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antropologia

Te perdoo por
te trair
Antropóloga de Bauru estuda o
comportamento de homens no maior
site de encontros extraconjugais, onde
o que parece ser um formato moderno
de adultério reflete, na verdade,
uma tendência neoconservadora

texto Alice Giraldi

N
a foto, uma bela mulher com o Pelúcio se inscreveu como usuária no dade de produtos em oferta no mercado,
dedo indicador sobre os lábios Ashley Madison, onde já chegou a ter também se aplica aos relacionamentos via
pede segredo. Ao lado, a frase 776 mensagens na caixa de entrada de internet. Os usuários dos sites baseiam-se
provocadora: “A vida é curta, curta um seu perfil. “Um caminho para entender o na ideia de que há muitas pessoas dispo-
caso”. Assim o site de origem canadense que os usuários procuram no site”, conta níveis e que existe um catálogo imenso
Ashley Madison, o maior espaço virtual a pesquisadora, “está na fala de um dos que se pode acionar, cruzando dados a
de encontros sigilosos da internet, atrai homens com quem interajo em meu estu- fim de direcionar a busca e obter resul-
homens e mulheres interessados em ter do: ‘Aqui eu não preciso mentir...muito’.” tados mais precisos. É uma linguagem
um relacionamento fora do casamento. Na entrevista a seguir, Pelúcio analisa mercadológica que permeia as relações,
Muitos já aceitaram o convite: 13 milhões os resultados preliminares de seu estudo, em campos que costumamos ver como
de pessoas em 22 países e mais de meio fala sobre o perfil dos usuários de sites apartados – o que diz respeito ao afetivo,
milhão só no Brasil, segundo informam de relacionamento extraconjugal e reflete em tese, não teria nada a ver com o que é
os gestores do site. sobre as maneiras pelas quais homens e comercial. Na verdade, estamos vivendo
Apesar da aparência ousada e polêmica, mulheres vivem hoje temas como casa- um “capitalismo emocional”, como afirma
os sites que vendem facilidades virtuais mento e adultério. a socióloga marroquina Eva Illouz. Há
para o exercício da infidelidade ajudam muito tempo estamos transpondo para
a manter o status quo, preservando o ca- Unesp Ciência Em seu estudo sobre sites a esfera das relações íntimas uma série
samento monogâmico. Essa é a primeira de traição, a senhora relaciona o surgi- de procedimentos e valores típicos do
hipótese da antropóloga Larissa Pelúcio, mento desses espaços virtuais a uma mercado – e a internet potencializa isso.
Shutterstock

pesquisadora da Unesp em Bauru, que mercantilização das relações. Poderia Quando alguém se cadastra num site de
desde 2011 conduz um estudo etnográfico explicar esse conceito? traição e cria um perfil está, na verdade,
a fim de investigar a dinâmica das intera- Larissa Pelúcio A economia da fartura, que se comoditizando, ou seja, tornando-se
ções dentro dessas plataformas virtuais. hoje dita uma abundância e uma varie- uma espécie de mercadoria.

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nha apresentação informa, textualmente: constrangedora em relação à mulher, que no trabalho para só depois estendê-la ao UC O que leva os homens a buscar os
“pesquisando nesses espaços... em busca é mais penalizada do que o homem caso uso doméstico. O recorte da pesquisa tem serviços do site, então, é o desejo de
de colaboradores”. Reconheço que é uma a relação extraconjugal venha à tona. O a ver, também, com a média de anos de sentir essas emoções de uma maneira
informação um pouco dúbia, que atua co- que vários usuários do site afirmam é que casamento dos usuários do site. Entre os teoricamente segura?
mo uma espécie de isca. Mas nunca faço muitas mulheres estão traindo porque já 28 homens com os quais troquei e-mails L arissa Sim, o site seria uma forma de
nenhum movimento de aproximação, es- foram traídas. Um deles me contou que até o momento, essa média é de 16 anos. reviver esse sentimento, com a ilusão de
pero o usuário me procurar. Assim que um ficou assustado ao conversar com essas Esse é um aspecto muito importante, pois um controle eficiente da gestão dos ris-
homem entra em contato comigo, informo mulheres virtualmente, pois elas contam me ajuda a entender o que os usuários cos envolvidos. Na verdade, o site propõe
que sou pesquisadora e que minha parti- que são muito maltratadas pelos maridos. do site estão me contando. Por exemplo, um pacto de sigilo. A ideia é que se todos
cipação no site se insere exclusivamente É recorrente a queixa de solidão dentro sobre o desejo premente de reviver deter- são casados, todos têm muito a perder;
nesse escopo. Caso o indivíduo concorde do casamento por parte das mulheres. minadas emoções. e que se todos desejam algo em comum,
com essas condições, continuamos a con- é que se trata de algo legítimo, que a so-
Foto: Lucas Albin

versar por e-mail. Interajo apenas com UC Qual é o perfil da mulher que utiliza UC Que emoções são essas? ciedade aprova. Mas o desdobramento
usuários do sexo masculino porque, pa- os serviços do site? Larissa Expressões “quero sentir de no- desses encontros tem uma boa dose de
ra interagir com mulheres, teria de criar Larissa Só posso responder a essa pergunta vo aquele frio na barriga” e “quero sentir imprevisibilidade. Outro aspecto que a
um perfil masculino, o que não considero pelo ponto de vista dos homens que usam a adrenalina correndo” são recorrentes. estratégia de marketing do site reforça,
correto. Minha aluna de graduação, que os serviços do site, com os quais intera- Esses sentimentos dizem respeito a uma com grande sensibilidade sociológica, é
desenvolve a pesquisa comigo, também jo. É até curioso, porque os usuários não modernidade tardia, ao desejo de viver a a constatação de que a vida realmente é
Não deixe para amanhã
O marketing do site reforça, com sensibilidade sociológica, que a vida realmente é
tem um perfil no site, não interage com conversam entre si, mas desenvolveram emoção do risco, seja investindo na bolsa curta. Isso fala de maneira especialmente
curta. Isso toca especialmente o homem acima dos 40 anos, explica Larissa Pelúcio os usuários, mas faz mapeamento, com- uma espécie de tipologia para classificar as de valores, escalando uma montanha ou próxima ao homem acima dos 40 anos.
pilação e análise dos perfis. mulheres do site. Para eles, grosso modo, se aventurando em um site de traição. Há
há duas categorias: as “sem-vergonhas” e quase que um imperativo por sentir esse UC O uso de sites de traição com o obje-
UC Como surgiu a ideia de desenvolver [1884-1942]. Na comunicação e no marke- UC Qual é a proporção de homens e mu- as “problemáticas”. As últimas são justa- tipo de emoção. Os casamentos, hoje, não tivo de manter o casamento traduz uma
uma etnografia de sites de traição? ting se usa hoje um neologismo, que é a lheres num site de relações extraconjugais? mente aquelas que têm casamentos infe- têm de ser apenas duradouros, têm também tendência neoconservadora? Ou simples-
Larissa Há cerca de dois anos a imprensa “netnografia”. Particularmente não gosto Larissa No Ashley Madison há uma parti- lizes, mas têm dificuldade de sair da re- de ser divertidos. E sabemos que “diverti- mente não houve mudanças desde os anos
deu muito destaque a esses sites. Diversas do termo, que considero pouco aclarador. cipação muito expressiva de homens em lação devido às implicações emocionais do” não é, via de regra, o primeiro adjetivo 1950, quando se seguia a fórmula “matriz
reportagens sobre o assunto foram publi- O que faço é um trabalho etnográfico pelo relação às mulheres. A relação é de 70% e financeiras. Elas querem se sentir inte- que se coloca após a palavra “casamen- e filial”, com a aprovação da sociedade?
cadas em revistas como Playboy, Isto é processo de imersão no universo do site, para 30% no eixo Rio–São Paulo. Em nível ressantes e atraentes novamente, também to” – uma relação cercada de obrigações L arissa Sim, é um fenômeno que traduz
e Veja, e também em portais como G1 e mantendo um perfil lá, trocando men- nacional, a proporção de mulheres cresce estão em busca de emoções adormecidas e balizada por um cotidiano muitas vezes uma tendência neoconservadora, porque
UOL. Logo fiz a conexão entre o tema e as sagens com os usuários, enfim, fazer o para 40%. No mundo off-line a proporção e que gostariam de reviver. previsível e desgastante. Por outro lado, em nenhum momento se coloca em che-
minhas linhas de pesquisa e pensei que já exercício antropológico de aproximação entre os sexos é bem diferente. No univer- o casamento proporciona sentimentos que a monogamia ou o modelo tradicional
estava mais do que na hora de começar- de subjetividades. so da conjugalidade e da busca por par- UC Em relação aos homens, qual é o re- que fazem as pessoas verem sentido na de conjugalidade. O que há de diferente
mos a discutir as heterossexualidades. Nos ceiros há sempre um número bem maior corte da pesquisa? vida e reitera lugares de segurança num é que os usuários de sites de traição não
últimos anos houve um boom de estudos UC Os usuários de um site de traição po- de mulheres do que de homens. Então, no Larissa Em sua maioria, os homens pes- mundo de muitas instabilidades. Aí está querem uma amante nos termos clássi-
sobre homossexualidade e sexualidades dem ser classificados como um grupo? site, as mulheres formam um grupo privi- quisados se declaram brancos, de classe o grande paradoxo: ao mesmo tempo em cos. A “filial” dos anos 1950 era mantida
dissidentes, mas, sobre os relacionamentos Larissa Quando se fala em grupo, se pres- legiado, porque, além de não ter de pagar média. Procuro interagir com indivíduos que sentimos instabilidades e desejamos financeiramente pelo homem e devia fi-
heterossexuais, ainda havia um número supõe que existam valores e códigos so- pelos serviços, são bastante procuradas. que, quando jovens, não tiveram a inter- segurança, somos instigados às mudanças, delidade a ele. Nos anos 1980, um estudo
reduzido de pesquisas. Ao mesmo tem- ciais comuns entre os indivíduos, que es- net como espaço de lazer e sociabilidade. ao experimentalismo, ao risco. A mídia e a da antropóloga Miriam Goldenberg mos-
po, uma ex-aluna do curso de psicologia sas pessoas se conheçam e que interajam UC Por que essa diferença acentuada Daí a escolha da faixa etária acima de 38 indústria do entretenimento sustentam isso. trou que, naquele contexto, a verdadeira
me procurou para propor um projeto de entre si de alguma maneira. Por isso, é entre os gêneros? É mais difícil para a anos, ou seja, do grupo dos nascidos até mulher era a “outra”, na medida em que o
pesquisa sobre o casamento. A ideia era bem complicado falar em “grupo” nesse mulher casada se assumir como adúltera 1975. Essa opção deve-se a uma questão relacionamento oficial estava mais rela-
investigar o fenômeno do crescimento caso. A interação nesse tipo de pesquisa em nossa sociedade? de constituição da subjetividade. Os ho- cionado à necessidade de manter o status
dos “recasamentos”, apesar do aumento é individual, ou seja, se dá apenas entre o Larissa Há uma tensão até paradoxal na mens que se encontram nessa faixa etá- quo e ao compromisso moral do homem
do número de divórcios. Então juntamos pesquisador e cada um dos entrevistados. sociedade em relação a essa questão. Para ria pertencem a uma geração em que o de ser o provedor da família e manter fi-
a tendência dos sites de traição às inquie- o homem, a traição é de certa forma mais espaço da privacidade e da textualização Aí está o grande paradoxo nanceiramente a mulher, que nos anos
tações sobre o casamento. UC De que maneira a senhora se identi- perdoável ou aceitável do que para a mu- da intimidade não era a internet, mas o do casamento: ao mesmo 1950 não trabalhava e nem tinha renda
tempo em que sentimos
fica em seu perfil no site? O caráter in- lher, com base numa justificativa hormo- analista, enquanto que os mais jovens própria. Hoje, nos encontros via sites de
instabilidades e desejamos
UC O que é uma “etnografia on-line”? vestigativo de sua participação naquele nal, altamente biologizante. O homem que fazem isso construindo perfis, trocando traição, o que se quer é um relacionamen-
segurança, somos muito
L arissa A etnografia foi instituída como ambiente é explicitado? trai tem as suas obrigações aumentadas, e-mails e postando suas dores no Face- instigados às mudanças, ao to rápido, sem compromisso. Isso acaba
um método privilegiado da antropolo- Larissa As informações constantes do meu precisa ser também um bom provedor. book. Em termos históricos, a internet experimentalismo, ao risco dando origem a muita frustração. Trata-
gia em 1922, com a publicação do livro perfil no site Ashley Madison são verda- Para a mulher casada é, de fato, mais di- chegou às casas em tempos muito recen- e à aventura. A mídia e a se de um desejo cercado de contradições,
Argonautas do pacífico ocidental, do [an- deiras. Para me identificar, adotei o “ni- fícil assumir que deseja ter uma aventura. tes. A maioria dos homens com idade mais indústria do entretenimento pois em encontros efêmeros é impossível
tropólogo polonês] Bronislaw Malinowski ckname”, ou apelido, “pesquisadora”. Mi- Há uma cobrança social muito efetiva e avançada começou a descobrir a internet sustentam isso ter sexo com intimidade.

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