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DIALETO CAIPIRA – UM REPOSITÓRIO DA CULTURA ERUDITA

A cultura caipira é o resultado de uma mistura, basicamente entre os europeus de

origem portuguesa e os índios brasileiros, sendo enriquecida também pelos

africanos. A partir dos anos 1900 é que o nome caipira começou a ser mais

utilizado, para designar aquele que trabalha no campo - (do Tupi: caa = mato e

pir = cortar); portanto caipira é originalmente aquele que corta o mato. Cultura

caipira é a soma de conhecimentos milenares de índios em contato com os

portugueses e também com os negros. Do ponto de vista linguístico, a forma

caipira de se falar o português, é chamada de dialeto caipira. Esse dialeto ainda é

preservado em locais como a zona Rural de Formosa, e esse tema já foi objeto de

várias pesquisas linguísticas da UnB e de muitas outras universidades.

Quando os portugueses chegaram aqui, trouxeram livros, como os de Camões, e

com essa linguagem os mais graduados conversavam, e, tendo ela como

ferramenta, o “Rey” escrevia, ou mandava o seu escrivão fazê-lo.

Uma carta escrita pelo então governador Tomé de Sousa ao Rei D. João III em

Portugal, da Cidade do Salvador, em 18 de julho de 1551 mostra um pouco dessa

origem linguística: “Senhor. Nas deradeyras que o anno pasado escrevy a V. A.

dezia que Pêro de Guoees capitão moor do mar desta costa e o provedor moor e o

olvidor gerall lerão idos desta cidade...”.

Note que as palavras “deradeyro” e “dezia” , ainda existem no dialeto caipira,

pois eles, os chamados caipiras, são, na verdade, herdeiros de uma linguagem

erudita ou culta; com o passar do tempo essas palavras fundiram-se com palavras

do Tupi e de outras línguas. Porém, como os caipiras ficaram afastados dos centros

urbanos por um período de tempo muito grande, conservaram em seu dialeto um

conjunto de palavras e uma forma vagarosa de falar, sem pressa, com a paciência

e o ritmo da natureza. Essa velocidade de fala é herança do jeito indígena de falar.

A pronuncia do “L” no final da palavra é herança dos portugueses.

Já o fato de alguns caipiras terem herdado o vocábulo “muié”, é pelo seguinte

motivo: no século XVIII de cada três brasileiros, somente um falava português. Os


outros dois falavam uma mistura de línguas, chamada de nheengatú,ou língua boa.

Como nheengatú tem sua raiz principal na língua tupi, e nessa língua não existe os

fonemas “L” e nem “V”, então a maneira mais fácil de pronunciar a palavra

“mulher” é transformando o som do “lh” em som de “i”. Como o som do “r” final

também tinha uma certa dificuldade para ser pronunciado, então virou um acento

na última sílaba.

Os japoneses têm a mesma dificuldade em pronunciar certos fonemas, que não

existem na língua deles. Television, por exemplo, vira “terebiijon”. Trata-se de um

fenômeno de adaptação linguística que é universal.

Portanto prestemos atenção ao nosso preconceito linguístico quando ouvirmos

alguém falar, pois somos nós é que muitas vezes não conhecemos a história da

formação da língua portuguesa falada no Brasil.

A música caipira é outro patrimônio cultural resultante dessa mistura linguística. As

violas de dez cordas foram trazidas das várias regiões de Portugal, e eram usadas

em missões religiosas. Da mistura do português e do tupi veio o vocabulário

caipira, e dos instrumentos e tradições trazidos pelos portugueses, somados à

velocidade de fala do índio, foi se estabelecendo uma forma bem específica de

contar histórias e impressões através da música. Dessa forma a música chega a ser

a síntese de um complexo conjunto de saberes, de heranças da língua, da

velocidade da fala, dos instrumentos que foram trazidos pelos portugueses, assim

como pelas mensagens, narradas pelas letras. Alguns ritmos como o cateretê

(catira), com batidas marcadas pelas palmas e pelas pisadas de pé, também são

fruto dessa fusão entre brancos e índios, visto que não tem nenhum registro nas

tradições portuguesas, mas tem em danças indígenas.

A música caipira começa a ser gravada na década de 1950, com duplas como

Alvarenga e Ranchinho. Você sabia que José Fortuna (1923-1993) compôs uma

música para a inauguração de Brasília, chamada: “Sob o céu de Brasília”?.

A contribuição dos tropeiros é uma forma à parte de elaboração musical, que servia

inclusive para levar as notícias de um local a outro, muitas vezes produzidas em


locais de pouso. Outra herança cultural dos tropeiros para o Brasil é a culinária.

Quem nunca comeu um feijão tropeiro?

Sendo por meio da língua e do vocabulário que ela conserva, pelas manifestações

musicais, pela culinária, e por inúmeras manifestações folclóricas, temos que

conhecer melhor essa riqueza da cultura caipira, que ainda é pouco explorada por

nós. Afinal de contas, não é possível gostar e nem preservar o patrimônio cultural

que não conhecemos.

Bráulio Antonio Calvoso Silva é professor de literatura, formado UnB e


pesquisador. Atualmente é aluno especial no mestrado em história – UnB.

brauliocalvoso@hotmail.com

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