Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Movimento básico a ser descrito procurará demonstrar como, em seu apogeu, a economia
cafeeira do Vale do Paraíba deu suporte à escravidão nacional, e como, na crise, a economia
cafeeira do oeste de São Paulo a vampirizou, cindindo o consenso nacional em torno da
instituição.
O ano de 1808 foi um divisor de águas para o sistema escravista brasileiro. A consolidação
do complexo histórico-geográfico do Centro-Sul do Brasil, tendo por centro o Rio de
Janeiro... A abertura dos portos às nações amigas, naquele ano conectou diretamente os
produtores escravistas da América portuguesa ao mercado mundial de artigos tropicais, em
uma quadra na qual este último passava por ajustes de fundo. A composição da oferta de
açúcar, algodão e café teve um padrão indefinido entre fundo. A composição da oferta de
açúcar, algodão e café teve um padrão indefinido entre 1790 e 1830.Durante esse, período,
várias zonas no espaços do Atlântico e do Índico disputaram entre si o controle da produção.
Ao mesmo tempo, o ano de 1808 assinalou o início do internacionalismo da
pressão antiescravista britânica, após o sucesso do movimento abolicionista em
proibir o tráfico para as Antilhas. Um abolicionismo genérico seria uma variável
perene por quase todo o século XIX e um traço distintivo da segunda escravidão,
em todos os seus três espaços( Brasil, Cuba e Estado Unidos). Noutras palavras, a
expansão do escravismo oitocentista ocorreu em um quadro mundial político e
ideológico profundamente hostil à instituição.
Enquanto este sediada no Rio de Janeiro, a Coroa bragantina respondeu ao desafio
britânico com uma política diplomática concertada, que tinha por eixo garantir a
autonomia e independência do complexo escravista português nas duas margens
do Atlântico.
A ruptura dos laços entre Brasil e Portugal, em 1822, alterou por completo as
condições da reprodução da escravismo na antiga América portuguesas, abrindo
um flanco por onde os britânicos exerceriam fortíssima ação diplomática. Esta,
aliás, foi uma marca de nascença da construção do Estado nacional brasileiro: a
pressão constante da Grã-Bretanha, ininterrupta por quase meio século, contra um
dos fundamentos da riqueza nacional, o tráfico de africanos escravizados, e
mesmo, ainda que de forma mais indireta, contra a própria escravidão.
Daí pode-se dizer que, com a independência do Brasil, houve uma cisão de fundo
entre o que fora a política da escravidão no período colonial e o que ela seria no
período nacional- e, consequentemente, uma cisão de fundo entre a escravidão
colonial e na escravidão nacional. De 1822 em diante, a reiteração das relações
escravistas brasileiras dependeria, a cada passo, da atuação do aparato estatal ( por
vias legas ou ilegais).
A escravidão encontrava-se em xeque, seja pela ameaça ativa dos próprios
escravos, seja pelo perigo e pela contradição que representava nos novos países
que buscavam construir uma ordem liberal.
No Brasil, que nesse mesmo momento experimentava o deslanche da segunda
escravidão, o quadro não foi diferente. A conjuntura política conturbada de 1808 a
1830 foi um componente importante no sério ciclo de revoltas dos africanos
escravizados na Bahia.
Entretanto, as forças de expansão do sistema escravista brasileiro ns quadros
da economia-mundo capitalista industrial, conjugadas com a formação de um
grupo social poderosos, que patrocinava e se alimentava dessa expansão-
aquele formado elos grandes proprietários de terras e escravos do Sudeste em
sua composição com grupos escravistas de outras regiões-, criaram as
condições econômicas e sociais necessárias para a construção de uma nova
política da escravidão, bem mais articulada do que as anteriores.
A reabertura ilegal do tráfico transatlântico de escravos, contando com o suporte
decisivo da atuação dos políticos conservadores no Parlamento brasileiro e em
outras instâncias de poder, garantiu a consolidação definitiva da cafeicultura como
a principal atividade econômica do Império do Brasil. As exportações de café
saltaram de 32 mil toneladas, em 1831, para 118 mil toneladas, em 1850, o que
garantiu ao Brasil o posto de maior produtor mundial do artigo, com cerca de 50%
do montante granjeado. Ao mesmo tempo, esses recursos equivaliam a 41,4% do
valor total da pauta de exportações brasileiras. Como os recursos físcais obtidos
por meio do café, fundados por sua vez na importação ilegal de africanos
escravizados, o poder central- vale dizer, o Rio de Janeiro- dispôs de meios
materiais para sufocar os questionamentos regionais que explodiram em
diversos cantos do Império entre 1835 e 1845.
Assim se é fato que, em 1850, os cativos empregados na café não constituíam
a maioria entre a população escrava no Brasil, é fato também, e muito
significativo, que o que seus senhores obtiveram com a exploração de seu
trabalho contribui decisivamente para que o Vale do Paraíba se impusesse
política e economicamente sobre o restante do Império.
Mais importante, no entanto, é quanto esses movimentos são capazes de revelar a
mútua determinação de Brasil e Cuba(e, também, de Brasil e Estados Unidos, no
caso do algodão), via mercado mundial: o deslanche da cafeicultura brasileira foi
um vetor decisivo para a hiperespecialização de Cuba na produção açucareira e,
reversivamente, para a própria crise da açúcar no Brasil. Noutras palavras, a
crescente subordinação do açúcar ao café dentro do Império brasileiro não pode
ser abordada como usualmente se faz, isto é, tendo-se em vias apenas a
constelação de forças econômicas, sociais e políticas “internas ao espaço do
Estado nacional brasileiro; pelo contrário, exige que miremos a constelação de
forças do capitalismo global.
O fim do tráfico negreiro transatlântico reforçou a posição econômica
dominante das zonas cafeeiras sobre as demais regiões escravistas brasileiras.
A rápida consolidação de um mercado nacional de escravos, com preços
convergentes em diversos quadrantes do Império, funcionou como uma
correria de transmissão pela qual as forças globais da segunda escravidão
ajudaram a moldar os destinos da instituição no Brasil. Pela lógica de
funcionamento desse mercado, os escravos tenderiam a ser concentrados nas zona
de maior dinamismo econômico... Contudo, foi justamente a perda de dinamismo
dessas regiões no mercado mundial, somada ao notável desempenho do café, que
produziu o tráfico interno, com os desequilíbrios consequentes. Novamente,
registra-se o caminho de mão dupla do impacto das forças históricas da segunda
escravidão sobre o Brasil, e do Brasil como dessas forças históricas.
Sem o tráfico transatlântico, a única forma de expansão em novas áreas seria
dada pelo crescimento vegetativo da população escrava e pela mecânica de
funcionamento de um mercado nacional de escravos.
Pela dinâmica histórica da incorporação segregada de setores egressos do
cativeiro à ordem social, econômica e política brasileira, pela natureza dos
espaços de discussão pública favoráveis à manutenção do dissenso dentro da
ordem, e pela própria configuração institucional na política parlamentar no
Brasil, as vozes antiescravistas internas presentes desde a independência não
conseguiriam se cristalizar em um movimento político organizado antes da
década de 1870.
As tendências econômicas da crise da seguda escravidão, se não eram de todo
evidentes para os coevos, estavam em plena operação na década de 1850. A alta
simultânea dos preços dos escravos no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos
levou a uma concentração cada vez maior de sua propriedade nas fazendas
de café, nos engenhos de açúcar e nas plantantion de algodão. As consequências
negativas potenciais dessa concentração para a estabilidade e o
comprometimento social e político com a instituição da escravidão se fizeram
sentir de forma mais imediata em alguns lugares, menos em outros. O
primeiro dique a se romper foi o Sul dos Estados Unidos, justamente o epicentro
da escravidão oitocentista atlântica.
A eclosão da Guerra Civil norte-americana inaugurou a cadeia de eventos de sua
crise. Entre as múltiplas causas que explicam as origens do conflito bélico norte-
americano, a prosperidade algodoeira dos anos 1850 papel importante.
Nessa mesma década de 1850, o boom global das commodites também gerou
grande prosperidade no Brasil. Resolvido o desafio britânico à segurança e
soberania nacionais com o encerramento definitivo do tráfico negreiro
transatlântico, o Império entrou em um período de relativa estabilidade
institucional em torno da questão da escravidão negra. As principais áreas
escravistas do Vale do Paraíba cafeeiro estavam em seu apogeu, com seus cafezais
estabelecidos e com estoque de mão de obra suficiente para tocar seus negócios; o
tráfico interno foi logo acionado; a alta nos preços dos escravos valorizou os
ativos dos que haviam comprado trabalhadores cativos no pico do tráfico ilegal; o
Estado brasileiro dava mostras explícitas de que não questionaria a legalidade
dessa propriedade ilegal; a alta nos preços do açúcar amorteceu e perda de
competitividade dos engenhos do Norte. A própria Conciliação fez parte novo
quadro, apaziguando muitos dos conflitos políticos internos surgidos no período
regencial.
Noutras palavras, não havia, no Brasil de 1860, qualquer prognóstico de que
a escravidão viria em breve a ser colocada em xeque. O resultado da Guerra
Civil nos Estados Unidos- com a concomitante aprovação da emenda
constitucional que abolia a escravidão sem indenizar os senhores(...)- alterou
por completo, e de forma brusca, as expectativas em relação ao futuro da
instituição em escala hemisférica.
É no conflito norte-americano, e na confluência temporal de seu
encerramento com os profundos impactos da Guerra do Paraguai sobre o
Brasil, que devem ser localizadas as origens da Lei do Ventre Livre. A
inciativa para a aprovação parlamentar da medida foi quase toda de um
setor do partido conservador, estimulado pelo imperador, que compreendeu
o perigo potencial de uma abolição violenta no futuro imediato. Na segunda
metade da década de 1860, após quase um século do abolicionismo
internacionalista, era possível a uma parcela dos estadistas imperiais,
principalmente aqueles não comprometidos diretamente com a região da
Bacia do Paraíba, ter uma leitura clara do que estava envolvido em cada
experiência de saída da escravidão, nas condições abertas pelo desfecho da
Guerra de Secessão... a liberação do ventre escravo precedida pelo
encerramento do tráfico negreiro transatlântico, testada em algumas
unidades federativas do Norte dos Estado Unidos e em diversas repúblicas da
antiga América espanhola, em processos que se estenderam por uma tempo
bastante dilatado. Para a Espanha e o Império do Brasil, era evidente que apenas
a última solução oferecia uma alternativa viável para administrar política e
economicamente todos os problemas do isolamento internacional de seus
respectivos sistemas escravistas.
Por outro lado, a Guerra do Paraguai, inclusive coma experiência de
libertação e convocação de escravos, expôs toda a fragilidade da base social
de sustentação do Estado imperial no âmbito internacional. Finalmente, o
final da década de 1860, o quadro de disseminação geográfica ( por todas as
províncias) e social (em quase todas as parcelas livres da sociedade) da
escravidão, que havia criado condições favoráveis para certo consenso
escravistas, havia mudado. A escravidão tendia cada vez mais a se concentrar
entre os grandes proprietários das regiões economicamente mais dinâmicas.
A escravidão urbana diminuía a olhos vistos, ainda mais porque a imigração
acelerava o aumento da população livre... Tudo isso facilitou a formação de
uma nova maioria conservadora, capitaneada pelo visconde do Rio Branco,
que conseguiu aprovar a lei de 28 de setembro de 1871, a despeito da forte e
quase unânime resistência do núcleo saquarema do partido, escorado no Rio
de Janeiro e em Minas Gerais e, em menor grau, em São Paulo.
Mas, se a aprovação da Lei do Ventre Livre no âmbito parlamentar não decorreu
da resistência escrava, sua instituição alterou profundamente as condições em que
passou a ser dar alta entre trabalhadores escravizados e proprietários escravistas
nas duas década seguintes.
A década compreendida entre 1872-1881 representou o pico do tráfico
interno de escravos no Brasil, com quase 100 mil escravos deslocados para
zonas cafeeiras do Centro-Sul, com claro predomínio das transferências
interprovidencias sobre as intraprovidenciais. A distribuição regional desses
cativos não foi uniforme. Ainda que fazendeiros de todo o Centro-Sul tenham
adquirido escravos no mercado interno, os principais polos compradores estavam
nas zonas de fronteira recém-atendidas pelas ferrovias.
No Brasil, o tráfico interno não procurou resguardar a capacidade
reprodutiva dos escravos com compras equilibradas de jovens cativos de
ambos os sexos, mas sim explorar, até os limites colocados pela Lei do Ventre
Livre, o estoque da população escrava brasileira.
Encerrada a perspectiva de manutenção da escravidão com base na reprodução
vegetativa, o tráfico interprovincial da década de 1870 incidiu sobre jovens de
sexo masculino nascidos no Brasil, apartados de redes familiares consolidadas e
afastados de regiões cujos padrões de trabalho eram muito diferentes das
realidades das fazendas de café do Centro-Sul.
Na virada da década de 1870, a estratégia de contenção da plataforma
antiescravista posterior à aprovação da Lei do Ventre Livre começou a
sucumbir diante da articulação do movimento abolicionista brasileiro em
bases nacionais. Esse movimento apresentava-se como uma novidade em
relação às sociedades emancipadoras que surgiram com a aprovação da lei de
1871, a criação do Fundo de Emancipação e da disseminação de um
sentimento emancipacionista no seio da opinião pública. Em fins da década,
era cada vez mais evidente que a Lei do Ventre Livre e o ritmo das
emancipações dela decorrentes apenas protelavam o fim do cativeiro e
protegiam o poder senhorial. Esse sentimento de frustração, em meio a uma
nova cultura política de massas que se formava nas novas condições de
expansão urbana e das atividades econômicas, foi um meio propício à
ascensão do abolicionismo que pregava, entre outras bandeiras, a abolição
imediata e sem indenizações. Em meados da década de 1880, com a
radicalização do movimento que se seguiu ao simulacro da aprovação da Lei dos
Sexagenários, em 1885, e as novas modalidades de resistência coletiva de uma
escravaria que, agora, era esmagadoramente crioula e contava com suporte fora
das senzalas, a escravidão naufragou de vez
Já em 1881, a ordem escravista foi abalada com as leis aprovadas em São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro em 1881, interditando o tráfico interprovincial por
meio da imposição de taxas que o tornavam proibitivo. Os proponentes dessas leis
esgrimiram três conjuntos de argumentos para fundamentar sua urgência: 1) a Lei
do Ventre Livre causara efeitos profundamente danosos sobre a disciplina escrava,
diante da percepção geral de erosão da legitimidade da instituição com a
impossibilidade de sua reprodução no tempo; 2) o tráfico interprovincial vinha
acirrando de modo perigoso as relações escravistas, com a introdução constante,
nas fazendas do Centro-Sul, de escravos desenraizados do Norte do Brasil; 3) a
polarização entre um Norte sem escravos e um Sul escravista prefigurava a
experiência pregressa da Guerra Civil norteamericana, sendo necessário
manter o comprometimento nacional com a instituição para evitar que um
resultado daquela natureza se repetisse no Brasil. A essas variáveis somaram-
se, em 1881, os receios dos efeitos que a agitação abolicionista teria para a
disciplina dentro das fazendas.
Contrariando as expectativas dos que deram suporte à suspensão do tráfico
interprovincial, as tensões escravistas não arrefeceram. Pelo contrário, só
aumentaram. Sinais disso começaram a surgir em 1882, com rumores de
articulação entre agitadores abolicionistas e escravos das fazendas de café, mas
que adquiram maior concretude após 1885, com o cruzamento real entre o
movimento antiescravista e a ação coletiva dos escravos na luta pela abolição
imediata
O sentido sistêmico das alforrias para a manutenção da escravidão brasileira
também se modificou: após 1850, as manumissões, de estruturadoras dos
mecanismos de segurança da sociedade escravista brasileira, tornaram-se
crescentemente desestruturadoras. Em outros termos, para o egresso do cativeiro,
a possibilidade de vir a ser senhor de escravos era cada vez mais distante. A
própria conquista da alforria ficara mais difícil. Por outro lado, a escravidão, como
parâmetro das relações de trabalho, passou a ser vista como um fator de
achatamento das condições de trabalho dos trabalhadores livres, brancos, negros e
mulatos.
Se a emergência do movimento abolicionista brasileiro muito dependeu da
reorganização econômica do Império, de sua crescente urbanização, do novo
quadro dos espaços de opinião pública, do esgarçamento das formas políticas
institucionais construídas ainda na primeira metade do século XIX, do novo
liberalismo e do “bando de ideias novas” pós-1870, seu desenvolvimento foi
igualmente marcado pelo papel de liderança ocupado por descendentes livres
de africanos que positivaram a resistência escrava. A ação direta dos cativos,
ao contrário do que ocorrera com o fim do tráfico transatlântico de escravos,
em 1850, e com a aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, foi decisiva
para o resultado obtido em 1888. (MARQUESE, SALLES)
Tal termo evidencia o fato de que a escravidão nas Américas não se enfraqueceu e
terminou no período pós-colonial. Outra maneira de colocar a questão seria afirmar
que a industrialização e o advento da modernidade não representaram
automaticamente o fim da escravidão, mas que, ao invés disso, a intensificaram e
difundiram. O resultado foi uma nova escravidão americana, que reformulou e
reorganizou a instituição.
A segunda escravidão representava um regime escravista mais autônomo, mais
duradouro e, em termos de mercado, mais “produtivo”, capaz de suportara a
ofensiva da Era das Revoluções e de atender à crescente demanda pelos produtos
das plantations... Essa nova escravidão americana floresceu ao mesmo tempo que
o mercantilismo era desmantelado e a Era a Vapor revolucionava transportes e
processamento.
Era uma espécie de escravidão descolonizada, que reivindicava soberania e
aspirava à autonomia. Os senhores de escravos tiveram papel de protagonismo nas
lutas de independência.
A segunda escravidão foi definida pelo divisor de águas da “dupla revolução”: a Era
das Revoluções, por um lado, e as Revoluções Industriais, por outro. Acontecimentos
políticos revolucionários tiveram o poder de condenar algumas formas sociais ao
mesmo tempo que promoveram outras. A segunda escravidão demonstrou a
habilidade dessa instituição em se transformar e desenvolver novas formas,
assegurando sua sobrevivência e aproveitando outras oportunidades comerciais que,
no calor de acontecimentos revolucionários, poderiam tê-la consumido totalmente.
Em termos gerais, essa evolução foi testemunha do início da globalização e dos
impulsos contraditórios que esta suscitou.
Estas vitórias importantíssimas para o abolicionismo eram causa de preocupação
mesmo para os mais intransigentes comerciantes e proprietários escravistas. Contudo,
esses também estavam cientes das enormes oportunidades abertas pelo fim da
agricultura de plantantion em São Domingos, o maior produtor colonial de açúcar,
café e algodão em 1790. Os preços dispararam na década seguinte. O desafio para
aqueles grandes proprietários mais bem-situados do Novo Mundo era evitar o destino
dos escravistas franceses e satisfazer a demanda acumulada por produtos das
plantations na Europa e na América do Norte. Descobriu-se que o Sul do Estados
Unidos, o Brasil e cuba eram os mais indicados e os mais capazes de reinventar a
escravidão no Novo Mundo numa era essencialmente pós-mercantilista e pós-colonial,
e, em suma, de forjar uma segunda escravidão.
Tal termo evidencia o fato de que a escravidão nas Américas não se enfraqueceu e
terminou no período pós-colonial. Outra maneira de colocar a questão seria
afirmar que a industrialização e o advento da modernidade não representaram
automaticamente o fim da escravidão, mas que, ao invés disso, a intensificaram e
difundiram. O resultado foi uma nova escravidão americana, que reformulou e
reorganizou a instituição.
A segunda escravidão representava um regime escravista mais autônomo, mais
duradouro e, em termos de mercado, mais “produtivo”, capaz de suportara a
ofensiva da Era das Revoluções e de atender à crescente demanda pelos produtos
das plantations... Essa nova escravidão americana floresceu ao mesmo tempo que
o mercantilismo era desmantelado e a Era a Vapor revolucionava transportes e
processamento.
Era uma espécie de escravidão descolonizada, que reivindicava soberania e
aspirava à autonomia. Os senhores de escravos tiveram papel de protagonismo nas
lutas de independência...
O fato de os senhores de escravos exercerem poder político no regime da segunda
escravidão não significava que o monopolizassem... Em todos os casos, tanto os
plantadores quanto os comerciantes e banqueiros a eles vinculados tinham acesso
privilegiado ao poder, mas também precisavam de aliados sociais e políticos
dentro e fora da zona de plantation.
Os senhores das Américas eram frequentemente protagonistas da Era das
Revoluções e sabiam que o fim do domínio colonial transformava suas
perspectivas de expansão comercial e territorial, e também que isso os obrigava a
se responsabilizar integralmente pela manutenção de seus escravos em submissão,
apesar das novas oportunidades de resistência e fuga.
A segunda escravidão era definida pelo fato de ter sobrevivido à grande onda
antiescravista- as revoltas escravas e o abolicionismo- que dirigiu ao tráfico de
escravos e destruiu ou suprimiu a escravidão nas colônias francesas e britânicas.
As terras da segunda escravidão foram profundamente marcadas pelo destino do
qual as demais haviam escapado.
O acontecimento fundador da segunda escravidão foi a Revolução Americana,
porém várias décadas se passaram até o crescimento das plantations se
estabilizasse nos principais territórios novos.
A segunda escravidão no Novo Mundo data de aproximadamente 1790, atingiu
seu auge na metade do século e tinha sido completamente suprimida em 1888,
quando o Brasil promulgou a última emancipação.
Estes, obtiveram forte vantagem competitiva, mas sua expansão foi também
resultado da invasão e conquista física e militar à custa de outros estados e dos
povos indígenas.
Essa nova escravidão americana tinha caráter ainda mais intensamente racial do
que seu antecessor colonial. Isso dizia respeito principalmente ao status das
pessoas de cor livres.
Como as demandas das plantations naquele regime eram cada vez mais
persistentes, a própria condição escrava recebia muito mais atenção e era mais
intensamente racializada.
Em décadas posteriores, uma última tentativa de apoio à escravidão racial
transformou-se na defesa de um novo regime de supremacia branca, apreciado
por brancos pobres e remediados, bem como por grandes proprietário escravistas.
Porém, na construção da segunda escravidão, a principal motivação dos
plantadores era ganhar dinheiro. BLACKBURN
Talvez uma interpretação semelhante possa ser na análise dos efeitos da lei do ventre livre na
Corte, pelo menos a partir do que é possível perceber na leitura comparativa das ações de
liberdade antes e depois de 1871. Vamos a seguir por etapas, pois a transposição não é
imediata ou evidente. Uma pista importante é a discussão sobre o pecúlio do escravos e a
alforria forçada nos debates que resultariam na lei d 1871. O projeto de lei enviada pelo
governo à Câmara dos Deputados, e que resultara dos debates no Conselho de Estado,
estabelecia no artigo quarto: “O escravo tem direito ao pecúlio proveniente de seu trabalho,
economia, doações, legados e heranças que lhe aconteçam”. O parágrafo segundo do mesmo
artigo arrematava a obra: “O escravo que, por meio de seu pecúlio, ou por liberalidade de
outrem, ou por contrato de prestação de futuros serviços, obtiver meios para indenização de
seu valor, tem direito à alforria.”(CHALUB,,)
Essas disposições significavam que qualquer cativo que conseguisse obter senhor teria
suficiente para indenizar seu preço ao senhor teria direito à liberdade. Tudo que o senhor
poderia fazer no caso era tentar espichar o preço, sendo que no caso de senhor e escravo não
chegarem a um acordo, o valor da indenização seria determinado em arbitramento judicial. Já
no Conselho de Estado esses artigos receberam os ataques furibundos do marquês de Olinda-
cujo reacionarismo irritava até Sua Alteza Imperial (...)
Nas emendas ao projeto que ofereceu à apreciação dos deputados, Perdigão Malheiro
simplesmente suprimiu as disposições dobre o pecúlio e a alforria por indenização de preço.
Na verdade, talvez Nabuco e Rio Branco, acreditavam que a alforria forçada por indenização
de preço pudesse ter resultados práticos importantes. A primeira preocupação dos dois era
garantir que a medida fosse inscrita em lei, derrotando assim as pretensões de Olinda e
Perdigão Malherio em excluí-la. (...)
Quanto à alforria por indenizações, ela continuava valendo, só que não se mencionava
formalmente a possibilidade de o escravo conseguir a soma “por liberalidade de outrem”.
Ainda estava prevista a possibilidade de um cativo contratar “com terceiro a prestação de
futuros serviços” no intuito de conseguir a liberdade, porém isto também se tornava
dependente do “consentimento do senhor”. Todas essas emendas foram inscritas na lei de 28
de setembro de 1871.
Em outras palavras, Rio Branco parecia pensar que a possibilidade de recuo na questão do
pecúlio estava socialmente proscrito porque esse era um direito garantido aos negros pelo
costume, sendo que pouca diferença podia fazer na prática a exigência legal da aquiescência
do senhor. Nesse sentido, o fato de que- tendo escravo a soma suficiente para indenizar seu
preço ao senhor- a manumissão forçada passava a ser um direito expresso em lei efetivamente
fazia diferença. Os senhores não poderiam impedir no cotidiano que os escravos fizessem
suas economias, e depois não poderiam se negar a conceder-lhes a alforria por indenizações
de preço porque tal direito dos negros ficava estabelecido no artigo quarto, a parágrafo
segunda, da lei de 18 de setembro. Apesar das ambiguidade e vacilações do projeto-, havia
agora chances mais reais de os escravos atingirem a alforria mesmo contra a vontade dos
senhores.
Todavia, mudanças só ocorreriam se os negros soubessem tirar proveito dos novos
instrumento legais de acesso à liberdade. O abolicionismo, livro de 1883, Joaquim Nabuco
avaliava os resultados do resgate forçado pelo pecúlio: ”está em uso nas cidades, não nas
fazendas: serve para os escravos urbanos, não para os rurais”. Sendo essa afirmação de
Nabuco já do início dos anos 1880, é possível que a intensificações da utilização desse
recurso mesmo pelos negros da cidade fosse relativamente recente, sofrendo inclusive o
impacto favorável da militância abolicionista(...) É verdade que, desde pelo menos o início da
década de 1860, a taxa de alforria na cidade do Rio aumentou bastante, sofrendo inclusive
uma ascensão dramática por volta de 1867, provavelmente devido às alforrias concedidas
com a condição expressa de que o liberto se tornasse um soldado da “pátria” na Guerra contra
o Paraguai. Mesmo permanecendo muito alta em relação às outras províncias, a taxa de
alforria da Corte sofrerá outro enorme aumento apenas após 1878. De qualquer forma,
segundo Robert Slenes os negros da cidade do Rio nas últimas décadas da escravidão sempre
tiveram uma chance mais do que razoável de conseguir a liberdade: nada menos do que
36,1% da população escrava da matrícula de 1872-73 recebeu a liberdade até a matrícula de
1886-87. Esses 36,1% são impressionantes se considerarmos que a porcentagem de negros
alforriados no mesmo período na província de São Paulo foi de 11%, na província de Minas
de 5,6%. Esses dados talvez ajudem a explicar também o porquê de termos encontrado tantos
escravos no primeiro capítulo que recusavam terminantemente a sair da Corte em direção às
fazenda de café do interior. Tal destino significava para um negro a redução drástica de suas
chances de alforria.
No que diz respeito à causa da liberdade, portanto, os negros do Rio ficaram sempre na
ofensiva nessas décadas finais da escravidão. A leitura das ações de liberdade do período
posterior a 1871 também indicam isso. As trapaças dos herdeiros deixaram de ser os
principais obstáculos dos escravos nos processos de liberdade; o problema agora era obrigar o
senhor a abaixar o preço exigido para a obtenção da alforria. Antes de passarmos a analisar
com detalhes as mudanças nas ações de liberdade, precisamos ter em mente que o pecúlio e a
obtenção da liberdade através da indenização de preço pareciam aspectos comuns da
escravidão na Corte mesmo antes de 1871. Pelo menos há vários exemplos disso nos
processos da década de1860.
Há alguns pontos a reter em toda essa discussão. O texto final da lei de 28 de setembro foi o
reconhecimento legal de uma séria de direitos que os escravos haviam adquiridos pelo
costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros. Isto é verdade não só me
relação ao pecúlio e à indenização forçada, como também no que diz respeito à ideia mestra
do projeto, istoé, a liberdade do ventre- mesmo que essa “liberdade” tenha sido relativizada
por um sem-número de sutilezas e restrições que não desenvolver aqui. Os próprios escravos
sempre valorizaram bastante a alforria das mulheres, pois isto significava a garantia de uma
prole livre. Na verdade, a lei de 28 de setembro pode ser interpretada como exemplo de uma
lei cujas disposições mais importantes foram “arrancadas” pelos escravos às classes
proprietárias.
E essa lei também pode ser interpretada como exemplo do instinto de sobrevivência da classe
senhorial: o conselheiro Nabuco explicou que “a esperança de alforria” que a lei daria aos
escravos “em vez de um perigo, é um elemento e ordem pública”; e mais tarde lembrou aos
senadores que era preciso tomar logo uma decisão a respeito da “questão servil” devido à
“impaciência dos escravos”. O velho Nabuco sabia o que lhe apertava os calcanhares. Talvez
seja possível tirar outras ilações de toda essa história. Alguns autores viram na lei do ventre
livre o momento de afirmação ou de consolidação de um projeto de transição para o trabalho
livre e de formação de todo um contingente de trabalhadores disciplinados e higienizados.
Essa pode ser uma parte da história. É tentador interpretar o acesso à liberdade pela utilização
do pecúlio como uma forma de ensinar aos escravos as virtudes da ascensão social pelo
trabalho. Mas os escravos já pareciam saber havia muito tempo que sua melhor chance de
negociar a liberdade com seu senhor era juntar economias e conseguir indenizar seu preço.
Nesse sentido, ou pensamos que esses negros estavam disciplinados para o mercado de
trabalho há muito tempo, ou então admitimos que eles podiam se atirar ao trabalho por
motivos muito diversos de uma suposta inclinação irresistível pelo salário e pelos encantos
dos patrões.
O fato é que 1871 não é passível de uma interpretação unívoca e totalizante... O que interessa
especificamente é perceber que a lei de 28de setembro foi de certa forma uma conquista dos
escravos, e teve consequências importantes para o processo da abolição na Corte.O pecúlio,
como vimos, ficava formalmente dependente do consentimento do senhor. No entanto, essa
defesa dos senhores era de pouca valia numa cidade como o Rio. Além do aspecto já
mencionado de o direito costumeiro haver consagrado o pecúlio do escravo, a própria
dinâmica da escravidão na cidade proscrevia a possibilidade de controle dos senhores. Uma
boa parte dos escravos trabalhava no ganho, ficando obrigados a dar ao senhor um jornal
previamente estipulado; havia aqueles que viviam longe dos senhores, morando em cortiços
ou nos locais de trabalho; não havia como evitar que os negros conseguissem dinheiro através
de jornadas extras de trabalho, de empréstimos, ou então com a ajuda de amigos e familiares.
Nesse sentido, para os negros da Corte o que importa na lei de 1871 é que, caso as
negociações com os senhores falhassem, bastava apresentar o pecúlio em juízo e esperar pelo
resultado do arbitramento judicial. Muitos conseguiram a liberdade dessa forma, apesar da
oposição irada de alguns senhores. (CHALUB,198, 151-161)
Para além dessas semelhanças formais, a partir da década de 1830, houve uma crescente
convergência econômica e política entre dois sistemas escravistas. Por um lado, o
crescimento avassalador da produção de café do Brasil encontrou nos EUA seu maior
mercado, cuja conversão em principal consumidor mundial de café dependeu não somente da
estreita identificação entre a bebida e o ethos nacional pós-Independência, como também de
uma política tarifária em grande parte imposta pelos estados escravistas da federação. De
fato, de 1832 em diante, a importação de café pelos EUA foi taxfree em decorrência da
plataforma livre-cambista dos senhores de escravos do Sul. Por outro lado, face ao
enfrentamento brasileiro com a Grã-bretanha em torno da escravidão, a República da
América do Norte operou como uma espécie de esteio do Império da América do Sul:
fornecendo barcos, capitais e bandeira para as operações negreiras transatlânticas ilegais e
adotando uma política externa abertamente favorável à escravidão, os Estados Unidos
serviram, até bem entrada de 1850, como o antemural de defesa da escravidão brasileira.
(MARQUESE, 2015, p.37-8 )
A trajetória da escravidão dos dois países cindiu-se na segunda metade do século XIX. Em
meados da década de 1860, os Estados Unidos aboliram a instituição como resultado de uma
violentíssima guerra civil, que promoveu a libertação de mais de quatro milhões de escravos
sem indenização aos proprietários. O Brasil permaneceu até o final da década de 1880 na
dependência do trabalho escravo, mas, ao menos desde 1871, quando contava com cerca de
um milhão e meio de cativos, o sistema escravista brasileiro encontrava-se condenado no
longo prazo em razão da lei aprovada em 28 de setembro daquele ano, que libertava o ventre
das mulheres escravas. Sem o tráfico negreiro transatlântico , encerrado em 1850, e sem o
recurso da reprodução natural da escravaria, as perspectivas de expansão indefinida da
escravidão brasileira desapareceram. Ao se abolir a escravidão no Brasil, em 1888, os
proprietários brasileiros tampouco foram indenizados. Porém, para chegar a tal resultado, o
país teve de passar por um conflito interno devastador, com derramamento de sangue em
larga escala, tal como ocorrera nos Estados Unidos. 38-9
Em 4 de setembro de 1871, após uma deliberação de quatro meses na Câmara dos Deputados,
o projeto de lei do gabinete do Visconde do Rio Brando (José Maria da Silva Paranhos), que
libertava as crianças filhas de mães escravas que doravante nasceriam no Brasil, chegava à
discussão do Senado do Império. Logo no início dos debates, o senador Zacarias de Góis e
Vasconcelos apresentou sua leitura sobre as origens da proposta. Dede 1867, quando o
imperador D. Pedro II inserira na Fala do Trono que abria os trabalhos parlamentares a
menção de que a solução do problema da escravidão não poderia ser mais contornada no
Império,
“(...) um motivo poderoso, senhores, havia para que o governo não cruzasse os braços
perante semelhante questão (...) , e vem a ser o fato de ter cessado a escravidão no Estados
Unidos, e preparar-se o governo espanhol para acabá-la em Cuba. Enquanto, Sr. Presidente, a
grande República americana tinha escravos, podia-se revelar...” 40
“O Sr. (Francisco do Rego) Barros Barrero (PE): - Estávamos escudados. O Sr. Zacarias:
- ...à monarquia, solitária da América, o manter essas instituição; mas logo, que os
acontecimentos de que todos temos notícia impeliram o Norte a empunhar as ramas contra o
Sul e batê-lo até de todo extinguir a escravidão, emendando por lei de 18 de Dezembro de
1865 o artigo da constituição que a alertava, nesse dia nós não tínhamos mais escura. Então,
senhores, ficando o Brasil país único escravocrata na América, não era possível manter-se
entre nós semelhante situação (Apoiados). Nem era preciso que empunhassem armas para
compelir-nos a dar um passo no sentido da emancipação, bastava o riso do mundo, bastava o
escárnio de todas as nações, apontando para o Brasil como país amigo da escravidão, disposto
a mantê-la indefinidamente. O governo que quisesse fazer-se surdo ao clamor geral e resistir
à pressão, não poderia consegui-lo, porque a iniciativa individual de senadores e deputados,
que de algum modo se poderia fazer calar com a certeza de que o governo estudava a questão,
despertaria, apresentando a cada passo ao governo dificuldades insuperáveis. “
No entanto, o que talvez seja mais significativo no trecho citado é a brevíssima interpretação
de Francisco do Rego Barros Barreto ao discurso de Zacarias. “Estávamos escudados”: com
essas duas palavras, o senador da província de Pernambuco expressava a profunda virada
histórica que ocorrera no Brasil na década de 1860. Com efeito, antes de 1861, o poder da
escravidão na República dos EUA fornecera, aos políticos e letrados pró-escravistas
brasileiros, um dos mais poderosos argumentos de defesa da ordem escravista imperial. Entre
a proclamação da independência (1822) e o ataque ao Fort Sunter (1861), a escravidão
brasileira sofreu sérios questionamentos internos e externos. Afora a ameaça à soberania
nacional representada pela permanente pressão britânica contra o tráfico transatlântico de
escravos, houve, dentro do Brasil, uma contínua oposição à escravidão, que se manifestou na
imprensa, no Parlamento e nas ações dos próprios escravos. Essa posição, contudo, foi
vencida pelo campo escravista que, a partir de 1837, ditou os rumos políticos do país. Nas
primeiras décadas do Segundo Reinado (1841-1889), os chamados saquaremas (o poderoso
grupo conservador articulado em torno da cafeicultura da bacia do rio Paraíba do Sul, que
compreendia partes das províncias do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais)
lograram impor à agenda política nacional sua plataforma de defesa integral da escravidão.
Se, em 1850, o Brasil foi forçado pela Grã-bretanha a abolir o tráfico transatlântico de
escravos, nos anos seguintes os saquaremas viram no Sul dos Estados Unidos o modelo mais
acabado de sucesso, no mundo moderno, de uma sociedade escravista, entendendo-o como o
bastião da manutenção do escravismo no Ocidente. Com a solidez da escravidão sulista, o
Brasil estava escudado. 42
Até o final de 1862, a expectativa no Brasil- como de resto em toda a Europa-era a de que,
mais tempo, menos tempo, a União se veria forçada a aceitar a mediação externa do conflito
e, portanto, a reconhecer a independência dos CSA. A virada de Antietam, a Proclamação
Preliminar de Emancipação, em 22 de setembro de 1862, confirmada em primeiro de janeiro
de 1863, e as vitórias da União no Vale do Mississipi e em Gerrysburg, em julho de 1863,
alteraram profundamente os prognósticos anteriores. Acendeu-se, no Brasil, o sinal de alerta
a respeito de uma possível derrota do Sul e, sobretudo, das consequências do decreto de
emancipação de 1863. Uma das primeiras manifestações de que as condições de estabilidade
do sistema escravista brasileiro haviam se modificado partiu do próprio D. Pedro II, muito
bem municiado de informações pela correspondência diplomática emanada dos Estados
Unidos. Em suas recomendações de 14 de janeiro de 1864 a Zacarias de Góis e Vasconcelos,
que acabara de ser nomeado como chefe do novo gabinete ministerial, escreveu o imperador:
“Os sucessos da União Americana exigem que pensemos no futuro da escravidão no Brasil,
para que não nos suceda o mesmo que a respeito do tráfico de africanos. A medida que me
tem parecido profícua é a da liberdade dos filhos dos escravos, que nasceram daqui a um
certo número de anos. Tenho refletido sobre o modo de executar a medida; porém é da ordem
das que cumpre realizar com firmeza, remediando os males que ela necessariamente
originará, conforme as circunstâncias permitirem. Recomendo diversos despachos do nosso
ministros em Washington, onde se fazem mais avisadas considerações sobre este assunto. “
O escudo parecia estar se rompendo. Se, após a gravíssima crise diplomática do fim do
tráfico negreiro transatlântico, que quase acabara em guerra contra a Grã-bretanha, o Brasil
entrará em um período de grande calmaria relativa à escravidão, o desenrolar do conflito
norte-americano voltava a colocar o Império do Brasil sob o risco de isolamento, exigindo de
seu alto comendo político que se aventassem alternativas de saída gradual do compromisso
nacional com a instituição. Propostas de liberação do ventre, inspiradas tanto no exemplo das
unidades federativas do Norte dos EUA como nas experiências de diversas repúblicas da
América espanhola, haviam circulado no Brasil no ápice da crise com a Grã-bretanha. Em
1863, ela apareceria como a única solução possível para se evitarem os riscos de
radicalização embutidos na experiência devastadora da Guerra Civil. 44
A fala mais importante a esse respeito foi a de José Maria da Silva Paranhos, que, me três
anos, receberia o título de Visconde do Rio Branco...E quanto aos Estado Unidos, “único país
para qual essa questão tinha importância comparável com a do Brasil”? Sabe-se que “ali
custou rios de sangue, uma guerra civil tremenda, cujas consequências não se podem ainda
rever. Pelo que respeita à condição dos libertos, também essa experiência não está ainda
consumada”. “O exemplo do Estados Unidos”não poderia servir de estímulo para que se
tornassem medidas impensadas contra a escravidão brasileira: ele ainda era, naquele
momento,
“[..] um acontecimento não completo, uma solução imposta pela força de uma metade da
Nação contra outra, solução em que preponderou o antagonismo político, e não a questão
humanitária. Este exemplo por ora parece-me mais favorável ao status quo do que à inovação
que atualmente se pretende no Brasil. Não há entre nós um partido que tomasse a peito a
abolição da escravidão.”
... a obra de emanipação seria bem mais simples no Brasil do que fora nos EUA, dada a
ausência de polarização seccional em torno da escravidão. Se, no Brasil não havia partido
abolicionista, tampouco havia partido escravista. Os deputados indicavam a urgência do
assunto em razão das recentes deliberações das o Cortes da Espanha sobre a escravidão em
Cuba e Porto Rico. Certamente a reforma era arriscada, porém nada fazer nas circunstâncias
correntes seria ainda mais arriscado, por aumentar o potencial disruptivo da crise mundial da
escravidão para o Brasil.
De uma situação estável, prosseguia Pereira Filho, a escravidão brasileira passou para a de
instabilidade no momento em que a junta francesa de emancipação, impulsionada pela
abolição nos Estados Unidos, enviou, em julho de 1866, a carta a D. Pedro II. Pior foi a
resposta oficial do governo brasileiro, que abriu um terrível precedente: daquele ponto em
diante, o Brasil tornou-se vulnerável à pressão externa, mesmo que a ideia da emancipação
não contasse com suporte na opinião pública nacional. A escravidão era fundamento da
riqueza material do Brasil, e as experiências prévias de abolição no mundo atlântico
indicavam que ela seria perdida com a aprovação da lei do ventre. Todos os espaços tropicais
americanos que se viram forçados a abdicar do braço escravo regrediram economicamente,
inclusive o Sul.
Em 1871, todavia, a correlação de forças era distinta: mesmo com a demonstração maciça de
descontentamento de todos os grandes fazendeiros de café da região com o projeto de lei- o
que equivalia a dizer o maiores produtores mundiais do artigo-, o gabinete Rio Branco
seguiu adiante coma tramitação parlamentar. Daí alguns historiadores considerarem o
episódio de 1871 como o início do divórcio da monarquia brasileira em relação às suas bases
sociais.
Do ponto de vista dos críticos do gradualismo, a Lei do Ventre Livre não significou mais
do que uma forma de dar segurança aos proprietários e legitimar a manutenção da
instituição. Fora um artifício para garantir o “público sossego” por mais uma geração.
Neste sentido, em 1883, no periódico abolicionista Lucros e Perdas, Silvio Romero e Araripe
Júnior avaliaram a disposição abolicionista do imperador como uma ilusão que, por muito
tempo, manteve a nação aguardando que a emancipação dos escravos viesse através de uma
outorga régia, como fora a emancipação dos brancos através da Constituição do Império.
Além disso, o abolicionismo imperial fora útil para ser visto de longe, pois, segundo os
autores, havia já 12 anos que fora do Brasil se pensava que a escravidão do país havia sido
extinta, e não se sabia que ainda havia um milhão e meio de escravos no Brasil, implicando
uma estimativa de permanência da instituição por não menos do que trinta anos. A realidade
era que “o filósofo coroado” ainda reinava sobre escravos, e a “lei que serviu de salvo-
conduto, porque assegurava que ninguém mais nasceria escravo”, era simplesmente “uma lei
pérfida”, que garantia a escravização na menoridade. 169-70
As interpretações da Lei de 1871, e, sobretudo, aquelas sobre os seus efeitos bastante lentos
de emancipação dos escravos existentes no Império, tenderam, na década de 1880, a assumir
a postura de que o ato legislativo resultante da iniciativa do governo servira apenas para
manter, em bases legais, a instituição. Dessa proposição que os próprios fatos contribuem
para corroborar, uma vez que não houve um grande salto emancipacionista que
promovesse uma progressiva e drástica redução do número de escravos na década de
1870, resultou uma grande desconfiança com relação às próprias motivações e limites
da Lei.A memória constituída a partir do movimento abolicionista, iniciado em 1879,3
acabou por descartar em grande medida os significados da Lei do Ventre Livre, a luta
parlamentar, a resistência escravista e todos os princípios que então estiveram em jogo.
Entretanto, a desconstrução moral da escravidão, que lhe roubou a legitimidade, foi
obra da Lei de 1871. Antes dela, ainda que legitimada pelo direito de propriedade e não
por princípios de desigualdade natural entre os homens, a instituição mantinha-se com
pleno vigor moral.
Mas se o princípio da liberdade não era em geral refutado, o fato é que antes da iniciativa do
Imperador nunca havia sido possível mobilizar parlamentares em torno de uma legislação que
regulasse a transição ao trabalho livre ou mesmo de medidas indiretas em benefício da
liberdade. Algumas propostas eram feitas sem qualquer consequência. Essas iniciativas
individuais, contudo, cresceram e ganharam importância, a partir da fala do trono de 1867.
Mas, além do efeito estimulante para aqueles que eram partidários de medidas preparatórias
da transição ao trabalho livre, que passaram a acreditar na possibilidade de alguma reforma a
partir da anuência, e mesmo da direção do próprio Imperador, o pronunciamento de 1867
causou apreensão.
Seguindo o modelo de outras nações, o Estado daria o exemplo, libertando os seus escravos,
respeitando um prazo para que aqueles alugados para o serviço de particulares pudessem ser
substituídos. O estímulo à alforria voluntária pareceu o único meio possível de emancipar os
escravos existentes. Mas, uma vez que era desejável a indenização de toda a propriedade, o
direito ao pecúlio do escravo foi regulamentado, legitimando-se uma prática já existente.
A comissão concluía que a lei possível, aquela que não ultrapassava os limites das exigências
daquele tempo social, era apenas o primeiro passo de uma difícil empresa. Algumas medidas
de outra ordem deveriam ser tomadas no mais breve período de tempo. Entre elas, a mais
necessária era a promoção da imigração, como fizeram a Inglaterra, a França e a Espanha em
suas colônias americanas, promovendo a introdução de mão de obra asiática contratada por
baixíssimos salários.
A comissão de 1871, lançando mão de todos os elementos desse novo discurso, acrescentou
que a abolição não extinguiria os braços existentes, ao contrário. Por um lado, na medida em
que transformasse o escravo em cidadão, possibilitaria que este produzisse mais e melhor, por
outro, somente com o fim da escravidão é que os imigrantes buscariam oportunidades no
Brasil.
O projeto previa o direito do escravo ao pecúlio que obtivesse através de seu trabalho,
economias, doações, legados e heranças. A comissão definiu que só haveria direito de
obtenção de economias através de trabalho, quando houvesse o consentimento do senhor,
preservando a autoridade deste na regulação do tempo de trabalho do escravo. O direito à
alforria, por meio de indenização obtida por meio do pecúlio constituído, da liberalidade de
terceiros ou da contratação de serviços futuros, era garantido pelo projeto, mas a comissão
definiu que a contratação de serviços futuros só se daria com autorização do senhor e do juiz
de órfãos.
A família escrava foi preservada tal como previa o decreto de 1869, onde se proibiu a
venda de cônjuges em separado, bem como a separação dos filhos menores de 15 anos
de seus pais. Na Lei de 1871, entretanto, a idade fixada para os menores era de 12 anos.
O Imperador os havia encomendado, com toda a certeza, e para explicar a iniciativa, Nabuco
afirma que o motivo suficiente foi o constrangimento e o vexame sentido diante de Mitre e
Flores em Uruguaiana, pois “a escravidão era o labéu que o Paraguai atirava ao nosso
exército, a inferioridade que descobriam em nós os nossos próprios aliados”.14
O vexame de ser a única nação escravocrata da América independente pode certamente ter
sido grande, e há que se considerar ainda o fato de que o Brasil era a única monarquia entre
as antigas colônias europeias, o que significava uma fácil associação entre monarquia,
opressão, atraso e escravidão, justamente em relação ao país que justificava sua ação
diplomática no Prata como de defesa do sistema representativo contra o despotismo das
facções dos caudilhos, o estado da lei contra o estado de guerra. A causa apontada por
Nabuco é absolutamente verossímil, e o fato de ter o Imperador silenciado após as primeiras
vitórias da aliança confirma amplamente a hipótese, uma vez que, tendo reabilitado moral
mente o valor do Império e de suas tropas, em parte formadas por “voluntários” negros, no
cenário internacional, dissipara-se o vexame.
Além disso, nesse período, algumas nações que mantinham escravos negros aboliram a
escravidão. Nas possessões portuguesas, a escravidão foi extinta em 1858; nos Estados
Unidos, o desenlace da guerra civil determinou o seu fim de maneira bastante traumática; a
Holanda aboliu-a no Suriname em 1863, através da Lei de agosto de 1862; e em Cuba,
colônia espanhola e único reduto de escravidão além do Brasil, alguns projetos foram tratados
desde 1865, sendo aprovada uma Lei de abolição gradual em maio de 1870. Na década de
1860 Brasil tornou-se o único Estado escravista do Ocidente, além de Cuba que ainda era
uma possessão colonial, posição vergonhosa como não se cansaram de repetir os apologistas
da lei de abolição gradual.
A guerra civil americana foi sem dúvida um fato que estremeceu as bases mais sólidas
de sustentação da escravidão na América. O país mais avançado entre as antigas
colônias era a fonte mais importante de legitimação da escravidão, inclusive do ponto de
vista econômico. A crise ali desencadeada acabava com o modelo próspero de economia
colonial a ser seguido. Antes mesmo da guerra, as divergências entre o sul e o norte
chamavam atenção e alertavam os brasileiros sobre a necessidade de se conduzir a sociedade
com maestria e previdência após o fim do tráfico. Ainda em 1854, João Maurício Wanderley,
futuro Barão de Cotegipe, apresentou projeto à Assembleia Geral proibindo o tráfico
interprovincial de escravos. No seu discurso, falou da indignidade de separarem-se os filhos
dos pais e os maridos das mulheres, mas o ponto alto da argumentação era o risco de se
promover um antagonismo entre as províncias do sul e do norte que resultaria em um choque
de interesses cujos efeitos podiam ser os mesmos que ameaçavam os Estados Unidos da
América.28
Além do aspecto moral, logo este será um elemento considerado do ponto de vista da ordem,
ou seja, quando tratado por ocasião da apresentação de diversos projetos, o argumento
primordial será o da necessidade de que o cativeiro seja suportável para o escravo. A família
escrava era reconhecidamente uma fonte de estabilidade das relações entre senhores e
escravos e vinha sendo ameaçada particularmente pelo tráfico interprovincial.
Em 1869, Luiz Gama, Américo de Campos, Olimpio da Paixão e Antônio José Ferreira Braga
Júnior, todos maçons e liberais radicais, anunciavam em jornais a sua disponibilidade para a
defesa gratuita de causas em favor da liberdade. As causas deviam estar fundamentadas na lei
de acordo com os anúncios dos advogados, mas Luiz Gama anunciava aceitar todas as causas.
A justiça era então um caminho de luta que se completava através da publicidade. Uma vez
feita uma petição, Luiz Gama a publicava no jornal para que não fosse arquivada ou
desprezada. Além disso, acusava publicamente policiais e autoridades judiciárias, recorrendo
a pareceres de personalidades de destaque e prestígio, como José Bonifácio, o Moço.49
Atuação provocativa e nada silenciosa, tornava-se ainda mais explosiva na medida em que as
partes ofendidas manifestavam-se contra o advogado também através da imprensa.
(LAUDLER, ,)
A tutela podia ser testamentária, legítima ou dativa6 . A tutela testamentária era aquela em
que o tutor era indicado em testamento. Na impossibilidade do tutor testamentário assumir,
tinha lugar a nomeação dos tutores legítimos. As mães e avós eram preferidas nesse tipo,
entretanto, elas deveriam viver honestamente, não serem casadas em segundas núpcias e
renunciarem a todos os privilégios que lhes eram conferidos (ZERO, 2003; ORDENAÇÕES
FILIPINAS, quarto livro, título 102. p. 995-998). Nos casos em que os tutores testamentários
e legítimos não existiam ou não podiam assumir os encargos da tutela, era então indicado um
parente “mais chegado, que tiver no lugar, ou seu termo, onde estão os bens do órfão”
(ORDENAÇÕES FILIPINAS, quarto livro, título 102, § 5, p. 1001-1002). Na ausência do
tutor testamentário e/ou legítimo e de um parente chegado, o Juiz de Órfãos intimava um
“homem bom” da localidade para ser tutor do menor. Esse tipo de tutela é chamada de dativa
(ORDENAÇÕES FILIPINAS, quarto livro, título 102, § 6).
Apesar de não ser vedada às mães e avós a tutela de seus filhos e netos, as dificuldades
impostas para que as mesmas conseguissem a guarda dos menores eram imensas. Os
obstáculos eram ainda maiores para as mulheres pobres e para as libertas. Se a Lei do Ventre
Livre permitiu às mães cativas que conseguissem a alforria serem acompanhadas por seus
filhos menores de oito anos, outras leis do Império, entretanto lhes dificultaram o acesso a
esse direito. De acordo com o Aviso 312, de 20 de outubro de 1859, “negando as nossas Leis
expressamente o pátrio poder às mães, o filho de pai incógnito acha-se compreendido na
jurisdição orfanológica e conseguintemente debaixo da inspeção direta do Juiz de Órfãos que
pode nomear-lhe tutor ou curador, quando sua mãe não tenha bons costumes, dando-o até à
soldada à símile dos outros órfãos e dos expostos” (COLEÇÃO DE DECISÕES DO
GOVERNO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1859, Tomo XXII apud GUIMARÃES, 2006, p.
112).
Muitas crianças (e ingênuos) filhas de mulheres pobres e libertas eram registradas nos
assentos de batismo como filhas naturais, de pai incógnito. Essas mães, de acordo com Aviso
312 de 1859, estavam excluídas do direito de serem tutoras de seus filhos. Essa situação
poderia ser revertida se elas viessem a se casar e nesse ato as crianças fossem reconhecidas
por seus esposos (reconhecimento por subseqüente casamento)7 . Mas um outro empecilho
emergia dificultando a essas mulheres a guarda de seus filhos: a pobreza. A suposta má
conduta das mulheres pobres e libertas, aliada à situação de pobreza, contribuíram para que
muitas crianças e ingênuos fossem dados a tutores dativos.
Nos setenta processos de tutelas de menores do município de Juiz de Fora por mim
examinados, na petição dirigida ao Juiz de Órfãos comunicando a existência de órfãos em
determinado lugar ou residência do município, as mães dos ingênuos eram geralmente
descritas como “muito pobres”, “dadas ao vicio da embriagues e da prostituição”, “solteira e
sem residência fixa” etc. Nancy P. Naro ressalta que “o duplo estigma de ser pobre e liberta
ou escrava” contribuía para que a mulher fi casse mais exposta “às tentativas de difamação de
caráter por parte de seus adversários” (2006, p. 147).
Os processos de tutelas são uma fonte riquíssima para visualizarmos a importância das
relações familiares para escravos e libertos. O esforço para reconstruírem seus laços
familiares quando a liberdade era alcançada fica demonstrado na luta empreendida por
libertos contra tutores que se recusavam a entregar os pupilos. Possivelmente, o desejo de
tutores em ficar com a guarda dessas crianças esteja relacionado ao fato de as mesmas
representarem uma mão-de-obra futura.Diversos tutores disputaram na justiça contra
os pais libertos a guarda dessas crianças, alegando que desejavam continuar criando e
educando esses menores. A tutela foi, presumivelmente, um expediente usado por
muitos proprietários para manter o controle sob uma parcela da mão-de-obra, num
período marcado pela suposta necessidade de trabalhadores (ZERO, 2004).
A questão do vínculo tutelar ter sido utilizado, possivelmente, por muitos homens bons como
um meio de se ter acesso à mão-de-obra de menores, também deve ser visualizada por um
outro ângulo, ou seja, os proprietários que solicitavam a tutela desses menores corriam os
riscos do investimento não ser bem sucedido em conseqüência da alta mortalidade infantil.
Em ou tras palavras, o menor poderia vir a falecer antes de restituir, por meio de trabalhos, os
gastos realizados pelo tutor em sua criação. As fugas eram outro problema enfrentado pelos
proprietários que buscavam obter a tutela desses menores.
Os menores em Juiz de Fora receberam tutores que exerciam as mais variadas profissões.
Eles foram tutelados por padres, pedreiros, carroceiros, médicos, farmacêuticos,
proprietários, empregados público, advogados, administrador de circo, negociantes,
solicitador, lavradores, fazendeiros. Mas, foram os lavradores e fazendeiros os grupos de
maior presença nas ações de tutelas. Eles compareceram em 83 delas10. A maior
presença de fazendeiros/ lavradores nos processos de tutelas é sintomático de um
período em que uma das principais discussões da sociedade era a falta de braços para a
lavoura. O número expressivo de componentes desse grupo, ainda que não fosse um
todo homogêneo, conjugado com a presença maior de tutelados do sexo masculino na
faixa etária apta a exercer atividades laboriosas, pode indicar o destino que se queria
dar a estes menores, ou seja, o trabalho nas lavouras. Com relação às meninas,
Arethuza Zero acredita que muitas delas foram solicitadas para serem empregadas nos
serviços domésticos (ZERO, 2004). Pressuponho, também, que boa parte das meninas
tuteladas tenha sido direcionada para esse setor.
O ano de 1888 assistiu a uma corrida dos proprietários aos Juízes de Órfãos para
legalizarem a situação dos filhos de suas exescravas. Eles solicitavam manter a guarda
dos filhos das mulheres egressas do cativeiro através do vínculo tutelar. Muitos senhores
conseguiram se benefi ciar deste expediente legal. Maria Aparecida Papali assinala que das
330 ações de tutela referentes à cidade de Taubaté, entre 1871 e 1895, 154 se deram no ano
de 1888, dos quais 148 eram referentes a crianças nascidas de ventre-livres, ou seja, ex-
ingênuos. A autora ressalta que a lei orfanológica vigente no Brasil determinava que se
devesse dar tutor a todos os órfãos ricos ou pobres. Essa determinação legal, associada à
pretendida falta de capacidade das mães libertas, o fato de muitas serem solteiras, além da
questão do pátrio poder, tudo isso favoreceu a corrida de ex-proprietários escravistas ao
vínculo tutelar dos filhos das ex-escravas. Dessa maneira, a lei, de certa forma, contribuiu
para transformar “ex-ingênuos em órfãos necessitados de tutores dativos” (PAPALI, 2002, p.
11/15)11. Essa corrida às tutelas também foi percebida para a cidade de Juiz de Fora. Das 138
crianças de minha amostra, 68 foram tuteladas no ano de 1888.
Essa corrida pela tutela de menores egressos do cativeiro ou ex-ingênuos pós-1888 foi
responsável pelo surgimento de tensões entre familiares desses menores e tutores.
Muitos pais recorreram à Justiça para reaverem seus filhos dados a tutores dativos. Em
muitos processos, a luta se prolonga, testemunhas de ambos os lados são intimadas e os
menores são chamados para serem ouvidos pelos juízes. A emancipação do cativeiro
trouxe para os ex-escravos a tão desejada liberdade, o direito de ir e vir, de possuir bens, de
formarem famílias sem o medo de serem separados. O mundo da liberdade só estava se
iniciando para esses homens e mulheres egressos do cativeiro, mas a caminhada por essa
nova estrada lhes reservaria várias surpresas, nem sempre agradáveis.
Para proteger os menores desamparados, bem como pela estima e amizade que poderiam
sentir pelos mesmos, muitos exsenhores aceitaram o encargo da tutela apesar de
reconhecerem “o ônus” da mesma. Para Elione Guimarães (2006), solicitações de tutelas
realmente seriam motivadas por sentimentos de afeto e amizade, e ainda acrescenta que
muitas crianças poderiam ser frutos ilegítimos de algum parente do peticionário. Em outros
casos, a tutela era solicitada como uma medida preventiva de problemas com a justiça, pois
havia a possibilidade de os juízes de órfãos serem informados da existência de crianças
necessitadas de tutor. Devido a isso, “alguns provavelmente preferiram se adiantar a ter
algum vizinho ‘preocupado’ com o bem estar de menores a denunciá-los” (GUIMARÃES,
2006, p. 114).
Como exortou Rebeca Scott, os ex-escravos buscaram se defender de tentativas que tinham
por objetivo restringir a liberdade alcançada. Com efeito, o vínculo tutelar era interpretado
pelos libertos como mais um mecanismo de restrição da liberdade e, por isso, recorreram aos
meios legais, ou ilegais, para poderem ficar com seus rebentos (SCOTT, 2005). A recusa de
entregar os menores, as disputas judiciais, o roubo, o reconhecimento de filhos por
subseqüente matrimônio, as denúncias de maus-tratos e de violência sexual, as constantes
fugas dos menores em busca de seus parentes, tudo isso evidencia uma rejeição dos libertos
às tentativas de cerceamento de sua liberdade e de sua autonomia, ainda que os tutores
tivessem as melhores intenções. (FRANCISCO)
Os caminhos percorridos pelas mulheres escravas e libertas e as muitas maneiras por meio
das quais elas conceberam a liberdade (de seus filhos e delas próprias) passam a ser
examinados pormenorizadamente a partir da segunda parte do livro. A pretensa
universalidade do direito sagrado da maternidade foi uma das ferramentas utilizadas nos
discursos abolicionistas do Brasil e de Cuba, os quais apelavam para um sentimento de
igualdade entre as mães, independentemente de sua cor ou condição jurídica. Como destaca a
autora, a evocação do sentimento de emoção transformou-se numa estratégia importante do
movimento abolicionista que, a um só tempo, pregava a sacralidade da maternidade e ajudava
a forjar um novo código de conduta da elite masculina, que começava a enxergar a mulher
escrava de outra forma. (Ynae)
Todavia, nesse contexto, o ponto alto do livro reside justamente no exame das estratégias
empregadas pelas mulheres negras para lutar, juridicamente, pela liberdade não só de seu
ventre, mas de seus filhos. A compreensão que essas mulheres tinham das leis graduais de
abolição; o entendimento também compartilhado por elas de que as cidades do Rio de Janeiro
e de Havana não eram apenas espaços privilegiados para suas lutas, mas também uma parte
importante para a definição do que a liberdade poderia significar; e as redes de solidariedade
tecidas por essas mulheres, que muitas vezes extrapolavam os limites urbanos, são algumas
das questões trabalhadas pela autora.
Os desdobramentos dessas questões são muitos, a maioria dos quais analisada por
CamilliaCowling na última parte de seu livro. As concepções que as mulheres negras
desenvolveram sobre liberdade e feminilidade com base na maternidade merecem especial
atenção, pois elas permitem, em última instância, redimensionar os conceitos de escravidão e,
sobretudo, de liberdade nos anos finais de vigência da instituição escravista das Américas e
nos primeiros anos do Pós-abolição.
O tratamento dado pela autora sobre a luta de mulheres/mães pela liberdade de seus filhos e a
forma por meio da qual ela enquadra tais questões naquilo que se convém chamar de
“contexto mais amplo” faz que ConceivingFreedom possa ser tomado como uma importante
contribuição nos estudos da escravidão urbana, não só por sua perspectiva comparada, mas
também por trabalhar num território de fronteira da historiografia clássica, demonstrando que
os limites entre o mundo escravista e o mundo da cidadania não podem ser balizados apenas
pela declaração formal da abolição da escravidão. A luta começou antes dessas datas oficiais
e continuou nos anos seguintes, sobre isso não restam dúvidas. Todavia, o protagonismo
desse movimento não se restringiu às ações dos homens que lutaram pela abolição. Ao invés
de fechar uma temática, o trabalho de Cowling indica novos caminhos num campo que
poderá trazer contribuições promissoras para os estudos da escravidão e da liberdade nas
Américas. (Ynae)
A princípio, como enfatizou Maria Beatriz Nizza da SILVA, a tutela era usada basicamente
para as crianças de posses como forma de garantir a gerência do menor e de seus bens no
caso da falta de seu pai. Dar um tutor aos filhos menores só se tornava necessário por morte
do pai, pois caso viesse a mãe a falecer, o pai ficaria como natural administrador dos bens dos
menores, não se colocando assim a questão da tutoria. Por outro lado, se o pai no seu
testamento deixasse designada a pessoa que deveria assumir o papel de tutor, a sua decisão
seria acatada pelo juiz de órfãos. Os tutores testamentários tinham preferência sobre todos os
outros. Entretanto, quando não havia tutoria testamentária, se dava clara preferência à mãe,
ou na falta desta à avó, dentro de determinadas condições: era preciso que elas vivessem
“honestamente”, que a mãe não tivesse voltado a casar, que se comprometessem a “bem e
fielmente administrarem os bens e pessoas de seus filhos e netos.”
No entanto, na prática social seu uso estendeu-se às crianças pobres que acabaram vítimas da
exploração de sua força de trabalho por seus tutores. 4 Após 1871, a tutela se deu
principalmente como forma de abastecer a carência de trabalhadores, sendo os ingênuos
incorporados a esse mecanismo no momento em que a escravidão fragmentava-se, percebe-se
assim, que a questão da coerção sobre a mão de obra passa a ser preocupação constante dos
fazendeiros a partir de 1871.
Percebe-se que a lei de 1871 não foi apenas um instrumento para preservar o status quo, ela
também foi um mecanismo elaborado para promover mudanças na organização e no controle
do mercado de trabalho livre. 24
Em segundo lugar, a lei criou um fundo de emancipação para libertar escravos de acordo com
a renda anual disponível no mesmo. Esse fundo seria financiado por um imposto sobre
escravos, por um tributo sobre propriedade na transferência de escravos de um dono para
outro e por seis loterias anuais, mais um décimo das outras loterias existentes no Império.
Além disso, permitia-se aos escravos possuir o dinheiro ganho sob a forma de heranças,
presentes ou legados, assim, como economias pessoais amealhadas com o consentimento de
seu dono, provenientes ou não de seu trabalho, ou de pecúlios próprios. A lei criou
sociedades emancipadoras e libertou os escravos pertencentes ao Estado, bem como aqueles
que haviam sido abandonados ou aqueles que fossem parte de heranças não reclamadas. 2
Regra geral, as idades da vida que correspondem às categorias de infância, adolecência, idade
adulta e velhice, são as mesmas para a população livre e para a população escrava. Há porém
outra uma e outra uma diferença de monta, ligada à função social desempenhada por cada
uma dessas categorias de idade: a criança branca livre e até mesmo a criança de cor livre
podem ter seu prazo de ingresso na vida ativa protelado, enquanto a criança escrava, que
tenha atingido certa idade, entre compulsoriamente no mundo do trabalho. Há pois, um certo
momento em queo filho da escrava deixa de ser criança negra ou mestiça irresponsável para
tornar-se uma força de trabalho para os seus donos.(MATOSSO,,)
Embora seja mais do que provável que todas as outras crianças, listadas sem ocupação,
tivessem quantidade de crianças que seus donos preparam para a vida adultos. A rigor,
somente o aprendizado de um ofício qualifica o jovem para o futuro, ... Mas, desde então, a
escravidão pesa nos ombros do filho da escrava. Essas idade se sua vida que a vai dos 7 aos
12 anos, não é amis uma idade de infância, porque já sua força de trabalho é explorada ao
máximo, exatamente como o será mais tarde também. Mesmo se seu rendimento é menor, ele
é escravo à partentière, e não mais criança. A obediência que deve como criança, não mais a
deve à mãe, mas a seu senhor, mesmo se sua mão desempenha de vez em quando papel nos
parece de intermediário.
È quando o filho da escrava completar oito anos que alei permite ao senhor- que tem prazo de
um mês para faze-lo- escolher a modalidade de “libertação” que lhe convém.Éqe nos seus 8
anos a criança já deu provas de suas capacidedes. Sem dúvidas, poucos devem ter dito os
senhores que não prenderam pelo trabalho os filhos de suas escravas . Até 21 anos, são treze
anos de trabalho, que nenhuma indenização oferecida pelo governo podia compensar.
Finalmente, nenhuma das crianças da lei do ventre livre terá reconhecido os escravos
disfarçados que foram, e que serão liberados damesmaforma e no mesmo tempo que os
outros escravos. Para os redatores da lei de 28 de setembro, atrás do “menor” a proteger
escondia-se o bom trabalhador , útil a seu senhor. A esse respeito, o parágrafo 6 do artigo 1º
da lei é muito instrutivo, porque pretende limitar os abusos exercidos pelos senhores que
castigam duramente as crianças-ingênuas-escravas e futuras libertas: “se por sentença do
juízo criminal reconhecer-se que os senhores das mães os maltraram...” cessa a prestação de
serviços deles!
A idade de 12 anos, que havíamos sugerido como ponto realmente fim à infância, aparece
também como uma idade chave na lei do ventre livre. De fato, alei estipula que em caso de
alienação de uma escrava, seus filhos livre, menores de 12 anos, devem acompanhá-la
“ficando o novo senhor sub-rogado nos direitos eobrigações de antecessor”. Emília Viotti da
Costa mostrou que vários proprietários paulistas utilizaram esse dispositivo para negociar as
crianças, às quais era atribuído um verdadeiro valor.
Além do que a lei previa que essas crianças, escravas de um estilo novo, podiam”remir-se do
ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária, que por si ou por outrem ofereça ao
senhor de sua mãe, procedendo-se a avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a
preencher se não houver acordo sobre o quantum da mesma indenização.
Para os senhores, somente sua força de trabalho os distingue do resto da escravaria adulta.
Sob suas aparências enganadoras, alei do ventre livre é disto a clara confissão, e a mensagem
simbólica do olhar que um corpo social inteiro levanta sobre a criança escrava. A lei do
ventre livre é o triunfo das mentalidades antiquadas e perversas. (MATOSSO)
Costa inspirou-se no jornal frances La Jeune-Mère, editado pelo também médico André
Théodore Brochard, para criar A Mãe de Família. A finalidade da publicação nacional era a
mesma da congênere europeia:educar a mulher para ser uma boa mãe de família. Cynthia
Fevereiro Turak (2008, p. 55) sustenta que a influência também se deu em termos
discursivos, “ muito dos sentidos organizados e veiculados no jornal francês acerca das
mulheres e da maternidade foram (re)produzidos ou adaptados para a sociedade carioca”.
(CARULA, 2011, P. 198)
Entregar o filho para ser amamentado por outra mulher era apontado como um erro
gravíssimo. Na interpretação de Carlos Costa, as mulheres eram displicentes no cumprimento
do único papel que lhes cabia – a maternidade. O médico sustentava que era necessário
ensiná-las a serem mães – “‘não será verdadeiramente mãe a mulher que não aleitar seu
filho’” (Costa, abr. 1879b, p.58; grifos do original). Ele afirmava que, às mães brasileiras,
não faltava amor a sua prole, mas elas não tinham conhecimento do modo adequado de
se exercer a maternidade. Cabia aos ilustrados em ciência comunicar-lhes esse saber, para
que desempenhassem satisfatoriamente sua função social.198
Para Costa (maio 1879, p.65), as mulheres que se recusavam a amamentar seus filhos o
fariam devido “à negligência, ao egoísmo, à indolência, à servil submissão as etiquetas
sociais, a vaidade e o luxo”. O médico condenava igualmente aquelas que saíam com seus
filhos para gozar a vida em sociedade (teatros, passeios, bailes etc.), sem se preocupar com
a saúde dos pequenos. Elas esqueciam as obrigações maternas (que seriam sagradas porque
recebidas de Deus), preferindo os “prazeres mundanos” (Costa, abr. 1879a, p.64). Diferente
da falta de instrução, nesse caso seriam os desvios de uma determinada conduta moral que
fariam com que essas mulheres não exercessem a maternidade em sua plenitude. Entretanto,
tudo poderia ser diferente caso seguissem os “conselhos dos homens de ciência” – nesse
caso, os médicos (Costa, maio 1879, p.65).198
Nas teses de medicina, era comum o aleitamento ser dividido em quatro tipos: materno,
artificial, misto feminino e mercenário. 199
O aleitamento ‘mercenário’ referia-se àquele em que as mulheres amamentavam a criança
mediante um pagamento previamente estipulado. No caso de uma ama de leite escrava, o
dinheiro iria para o seu proprietário... A autora sugere que aimplicação negativa da palavra
possa ter sido importada de textos europeus, nos quais as mulheres que vendiam seu leite
pensavam, antes de qualquer coisa, no lucro que obteriam – diferente do que ocorria aqui,
uma vez que boa parte do contigente de amas de leite era composto por escravas, que não
optavam por vender seu leite tampouco ficavam com o lucro resultante dessa venda. 199
Em consonância com a opinião da maioria dos médicos, na concepção de Carlos Costa,
o leite transmitiria às crianças características morais da nutriz.201
Quanto ao moral, é fato, de cuja exatidão estou convencido, que as crianças adquirem
o gênio, o caráter das mães ou das amas, desde os primeiros tempos da vida. Desde essa
idade convém ser educado o homem, que é tão fácil em adquirir tudo quanto é mau.
É o que se dá com as amas, sobretudo aqui em nosso país, onde para tudo somos fáceis.
Entregam com toda a liberdade as crianças às amas, negras africanas, estúpidas, cheias de
vícios, sem carinhos etc., o que faz que as crianças facilmente adquiram esses vícios,
tornam-se impertinente etc. etc. (Costa, maio 1879, p.67).
O aleitamento materno traria dupla vantagem. Em primeiro lugar, a qualidade do leite
da mãe seria sempre melhor que a de qualquer outro. Em segundo lugar, garantia a qualidade
moral do filho, dando-se sua transmissão pelo próprio alimento.
Carlos Costa censurou ainda aquelas que entregavam seus filhos às amas de leite, nesse
caso as negras, fossem elas escravas ou libertas (uma vez que não especificou sua condição).
Havia em suas palavras uma forte conotação racista, já que partia do princípio de que se
tratava de mulheres sem inteligência, repletas de vícios e desprovidas de carinho.
Características consideradas inerentes, que poderiam passar por meio do leite para os filhos
das mulheres brancas, que contrairiam os mesmos vícios, se tornando insolentes.
O aleitamento materno garantia que as crianças brancas não fossem
amamentadas por mulheres consideradas racialmente inferiores, haja vista a crença de que
o leite transmitiria qualidades morais aos bebês. A possibilidade de infectar moralmente os
infantes, deturpando seu caráter, demonstra o perigo que os cativos representavam para as
famílias brancas no imaginário desses homens de ciência.201
O medo do escravo doméstico, tão próximo no convívio privado e cotidiano, percorreu
todo o século XIX..202
Havia também o medo das amas e criadas que conviviam no espaço interno da casa e
tinham contato principalmente com as mulheres e crianças da família. Representavam
um perigo para a educação, principalmente das filhas dos senhores, por contar histórias
escabrosas e fantásticas que provocavam a crendice em superstições e criaturas de outro
mundo, fazendo com que as moçoilas se distanciassem da desejada mulher burguesa
moderna, com conhecimento da ciência para melhor desempenhar suas atividades. As
amas de leite podiam ir aos locais onde eram vendidos talismãs e objetos místicos e religiosos
e comprar amuletos para si e para as crianças que amamentavam (Graham, 1992), levando
essas crenças para a casa dos senhores para os quais trabalhavam.202
O principal problema das amas de leites dava-se quando a nutriz era escrava, considerada
“mulher de mau gênio, pouco paciente e ‘pouco jeitosa’” (Costa, jun. 1879, p.82). Devido
a tais problemas, segundo o médico higienista, a mãe jamais deveria deixar sua criança a
sós com a ama. O autor assegurou ainda ter visto “amas que criam filhos de importantes
e abastadas famílias nas tavernas, nos cortiços e até nas cocheiras!...” (Costa, jun. 1879,
p.82). Sendo assim, a escrava representava um perigo para a família, não apenas devido a
seu leite, por meio do qual transmitiria suas negativas características morais às crianças,
mas também porque colocaria suas vidas em risco ao levá-las a locais considerados de
pouca segurança e não higiênicos.203
A responsabilidade seria sempre da mãe que, por descaso, entregava as crianças aos
cuidados de outra pessoa. A educação infantil não devia ser relegada às descuidadas
mucamas, portadoras de costumes pouco louváveis. As mães que assim agissem seriam
irresponsáveis, por depositar sua confiança nesses “cancros sociais” (Costa, jul. 1880, p.98).
Trata-se de uma terminologia comum àqueles abolicionistas que consideravam ser
decorrentes da escravidão os males da sociedade brasileira.203
O autor deixou claro no decorrer do texto o que poderia tornar essa mulher “pouco
útil”. Talvez ela deixasse de transmitir carinho, uma vez que fora amamentada por uma
ama igualmente desprovida de afeto. A ausência desse sentimento transformaria a mulher
em uma inútil porque não teria um dos atributos necessários para desempenhar
adequadamente
o papel de mãe. Outra hipótese é a de que o leite da ama não seria tão nutritivo
quanto o materno e, portanto, faria com que a menina crescesse com uma saúde debilitada,
eventualmente não conseguindo engravidar. Ou seja, nesse caso, ela seria ‘pouco útil’
por não poder desempenhar a principal função feminina – a maternidade. É possível
que, por esses motivos, o autor tenha destacado em itálico a palavra mulher, no intuito
de assinalar que, se ela não exercesse a maternidade, ou não a desempenhasse segundo
os preceitos higiênicos, não poderia ser realmente chamada de mulher. Interessante que,
até aquele momento, a maioria das mulheres que eram leitoras de seu jornal provavelmente,
quando bebês, haviam sido amamentadas por amas. Assim sendo, se levada à risca a
afirmação de Costa, todas as suas leitoras também teriam sido acometidas pelos problemas
por ele descritos.204
Era recorrente a afirmação de que as amas não tinham afeto por aqueles que nutriam.3
Isto ocorreria devido ao fato de terem, na melhor das hipóteses, de dividir o alimento de
seu filho com outro bebê; e na maior parte das vezes por serem apartadas de seus rebentos.
Afastar o filho da escrava foi uma estratégia muito utilizada pelos senhores para alugá-las
a um preço mais alto. Os pequenos cativos frequentemente eram levados para a Roda dos
Expostos da Santa Casa de Misericórdia, na qual o futuro era incerto e a morte uma forte
probabilidade, já que a taxa de mortalidade das crianças ali abandonadas era altíssima. As
crianças renegadas eram automaticamente consideradas livres. Havia o receio, por parte
das irmãs de caridade, de que uma escrava fujona ali deixasse seu filho, vislumbrando um
futuro melhor para ele ou que um proprietário viesse posteriormente buscar o escravinho
entregue à roda (Carneiro, 2006).205
da falta de carinho das amas escravas, as teses de medicina apontavam outros
fatores para desqualificar a salubridade do seu leite – a própria escravidão prejudicaria sua
qualidade, visto que as amas sofriam maus-tratos físicos e morais decorrentes do sistema.
Outros fatores que explicariam tal situação seriam a precária condição do cativeiro, que
favorecia o aparecimento de muitas doenças e os fatores hereditários, que poderiam ser
transmitidos aos bebês provocando problemas terríveis (Carneiro, 2006).
Apesar de considerar a amamentação materna fundamental e execrar aquela realizada
pelas amas de leite, Costa (maio 1881, p.67) mostrava-se favorável à criação de uma lei que
obrigasse as escravas que eram alugadas com essa finalidade a passar por um “rigoroso
exame”. O fato de defender a criação da referida lei indica que o médico tinha consciência
de que este recurso era bastante utilizado na sociedade brasileira e ainda o seria por algum
tempo. Tal posição seria, então, uma tentativa de minimizar os problemas decorrentes
desse tipo de aleitamento.
Contudo, nem todas as amas necessitariam passar por exames, apenas as cativas sendo
objeto de suspeita. O grande problema desse tipo de aleitamento não era o fato de a mãe
deixar de amamentar seu filho, e sim, o de entregá-lo para que uma escrava o fizesse. Caso
contrário, o médico recomendaria que qualquer ama passasse pela avaliação, independente
de seu status jurídico. Muito provavelmente, Costa desejava que esse tipo de exame se
estendesse também às libertas, e que o ponto central fosse o aleitamento feito por negras,
haja visto o modo como o médico a elas se referia: “negras africanas, estúpidas, cheias de
vícios, sem carinhos etc.” (Costa, maio 1879, p.67), o que evidencia a presença da questão
racial em sua interpretação. Outro motivo a ser considerado é que o referido exame também
205
poderia valer para as forras que, tendo conhecido a escravidão, vivenciaram todos os
males decorrentes do sistema e teriam as mesmas condições físicas e morais daquelas que
ainda sofriam com o cativeiro.206
Pois bem, agora, graças a gloriosa lei de 13 de Maio, não há mais mães escravas; todas
as mulheres são iguais; de sorte que não haverá mais distinção entre as amas de leite livres
e escravas. Elas poderão atualmente servirem como amas, por sua livre vontade e é natural
supor-se que farão a amamentação de bom coração, podendo levar consigo seus filhos.
(Costa, 30 jul. 1888, p.89).211
Todavia, o médico continuava a sustentar que o melhor alimento ainda era o leite
materno, e que o aleitamento feito por uma ama só deveria ocorrer em última hipótese.
Mesmo livres, essas amas ainda representavam perigo, “as amas sendo livres terão outras
exigências, poderão facilmente abandonar a casa ou ‘contrair ligações’ que podem ser
prejudiciais às crianças. Convém pois que saibas dirigir, por assim dizer a educação dessas
mulheres” (Costa, 30 jul. 1888, p.89).211
As amas continuavam representando perigo para aqueles que requeriam seus serviços.
Não mais por não possuírem leite de qualidade, mas por não terem uma vida regrada
dentro da moral estabelecida pelos preceitos da higiene.212
Por fim, para Carlos Costa, a mãe deveria amamentar seu próprio filho porque entregálo
para ser alimentado por uma ama de leite configurava perigo extremo, especialmente
sendo a maioria das nutrizes escrava. A instituição da escravidão havia corrompido essas
mulheres, que não aleitavam adequadamente, segundo os parâmetros higiênicos. O seu
leite era ruim, o que se explicava pelo fato de seus filhos terem sido levados, na maioria das
vezes, à roda, acometendo-as de tristeza e rancor que acabariam prejudicando a qualidade
do alimento por elas produzido. Além do perigo moral, as crianças poderiam adquirir
características da nutriz, tornando-se, entre outras coisas, impertinentes. A construção da
crítica às amas de leite estava fundamentada na escravidão. Eliminar o hábito de fazê-las
amamentar os bebês de seus senhores também significava distanciar-se do regime de
escravidão, tornando a imagem do país mais higiênica e condizente com os valores
burgueses então em voga.
Defender o aleitamento materno era uma maneira de forjar uma mudança na ordem
familiar, que a partir de então estaria fundamentada em uma sociedade burguesa liberal.
A nova família deveria abandonar o uso das amas de leite, escravas em sua maioria,
afastando, dessa forma, também o próprio escravismo. Aqueles que tinham seus filhos
amamentados pelo seio materno estariam alinhados às propostas de modernização do
país, por meio de um ambiente familiar higiênico longe da escravidão. O passado colonial
e a escravidão significavam a barbárie e, para distanciar-se desse modelo de sociedade, um
projeto moderno deveria ser instaurado, no qual estava inclusa a reformulação da ordem
Familiar.212
As discussões incessantes sobre sua “promiscuidade sexual” ou seus pendores “matriarcais”
obscureciam, mais do que iluminavam, a situação das mulheres negras durante a escravidão.
Herbert Aptheker continua sendo um dos poucos historiadores a tentar criar um alicerce mais
realista para a compreensão da mulher escrava. (Angela Davis, crifos)
Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscados
pelo trabalho compulsório. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer
exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como
trabalhadoras.
O sistema escravista definia o povo negro como propriedade. Já que as mulheres eram vistas,
não menos do que os homens, como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietáios de
escravos elas poderiam ser desprovidas de gênero. Nas palavras de um acadêmico, “mulher
escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário, e
apenas ocasionalmente esposa, mãe e dona de casa”. A julgar pela crescente ideologia da
feminilidade so século XIX, que enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras,
parceiras e donas de casa amáveis para seus maridos, as mulheres negras eram praticamente
anomalias.
A questão é que, ao aceitar totalmente o culto à figura materna característico do século XIX,
a autora falha por completo em captar a realidade e a sinceridade da resistência das mulheres
negras à escravidão. Inúmeros atos de heroísmo realizados por mães escravas foram
registrados. Essas mulheres, ao contrário de Eliza, eram levadas a defender seus filhos pela
repulsa veemente à escravidão. A origem de sua força não era um poder místico vinculado à
maternidade, e sim suas experiências concretas como escravas. (Angela Davis, O legado da
escravidão: parâmetros para uma nova condição da mulher”)
http://brasilindependente.weebly.com/
Dicionário da escravidão e liberdade
*amas de leite
REFLETIR ACERCA DA ESCRAVIDÃO E DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA história
do Brasil requer considerar as experiências de mulheres africanas e suas descendentes nos
mundos do trabalho, em particular o local da escravidão doméstica. Apesar de minoritárias no
tráfico africano e nas grandes fazendas, mulheres africanas e crioulas atuaram no interior das
casas-grandes e sobrados urbanos desde a implantação da escravidão nas Américas. Os
esforços necessários à subsistência - limpeza da casa, lavagem de roupas, provimento de
água, artesanato doméstico, processamento de alimentos - destacaram-se como o principal
modo de inserção das mulheres escravas, mas também libertas, livres e brancas
empobrecidas, no mundo do trabalho urbano enquanto durou esse regime. Dentre as funções
desempenhadas exclusivamente pelas mulheres no ambiente doméstico emerge a figura
icônica da ama de leite.
Personagens recorrentes em pinturas, na literatura de ficção e de memórias, as amas de leite
foram representadas como símbolos do carinho e devoção a seus senhores no interior de uma
escravidão doméstica, idealmente doce e benevolente. No âmbito das vivências cotidianas, a
ocupação de ama de leite impactou de maneira singular as experiências da maternidade e as
formas de exploração dos corpos dessas mulheres
A condição de gênero das cativas domésticas, em particular amas de leite e mucamas
designadas "escravas de portas adentro'', as expôs a práticas específicas de dominação e
violência, envolvendo ataques sexuais, formas de vigilância e, para as amas de leite,
restrições ao exercício da maternidade.
Transplantando para as Américas os padrões de criação de filhos entre as aristocracias
europeias, que empregavam mulheres empobrecidas como amas de leite, as mulheres brancas
das elites delegaram o aleitamento de seus bebês a suas cativas, prática comum a todas as
sociedades escravistas do Atlântico. A crença na fragilidade das mães brancas e de seu leite,
considerado fraco em oposição ao mito da robustez e da abundância de leite entre as
mulheres negras e africanas, concorreu para a adoção da prática que se tornou disseminada
nas fazendas e centros urbanos da Colônia e do Império.
A principal questão que se colocava para as mulheres obrigadas a trabalhar como ama era a
sorte de seus próprios bebês. Nas fazendas médias e grandes, onde se desenvolveram
comunidades de senzala, elas sofriam com a distância de suas famílias e comunidades. As
dificuldades e restrições impostas a elas impossibilitavam que destinassem os cuidados
desejados a seus filhos, os quais estavam sujeitos ao desmame precoce, a separações
temporárias e por vezes à morte. Privadas do leite materno, ou obtendo-o em menor
quantidade, as "crias", como eram chamados pelos senhores, não raro passavam fome,
contando com uma alimentação imprópria e de difícil digestão - como papinhas feitas com
farinha de mandioca, ou o leite animal não esterilizado. Para que o bebê branco
monopolizasse as atenções e o suprimento de leite, os bebês negros poderiam ser entregues
aos cuidados de outra escrava, particularmente meninas ou mulheres velhas, que se ocupavam
das crianças nas senzalas ou enfermarias. Mães escravas que puderam manter seus bebês
junto a si experimentaram um cotidiano de tensões e muito cansaço, ao terem que dar conta
das necessidades de dois bebês, devendo priorizar a criança branca sempre que a vigilância
dos senhores se fizesse presente.
Em cidades como Belém do Pará, Recife, Salvador e destacadamente o Rio de Janeiro,
mulheres escravas que davam à luz integraram um mercado lucrativo de aluguel de seu leite e
de seus serviços. A cidade do Rio de Janeiro dos Oitocentos tem recebido destaque da
historiografia, em parte devido à amplitude dos anúncios de aluguel. Os censos oficiais
apontaram a presença ostensiva de mulheres escravas na capital imperial no fim da primeira
metade do século xrx: 22971 africanas e 22140 crioulas constituíam aproximadamente 40%
da população escrava da cidade e seus arredores em 1849. A partir de 1850, quando o tráfico
africano foi abolido, a diminuição do número de escravas urbanas provocou o surgimento de
uma verdadeira especulação sobre o leite e os serviços das cativas envolvendo senhoras(es) e
locatárias(os) destituídas(os) de escravas, atividade vultosa até a abolição formal, em 1888.
Em 1872, o censo registrou que mais da metade das 24 mil mulheres cativas, de maioria
crioula, eram ocupadas em serviços domésticos. Muitas dessas mulheres, durante a gravidez e
após o parto, integraram o mercado de aluguel que incluiu até mesmo intermediários, como
os donos das casas de comissão que se espalharam pelas freguesias centrais da cidade,
lucrando com as taxas sobre as operações comerciais. Na década de 1880, há registros de que
cativas grávidas ou mães com bebês de colo foram compradas por traficantes nas províncias
do Nordeste do país - como Paraíba do Norte, Ceará e Pernambuco - rumo à exploração
urbana como amas. Outras foram forçadas a deixar seus filhos e famílias, e migrar
temporariamente de fazendas do Rio de Janeiro e províncias vizinhas rumo à capital do
Império.
A mais traumática das adversidades era o desaparecimento de seus próprios bebês. Pesquisas
baseadas em anúncios publicados em jornais cariocas ao longo do século xrx revelam que
90% deles não faziam nenhuma menção à existência do bebê da escrava, sendo comuns as
expressões "sem cria", "e também se vende a cria'', "aluga-se com o filho ou sem ele". A
separação das mães e bebês constituía uma estratégia dos senhores interessados em aumentar
seus ganhos, pois as famílias locatárias estiveram dispostas a pagar o triplo pelos serviços
temporários e exclusivos da ama sem o bebê. A ganância dos senhores levava-os a aproveitar
o período de lactação das cativas para alugá-las sucessivamente a mais de uma família.
Quanto aos destinos possíveis dos seus recém-nascidos, estes poderiam permanecer na casa
dos senhores, ser vendidos ou entregues a amas de criação - mulheres livres pobres que
cuidavam das crianças em seu próprio domicílio em troca de um ganho mensal - , doados a
familiares, ou ser deixados nas ruas, praças e escadarias das igrejas. O mais comum era
deixar os bebês das amas na roda dos expostos, instituição da Igreja católica baseada na
tradição de assistência portuguesa aos pobres para enfermos e crianças abandonadas. As
donas e donos da parturiente pagavam a uma parteira de sua confiança para que
providenciasse o desaparecimento dos recém-nascidos, que eram depositados, muitas vezes
com o cordão umbilical recém-cortado, na roda. Ali, mulheres cativas eram também
alugadas, encarregando-se de amamentar em condições insalubres vários bebês,
embrulhando-os até mesmo em jornais. Em todos esses casos, as chances de sobrevivência do
bebê da escrava eram muito escassas.
Nas décadas de 1870e1880, documentos produzidos pela Santa Casa de Misericórdia
indicaram que um dos efeitos da Lei do Ventre Livre, que determinava a libertação das filhas
e filhos das escravas, foi o aumento do abandono de bebês negros na roda dos expostos. Ao
limitar o direito de escravização sobre a prole das cativas, a lei teria causado o desinteresse
dos senhores no dispêndio de cuidados com os bebês, uma vez que as mães poderiam ser
alugadas como amas, e por um valor mais elevado; isso, se fossem contratadas sem seus
próprios filhos.
Em manuais de medicina doméstica, conferências públicas e textos publicados em jornais,
médicos reportavam-se às amas de leite como responsáveis pela transmissão de todo tipo de
doença. A origem africana das mulheres era agora representada como metáfora para os
perigos e males sociais que poderiam atingir as crianças brancas, as famílias abastadas, e
como um perigo para o futuro da nação, a qual, nesse contexto, era imaginada a partir dos
padrões europeus de civilização.
As amas de leite resistiram como puderam. Anúncios de jornais registraram a fuga de
escravas das casas de locatários; outras abandonaram o domicílio senhorial nos últimos meses
de gravidez, com o provável objetivo de escapar ao seu destino como ama e assim evitar a
morte ou o sumiço dos filhos. A farta documentação médica, enfim, referiu-se a essas
mulheres como amas de péssima qualidade: mulheres tristes, coléricas, embriagadas e
negligentes, que dirigiram aos bebês brancos o peso de sua raiva, de sua dor e da sua
impotência: recusando-lhes o seio, demorando para trocar suas fraldas, ignorando os choros,
desferindo beliscões, sacudindo-os com violência, untando o bico do peito com pimenta,
embriagando-os com cachaça.
Apesar da condenação feita pelos médicos às amas de leite, ao longo da segunda metade do
século xrx algumas delas foram levadas por seus senhores aos estúdios fotográficos que iam
sendo fundados no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife. Fotografias de crianças
brancas no colo de amas negras, ornamentadas com turbantes, colares e xales da costa nos
ombros, vieram compor os álbuns de retrato e as memórias das famílias senhoriais
*crianças e ventre marília
Os FILHOS DAS ESCRAVAS SÃO PERSONAGENS FUGIDIOS DA HISTÓRIA da
escravidão brasileira. Embora tenham sempre feito parte da população da Colônia e do
Império, sua presença nos documentos de época é muitas vezes elusiva. Não são vistos com
facilidade nos processos criminais ou notícias de rebeldias que iluminam os conflitos mais
evidentes da escravidão. Nos autos cíveis, inventários, contratos de compra e venda, são
figuras discretas: pouco se diz sobre sua idade, sua família, atividades que desempenhavam
ou locais de onde provinham.
Especialmente a partir de 1871, contudo, sua presença nos documentos tomou-se mais
explícita. Foi nesse ano, no dia 28 de setembro, que, em resposta às crescentes pressões pela
abolição, vindas de dentro e de fora do Império, a famosa Lei do Ventre Livre entrou em
vigor. Eliminando a doutrina legal do partussequiturventrem (o princípio de que o filho segue
o ventre da mãe), tomava formalmente livres os "ingênuos", filhos e filhas das mulheres
escravas nascidos a partir daquela data. Daí em diante, crianças que até então ficavam de
escanteio nas páginas dos registros oficiais passaram a ocupar lugar de destaque na agenda
política. No centro do debate sobre a emancipação gradual, a infância escrava ganhou espaço
nos jornais, nos debates legislativos e nas ações cíveis.
A ocupação desses pequenos trabalhadores numa miríade de tarefas foi notada por viajantes
europeus aqui chegados. Embora a maior parte de seus relatos tenha sido produzida no século
XIX, suas observações sobre crianças escravas são válidas para momentos anteriores,
guardadas as proporções de cada contexto. Nas cidades, as crianças estavam no interior das
casas de famílias abastadas, das meramente remediadas, e por vezes nos lares pobres, nos
quais eram mão de obra mais acessível, por ser mais barata que a de escravos adultos. No
espaço doméstico, meninos e sobretudo meninas desempenhavam toda sorte de tarefas: servir
a mesa, varrer, costurar, recolher cinzas do fogão, carregar água, limpar urinóis, banhar
senhores e seus filhos, ajudá-los a se vestir, espantar as moscas que os atormentavam,
embalá-los no vaivém das redes, tudo aquilo, enfim, que seus braços de força ainda modesta
pudessem suportar - e, não raro, até mais do que isso. Nos armazéns em que as famílias
citadinas se abasteciam, os meninos eram às vezes empregados como caixeiros, ocupando-se
da venda das mercadorias no balcão e da limpeza do lugar. Com menos frequência, também
aprendiam ofícios especializados: pequenos sapateiros, ferreiros e marceneiros eram
treinados às custas de muito trabalho e castigos nos saberes de uma profissão futura. Nas
ruas, carregavam embrulhos, trouxas de roupa, levavam e traziam recados, vendiam frutas e
doces de tabuleiro, às vezes ajudando suas mães ou escravas mais velhas.
Cedo, a meninice acabava. Por volta dos doze anos de idade, a criança cativa passava a
acompanhar os mais velhos em tarefas mais pesadas; aos catorze a maturidade dos jovens
trabalhadores era considerada completa. Por isso, o valor de compra e venda dos moleques e
molecas - termos de época que designavam os cativos de pouca idade - aumentava
substancialmente. Isso não significa que antes disso a vida só lhes reservasse descanso e
brincadeiras; documentos históricos mostram meninos e meninas de apenas quatro ou cinco
anos engajados nos serviços domésticos. Ser criança na Colônia e no Império era, de modo
geral, uma condição imprecisa, sobre a qual pesavam leis portuguesas de origem medieval e
ideias religiosas, e a concepção da infância como momento particular da vida, merecedor de
atenções especiais, somente se afirmaria ao longo do século xrx, ainda assim de forma lenta e
incompleta. Para as crianças escravas, contudo, o tempo da infância consistia num intervalo
breve entre os primeiros anos de vida e o ingresso precoce no mundo do trabalho.
Os senhores das mães dos "ingênuos" procuravam a todo custo fraudar os registros
obrigatórios de nascimento que comprovavam sua condição de pessoas livres, omitindo ou
falseando datas. Além disso, a liberdade prometida era, no mínimo, duvidosa: até os oito anos
de idade, eles deveriam permanecer sob a tutela dos proprietários de suas mães; estes
poderiam, então, optar por oferecê-los a asilos públicos em troca de indenizações de 600 mil-
réis, ou por mantê-los consigo e usufruir de seus serviços até os 21 anos. Raros foram aqueles
que escolheram as indenizações e entregaram os pequenos ao Estado - a maioria preferiu
conservar a mão de obra de crianças que em poucos anos desempenhariam serviços de
adultos. Nas décadas de 1870 e 1880, momento em que os índices de alforria cresciam, a lei
criava novos obstáculos para a emancipação das famílias dos "ingênuos'', especialmente para
suas mães. Mesmo que pudessem comprar suas cartas de liberdade, essas mulheres viam-se
forçadas a permanecer sob o domínio de seus senhores caso quisessem continuar perto dos
filhos.
Após a abolição, em 1888, antigos senhores tentaram avidamente manter o controle sobre os
"ingênuos'', engajando-os, com a ajuda das autoridades judiciais, em contratos de trabalho e
vínculos de tutela que tinham sempre a mesma falsa justificativa: zelar pelas pobres crianças
e seu futuro, ensinando-lhes ofícios e acolhendo-as em lares adequados, protegendo-as das
nocivas influências que receberiam de suas mães, pais ou semelhantes. Era necessário instruir
meninos e meninas na disciplina do trabalho e fomentar entre eles o respeito às hierarquias
sociais que substituíam a escravidão, para conservar, tanto quanto possível, as velhas
desigualdades. Rotinas de trabalho extenuantes, violências variadas e fracionamentos
familiares continuaram a fazer parte da vida dessas crianças por anos a fio no período pós-
abolição.
*mulher, corpo e maternidade machado toledo
EMBORA NÃO SEJA DIFÍCIL COMPREENDER A IMPORTâNCIA DA maternidade na manutenção da
escravidão, durante muito tempo os estudiosos falharam em reconhecê-la. Nas pesquisas sobre a
escravidão, ainda é comum notar que especialistas se referem aos escravos de forma geral, como se
estes fossem isentos de gênero e sexo, e pudessem ser inseridos numa categoria única. Condições
de vida, trabalho, saúde, relações sociais e comunitárias são frequentemente descritas como
características de um modo de vida do escravo, sem que em nenhum momento se mencionem as
diferenças de homens e mulheres - sejam eles/elas africanos/as ou crioulos/as - no sistema de
trabalho escravo ou na comunidade de senzala.
O discurso abolicionista, fosse ele inglês, francês ou ibérico, que assumiu um tom sentimental,
elegeu a mulher escravizada como símbolo maior dessa campanha. Representando as injustiças da
escravidão na figura da mãe que é separada dos filhos, os abolicionistas baseavam seus argumentos
na imoralidade dessa instituição, que submetia mulheres e crianças à vontade de homens
inescrupulosos e cheios de ganância. Tais imagens vinham de encontro à onda de valorização da
mulher enquanto mãe extremosa e "rainha do lar".
Longe de estar esgotada, a corrente poligenista ganhava, assim, força renovada. Esses autores
recuperavam as máximas de Darwin, destacando, porém, que seria possível estudar as raças como
uma realidade ontológica. Partindo da afirmação do caráter essencial das raças - que as faria diferir
da mesma maneira como eram variadas as espécies -, uma série de teóricos, mais conhecidos como
"darwinistas raciais", passaram a qualificar a diferença e a transformá-la em objeto de estudo: um
objeto de ciência. Raça transforma-se, então, em conceito essencial e respaldado pela biologia.
O segundo grupo ficou conhecido a partir de suas conclusões deterministas raciais. Abandonavam-se
as análises centradas no indivíduo para insistir na proeminência do grupo. O sujeito era entendido,
portanto, apenas como uma somatória dos elementos físicos e morais da raça a que pertencia.
E, com o fortalecimento dos modelos das raças, percebe-se uma espécie de reversão bem no seio do
discurso liberal. Distantes do princípio da igualdade, pensadores como Gobineau (1853), Le Bon
(1894) e Kid (1875) acreditavam que as raças constituiriam fenômenos finais e imutáveis, sendo todo
cruzamento entendido como um engano; um sinônimo de degeneração, não só racial como social.
Eram três os pressupostos teóricos.
Assim, se à primeira vista a noção de evolução surgia como um conceito capaz de apagar oposições
essenciais entre os homens, na prática ela acabou por reforçar perspectivas opostas. De um lado
ficavam os evolucionistas sociais, que reafirmavam a existência de hierarquias na humanidade, mas
dentro de uma mesma estrutura fundamental. De outro, os darwinistas sociais, que entendiam as
diferenças entre as raças como elementos essenciais. Em comum reinava a certeza de que raça era
conceito crucial a distinguir hierarquias entre povos e a cindir a própria humanidade. Fermento para
o discurso das nacionalidades, o conceito "naturalizou diferenças"; tirando-as do âmbito da cultura e
da história para lhes dar o chão duro da ciência, da biologia e da natureza.
Por outro lado, esse tipo de modelo viraria voga fácil num Brasil de finais do XIX, que assistia
paralelamente à derrubada do sistema escravocrata. As teorias raciais entrariam em cheio na
agenda local e passariam a regular a compreensão da vasta população africana que começou a
chegar compulsoriamente ao território desde fins do século XVI, e que em meados dos Oitocentos
era uma "realidade incontornável'', conforme registravam alguns textos locais (ver imagens 135 a
139 do caderno). O fato é que, num momento em que o abolicionismo, mesmo que gradual,
prometia a quimera da liberdade, já o tema da igualdade estava outra vez em questão: não mais por
causa do sistema escravocrata, mas agora em nome da ciência e da biologia, que determinavam de
maneira categórica que "os homens não nasciam iguais".
Uma história de “diferenças e desigualdade” as doutrinas raciais no século XIX- Lilia MortizSchwarcz
43-66
É somente com a publicação e divulgação de A origem das espécies, em 1859, que o embate entre
poligenistas e monogenistas tende a amenizar-se. É fato que Charles Darwin dispunha de
predecessores, bem como de aliados que sustentavam pontos-chaves de sua teoria. 13 No entanto,
o impacto da publicação dessa obra foi tal que a teoria de Darwin passou a constituir uma espécie de
paradigma de época, diluindo antigas disputas.
No que se refere à esfera política, o darwinismo significou uma base de sustentação teórica para
práticas de cunho bastante conservador. São conhecidos os vínculos que unem esse tipo de modelo
ao imperialismo europeu, que tomou a noção de “seleção natural” como justificativa para a
explicação do domínio ocidental, “mais forte e adaptado”.
O pensamento social da época também acabará sendo influenciado por esse tipo de reflexão,
reorientando-se antigos debates teóricos. Assim, enquanto a etnografia cultural adaptava a noção
monogenista aos novos postulados evolucionistas, 16 darwinistas sociais ressuscitavam, com nova
força, as perspectivas poligenistas de inícios do século. Era preciso pensar na antiguidade da
“seleção natural” e na nova realidade que se apresentava: a mestiçagem racial.
Civilização e progresso, termos privilegiados da época, eram entendidos não enquanto conceitos
específicos de uma determinada sociedade, mas como modelos universais. Segundo os
evolucionistas sociais, em todas as partes do mundo a cultura teria se desenvolvido em estados
sucessivos, caracterizados por organizações econômicas e sociais específicas. Esses estágios,
entendidos como únicos e obrigatórios — já que toda a humanidade deveria passar por eles —,
seguiam determinada direção, que ia sempre do mais simples ao mais complexo e diferenciado.
Tratava-se de entender toda e qualquer diferença como contingente, como se o conjunto da
humanidade estivesse sujeito a passar pelos mesmos estágios de progresso evolutivo. O método
comparativo, por outro lado, funcionava como princípio orientador dos trabalhos, já que se supunha
que cada elemento poderia ser separado de seu contexto original, e dessa maneira inserido em uma
determinada fase ou estágio da humanidade. Assim, sem pretender esgotar as características desse
modelo evolucionista social, basta neste momento reter o princípio otimista de tal escola, que
entendia o progresso como obrigatório e restituía a noção de humanidade única.
A antiga noção de “perfectibilidade” do século XVIII continua presente no século XIX, mas ganha uma
acepção diversa. Nesse caso, implica pensar não em uma qualidade intrínseca ao homem, mas em
um atributo próprio das “raças civilizadas” que tendem à civilização. Por outro lado, o conceito
ganha um sentido único e direcionado, já que parece existir só uma “perfectibilidade” possível, e da
outra parte apenas a degeneração.
Outros conceitos são nesse momento redefinidos. Desigualdade e diferença — termos que o senso
comum pode tomar como sinônimos — passam a representar posturas e princípios diversos de
análise. A noção de desigualdade implicaria a continuidade da concepção humanista de uma
unidade humana indivisível, somente marcada por dissimilitudes acidentais e contingentes. As
diversidades existentes entre os homens seriam apenas transitórias e remediáveis pela ação do
tempo ou modificáveis mediante o contato cultural. Já o conceito de diferença levaria à sugestão de
que existiriam espécies humanas ontologicamente diversas, as quais não compartilhariam de uma
única linha de desenvolvimento. As diferenças observadas na humanidade seriam, portanto,
definitivas e irreparáveis, transformando-se a igualdade em um problema ilusório.
Esses termos desmembram-se, também, conforme deles se servem essas duas escolas da época.
Segundo os evolucionistas sociais, os homens seriam “desiguais” entre si, ou melhor,
hierarquicamente desiguais, em seu desenvolvimento global. Já para os darwinistas sociais, a
humanidade estaria dividida em espécies para sempre marcadas pela “diferença”, e em raças cujo
potencial seria ontologicamente diverso. Assim, nesse contexto e com o amadurecimento do
debate, dois grupos mais claramente delineados podem ser reconhecidos. De um lado, congregados
em torno das sociedades de etnologia, estariam os etnólogos sociais (também chamados de
evolucionistas sociais ou antropólogos culturais), adeptos do monogenismo e da visão unitária da
humanidade. De outro, filiados a centros de antropologia, pesquisadores darwinistas sociais, fiéis ao
modelo poligenista e à noção de que os homens estariam divididos em espécies essencialmente
diversas.
A partir desse balanço nota-se que a percepção da “diferença” é antiga, mas sua “naturalização” é
recente. Ou seja, é apenas no século XIX, com as teorias das raças, que a apreensão das “diferenças”
transforma-se em projeto teórico de pretensão universal e globalizante. “Naturalizar as diferenças”
significou, nesse momento, o estabelecimento de correlações rígidas entre características físicas e
atributos morais. Em meio a esse projeto grandioso, que pretendia retirar a diversidade humana do
reino incerto da cultura para localizá-la na moradia segura da ciência determinista do século XIX,
pouco espaço sobrava para o arbítrio do indivíduo. Da biologia surgiam os grandes modelos e a
partir das leis da natureza é que se classificavam as diversidades.
Certamente essa não era a única versão que explicava, naquele momento, as sociedades em seu
comportamento. É possível dizer, no entanto, que os modelos deterministas raciais foram bastante
populares, em especial no Brasil. 29 Aqui se fez um uso inusitado da teoria original, na medida em
que a interpretação darwinista social se combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista.
O modelo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias, mas, feitos certos rearranjos
teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma nação mestiça. Este já é, porém, um debate que
pressupõe a reflexão sobre a excelência da cópia e a especificidade desta no pensamento nacional
— o que será feito mais adiante.
No entanto, na medida em que esse tipo de teoria se transformou, no Brasil, em uma espécie de
jargão comum até os anos 30, torna-se quase impossível o estudo da totalidade dos intelectuais
nacionais que opinaram sobre a questão racial. A opção será, dessa maneira, tomar os autores não
de forma isolada, mas vinculados às diferentes instituições das quais participavam e que
representavam, por sua vez, seu contexto maior de discussão intelectual. Nesses locais de pesquisa é
que esses “homens de sciencia” encontravam espaços privilegiados para a produção de idéias e
teorias, e para seu reconhecimento social. Apesar de diversos em suas características internas,
distintos em sua atuação, esses estabelecimentos mostraram-se apropriados para a compreensão
das diferentes interpretações aqui produzidas e dos próprios pensadores que, no mais das vezes,
dialogavam entre si, reconhecendo e destacando seus pares. A análise de diferentes instituições de
saber de finais do século XIX, entendidas enquanto instâncias específicas de seleção e consagração
intelectual, propiciará um amplo panorama das elites ilustradas nacionais da época, bem como a
recuperação da lógica de recriação desses modelos raciais.
Nos museus etnológicos, institutos históricos, escolas de direito e medicina, a discussão racial
assumiu um papel central, sendo rica a análise de tais estabelecimentos, de onde partiram respostas
alternativas apesar de contemporâneas. A partir deles é possível rever os diferentes trajetos que
uma mesma doutrina percorre.
1º paragrafo
*Elisabeth Badinter
Desde o século XVIII, vemos desenhar-se uma nova imagem da mãe, cujos traços não cessarão de se
acentuar durante os dois séculos seguintes. A era das provas de amor começou. O bebê e a criança
transformam-se nos objetos privilegiados da atenção materna. A mulher aceita sacrificar-se para que
seu filho viva, e viva melhor, junto dela.202
Não foi certamente--por acaso que as primeiras mulheres a escutar os discursos masculinos sobre a
maternidade foram burguesas. Nem pobre, nem particularmente rica ou brilhante, a mulher das
classes médias viu nessa nova função a oportunidade de uma promoção e de uma emancipação que
a aristocrata não buscava. Ao aceitar incumbir-se da educação dos filhos, a burguesa melhorava sua
posição pessoal, e isso de duas maneiras. Ao poder das chaves, que detinha há muito tempo (poder
sobre os bens materiais da família), acrescentava o poder sobre os seres humanos que são os filhos.
Tornava-se, em conseqüência, o eixo da família. Responsável pela casa, por seus bens e suas almas,
a mãe é sagrada a "rainha do lar". Testemunham essa mudança de mentalidade, que amplia o
poderio materno em detrimento da autoridade paterna, as questões postas em concurso pela
Academia de Berlim em 1785. Primeira: quais são, no estado de natureza, os fundamentos e limites
da autoridade paterna?
No século XIX, quando o trabalho feminino, mesmo intelectual, é totalmente desvalorizado aos
olhos da ideologia dominante, só resta às mulheres das classes superiores uma alternativa: ter vida
mundana e brilhar aos olhos do mundo, ou ser mãe de família e reinar no seio do lar.228
A maternidade adquiria outro sentido. Enriquecida de novos deveres, ela se desdobrava além dos
nove meses irredutíveis. Não só o trabalho materno não se podia concluir antes que a criança
estivesse "fisicamente" fora de perigo, como logo se descobriu que a mãe devia igualmente
assegurar a educação dos filhos e uma parte importante de sua formação intelectual. As mulheres
de boa vontade assumiram com entusiasmo essa nova responsabilidade, como o atesta o prodigioso
número de livros sobre a educação escritos por mulheres. Tomou-se consciência de que a mãe não
tem apenas uma função "animal", competindo-lhe também o dever de formar um bom cristão, um
bom cidadão, um homem, enfim, que encontre o melhor lugar possível no seio da sociedade. O que
é novo é o fato de ser ela considerada a mais indicada para assumir esses encargos. É a "natureza",
diz-se, que lhe atribui tais deveres. 237
Uma vez que as mães devem limitar seus cuidados à própria família para que esta conheça18 a
felicidade, Rousseau não hesitará em propor uma medida radical: o enclausuramento das mulheres.
De maneira suave, quando lhes concede o poder sobre a família: "a mulher deve ser a única a
mandar em casa, é mesmo indecente para o homem informar-se do que ali se passa (eis o homem
justificado em seu desinteresse pelos assuntos domésticos). Mas a mulher, por sua vez, deve limitar-
se ao governo doméstico, não se imiscuir no que ocorre fora, manter-se fechada em casa."" E de
maneira brutal, quando afirma: "a verdadeira mãe de família, longe de ser uma mulher de
sociedade, não será menos reclusa em sua casa do que a religiosa em seu claustro.20 A frase põe a
nu o fundo do pensamento de Jean-Jacques, que conheceu tal posteridade: a boa mãe é semelhante
a boa religiosa ou se esforçará por sê-lo. Mais um passo, e terá direito ao título de "santa".245
Feita para sofrer e gostando disso, a mulher não pode encontrar melhor ocasião de exercer seus
dons do que na maternidade. O papel de esposa, muito necessário, não bastará à plena realização
de sua feminilidade. Para que uma mulher cumpra a sua vocação, é preciso que seja mãe, não como
outrora, de maneira esporádica e irregular, mas constantemente, vinte quatro horas por dia. Ora, a
maternidade, tal como concebida no século XIX a partir de Rousseau, é entendida como um
sacerdócio, uma experiência feliz que implica também necessariamente dores e sofrimentos. Um
real sacrifício de si mesma. Se tanto se insiste nesse aspecto da maternidade, com uma certa
benevolência, é sempre para mostrar a adequação perfeita entre a natureza da mulher e a função
de mãe.248
Seguros de suas certezas, os ideólogos do século XIX, aproveitaram a teoria da mãe "naturalmente
devotada" para estender mais ainda as suas responsabilidades. À função nutritícia, acrescentaram a
educação.62 Explicaram às mulheres que elas eram as guardiãs naturais da moral e da religião e que
da maneira como educavam os filhos dependia o destino da família e da sociedade. E o povoamento
do céu!256
A educação tem um sentido mais amplo do que a instrução. É antes de tudo transmissão dos valores
morais, enquanto a instrução visa à formação intelectual.) O século XIX parece redescobrir, depois
de Fénelon e Rousseau, que essa tarefa importante cabe à mãe, pois só é bom educador aquele, ou
melhor aquela, que conhece perfeitamente o "terreno" das operações. "Para educar uma criança, é
preciso estudar seus gostos e suas aversões; avaliá-la tanto nas brincadeiras como no seu trabalho;
acompanhá-la com um instinto esclarecido nas ações aparentemente indiferentes, e que muitas
vezes fazem reconhecer os meios preferíveis para conduzi-la."64 Só a mãe pode corresponder a esse
retrato-robô, pois mesmo a preceptora mais escrupulosa jamais poderia experimentar esse
instinto.256
A educação moral é "a tarefa mais elevada"71 da mãe, "sua missão providencial",72 "sua obra-prima
absoluta".73 Faz dela a criadora por excelência, "ao lado de quem o artista mais consumado não
passa de um aprendiz".74 Melhor ainda, governando a criança, a mãe governa o mundo. Sua
influência estende-se da família à sociedade, e todos repetem que os homens são o que as mulheres
fazem deles.258