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Primeira lição para os educadores - Rubem Alves

Tenho uma grande ressonância espiritual com Herman Hesse. Comove-me, de


maneira especial, a figura de Joseph Knecht, que é o personagem central do seu livro "O
jogo das contas de vidro". Joseph Knecht era o líder espiritual, o "magister ludi" de uma
ordem monástica que se dedicava ao cultivo da beleza. Ele, mestre supremo, era um
músico, intérprete de Bach. Havia atingido o ponto máximo que um homem pode
atingir. Não havia altura maior que ele pudesse galgar. No entanto, com a velhice,
aconteceu uma mudança no seu coração - igual à mudança que acontecera no coração de
Zaratustra, depois de dez anos de solidão no alto de uma montanha. Começou a sentir
uma dolorosa nostalgia por uma coisa muito simples, muito humilde. Começou a
desejar que os últimos anos de sua vida fossem gastos não nas alturas onde ele se
encontrava, mas nas planícies onde os homens comuns viviam. Veio-lhe o desejo de
descer (tal como aconteceu com Zaratustra, depois de dez anos nas alturas das
montanhas...) para educar uma criança, uma única criança, que ainda não tivesse sido
deformada pela escola.
Hesse era apaixonado pela educação. Declarou que, de todos os assuntos
culturais, era o único que lhe interessava. Mas o curioso é que, ao mesmo tempo, ele
sentia um horror pelas escolas - lugar onde as crianças eram deformadas. Nós dois
poderíamos ter sido amigos. Sentimos igual. A educação é a paixão que queima dentro
de mim. E, no entanto, olho para as escolas com desconfiança...
Estremeço quando me dizem que há entrevistadores de televisão e de jornais à
minha espera. Sei, de antemão, a primeira pergunta que vão me fazer. "O que é que o
senhor acha da educação no Brasil?" A pergunta é banal porque eles já esperam uma
resposta estereotipada. Querem que eu denuncie a falta de verbas, a condição de
indigência dos professores, o mau aproveitamento dos alunos, etc. Mas isso, todo
mundo já sabe. É um equívoco pensar que com mais verbas a educação ficará melhor,
que os alunos aprenderão mais, que os professores ficarão mais felizes. Como é um
equívoco pensar que, com panelas novas e caras, o mau cozinheiro fará comida boa.
Educação não se faz com dinheiro. Se faz com inteligência. E aí, frustrando as
expectativas dos entrevistadores, eu falo sobre coisas lindas que estão acontecendo por
esse Brasil afora, no campo da educação. Porque o fato é que, a despeito de todas as
coisas ruins e andando na direção contrária, há professores que amam os seus alunos e
sentem prazer em ensinar.
Não há nada que tenha ocupado tanto o meu pensamento quanto a educação.
Não acredito que exista coisa mais importante para a vida dos indivíduos e do país que a
educação. A democracia só é possível se o povo for educado. Mas ser educado não
significa ter diploma superior. Significa ter a capacidade de pensar. Diplomas somente
atestam que aqueles que os têm são portadores de um certo tipo de conhecimento. Mas
ser portador de um certo tipo de conhecimento não é saber pensar. É ter arquivos cheios
de informações. Nossas universidades são avaliadas pelo número de artigos científicos
que seus cientistas publicam em revistas internacionais em línguas estrangeiras.
Gostaria que houvesse critérios que avaliassem nossas universidades por sua capacidade
de fazer o povo pensar. Para a vida do país, um povo que pensa é infinitamente mais
importante que artigos publicados para o restrito clube internacional de cientistas.
É muito fácil continuar a repetir as rotinas, fazer as coisas como têm sido feitas,
como todo mundo faz. As rotinas e repetições têm um curioso efeito sobre o
pensamento: elas o paralisam. A nossa estupidez e preguiça nos levam a acreditar que
aquilo que sempre foi feito de um certo jeito deve ser o jeito certo de fazer. Mas os
gregos sabiam diferente: sabiam que o conhecimento só se inicia quando o familiar
deixa de ser familiar; quando nos espantamos diante dele; quando ele se transforma num
enigma. "O que é conhecido com familiaridade", diz Hegel, "não é conhecido pelo
simples fato de ser familiar".
Dediquei grande parte da minha vida ao ensino universitário e tive muitas
experiências boas. Mas a sensação que tenho é que, nas universidades, já é tarde demais.
Os costumes e as rotinas já estão por demais sacralizados. Aqui o processo de
deformação a que se referiu Hesse já atingiu um ponto irreversível. Sinto o mesmo que
sentiu Joseph Knecht, no final de sua vida. Quero voltar às origens. Quero me encontrar
com o pensamento no momento mesmo em que ele nasce.
Gostaria que vocês lessem de novo aquilo que escrevi no meu último artigo
"Animais de corpo mole". Comecei, como Piaget, dos moluscos, animais de corpo mole
que têm de fazer conchas para sobreviver. Usei os moluscos como metáforas do que
acontece conosco, animais de corpo mole que, à semelhança dos moluscos, temos
também de fazer casas para sobreviver. Toda a atividade humana é um esforço para
construir casas. Casas são o espaço conhecido e protegido onde a vida tem maiores
condições de sobreviver. Espaço familiar. Piaget sugeriu que o corpo deseja transformar
o espaço que o rodeia numa extensão de si mesmo. Esse espaço, extensão do corpo, é a
nossa casa. Da necessidade de construir uma casa surge a ciência dos materiais, a física
mecânica, a hidráulica, o conhecimento e o domínio do fogo. Da necessidade de comer
surgem as ciências das hortas e da agricultura. Da necessidade estética de beleza surge a
ciência da jardinagem. Da necessidade de viajar para caçar e comerciar surge a ciência
dos mapas, a geografia. Da necessidade de navegar surge a astronomia. E assim vai o
corpo, expandindo-se cada vez mais, para que o espaço desconhecido e inimigo ao seu
redor se transforme em espaço conhecido e amigo. Até mesmo o universo... Se os
homens olharam para os céus e pensaram astronomia e astrologia é porque viram a
abóbada celeste e as estrelas como o grande telhado do mundo. O universo é uma casa.
Karl Popper, no prefácio ao seu livro "A Lógica da Investigação Científica", diz da
inspiração original da ciência (por oposição àqueles que a pensam como a produção
quantitativa de artigos a serem publicados em revistas internacionais) que ela procurava
compreender o universo onde vivemos. Era preciso conhecer essa casa enorme onde
moramos para nos sentirmos em casa. Um universo que se conhece é um universo que
faz sentido. "Quanto a mim", ele diz, "estou interessado em ciência e em filosofia
somente porque eu desejo saber algo sobre o enigma do mundo no qual vivemos e o
enigma do conhecimento que o homem tem deste mundo. E eu creio que somente um
reavivamento no interesse desses enigmas pode salvar as ciências e a filosofia das
estreitas especializações e de uma fé obscurantista nas habilidades especiais dos
especialistas e no seu conhecimento e autoridade pessoais."
"O enigma do conhecimento que o homem tem deste mundo": é nesse ponto que
a filosofia da educação tem o seu início. Onde nasce o nosso desejo de conhecer? Para
que conhecemos? Como conhecemos? Essas são as questões que me preocupam. E é
por isso que estou interessado no conhecimento, no momento exato do seu nascimento.
Quero vê-lo nascendo, como uma criança sai do corpo da mulher. O conhecimento dos
moluscos e de outros animais sobre a arte de construir casas nasce com eles. Mas não
nasce conosco. Nascemos ignorantes. Que forças nos arrancaram da ignorância? Que
poder penetrou no corpo mole do homem e o engravidou, transformando-o num
pensador? Que poder foi esse que transformou o cérebro em útero? E que forças o
ajudam a nascer?
Para se ter resposta a essas perguntas basta observar esse milagre acontecendo
na vida de uma criança.
Primeira lição para os educadores: A questão não é ensinar as crianças. A
questão é aprender delas. Na vida de uma criança a gente vê o pensamento nascendo -
antes que a gente faça qualquer coisa.

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