
analítica. Mas com Neruda e Quiroga faz um biografismo mais que tradicional. Joga com uma
psicanálise de grupo folclórico... E a idiotice do bom de Vargas Llosa, quando escreve um
livreto sobre Flaubert? Chegou aqui com isto quando o velho Sartre havia escrito o guia
telefônico sobre Flaubert. – Mario, por favor!, peruano do Peru, fique quieto! Olhe o que é este
trabalho, é um delírio. Simplesmente um homem com essa capacidade analítica que se põe a
decifrar um outro homem. Digo, Monegal... Parecia ter muito mais uma capacidade
dramatizadora, Angel. E a capacidade de ver, que creio que é o mais resgatável dele. Desde
elementos não retóricos, não convencionais de coincidências de culturas na América Latina, o
que passa na cidade.

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