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INTRODUÇÃO AO REALISMO FILOSÓFICO – III – Da constituição do ente e os universais

O ente e sua natureza

Há uma confusão muito presente nos dias atuais em que o ente é confundido com o ser e vice-versa.
Como dito anteriormente em uma nota, o ente é o que tem ser[1] e em latim é ens, que é particípio
presente do verbo esse, que é o verbo “ser”. Por isso, diz-se que o ente está para o ser tal qual fluente
está para o fluir. O ser, por assim dizer, não é parte do ente. Conquanto o ente tenha o ser, o ente sem o
ser não é nada, no sentido estrito. O ser é o que podemos dizer de ato dos atos ou actus essendi, isto é,
o ato do que está sendo. Com efeito, deduz-se racionalmente que aquilo que tem ser recebe o ser de
outrem, o que não pode remontar ao infinito e o que se conclui que há a necessidade de um ser
subsistente por si mesmo que não tenha recebido o ser de nenhum outro, que é Deus. Mas isso se
explicará detidamente no momento devido. Santo Tomás diz que «o ente por si se diz de dois modos: de
um modo que é dividido por dez gêneros; de outro modo, significando a verdade das proposições», isto
é, « aquilo do qual pode ser formada uma proposição afirmativa, ainda que aquilo nada ponha na
coisa»[2].

Tudo o que subsiste por si na Filosofia chamamos de substância[3]. Desde de um grão de areia, passando
por entes vivos como bactérias, leões, cães, homens, até planetas, átomos isolados etc. Isso é basilar: o
que subsiste por si mesmo é substância. Toda substância é composta de matéria e forma[4]. Matéria é o
que podemos chamar de ente em potência, uma vez que a matéria é individuada, ela passa a ter forma.
Com efeito, mesmo que exista uma única massa de matéria no universo, essa massa terá forma. Forma é
naquilo que se dá a essência, e a essência é naquilo que se dá o ser. No caso das substâncias viventes, a
forma é o que chamamos de alma, pois é ela que anima a matéria dando vida a ela.

Com isso, vemos que há substâncias de diversas formas e para conhecermos o que chamamos essência
ou quididade de determinada substância, há de se usar as duas primeiras operações do intelecto, para
compor e dividir de forma adequada a substância. Há de procurar a divisão adequada para procurar a
quididade da substância que queremos conhecer. E na primeira divisão devemos procurar o que é mais
próprio de cada substância e, assim, há de considerar a substância o gênero máximo do ente. Devemos
diferenciar as substâncias pelo que chamamos de acidentes. Acidente é aquilo que se dá na substância,
mas que não pode ser ou existir por si mesmo. Um exemplo de acidente é a brancura do urso polar. É
impossível separar a brancura do urso, ainda que possamos imaginar um urso que não seja branco, mas
não podemos imaginar a brancura sem aquilo que é branco.

Como dito anteriormente, o ente é o primeiro conhecido pelo intelecto. E para conhecermos o ente,
usamos os sentidos que nos fazem perceber os acidentes que se dão no ente. Porém, para alguém que
pretender ter uma noção de Filosofia, não se deve apenas perceber os acidentes, crer que bastam os
acidentes para conhecer o ente seria cair no erro dos nominalistas. Para conhecer o ente e saber o que
ele é, precisamos conhecer os universais.

Os universais

Segundo Aristóteles, «[d]iz-se universal aquilo que pela natureza se dá em muitos»[5]. Sempre quando
buscamos uma definição, a oração que significa o que a coisa é, ou um conceito, que é significação mais
geral da coisa, estas sempre estarão acompanhadas de um universal, pelo menos. A definição ideal de
uma espécie sempre se dará pelo gênero e diferença específica, que são dois universais, como a
definição de homem: animal (gênero próximo) e racional (diferença específica). O universal, portanto,
existe particularmente nas coisas e universalmente na mente.

Podemos identificar, com o nosso intelecto, dois tipos de universais: os evidentes, que se dão na
realidade que conhecemos pelos sentidos, que são os universais de primeira intenção (homem, cão,
andorinha, pedra, etc); e os universais de segunda intenção, que são entes de razão, isto é, estão
somente na nossa mente. O que não significa aqui que seja um fato subjetivista, pois os universais de
primeira intenção necessariamente sempre se ordenarão aos universais de segunda intenção — ainda
que por mero capricho alguém resolva querer dar outro nome a eles —, mas o fato é que os universais
descobertos por Aristóteles, e, mais tarde, com uma brilhante introdução de Porfírio, seguem
irrefutáveis e insubstituíveis.
§ Predicáveis[6]

Os primeiros universais que convêm conhecer aqui são os predicáveis. Como o nome diz, são o que pode
ser predicado da coisa universalmente. Eles são universais com universalidade lógica, por ele encaixará a
coisa em algum universal. Porfírio identificou em sua Isagoge, um livro introdutório ao Categorias de
Aristóteles, cinco predicáveis:

Gênero: é o mais amplo de todos os universais, pois dentro dele se encaixa o próximo predicável, que é
espécie. Segundo Porfírio, é «o que se predica muitos diferentes em espécie essencialmente (ou in
quid)». O gênero pode ser entendido como parte de um todo enquanto constituinte da quididade
específica enquanto modo da coisa concebida, mas é antes um todo segundo o modo de conceber. O
exemplo mais clássico de gênero é a substância, que é o gênero supremo por não ser espécie de
nenhum outro. Abaixo dela temos gêneros subalternos.

Espécie: por ter dupla relação, a de subordinação com respeito ao gênero (exemplo: gênero animal se
predica da espécie homem, isto é, homem é animal) e de superioridade com respeito ao número ou
indivíduo (exemplo: João é homem), Porfírio deu duas definições: a primeira, enquanto subordinada a
um gênero, que diz que espécie é «a que está posta em determinado gênero e desse gênero se predica
in quid (isto é, essencialmente)»; e outra, enquanto predicável, que diz que espécie «é a que predica in
quid de muitos diferentes em números (ou indivíduos).

Diferença: segundo Porfírio, «diferença é aquilo que se predica de muitos diferentes e em espécie na
mesma qualidade essencial». É ela que distingue dentro de mesmo gênero uma espécie da outra, por
exemplo. Mas há também diferença de qualidade essencial (animal racional)[7], diferença de qualidade
acidental (animal branco); diferença genérica, que funda um gênero subalterno ou espécie subalterna
(animal vertebrado), e diferença específica, que funda a espécie última ou especialíssima (animal
racional, como no exemplo mais acima, mas dado em outro contexto).

Propriedade: é também o acidente próprio, não contingente. Segundo Porfírio, «aquilo que se dá em
todos e sempre». Exemplo, é próprio do homem ser animal político. É um acidente que não é parte da
essência, mas que decorre da essência, visto que ser político pressupõe racionalidade. Como é o que se
dá em todos e sempre, podemos dizer também que é uma propriedade do sol ser luminoso e do cão,
latir, por exemplo.
Acidente: é «o que se predica de muitos univocamente como qualidade contingente», que é, como se lê,
diferente de propriedade ou acidente próprio. Há acidentes que são inseparáveis, como a brancura da
neve, e outros separáveis, como a magreza de alguém, visto que a pessoa pode engordar.

§ Categorias ou predicamentos[8]

Enquanto que os predicáveis são puramente lógicos, pois ordenam a coisa a um universal, as categorias
ou predicamentos já são metafísicos, porque são universais que se atribuem à coisa mesma. São de duas
classes: a substância, gênero supremo, e nove acidentes. Podemos dizer que, enquanto os predicáveis
tratam as coisas enquanto as são de segunda intenção, as categorias as tratam enquanto são de primeira
intenção, isto é, enquanto são concebidas por nós. Exemplo, nos predicáveis podemos dizer que homem
é espécie. Já as categorias tratarão o homem enquanto homem, como universal metafísico e elas
atribuem ao homem as categorias que lhe cabem.

O que está nas categorias ou é em si (a substância) ou no sujeito (acidentes) e elas são exaustivas. Isto é,
não pode acrescentar e nem suprimir. Aristóteles, em sua singular sabedoria listou dez:

Substância: (latim: substantia) Aristóteles mostra duas formas de se entender substância: substância
primeira, enquanto suporte de acidentes; e substância segunda, que é o mesmo que quididade. Às
categorias,interessa mais a primeira forma. Ela é a principal categoria porque é ela que recebe a
predicação substancial. O próprio da substância é subsistir, isto é, sub-estar, do latim sub stat. Daí o
nome. É a primeira categoria que identificamos. Exemplo: este homem é João.

Quantidade: (latim: quantitas) é a segunda categoria que percebemos, por ser o intermediário entre a
substância e os demais acidentes, tanto que os demais acidentes podem supor quantidade e esta não
supõe outros acidentes. Ela pode ser entendida como multidão (aqui tem muita gente, João tem muitas
posses) ou magnitude (João é alto, Pedro é gordo, Maria é magra). Também pode ser entendida como
quantidade discreta, que é próprio de multidão, um todo divisível em partes que não terminam uma na
outra (três maçãs na fruteira, por exemplo); e quantidade contínua, que pode ser medida como linha
(divisível apenas segundo o comprimento, ou seja, apenas uma dimensão), superfície (divisível segundo
o comprimento e largura, ou em duas dimensões) e corpo (divisível em três dimensões). Como se vê, o
termo de medida da linha é o ponto, da superfície é a linha e do corpo é a superfície. O tempo é uma
quantidade apenas per accidens, que pressupõe movimento e se estuda na categoria quando.
Qualidade: (latim: quantitas) é aquilo que é determinativo na substância segundo o ser acidental; isto é,
enquanto predicamento é o que modifica a substância ao modo de diferença, mas fazendo no acidental
o que a diferença específica faz no essencial. Temos oito espécies de qualidade, que formam quatro
pares: (1) Hábito e disposição, que são qualidades em que na natureza da substância mostram a sua
inclinação, que pode ser tanto boa como má. O hábito é uma inclinação mais duradoura e fixa do que a
disposição, que pode inclusive ser temporária. (2) Potência e impotência são aquilo que é modificativo
da substância como princípio do agir e resistir. Essas espécies se distinguem como o perfeito se distingue
do imperfeito. (3) Paixão e passibilidade oupadecibilidade dizem daquilo que se produz ou resulta na
substância quando esta sofre uma alteração. E não se deve confundir com o predicamento paixão, que
se refere à substância sofrendo a ação. E ainda se distinguem: paixão refere-se à mudança temporária e
de fácil realteração, ao contrário da padecibilidade, que implica uma alteração de difícil remoção ou
alteração permanente. (4) Forma e figura dizem do aspecto ou da configuração externa de algo, da
determinação da substância enquanto quantidade. Não se deve confundir a forma aqui com a forma
substância como é a alma para o corpo.

Relação: (latim: ad aliquid) a descrição de relação, apesar de ser de alguma forma facilmente dedutível, é
de difícil explicação. É o que se diz respeito a algo que é de outro com respeito a outros. O relativo dá-se
de duas maneiras: de outra coisa ou com respeito a outra coisa. E geralmente possui contrários, como
preto e branco, e recíprocos, como conhecimento e cognoscível ou pai e filho.

Ubiquação: (latim: ubi) é a realidade acidental que afeta uma coisa pelo fato de ocupar determinado
lugar, que é o termo imóvel continente primeiro. Isto é, o lugar é o limite do que está ocupado pela
coisa; sempre imóvel, pois não pode ser movido; continente, porque algo sempre ocupará o lugar; e
primeiro, porque não nos referimos a locais determinados, como sala, mas aquela parte de que a coisa
ocupa. Logo, lugar, por ser extrínseco à substância, não é predicamento, mas sim a ubiquação, que é
intrínseca à substância e trata dessa realidade dela ocupar tal lugar. E não confundir o espaço com lugar,
visto que o espaço não é outra coisa senão um conjunto de todos os lugares.

Quando: (latim: quando) esse predicamento distingue-se do tempo assim como a ubiquação distingue-se
do lugar. Quando é a realidade acidental que afeta uma coisa pelo fato de ocupar um instante
determinado. Tempo é o número do movimento segundo um antes e um depois. O que implica uma
divisão entre passado e o futuro. O que divide os dois é o instante, que não faz parte do tempo, senão
que é o que termina o passado e começa o futuro. Nesse caso, o tempo é então uma sucessão numerada
de todos os instantes do movimento local primeiro, que certamente decorre da criação.

Situação ou posição: (latim: situs) sobre esse predicamento pouco é tratado tanto pelo Aristóteles como
por seus comentadores. Refere-se ao modo de estar da coisa como, por exemplo, alguém estar sentado
ou deitado.

Posse ou hábito: (latim: habitus) também pouco comentado porque o nome é autoexplicativo ainda que
não deva ser confundido com o hábito espécie de qualidade. Aqui é no sentido de posse de algo, como
estar vestido (de roupa), coberto (cobertor), armado (de arma), etc.

Ação: (latim: actio) também não comentado devido ao nome autoexplicativo. Quando dizemos que
alguém está correndo, já mostra ação. Com exceção, é claro, sobre estar deitado ou estar calçado, pois aí
implica situação e posse ou hábito respectivamente.

Paixão: (latim: passio) não confundir também com a espécie de qualidade, que implica o padecimento da
ação já concluído. Paixão enquanto predicamento implica a substância estar sob o efeito do
padecimento, como a água sendo esquentada no fogo. Se o fogo for apagado e não mais tivermos a água
sendo esquentada, mas a água já quente, aí teremos a paixão enquanto qualidade.

Assim conclui-se os predicamentos. E convém lembrar que cada um deles tem o seu lugar em uma certa
ordem como se vê abaixo:

§ Gênero supremo

Substância

§ Modos de acidentes

Três intrínsecos:

Absolutamente intrínsecos: Quantidade e qualidade.

Relativamente intrínseco: Relação.

Seis extrínsecos:

Em razão da causa pelo agente: ação.


Em razão da causa pelo paciente: paixão.

Em razão da medida quanto ao lugar:

Se não considera a ordem do lugar: Ubiquação.

Se considera a ordem do lugar: Situação.

Em razão da medida quanto ao tempo: Quando.

Em razão da natureza do homem: Posse ou hábito.

Assim sendo, podemos usar as categorias com o exemplo a seguir. Substância: João é homem;
quantidade: João é alto;qualidade: João é branco; relação: João é filho de Pedro; ação: João está
trabalhando; paixão: João foi agredido;ubiquação: João está em casa; situação: João está sentado;
quando: João foi ontem; posse ou hábito: João está armado.

[1] Deus é o único ente que não tem ser, mas é o próprio ser subsistente por si mesmo. Deus também,
como se verá, é ato puro, não é movido de nenhuma forma.

[2] TOMÁS DE AQUINO; O ente e a essência, c. I, 3.

[3] Deus não é substância simpliciter, senão apenas secundum quid. Quando dizemos que o Filho é
consubstancial ao Pai, dizemos apenas analogamente. A razão se explicará mais adiante.

[4] Há quem defenda que se deva já abordar as substâncias simples que distinguam das compostas, isto
é, destituídas de matéria e que sejam apenas forma, que pela revelação na fé cristã chamamos de anjos.
Porém, tal divisão no momento não convém ser abordada porque por ora tratamos do que inteligimos
apenas com a razão natural.

[5] ARISTÓTELES; VII Metafísica, c. 13, 1038b11.

[6] Obra estudada: PORFÍRIO; Isagoge.

[7] Para diferenciar nesse caso, diferencia-se segundo o modo de operar da forma. No caso da forma
humana é a alma racional, que possui potência intelectiva. O que evidencia que o modo de dividir as
espécies na Metafísica diferencia-se totalmente da Biologia, com a sua taxonomia, que foca mais nos
acidentes. Porém, não se pretende discorrer aqui sobre o assunto e tampouco como fica sua
aplicabilidade na Teoria da Evolução. Isso se dará em outro espaço.

[8] Obra estudada: ARISTÓTELES; Categorias.

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