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O silêncio do tirano

N E W T O N B I G N O T T O

NEWTON
BIGNOTO
é professor da
Universidade Federal
de Minas Gerais.

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E
m uma discussão centrada na palavra democrática é quase

inevitável imaginar que um texto sobre a tirania tenha por

objetivo oferecer, em negativo, uma reflexão sobre a demo-

cracia e seus fundamentos. Com efeito, é com facilidade que

opomos democracia e tirania, ou de maneira mais geral, e por isso

mais consensual, liberdade e servidão. Nosso objetivo, no entan-

to, não será o de estudar a natureza do regime tirânico. À luz desse

lugar-comum do pensamento político, gostaríamos de investigar

se ao lado da palavra democrática existe algo que poderíamos

chamar de palavra tirânica, ou se, ao contrário, à palavra demo-

crática corresponde o silêncio do tirano, uma ausência de discur-

so que por si mesma desvelaria a essência da tirania, fazendo da

falta o acompanhamento necessário de um regime, que tem no

uso irrestrito da força seu princípio de funcionamento.

Para colocar, no entanto, nosso problema de maneira mais

exata, é necessário definir com maior precisão nosso objeto, tanto

no que diz respeito ao alcance da resposta que pretendemos ofere-

cer quanto no que toca a alguns pressupostos de nossa investigação.

Vamos, assim, em primeiro lugar delimitar nosso campo

de investigação temporal, o que significa dizer que não acredita-

mos poder transpor nossa resposta de uma época para outra sem

alterar ao mesmo tempo a própria natureza do problema de que

estamos tratando. Dado que vamos nos preocupar, sobretudo,

com textos da modernidade, isso implica dizer que aceitamos

como válida a tese de que a ruptura operada pelo Renascimento

com relação à filosofia política da Antigüidade modifica de for-

ma substancial as análises de tudo o que concerne à tirania. Ora,

essa observação aparentemente banal é importante na medida em

que as descrições feitas por Platão do comportamento do tirano

serviram de modelo não só para autores medievais, mas também

para muitos modernos. O que estamos dizendo é que, para além

do uso das imagens platônicas, existe uma alteração da discussão

sobre os regimes a partir do Renascimento, que torna ilusório o

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recurso aos textos do passado. Devemos, referindo-se a ela: “Ela é, pois, simetrica-
portanto, antes de analisar a palavra tirâni- mente oposta à que busca o bem comum
ca em seu conteúdo moderno, definir em através da ordem racional e cujo fim está
que condições nossa pesquisa está se de- situado fora dela, como seu princípio” (3).
senrolando e de que forma a oposição entre Para pensar, portanto, a tirania com
servidão e liberdade serve como baliza te- Platão (4), é necessário lembrar que ela é
órica para nosso estudos. um regime do puro desejo, oposto ao go-
1 Tratamos mais detidamente
da questão da tirania em Platão Ora, para tornar clara a mudança, é pre- verno da razão e da busca do bem. Em ter-
em nosso livro O Tirano e a ciso recordar que a oposição que comanda a mos de regime a tirania se opõe ao regime
Cidade (São Paulo, Discurso
Editorial, no prelo). No tocan- análise da tirania na obra platônica é de outra ideal e não à democracia que, na ótica pla-
te a Platão utilizamos sobretu-
do os livros VIII e IX da Repú-
natureza (1). Para Platão, o tirano encarna tônica, está na origem do pior regime. Não
blica e o Górgias. Ver: Platon, na cidade o reino do puro desejo. A parte podemos falar de oposição liberdade/ser-
Ouevres Complètes, Paris,
Gallimard, 1963. racional de sua alma tendo sido derrotada vidão nesse contexto, mas sim de razão e
pela parte desejante o torna capaz dos atos desejo. O resultado é uma compreensão da
2 Platão, A República, 571c.
mais vis e desmedidos (2). Além do mais, política a partir de uma concepção negati-
3 Janine Chanteur, Platon, le
Désir et la Cité, Paris, Sirey,
essa vitória do desejo faz da vida na cidade va do desejo e de uma associação estreita
1980, p. 79. o palco para a disputa entre seus membros entre racionalidade e bem comum.
4 Platão, A República, 575c. em torno de objetos que em nada se relacio- Qual é então a relação entre o tirano e a
nam com a felicidade de todos. Ao contrá- palavra na obra platônica? Em primeiro lu-
5 A esse respeito ver: Platão,
Górgias e Cartas VI e VIII. rio, o tirano é o governante ideal, na ótica gar, devemos recordar que Platão, em mui-
dos arautos da tirania, exatamente porque tos diálogos, faz referência ao discurso dos
realizou o domínio não só das coisas, mas sofistas sobre a tirania, que reconhece como
também do desejo dos outros. O princípio um dos mais eficazes e influentes de seu
O filósofo grego de sua política é, assim, eros oposto simétri- tempo (5). A defesa do que poderíamos cha-
Platão co da razão. Como nos diz Janine Chanteur, mar de lógica do mais forte, feita por perso-
nagens como Trasímaco ou Cálicles, no
entanto, forja um discurso sobre a tirania,
esboça uma tentativa racional de justificá-la
e de mostrar sua superioridade sobre as ou-
tras formas políticas, mas não funda um lu-
gar do qual o tirano possa falar. Reconhe-
cendo ser a tirania um regime guiado pela
força e pelo desejo, Platão o coloca no pólo
oposto ao do regime construído segundo o
logos. Ora, a nosso ver, e contra a pretensão
dos sofistas de oferecer uma justificativa
argumentativa para a tirania, o que Platão
faz é condenar o tirano ao silêncio, única
relação com a palavra que reflete com pre-
cisão sua relação com a razão. A tentativa
dos arautos dos tiranos é exterior ao próprio
tirano, que não pode falar uma linguagem
que contradiz a essência da política que leva
a cabo dentro da cidade.
Essa maneira de encarar o problema
guardou muito de sua força ao longo dos
séculos, sobretudo, porque a caracterização
do comportamento tirânico, feita pelo gran-
de mestre da Antigüidade, pareceu continu-
ar a servir como a descrição perfeita de muitas
experiências concretas com governantes

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extremos. A nosso ver, no entanto, é preciso de Pádua, já no primeiro capítulo de seu
abandonar a oposição entre razão e desejo e Defensor Pacis, assinala seu franco
passar à oposição liberdade/servidão para distanciamento da Igreja, no momento em
colocar o problema de maneira fecunda para que suas aspirações ao poder temporal pa-
nossas preocupações, ainda que historica- recem promover desgastes irreparáveis na
mente a mudança de referencial não tenha cena pública italiana (7). Nesse contexto
alterado de imediato a resposta dada à nossa de luta aberta contra as pretensões da Igre-
questão principal. ja, o paduano não hesita em acusar o clero
de ser o responsável pela decadência ge-
neralizada dos regimes de seu tempo e,
LIBERDADE E SERVIDÃO forma ainda mais radical, de promover o
aparecimento de tiranias no lugar de regi-
Para abordar nosso problema na mes legais.
modernidade, é preciso antes de tudo com- Ainda devedor do elogio da paz, tão
preender como se deu a mudança de próprio dos medievais, servindo-se de
referencial teórico, para depois explorar um uma imagem da tirania próxima da de São
caso que, a nosso ver, demonstra com clare- Tomás, Marsílio teve o mérito de fugir da
za o surgimento de uma outra relação dos dicotomia entre monarquia e tirania, que
tiranos com a palavra. Voltando ao terminava por opor violência e desordem
Renascimento, podemos mostrar não só à tranqüilidade e ordem, para propor a
como a nova oposição muda de maneira liberdade como o oposto simétrico da ti-
definitiva a percepção da tirania pelos mo- rania na vida política. Essa maneira de
dernos, mas também, no sentido oposto, que pensar a política encontraria plena resso-
ela não implica necessariamente que tenha- nância entre os humanistas italianos que,
mos de imediato uma resposta diferente da libertos da dominação doutrinária da Igre-
dos antigos para nosso problema central. ja, passaram a buscar no passado romano
A nosso ver, o uso da oposição servi- as ferramentas conceituais necessárias
dão/liberdade é fértil, porque ele se mostra para se pensar a realidade das repúblicas
capaz de conter uma discussão que vai além italianas, que a duras penas conseguiam
da teoria dos regimes, sugerindo oposições manter viva a liberdade comunal, num
de valores e não apenas de formas consti- contexto de esfacelamento dos velhos po-
tucionais. Ora, essa matriz nos permite deres (Igreja, Império) e de surgimento
abordar a questão da tirania tanto à luz dos de monarquias de caráter nacional, que
clássicos greco-romanos quanto das ten- ameaçavam alterar o equilíbrio da Euro-
sões geradas pelo aparecimento de novas pa Medieval.
formas políticas na Renascença, servindo O melhor exemplo do que estamos di-
assim de passagem entre a Antigüidade e a zendo, encontramos em Coluccio Salutati
Modernidade. (1321-1406), chanceler da República
Para clarear o que estamos dizendo é Florentina na fase mais aguda dos confli- 6 Q. Skinner, As Fundações do
interessante lembrar a importância que a tos com Milão. Homem de letras original Pensamento Político Moderno,
São Paulo, Cia. das Letras,
oposição entre liberdade e tirania (servidão) e extremamente ativo na Itália de seu tem- 1996.
teve para o republicanismo italiano do final po, ele mostrou que a idéia de tirania é
7 Marsílio de Pádua, Defensor
do século XIV e de como essa compreensão essencial para a construção do imaginá- Pacis, ed. C.W. Previté-
Orton, Cambridge University
dual do campo político teve um papel rio republicano. Nesse particular, um Press, 1928. No Brasil possu-
paradigmático na formação do pensamento pequeno opúsculo, escrito em resposta a ímos a edição de seu Defen-
sor Minor (Defensor Menor),
político moderno (6). Com efeito, desde um panfleto de Antônio Loschi – Invectiva Vozes, 1991.
Marsílio de Pádua a idéia de que a oposição in Florentinos (1399) – serve de 8 Uma ótima biografia de
básica para se pensar a política é a que aca- paradigma para a compreensão da apro- Salutati encontramos em: R.
Witt, Hercules at the
bamos de citar ganhou força e veio a ocupar priação feita pelos humanistas dos dis- Crossroads: the Life, Works and
o lugar que na Idade Média era preenchido cursos antitirânicos (8). Thougth of Coluccio Salutati,
Durham, Duke University
pela oposição entre paz e desordem. Marsílio Salutati se beneficia em seu Invettiva Press, 1983.

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contro Antonio Loschi da Vicenza (9) de referindo não seria por demais limitado em
um fato raro na história do pensamento sua ambição polêmica, não fazendo jus à
político: o de que um texto de defesa dos análise teórica desenvolvida por Salutati em
valores republicanos seja escrito contra um seu livro De Tyranno, escrito posterior ao
outro texto de propaganda de um regime panfleto e no qual nosso autor desenvolve
que, se não se diz explicitamente tirânico, uma verdadeira teoria da tirania.
não se furta a assumir posições – como o O De Tyranno nos apresenta uma visão
desejo de expansão – que se associavam bem mais complexa da tirania do que a
normalmente ao comportamento dos tira- Invettiva. Partindo de distinções desenvol-
nos. Mas essa particularidade – que se re- vidas pelos juristas de Bolonha – particu-
produzirá mais tarde na disputa entre Leo- larmente Bartolus de Saxoferrato (19) – que
nardo Bruni e Decembrio (10) – não parece procuravam dar conta das diferenças entre
despertar a atenção de nosso autor. Com as formas de tirania cujas origens eram
efeito, Salutati serve-se da manifestação das fundamentalmente diversas, o texto nos
posições de Loschi, sobretudo para dar à coloca diante de uma questão inovadora:
sua resposta um tom agressivo e por vezes como pensar o governo do primeiro César
violento. Ele trata seu adversário de e os atos de Brutus à luz do republicanismo
“rabbiosa e stoltissima bestia” (11), tor- renascente? Tradicionalmente, os republi-
nando seu escrito um ato político em si e canos tratavam César como um tirano e
não um tratado teórico sobre a questão – o faziam de Brutus um herói da mesma en-
9 Coluccio Salutati, “Invectiva in que fará mais tarde em outro texto chama- vergadura do primeiro salvador da Repú-
Antonium Luschum da
Vicenza”, in Prosatori Latini del do De Tyranno (12). blica. Salutati, servindo-se da distinção
Quattrocento, Milão, Riccardo Qual é o núcleo dessa disputa? Salutati entre o tirano ex defectu tituli e o tirano ex
Ricciardi, 1976.
não parece hesitar em opor um desejo de parte exercitii, procura mostrar que César
10 Ver a esse respeito a obra liberdade à incapacidade manifesta dos tomou o poder de forma legítima, para sal-
clássica de H. Baron: The Crisis
of the Early Italian Renaissance, milaneses de viver sem um senhor (13). var Roma de uma crise que há muito devo-
Princeton, Princeton Univer-
sity Press, 1966 Mas é em torno da obediência das leis que rara as antigas instituições, e que, assim,
a diferença se dá. Enquanto a liberdade é o não podia ser chamado de tirano no sentido
11 C. Salutati, op. cit, p. 11
viver segundo o direito e as leis (14), a tira- que lhe parecia mais adequado. César não
12 Idem, Tractatus de Tyranno, nia impõe o querer do tirano como lei e re- foi o destruidor da liberdade romana, mas
Berlim, W. Rothschild, 1914.
duz os súditos a um jugo horrível e vergo- sim o inventor de uma forma de governo,
13 Idem, Invectiva…, p. 32.
“Quod non possetis sine domi- nhoso (15). Em outros trechos, o tirano é que era apropriada ao caos que ameaçava a
no vivere”. comparado às bestas, enquanto o elogio da existência do povo romano.
14 Idem, ibidem, p. 32. “Quod est “doce liberdade” (16) parece ser um fato Se não podemos negar a complexidade
iure vivere legibusque, quibus natural (17). Mas Salutati reserva a seu ad- dos argumentos do De Tyranno, também não
omnes subiacent”.
versário um tratamento destinado a destruir podemos deixar de notar que a teoria repu-
15 Idem, ibidem, p. 33.“Grave
vobis iugum et horrenda servitus não só seus argumentos, mas também o lu- blicana que o sustenta é idêntica à que está
est”. gar do qual eles são proferidos. Loschi é um na raiz de seu panfleto, como de boa parte de
16 Idem, ibidem, p. 15. servo dos servos (18), sua palavra é vã. seus sucessores. A partir dessas considera-
Embora estejamos apenas fazendo refe- ções, que tipo de conclusões é lícito retirar
17 Idem, ibidem, p. 15. “Adeo
naturale est diligere libertatem”. rência a um texto, sem verdadeiramente no tocante ao nosso tema principal?
18 Idem, ibidem, p. 37. “Quo mihi
analisá-lo, podemos nos servir de nossas Em primeiro lugar, que a oposição li-
videtur non humilitate sed vitio observações para fundamentar nossa idéia berdade/tirania, tal como adotada pelos
te posse servorum servum,
immo debere ratinabiliter de que a oposição tirania/liberdade, própria humanistas, produz uma teoria sobre a ti-
appellare”. do ideal republicano, é um divisor de águas rania, que é a fusão de elementos derivados
19 Um bom livro recente sobre na história do pensamento, que nos permite do pensamento de Cícero, de alguns aspec-
os juristas de Bolonha é:
Joseph Canning, The Political formular nossa pergunta sobre a palavra ti- tos do pensamento tomista contidos no De
Thougth of Baldus de Ubaldis, rânica de um ponto de vista diferente do Regno (20) e dos estudos dos juristas. O
Cambridge, Cambridge
University Press, 1987. exposto anteriormente. Antes porém de che- resultado é interessante exatamente porque
gar a algumas conclusões, vale a pena se não segue os parâmetros anteriores, abrin-
20 Tomás de Aquino, De Regno,
Paris, Egloff, 1946. perguntar se o texto ao qual estamos nos do espaço para o que será a moderna refle-

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xão política. A clara adesão aos valores conclusão parece muito próxima da que
republicanos permitiu aos humanistas tra- podemos retirar do estudo dos textos platô-
tar a tirania como uma espécie de mal ab- nicos, mas ela se dá em um contexto bas-
soluto, de negativo da vida pública. Mas tante diverso. Se o tirano permanece em
que regimes reais correspondiam a esse silêncio, se lhe é negado o acesso ao saber,
mal? No tempo de homens como Salutati e seu inimigo não é mais a razão e sua
Bruni, os tiranos do norte da Itália repre- encarnação no regime ideal, mas os regi-
sentavam a ameaça mais imediata e pre- mes livres, que podem permitir a plena
sente. Essa situação, no entanto, não resu- manifestação das potencialidades
me toda a história do humanismo. Para humanas.Nessa brecha, aberta pela mudan-
muitos, a monarquia era o regime a ser ça do referencial da vida política no
combatido, sobretudo quando tinha preten- Renascimento, vai se imiscuir a palavra
sões universais. Assim, o ponto de partida tirânica na modernidade.
era o da afirmação da pura negatividade de
tudo o que se opunha à “doce liberdade”,
que, como foi dito, “é um bem que sobre-
puja toda riqueza do mundo” (21). A PALAVRA TIRÂNICA: O MAQUIAVELISMO
Tirania, nesse registro, era a denomina-
ção para um conjunto de atores, que só pos-
suíam um rosto na medida em que tinham Hans Baron em seu célebre The Crisis
por objetivo único a destruição da liberda- of the Early Italian Renaissance (23) viu
de. Ela só tinha essência porque era o nega- no De Tyranno de Salutati o nascimento de
tivo de algo extraordinário e pleno, que cha- uma forma de realismo, baseado na aceita-
mamos liberdade. É verdade que desde a ção de necessidades e evidências, que esta-
Antigüidade os povos conviveram com os riam na origem das “análises objetivas” de
tiranos e que esses realizaram feitos bastan- Maquiavel e Guicciardini. De fato, a pró-
te concretos. O que importa, no entanto, nessa pria história italiana acabou por conduzir
perspectiva, é menos o fato da existência os humanistas, cultores dos valores anti-
histórica das tiranias e mais a idéia de que a gos, a posições cada vez mais nuançadas,
tirania não constrói nada de positivo, apenas podemos dizer realistas, com relação à vida
ameaça e mata os que levantam as palavras política na Itália. Mas foi sem dúvida com
e armas contra os tiranos. Maquiavel que o humanismo encontrou
Ora, os tiranos podem possuir as armas, seus limites e foi superado por uma teoria
mas não têm direito às palavras. Por isso política fundada em parâmetros novos, que
Salutati, em sua Invectiva, trata seu adver- acabou por arruinar o delicado edifício dos
sário de ignorante e falso e o conclama a clássicos, que os pensadores italianos ten-
aprender as verdades que enuncia, se pu- tavam manter de pé.
der, pois, como diz referindo-se às coisas Não é nosso objetivo fornecer uma lei-
divinas, ele não fala “a ele que não entende, tura sistemática da obra de Maquiavel (24).
mas a todos os que têm o sentir reto” (22). Partiremos, no entanto, de um pressupos- 21 Salutati, Invectiva…, p. 15.
Dessa perspectiva, a tirania é vista como to: o de que Maquiavel alterou a compreen-
22 Idem, ibidem, p. 27.
um regime exterior ao reino do conheci- são da tirania de maneira radical, o que
mento, que por sua vez só encontra sua plena justifica voltar ao problema da palavra tirâ- 23 Hans Baron, op. cit., p. 151.

realização num regime livre. O tirano age nica. Para clarear essa proposição, é preci- 24 Dedicamos um livro só a
de forma violenta e até eficaz, mas só pode so acrescentar que acreditamos existir evi- Maquiavel. Ver: N. Bignotto,
Maquiavel Republicano, São
compreender seus atos na medida em que dências no Príncipe (25) que apóiam nossa Paulo, Loyola, 1991.
se vê através da destruição daquilo que percepção e que exporemos a seguir. 25 Machiavelli, Il Principe, in Ope-
ameaça seu poder. Baseado na força e na Em primeiro lugar, vale lembrar que re, Milão, Riccardo Ricciardi,
1954. Para uma edição brasi-
violência, o poder tirânico está condenado Maquiavel escolheu a forma dos speculum leira servimo-nos da tradu-
ao silêncio. Há, assim, um saber sobre a ção de Roberto Grassi
princeps para se dirigir aos príncipes do publicada pela Civilização
tirania, mas não um saber do tirano. Essa seu tempo. Ora, esse gênero literário era, Brasileira em 1969.

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sobretudo, adequado para uma literatura deduzir que mereciam a imediata condena-
moralizante que, partindo de um certo nú- ção. No lugar disso, ao discorrer sobre
mero de problemas tradicionais, admoes- Agátocles e a condição ínfima da qual par-
tava os governantes a seguir o bom cami- tiu para atingir o poder – perfil típico do
nho da moral, no lugar de se perder nas usurpador –, Maquiavel afirma: “No en-
trevas da violência. Quantos príncipes efe- tanto, seus atos celerados se acompanha-
tivamente seguiam os conselhos dos mui- ram de uma tal virtù que, estando na milí-
tos “espelhos” escritos para eles, é coisa cia, alcançou, galgando de grau em grau, o
difícil de dizer. O certo, no entanto, é que posto de pretor de Siracusa” (27). Uma vez
esses escritos serviam para definir em pa- instalado no poder, Agátocles decide
lavras a norma da boa política, opondo o mantê-lo a qualquer custo e recorre ao uso
bom príncipe ao tirano. É muito provável da arma tradicional dos tiranos para alcan-
que os conselhos fossem vãos, mas nenhum çar seu objetivo: a violência.
príncipe ou escritor teve a capacidade, ou a Maquiavel vê nesse homem cruel um
coragem, de formular teoricamente as ra- exemplo possível da manifestação do que
zões desse fracasso. O silêncio do tirano chama virtù. Não se trata de elogiar seus
permaneceu sendo a regra de ouro de toda atos – “pois não podemos dizer ser meritó-
vida política. Maquiavel não seguiu o ca- rio matar seus concidadãos, trair seus ami-
minho de seus predecessores e, no lugar da gos, ser sem fé, nem piedade, nem religião”
repetição das formas arcaicas de (28) –, além do mais a tirania conduz ao
aconselhamento, utilizou-se de uma lingua- poder e não à glória. Mas mesmo nesse caso
gem conhecida para mudar os termos do extremo, podemos reconhecer um traço da
debate filosófico sobre a política. vida política normal, uma vez que não po-
Em segundo lugar, não há n’O Príncipe demos dizer que não seja lícito o desejo de
ou nos Discursos sobre a Primeira Década conservação de uma posição elevada
de Tito Lívio uma teoria da tirania, que não alcançada à frente da cidade. O uso da vio-
esteja implicada numa teoria geral da polí- lência não é o meio mais adequado a esses
tica. Maquiavel não faz da tirania um acon- propósitos, mas ele faz parte do repertório
tecimento especial da vida política; ele a de muitos governantes que, no entanto, não
inscreve no domínio dos regimes possíveis, podem ser chamados de tiranos. Além do
sem condená-la ao terreno do não dito, como mais, ele não é sempre eficaz e nem neces-
fez Platão. O tirano é, assim, parte inte- sariamente o mais poderoso. Oliverotto da
grante de nosso universo coletivo, mesmo Fermo pôde se manter à frente de sua cida-
sendo seu personagem mais abjeto. Pode- de pelo uso do engano e da força, mas
ríamos dizer que Maquiavel não suaviza a terminou sendo vítima de um ardil muito
imagem do tirano, apenas nos aproxima de parecido com o que utilizara para se trans-
sua realidade, abolindo as proteções que os formar em tirano: morreu estrangulado
discursos moralizantes acreditavam ante- pelos homens de outro governante violen-
por. Vamos tentar, através de exemplos, to, César Bórgia.
mostrar como o fez e quais foram algumas Os speculum princeps medievais e
das conseqüências de seu trabalho. renascentistas aproveitavam descrições
No capítulo VIII de O Príncipe (26) ele como essas para mostrar o absurdo da tira-
analisa dois personagens históricos que nia e para banir os tiranos para fora do
poderíamos, sem hesitar, classificar como mundo dos homens. Alguns como o
tiranos: Agátocles da Sicília e Oliverotto Policraticus de John of Salisbury dedica-
26 As traduções que se seguem da Fermo. Os dois são escolhidos porque vam todo um livro (o oitavo) para mostrar
modificam em alguns pontos
a da edição brasileira citada e chegaram ao poder seja por meio de ações como acabavam os governantes violentos,
são de nossa responsabilida- celeradas, seja pelo favor dos habitantes de conclamando os homens de boa fé a prati-
de.
uma cidade. Segundo as classificações e carem o tiranicídio. Maquiavel, ao contrá-
27 Maquiavel, O Príncipe, cap. VIII.
métodos usados por Salutati para definir os rio, transforma a crueldade em um proble-
28 Idem, ibidem. tiranos, em ambos os casos seria normal ma teórico e se pergunta como pôde

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Agátocles se manter no poder depois de pretes que fizeram do Secretário Florentino
tantas traições e violências, enquanto ou- o mestre dos tiranos? Justificar os atos do
tros, menos arrojados, ou até mais violen- tirano, pelo critério da eficiência, já fora
tos, perderam o mando por erros insignifi- tentado pelos sofistas, como bem sabia
cantes. Sua conclusão é a de que “podemos Platão, que os combateu de forma impiedosa
falar de um bom uso (se do mal é lícito não só na República, mas em toda sua obra.
dizer bem) da crueldade para aquelas que Falar da conservação dos regimes, mesmo
se fazem de um só golpe e para garantir a tirânicos, já tinha sido o objetivo de
segurança” (29). O uso contínuo da força Aristóteles no quinto livro da Política, sem
se revela, ao contrário, perigoso e ameaça- com isso provocar a ira de seus contempo-
dor para o governante ilegítimo. râneos ou mesmo da posteridade. Qual é o
O que Maquiavel faz não é o elogio da segredo escondido na obra de Maquiavel,
29 Idem, ibidem.
violência, mas mostrar a insuficiência de sua que o fez ser acusado de manter uma relação
condenação moral para a compreensão da privilegiada com os tiranos? 30 Idem, ibidem.

tirania. Para Platão, esses atos se situavam A primeira resposta corresponde à lon- 31 Leo Strauss, Pensées sur
Machiavel, Paris, Payot, 1982,
inteiramente fora do território da razão. ga tradição de demonização de Maquiavel p. 86.
Maquiavel procura estender a razão até os por autores que se recusam a conceder às
32 Ver a esse respeito: G.
limites de tudo o que é possível no campo da suas descobertas um caráter de verdade. Procacci, Studi Sulla Fortuna
política, sem se preocupar com o traçado de Esses autores repetem a relação de Platão del Machiavelli, Istituto Italia-
no per l’età Moderna e
fronteiras que lhe pareciam artificiais. As- com os sofistas, negando ao tirano a capa- Contemporanea, 1965.
sim, ele nos fala de uma teoria da violência cidade de nos ensinar o que quer que seja
– “pois as violências se devem fazer todas sobre a política. Assim, tudo o que
ao mesmo tempo a fim de que o gosto, per- Maquiavel diz é falso e como tal deve ser
sistindo menos tempo, elas ofendam menos” combatido (32). Mas se Maquiavel diz Nicolau
(30) –, que tem o mesmo peso teórico do que apenas falsidades, ele não pode ser acusa- Maquiavel
o elogio da liberdade no quinto capítulo de
O Príncipe. Essa extensão da razão a todos
os campos da política não o condena de for-
ma alguma ao relativismo, mas o força a
abandonar inteiramente o edifício clássico
que servira de referência para muitos de seus
contemporâneos.
Essa reviravolta terá nos capítulos XV
a XXI de O Príncipe seu momento mais
explícito de ruptura com a tradição. Ao
abordar temas tradicionais como o amor
aos príncipes, ele termina por escapar de
todos os parâmetros que regiam, se não a
prática política, pelo menos os discursos
que a ela explicavam. Escrevendo um
speculum princeps para seu tempo,
Maquiavel não funda uma política irracio-
nal, mas sim uma reflexão política radical-
mente nova, ou, como diz Leo Strauss: “É
necessário destronar todo o ensino tradici-
onal e colocar no seu lugar um ensinamento
novo, ainda que escandaloso” (31).
Mas se, como afirmamos, Maquiavel não
possui uma teoria nova da tirania e sim uma
teoria nova da política, como entender a
reação – que dura até hoje – de tantos intér-

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do ao mesmo tempo de ensinar os príncipes por pensar o movimento maquiaveliano,
a serem tiranos, pois, dessa maneira, seria sobretudo, como um desejo de poder.
necessário reconhecer que ele possui pelo Nossa hipótese é de que por detrás des-
menos um saber prático, passível de ser sa postura esconde-se uma alteração tal do
transmitido e que, para ser eficaz, não pode pensamento político que a resposta tradicio-
ser inteiramente falso. De qualquer manei- nalmente dada à pergunta sobre a palavra
ra, nessa ótica, a condenação da tirania como tirânica perde sua força.
o puro reino da violência e do desejo per- A primeira providência desses intér-
manece válida e o tirano continua conde- pretes é negar a atualidade da distinção entre
nado ao silêncio. Além do mais, a condena- república e tirania, evitando com isso a
ção de Maquiavel feita sob esse prisma caracterização do regime tirânico baseada
termina podendo ser estendida também a na impossibilidade de ação e de conheci-
autores inovadores como Hobbes ou mento de todos os membros da cidade. O
Rousseau, uma vez que ela é fundamental- lugar da política volta a ser o território para
mente antimoderna em suas considerações o desenvolvimento de valores, que nada
sobre a relação entre ética e política, entre têm a ver com a república, o que faz desa-
verdade e experiência. Maquiavel é demo- parecer o eixo mesmo sobre o qual estavam
níaco na medida em que procura destruir assentadas as reflexões renascentistas so-
um conhecimento verdadeiro, da mesma bre a tirania.
maneira que Hobbes o foi ao defender um Mas a simples recusa da oposição en-
regime a partir de uma concepção da natu- tre tirania e liberdade não é suficiente para
reza humana incongruente com os explicar as transformações que estamos
parâmetros clássicos ou medievais. tentando demonstrar. É preciso compreen-
Mais interessante, para nossos propó- der que tipo de discurso nasce de um
sitos, são os que condenam Maquiavel pela antimaquiavelismo cuja preocupação con-
periculosidade de seus propósitos e não funde-se com a manutenção ou a conquista
necessariamente por sua falsidade. Poderí- efetivas do poder político.
amos chamar essa postura de antima- Como já indicamos, vamos tentar es-
quiavelismo dos príncipes. Antes de conti- clarecer nosso ponto de vista recorrendo
nuar nossas análises do problema que nos ao texto de Frederico II, o Anti-Maquiavel,
interessa convém definir melhor esse tipo escrito por volta de 1739, cuja primeira
de antimaquiavelismo. edição deveu muito aos cuidados de
Antes de mais nada cabe esclarecer que, Voltaire (33). Como não poderemos apre-
ao chamá-lo dessa maneira, não estamos sentar uma visão de conjunto do escrito,
dizendo que se trata exclusivamente de uma procuraremos estudar os capítulos que se
leitura feita por príncipes, mesmo que o relacionam diretamente com as breves aná-
exemplo sobre o qual trabalharemos seja lises que apresentamos de Maquiavel.
efetivamente o de um príncipe, que escre- A obra de Frederico II começa com a
veu contra Maquiavel, no caso Frederico II, associação de Maquiavel com Espinosa: “O
em seu tempo. O que nos interessa é que se Príncipe de Maquiavel é para a moral o que
trata de uma leitura feita pela ótica do poder a obra de Espinosa é para a fé: Espinosa
que, sem reconhecer em Maquiavel o intér- destruiu os fundamentos da fé, e tendia a
prete fiel das realidades políticas não aces- destruir toda a religião; Maquiavel corrom-
síveis ao grande público, atribui-lhe uma alta peu a política e pretendia destruir os pre-
periculosidade e, por isso mesmo, um certo ceitos da moral sã” (34).
saber. Essa posição tem em comum com A primeira coisa que chama a atenção é o
alguns intérpretes, que acreditavam ser fato de que Frederico II parece estar plena-
Maquiavel o melhor antídoto contra os tira- mente consciente de que os dois pensadores
33 Frédéric II, “L’anti-Machiavel”,
in Machiavel, Le Prince, Paris, nos, o fato de atribuírem ao nosso autor a representam um passo decisivo da
Garnier, 1968.
descoberta de novos parâmetros para se modernidade, que deveria ser detido em nome
34 Frédéric II, op. cit., p. 97. pensar a política. Elas diferem, obviamente, do que chama de “boa moral”. O que é a “boa

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moral” ele não diz ao longo de todo o livro e o de evitar a tentação da tirania, sobretudo,
nem parece se dar conta do acordo existente em sua forma maquiavélica.
entre Maquiavel e Espinosa no tocante aos Mas a especificidade do lugar escolhi-
valores republicanos. O que lhe interessa é do implica que o autor deve superar não só
deter a marcha dos dois e muito especialmen- os perigos do discurso maquiaveliano, mas
te a de Maquiavel, uma vez que Espinosa, também a desconfiança levantada pela pró-
segundo ele, já havia sido reduzido ao silên- pria posição do príncipe. Frederico II sabe
cio por doutores da fé. Quanto a Maquiavel que uma das interpretações possíveis da
“[…] ele foi simplesmente atacado por al- obra maquiaveliana – a que poderíamos
guns moralistas e se manteve de pé, apesar chamar de realista – é a de que o autor
deles e de sua moral perniciosa, sobre a cáte- florentino descreve o que os príncipes fa-
dra da política até nossos dias” (35). zem e não o que deveriam fazer (37). As-
É possível que Frederico II desconhe- sim, seu discurso não poderia ser classifi-
cesse a longa tradição do antimaquia- cado como um espelho dos príncipes, e
velismo italiano, inglês e até mesmo fran- nesse sentido não visaria à correção moral
cês. De qualquer maneira, ele reconhece a dos governantes. Ele seria, na verdade, um
plena atualidade de Maquiavel e a ineficácia negativo desse tipo de discurso, um tipo
de atacá-lo apenas pelo lado moral, uma vez inteiramente novo, que fundaria uma nova
que no terreno político ele continuava vivo. compreensão da política.
Encontramos, assim, o primeiro sinal Frederico II sente a força desses argu-
de que a refutação que se seguirá pretende mentos e se lança na defesa dos príncipes.
ser original pelo próprio lugar do qual será Ora, ao estruturar seu livro dessa forma, ele
feita. Assim como Maquiavel dizia conhe- constrói um discurso que, pobre do ponto
cer melhor os negócios dos príncipes por de vista literário e teórico, é inovador quan-
olhá-los de baixo, Frederico II queria mos- do se pensa nos speculum princeps. Seu
trar que só a refutação feita por um príncipe grande passo, a nosso ver, foi tentar escre-
poderia ser eficaz. ver um “espelho” do ponto de vista do pró-
Tal postura se explica, em primeiro lu- prio príncipe, talvez por sentir que o livro
gar, pela alta periculosidade do texto: “Sem- de seu adversário destruiu a eficácia dos
pre olhei o Príncipe de Maquiavel como uma discursos moralizantes anteriores. Resta
das obras mais perigosas que se espalhou saber qual o significado de sua criação.
pelo mundo” (36). Por isso sua destinação O futuro governante estava longe de
deve ser uma só: “[…] é um livro que deve ser um bom escritor e uma boa parte de seu
cair naturalmente entre as mãos dos prínci- escrito é enfadonha ou pouco rigorosa. A
pes e dos que têm o gosto da política”. Ora, importância do texto, no entanto, não de-
essa destinação é tanto mais perigosa que o corre de sua força teórica, mas do fato de
futuro governante reconhece o risco de que que ele sugere uma relação dos governantes
os “bons príncipes”, que deveriam “admi- únicos com a palavra, que não existia antes
nistrar a justiça e dar o exemplo a seus súdi- da era moderna. Seu livro estrutura os pila-
tos”, sejam contaminados por Maquiavel e, res de um discurso do poder sobre o poder.
por isso, cabe a eles – ou a ele – evitar a O primeiro deles é a distinção entre o
formação do “monstro político” que “bom príncipe” e os tiranos. Negando a
Maquiavel pretende formar. força da distinção maquiaveliana, ele in-
Junto, portanto, com a escolha do lugar siste que a oposição política essencial é de
adequado para resistir aos ataques de natureza moral. “Dá-se” – diz ele – “que
Maquiavel – o reconhecimento da o soberano, longe de ser o mestre absolu-
periculosidade acompanha o reconheci- to dos povos, que estão sob sua domina- 35 Idem, ibidem.
mento de que suas proposições são efica- ção, não passa do primeiro empregado
36 Idem, ibidem, p. 98.
zes – Frederico II acrescenta a crença de doméstico” (38).
37 Idem, ibidem, p. 99.
que seu discurso é fundamentalmente tirâ- O segundo está no fato de que Frederico
nico. O papel do “bom príncipe” parece ser II nomeia a “boa moral” como a regra de 38 Idem, ibidem, p. 102.

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ouro da conduta dos governantes. Ao longo quais ocorre exatamente o contrário” (43).
do livro pouco aprendemos sobre o signifi- Há, pois, uma razão dos príncipes, ou
cado dessa expressão, pelo menos que dife- dos sábios, que é oposta à condição geral
risse dos outros discursos moralizantes, mas dos povos, tão favorável aos ensinamentos
somos continuamente instruídos quanto ao de Maquiavel, baseados nas paixões e pro-
fato de que “Maquiavel peca contra a boa pícios aos tiranos. De alguma maneira
moral” (39), e de que “suas máximas são tão Frederico copia o modelo platônico colo-
mais perigosas, que elas bajulam as paixões cando no lugar do sábio um príncipe escla-
e fazem nascer idéias que não viriam a dia de recido. Só esse possuidor da razão poderá
outra maneira” (40). enfrentar o professor dos tiranos de igual
Maquiavel é, nessa ótica, um sedutor para igual. Só ele poderá fazer a escolha da
que, aproveitando-se de seus conhecimen- “boa moral” e do que é mais “razoável”,
tos da alma humana, a corrompe. De qual- uma vez que o vulgo será sempre prisionei-
quer maneira, Frederico II não diz que os ro da própria condição.
conhecimentos do Secretário Florentino Se os tratados moralizantes não deram
sobre a natureza humana sejam falsos, mas conta de Maquiavel, cabe ao antima-
sim que ele faz deles um uso perigoso, de quiavelismo dos príncipes criar o bom dis-
onde podemos deduzir que cabe ao prínci- curso para o funcionamento de uma cidade
pe fazer um bom uso das fraquezas huma- justa e razoável. Com essas ferramentas,
nas, sem desconhecer sua realidade. Frederico II acredita poder interpretar o que
O terceiro e decisivo pilar sobre o qual chama de ensinamento tirânico de seu ad-
se apóia o futuro regente é a idéia de razão, versário. Vejamos, no entanto, como ele
que ele toma emprestado a seu século. Seus lida com o capítulo de O Príncipe ao qual
ataques começam por críticas a Espinosa e fizemos referência e que trata diretamente
a Descartes, acusados de terem uma falsa de tiranos conhecidos.
noção do que seja essa faculdade da alma. Antes de abordar esse tema, o futuro
Ele continua, na mesma linha, analisando príncipe já havia alertado para o que consi-
de maneira curiosa o tempo de Maquiavel: derava os disfarces da tirania: “o peso do
“O século quinze era a infância das artes. jugo tirânico é maior quando o tirano quer
Lourenzo de Médicis as fez renascer na vestir as roupas da inocência e que a opres-
Itália através da proteção que concedeu aos são se faz à sombra das leis” (44). No oita-
artistas, mas essas artes e as ciências eram vo capítulo, ao falar sobre a crueldade e
ainda fracas no tempo de Maquiavel e eram sobre as ações de Agátocles e de Oliverotto
como convalescentes de uma longa doen- ele nada mais faz do que repetir as mesmas
ça. A filosofia e o espírito geométrico pou- críticas morais acumuladas nos capítulos
co ou nenhum progresso fizeram e não se anteriores. Mas a primeira parte do capítu-
raciocinava de forma tão conseqüente quan- lo revela-nos uma faceta do autor que ilu-
to em nosso tempo” (41). mina os três pilares de seu discurso citados
Certo de compreender o uso da razão no anteriormente.
sentido voltairiano, Frederico não se cansa Em primeiro lugar, condena Maquiavel
de acusar Maquiavel de propor máximas por dizer verdades – “ce que j’ai a reprocher
“indignas de um ser razoável” (42). Mas é à Machiavel sont des vérités” (45) – e não
preciso ver que ele tinha da razão uma no- calúnias, como outros autores citados antes.
39 Idem, ibidem, p. 115.
ção bem especial. Ao comentar a definição Em segundo lugar, ele critica o
40 Idem, ibidem, p. 119.
do homem como ser bípede racional, ele Florentino por se dirigir a todos os ho-
41 Idem, ibidem, pp. 104-5. diz: “essa definição pode ser justa com re- mens – “mais il parle a tous ces hommes”
42 Idem, ibidem, p. 109. lação a alguns indivíduos, mas é muito fal- – sem levar em consideração que poucos
sa com relação à multidão, uma vez que são verdadeiramente racionais e que, des-
43 Idem, ibidem, p. 115.
poucas pessoas são razoáveis e que, mes- sa forma, o escritor italiano torna público
44 Idem, ibidem, p. 128.
mo quando o são sobre um dado problema, o que deveria fazer parte de um discurso
45 Idem, ibidem, p. 130. existe uma infinidade de outros sobre os esotérico.

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A terceira observação elucida as duas Frederico II não foi propriamente um
anteriores, propiciando uma explicação tirano, mas acreditamos que seu antima-
para a recorrente crítica à periculosidade quiavelismo criou o modelo do que veio a
do texto maquiaveliano. Lidando com per- ser uma palavra tirânica na modernidade.
sonagens dúbios e violentos, Maquiavel Tomando-o como um caso exemplar, mas
não teria percebido que “nada é mais se- não único, acreditamos poder sintetizar
dutor do que o mau exemplo”, e isso por- nossas conclusões sobre a palavra do tira-
que “existe algo de epidêmico na maneira no, em três pontos:
de pensar que se comunica de um espírito
a outro” (46). • ela toma dos discursos moralizantes o tom
Maquiavel não diz falsidades, mas ver- genérico e supostamente elevado, mas só
dades perigosas. Seu ensinamento, além funciona pela designação concreta de um
do mais, torna acessível a todos o que de- inimigo – no caso Maquiavel – que amea-
veria ficar restrito aos poucos capazes de çaria a realização de valores mais altos,
governar segundo a razão. Há, assim, um consagrados pela tradição;
antimaquiavelismo dos príncipes, que con- • ela reivindica para si o uso da razão, con-
dena antes de mais nada a democratização tra uma suposta particularidade dos inte-
do saber, que permite a indivíduos de bai- resses dos diversos inimigos. Como nem
xa condição, como Agátocles, ingressar todos são igualmente racionais, o príncipe
na política. Para Frederico II o ideal da ocupa o lugar privilegiado da enunciação
vida política é algo próximo ao mundo dos verdadeiros princípios racionais, dei-
homérico em que os agathos e os kakos xando aos súditos a possibilidade de seguir
permaneciam cada um em seu canto. as palavras esclarecidas dos poucos;
O que nos mostra o livro de Frederico II? • ela rejeita a dicotomia entre liberdade –
Em primeiro lugar, que ele pensa o poder de podemos dizer democracia – e tirania para
um ponto de vista moderno ao considerar situá-la no terreno indefinido da segurança
que a melhor combinação possível para um e do que ameaça a ordem.
governante é o reconhecimento público da
legitimidade da posse do poder, associado Nesse discurso vazio, pura forma preen-
ao uso circunstanciado da razão. Abusando chida pela tradição e por uma moral sem
um pouco da cronologia, poderíamos dizer vínculo com as vivências da cidade, o tirano
que o que ele quer é próximo do que chama- moderno encontra um lugar para a palavra,
mos de despotismo esclarecido. que lhe havia sido negada na Antigüidade. É
Mas se o que diz Maquiavel não é falso claro que o antimaquiavelismo de Frederico
e sim perigoso, qual o sentido de sua longa II é apenas uma forma da palavra tirânica. O
crítica? A nosso ver, ao guardar a forma importante é que ele encontra sua expressão
moralizante dos speculum princeps, numa nova retórica do vazio. Os sofistas
Frederico II não cria uma teoria sobre a haviam tentado criar um discurso tirânico
política, mas a palavra adequada ao pela justificação racional do uso da força.
governante, que não reconhece sua identi- Fracassaram diante da refutação vigorosa
dade fundamental com os súditos, nem de Platão. A sofística terminou sendo, como
mesmo no que toca à posse da razão. Dei- tantos outros, um discurso sobre o tirano e
xando de lado a contraposição entre liber- não um discurso do tirano. Com Frederico
dade e servidão, para se servir da dicotomia II, temos um exemplo de como o tirano pode
entre segurança e desordem – esvaziada de falar à cidade. Revestindo-se com o manto
qualquer pretensão a espelhar a verdade do da tradição, assumindo o uso da razão mera-
corpo político –, Frederico II fornece a mente instrumental, ele pretende se opor à
forma de um discurso do poder sobre o palavra democrática pela reivindicação de
poder, que pode ser escutado por todos sem valores, que por serem inacessíveis a todos,
o risco do maquiavelismo e de seu potenci- aparecem como mais elevados e fruto de
al revolucionário. uma sabedoria superior. 46 Idem, ibidem, p. 131.

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