ARQUEOLOGIA DAS POPULAÇÕES SERTANEJAS NO NORDESTE BRASILEIRO
Ana Lucia Herberts
Palavras-chaves: Sertão Nordestino, Século XX, Cultural Material Sertaneja
As pesquisas arqueológicas relativas ao período histórico no Nordeste focaram,
principalmente, a região litorânea, área ocupada inicialmente no Brasil Colônia. Entretanto, mais recentemente, importantes pesquisas têm sido desenvolvidas sobre a arqueologia dos séculos XIX e XX nos sertões do Nordeste, analisando a cultural material sertaneja e abordando as relações com o semiárido, de ocupações relacionadas majoritariamente ao século XX (SOUZA, 2013). As populações que viveram, ou que ainda vivem nos sertões do nordeste brasileiro, não possuem muitos registros escritos de sua história, representando, portanto, possibilidades de estudo na arqueologia histórica dos sertanejos por meio de sua cultura material.
A Scientia Consultoria Científica desenvolveu durante os anos de 2016 e 2017 os
estudos arqueológicos para o licenciamento da LT 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas, executando as etapas de Avaliação de Potencial Impacto ao Patrimônio Arqueológico (CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2016; CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017a) e Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017b; CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017c; CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017d; CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017e). Este empreendimento é composto por cinco segmentos, dois seccionamentos, quatro subestações associadas e ampliação de uma subestação já existente. O empreendimento localiza-se na região nordeste do país, abrangendo parte do território de 42 municípios dos Estados do Maranhão, Piauí e Ceará.
Os sítios arqueológicos históricos estudados na vigência deste projeto, relativos ao
contexto da arqueologia do século XX, situam-se nos Estados do Ceará e Piauí, a saber: Aroeira, Camurupim, Correntes 1, Correntes 2, Córrego Estrela, MV-28, Siricora e Salgado. Esses sítios com presença de cultura material sertaneja apresentam potencial de estudo, de acordo com os dados apresentados pelas pesquisas arqueológicas recentes desenvolvidas nesta categoria de sítio (SYMANSKI, 2008; SOUZA, 2013; SOUZA, 2014; ZANETTINI, 2014a; ZANETTINI, 2014b; WICHERS e ZANETTINI, 2017; SOUZA, 2017), assim como nos dados de campo dos sítios arqueológicos registrados no âmbito desse projeto e nas indicações dos entrevistados (CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017a; CALDARELLI, KIPNIS e HERBERTS, 2017e).
Tais sítios ocorrem no ambiente do sertão, na área de pesquisa, nos Estados do
Ceará e Piauí, localizando-se especialmente em áreas do empreendimento que interceptam o semiárido e apresentam antigas clareiras, com capoeiras de caatinga, próximas a drenagens sazonais e na zona de influência de um pequeno núcleo (SOUZA, 2013, p. 7).
Wichers e Zanettini (2017) identificaram elementos-chave para o reconhecimento de
padrões de ocupação, sejam unidades domésticas ou unidades de produção, identificadas pela mancha da antiga casa ou construção em pau a pique, tais como: instrumentos de trabalho, as chamadas “caieiras”, voltadas à produção de cal para construção, além de fornos usados para fabricação de tijolos artesanais.
O material arqueológico coletado nos sítios e analisado posteriormente dá uma ideia
da natureza da cultura material desses sítios arqueológicos históricos. Ainda que as amostras sejam quantitativamente pouco expressivas, procedentes das atividades de delimitação dos sítios ou avaliação de furos-testes positivos realizados na prospecção dos vértices ou das praças de torres das Linhas de Transmissão do empreendimento, foi possível identificar o seu contexto arqueológico.
Esses locais apresentaram uma diversidade de cultura material, abrangendo
estruturas habitacionais remanescentes de casas de barro e vestígios de material construtivo, com o predomínio de fragmentos de cerâmica utilitária de produção local e regional, além de artefatos vítreos, metálicos, de louças e ósseos; compondo a tralha doméstica e alguns implementos de trabalho.
O material cerâmico dos sítios apresenta características muito semelhantes, sendo
fragmentos típicos de vasilhas utilitárias. Quanto à função, podem ser classificadas como recipientes para levar ao fogo (panelas), para armazenar (contentores ou boião) ou para o consumo (tigela), conhecidas como cerâmica histórica ou “neobrasileira”. Esta cerâmica era “confeccionada por grupos familiares, neobrasileiros ou caboclos, para uso doméstico, com técnicas indígenas podendo apresentar ou não elementos de outras procedências” (SOUZA apud GUERRA, 2008).
A técnica de confecção da cerâmica mais empregada foi a modelada, podendo
também ter sido utilizado o torno. O tamanho diminuto da maioria dos fragmentos e a má conservação da superfície dificultou a identificação da técnica de confecção de muitos fragmentos. Há o emprego também da técnica acordelada em alguns casos, sobretudo para a fixação de apliques (alças e asas), confeccionados a partir de roletes.
A decoração das vasilhas é caracterizada por linhas incisas, principalmente
transversais, com uso de um instrumento, como uma espécie de “pente com dentes”, além do digitado. O escovado foi outra técnica bastante empregada na superfície externa de vasilhas, apresentando caracteristicamente estrias, ocasionadas por objetos de múltiplas pontas, como um sabugo de milho, sendo aplicadas geralmente na diagonal ao eixo do pote. Conforme indica Queiroz (2015), a população do Cariri acredita que os arranhados aplicados na superfície dos vasilhames para armazenamento de água servem para facilitar o resfriamento da água.
Foi identificada a presença de alguns casos de pintura vermelha na superfície da
cerâmica. Também foram observados apêndices, como alças e asas localizadas nas laterais dos recipientes, com a função de suspender as vasilhas ou para melhor preensão.
A louça encontrada é caracterizada por recipientes em faiança fina e porcelana, que,
quanto à função, podem ser recipientes para mesa (pratos, malgas, xícaras, canecas etc.), para o preparo de alimentos (tigelas grandes, bacias etc.) e decorativas (vasos). A maior parte das peças não apresenta decoração, sendo parte de louças brancas. Em alguns casos, também ocorreu o emprego de decoração em estêncil e decalque.
O material vítreo coletado caracteriza-se, principalmente, por fragmentos de
recipientes cilíndricos de contentores de líquidos (garrafas para bebidas, frascos etc.) e de alguns frascos de medicamentos, apresentando também o formato octogonal. Entre o material construtivo, há a presença de fragmentos de telha cerâmica e de adobe, preenchimento de taipa de mão (pau a pique) ou de uma espécie de reboco (liga de argila com areia). Os fragmentos de telha apresentam uma face lisa e outra rugosa característica do uso de forma de molde para a confecção, com formato curvo, provavelmente de telhas do tipo capa e canal.
Os sítios arqueológicos históricos de cultura material sertaneja são resquícios de
ruínas de moradias muito simples e pequenas, em geral construídas com materiais extremamente perecíveis, com paredes de pau a pique e/ou tijolos de adobe, cobertas com telhas cerâmicas tipo capa/canal ou fibra vegetal, habitações de arquitetura vernacular que ocorriam em profusão no sertão nordestino nos séculos XIX e XX. Tais tipos de moradias, algumas ainda em uso, na maioria abandonadas e em processo de ruínas foram registradas pela equipe de campo durante a execução do projeto, ilustrando bem como deveriam ter sido vários dos sítios arqueológicos registrados.
A mudança no padrão arquitetônico das moradias pode ser constatada em alguns
registros fotográficos executados pela equipe de campo durante as atividades. Trata- se do abandono do modo construtivo tradicional e a adoção de padrões arquitetônicos mais modernos de residências de alvenaria, com o uso de outros materiais construtivos, como tijolos de adobe e paredes de pau a pique, com cobertura vegetal ou de telhas artesanais dando lugar a tijolos padrão de seis furos e telhas cerâmicas industrializadas.
Desta forma, o estudo evidenciou um pouco da cultura material e dos aspectos
construtivos do padrão habitacional tradicional do sertão nordestino, trazendo em voga o contexto arqueológico das populações que habitaram esta região no século XIX e, principalmente, no século XX.
REFERÊNCIAS
CALDARELLI, S. B.; KIPNIS, R.; HERBERTS, A. L. Projeto de Pesquisa: Avaliação
de Potencial de Impacto ao Patrimônio Arqueológico da área de implantação da Linha de Transmissão 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas. Scientia Consultoria Científica. São Paulo, p. 88. 2016. CALDARELLI, S. B.; KIPNIS, R.; HERBERTS, A. L. Relatório de Avaliação de Potencial de Impacto ao Patrimônio Arqueológico da Área de Implantação da Linha de Transmissão 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas. Scientia Consultoria Científica / Argo. São Paulo, p. 274. 2017a. CALDARELLI, S. B.; KIPNIS, R.; HERBERTS, A. L. Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico da área de Implantação da LT 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas. Projeto de Pesquisa. Scientia Consultoria Científica. São Paulo, p. 213. 2017b. CALDARELLI, S. B.; KIPNIS, R.; HERBERTS, A. L. Projeto de Pesquisa: Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico da Área de Implantação da Linha de Transmissão 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas - Complementação. Scientia Consultoria Científica. São Paulo. 2017c. CALDARELLI, S. B.; KIPNIS, R.; HERBERTS, A. L. Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico da Área de Implantação da Linha de Transmissão 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas. Relatório Parcial 1: Canteiros de Obras. Scientia Consultoria Científica. São Paulo, p. 81. 2017d. CALDARELLI, S. B.; KIPNIS, R.; HERBERTS, A. L. Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico da Área de Implantação da Linha de Transmissão 500 kV Bacabeira – Pecém II e Instalações Associadas. Scientia Consultoria Científica Ltda. / Argo Transmissão de Energia S.A. São Paulo, p. 314. 2017e. GUERRA, T. P. O sítio Moju 1: Aspectos da cerâmica neobrasileira no município de Moju, Pará. www.scientiaconsultoria.com.br, 2008. Disponivel em: <http://www.scientiaconsultoria.com.br/site2009/ pdf/artigos/Artigo%20Arqueologia_Thiago_Guerra.pdf.>. Acesso em: 07 jul. 2010. QUEIROZ, L. A. P. D. Água fria é no pote do Cariri Cearense. Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão. 2015. Dissertação do Programa de Pós-graduação em Arqueologia. SOUZA, R. D. A. Um lugar na caatinga: consumo, mobilidade e paisagem no semiárido do Nordeste brasileiro. Unicamp. Campinas. 2017. Tese de Doutorado. SOUZA, R. D. A. E. Novos paradigmas à cultura material sertaneja e a Arqueologia do século XX nos sertões do Pernambuco, Ceará e Piauí. Anais I Semana de Arqueologia - Unicamp "Arqueologia e Poder". Campinas: LAP/NEPAM. 2013. p. 1-. http://docslide.com.br/documents/arqueologia-no-sertaopdf.html. SOUZA, R. D. A. E. Branco, vermelho e marrom: práticas de consumo e dinamismo tático no sudeste do Piauí. In: ZANETTINI O Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico da Ferrovia Transnordestina. Relatório de Resgate. Trecho Eliseu Martins/PI –– Trindade/PE Volume 1. São Paulo: Zanettini Arqueologia / Transnordestina Logisitica S.A, 2014. p. 496-520. SOUZA, R. D. A. E. Um Lugar na Caatinga: consumo, mobilidade e paisagem no semiárido do Nordeste Brasileiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2017. Tese de Doutorado. SYMANSKI, L. C. P. Práticas econômicas e sociais no sertão cearense no século XIX: um olhar sobre a cultura material de grupos domésticos sertanejos. Revista de Arqueologia, v. 21, n 2, p. 73-96, 2008. http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ra/article/view/3007. WICHERS, C. A. D. M.; ZANETTINI, P. E. O programa de gestão do patrimônio arqueológico da Ferrovia Transnordestina: avanços e desafios do contexto cearense, 2017. No prelo. ZANETTINI. O Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico da Ferrovia Transnordestina. Relatório de Resgate. Trecho Eliseu Martins/PI – Trindade/PE Volume 1. Zanettini Arqueologia / Transnordestina Logisitica S.A. São Paulo. 2014a. ZANETTINI. O Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico da Ferrovia Transnordestina. Relatório de Resgate. Trecho Eliseu Martins/PI – Trindade/PE Volume 2. Zanettini Arqueologia / Transnordestina Logisitica S.A. São Paulo. 2014b.
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