Com a filosofia moderna, tudo o que transcende passou a ser descartável, ou vão ao outro extremo,
tudo transcende. Mas as coisas não são assim. Existem coisas que transcendem a realidade física e coisas
que existem na realidade e ordenam-se a certas noções que a transcendem.
Dentre as noções que não estão na realidade física são os análogos. Para entender o que é análogo, é
necessário entender o que é analogia. Existem noções que podem se se dizer unívocas, equívocas e
análogas. Com efeito, nos ensina Santo Tomás que
deve-se saber que algo se predica de diversas coisas de múltiplos modos, às vezes, de fato, totalmente
segundo a mesma noção e, [isto é, quando os nomes se identificam com o conceito mental] então, se diz
predicar delas univocamente, como ‘animal’ em relação a ‘cavalo’ e ‘boi’. Outras vezes, porém, segundo
noções totalmente diversas e, [quando um mesmo nome se identifica com conceitos completamente
diferentes] então, diz-se delas equivocamente, como ‘cão’ em relação à ‘constelação’ e ao ‘animal’.
Outras vezes, porém, segundo noções que são, em parte, diversas e, em parte, não diversas. Diversas, de
fato, segundo que implicam diversas relações, unas, porém, segundo que essas relações diversas se
referem a uma única e mesma coisa. E a isso se diz predicar analogamente, isto é, proporcionalmente,
enquanto cada um, segundo sua relação, refere-se a algo único[1]. [grifos meus]
No seu exemplo clássico de análogo, Santo Tomás toma o clássico do saudável:
quando muitos são comparados a um, como ao fim, como fica claro em relação a esse nome ‘saudável’
ou ‘são’. De fato, ‘saudável’ não se diz univocamente em relação à ‘dieta’, à ‘medicina’, à ‘urina’ e ao
‘animal’. A noção de ‘saudável’, enquanto se refere à ‘dieta’, significa ‘conservar a saúde’. A noção de
saudável, enquanto se refere à ‘medicina’, significa ‘produzir a saúde’. A noção de ‘saudável’, enquanto
se refere à ‘urina’, significa ‘sinal da saúde’. A noção de ‘saudável’, enquanto se refere à ‘animal’, significa
‘receptivo ou suscetível de saúde’. Ora, todo ‘saudável’ ou ‘são’ se diz em relação a uma e mesma
‘saúde’. Assim, pois, é a mesma saúde que o animal recebe, que a urina sinaliza, que a medicina produz e
que a dieta conserva[2].
Podemos ver que há três pontos que compõem a analogia: o nome, o conceito mental e a realidade[3]. A
analogia é, assim, uma relação, onde o analogante e o analogado são semelhantes por uma parte e por
outra dessemelhantes[4]. Assim podemos formar diversas frases com analogia de vários tipos. Como
exemplos:
O um está para o dois como o quatro está para o oito. Aqui temos uma analogia de proporção
matemática.
O verbo está para a oração como a alma está para o corpo. Aqui há uma analogia com relação à forma.
Assim também podemos dizer que o roteiro está para o filme como a alma está para o corpo.
O vegetal está para o animal como o imperfeito está para o perfeito. Aqui é com relação à perfeição dos
objetos comparados.
Aquela jovem é como o lírio do campo. Aqui temos uma metáfora, uma analogia imprópria.
No último exemplo, o que liga a jovem ao lírio é a beleza, ainda que a jovem e o lírio tenham maneiras
totalmente distintas de ser belos, mas há algo que liga ambos os objetos, que é a beleza. Aqui temos a
presença do belo. Assim vemos que os análogos são semelhantes entre si por um lado e dessemelhantes
por outro; e entre eles há algumas noções fundamentais que tem universidade máxima, porque, com
efeito, podem dizer-se de todas as coisas que se ordenaram aos predicamentos ou categorias. Como fica
evidente, tais noções, por assim dizer, universalíssimas, transcendem quaisquer categorias. E por isso
chamamos esses análogos de trancendentais[5]. Existem seis (para alguns, sete): ente (ens), coisa (res),
uno (unum), algo (aliquid), verdadeiro (verum) e bom (bonum). Ainda há o belo (pulchrum ou bellus),
que é questão disputada.
Deus, dentre os transcendentais, é maximamente ente, uno, verdadeiro e bom. Ele não é coisa e nem
algo. Todos os outros entes são algum desses transcendentais em algum grau. Explica-se brevemente
cada um desses transcendentais:
Ente: (ens) é o que é, o que tem ser. Ente é antes de tudo substância primeira, isto é, aquele sujeito,
aquele homem, aquela árvore. Mas também pode-se dizer substância segunda, porque quando se
predica homem de João, não se predica o que está no sujeito, mas o que o sujeito é: João é homem.
Aqui cabe prender-se mais ao transcendental ente para mencionar a analogia entis. Ente é o primeiro
conhecido do intelecto, como já dito. Da noção de ente se diz por duas analogias: (1) por
proporcionalidade, com significado mais fraco ou mais forte, mas predicado formalmente de cada
analogado (como no “o um está para o dois como o quatro está para o oito”); (2) por atribuição, que diz
respeito à natureza do ente, e há a atribuição extrínseca (como no exemplo do Santo Tomás sobre a
palavra saudável) e intrínseca (quando os analogados não principais são efeitos do analogado principal).
Assim, com relação à analogia intrínseca, podemos dizer que a pedra (analogado não principal) se
assemelha a Deus (analogado principal) enquanto é (ou existe); a planta se assemelha a Deus enquanto
é e vive; o animal enquanto é, vive e conhece; o homem enquanto é, vive, conhecee é racional; e o anjo
enquanto é, vive, é racional e puro espírito. Deus é o ente por antonomásia, é o próprio ser subsistente
por si mesmo.
Coisa: (res) nas palavras do Santo Tomás «é o nome que expressa a essência ou quididade do ente»[6].
Deus, que tem por essência o próprio ser, não pode chamado de coisa.
Uno: (unum) não é nada mais que o ente indiviso. Pode ser entendido como continuidade (aquele
homem, aquele maço de trigo), homogeneidade (água, ouro etc.), segundo seu gênero (tal animal em
sua espécie) e segundo sua definição (João enquanto homem, animal racional). Os acidentes são unos
secundum quid (a brancura da neve é una).
Algo: (aliquid) o mesmo que “outro quê”. Razão por que não podemos dizer de Deus como “algo”. Ele
expressa sua divisão com respeito a outro ente. Tal ente é este algo simplesmente porque não é aquele
outro.
Verdadeiro: (verum) o que diz respeito à verdade. Enquanto transcendental, o verdadeiro acrescenta à
noção de ente o poder ser conhecido como adequado ao intelecto, sem esquecer, como dito
anteriormente: a verdade é a adequação entre o intelecto e a coisa. O ente é verdadeiro segundo a
inteligência. Deus é simplesmente a própria verdade.
Bom (ou bem ou bondade): (bonum) é o que apetece as coisas. Segundo a vontade, tal ente é bom. E o
ente pode se dizer bom de três maneiras: como bem honesto, porque é bom por si mesmo (bonum
honestum); bem útil, porque é meio para alcançar o bem honesto (bonum utile); e bem deleitável,
porque é bom tê-lo, enquanto se possui (bonum delectabile). Deus é o Sumo Bem, a própria bondade.
Segundo Santo Tomás, o belo (pulchrum) e o bom se identificam, mas com uma distinção de razão, pois
o belo se refere à virtude cognoscitiva, razão por que apetece mais os sentidos mais ligados a essa
virtude, a visão e audição. Por isso, vemos e ouvimos coisas belas (belas cores e belo som)[7]. Como a
obra aqui é aristotélico-tomista, será aderida a opinião que considera o belo parte do bom.
Como podemos ver, todo ente que o nosso intelecto conhece a partir dos sentidos é algum dos
transcendentais de alguma maneira. Mesmo dos piores e mais abjetos se predica o bom. O que há de
pior dentre as criaturas é o demônio; mas mesmo ele pode se dizer bom porque foi criado bom,
enquanto anjos, os demônios são substancialmente bons, mas são perversos nas suas intenções. E não
devemos esquecer que, no princípio, «Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito
bom»[8].
[3] Sendo assim, o conceito de ser é análogo. O ente, como foi dito e se repetirá em breve, é o que tem
ser. Há diversos entes, de diversas espécies e gêneros. Logo, há diversos modos de ter ser, de participar
do ser. Inclusive de ser o próprio ser subsistente por si mesmo, que é Deus. Um dos gravíssimos erros de
Duns Scot é dizer que ser é unívoco, o que fará nivelar todo tipo de ente, o que abrirá espaço para o
nominalismo e do nominalismo para a filosofia moderna de Descartes, depois Kant, Hegel e o abismo
moderno que vemos hoje em dia.
[8] Gn 1, 31.