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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MESTRADO E DOUTORADO EM MÚSICA

IMPROVISAÇÃO NO SAXOFONE: a prática da improvisação melódica na


música instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX

por

AFONSO CLAUDIO SEGUNDO DE FIGUEIREDO

Tese submetida ao Programa de


Pós-Graduação em Música do Centro de Letras
e Artes da UNIRIO, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre, sob a
orientação do Professor Dr. Nailson Simões

Rio de Janeiro, 2005


Agradecimentos
A meu orientador, Prof. Dr. Nailson Simões, por acreditar no projeto.
Aos entrevistados Juarez Araújo, Nivaldo Ornellas, João Carlos Assis Brasil, Widor
Santiago, Nelson Faria, Marcelo Martins e Eduardo Neves.
Aos músicos que participaram da gravação do CD que integra esta tese: Bruno Migliari,
Cláudio Infante, Marco Tommaso, André Rodrigues e Renato Calmon.
Ao Cristiano Moura pela gravação e mixagem do material.
Ao Carlos Irineu da Costa pela ajuda com a revisão e a formatação.
A Anne Wurman pela ajuda com os gráficos.
ii

FIGUEIREDO, Afonso C. S. Improvisação no Saxofone: A Prática da Improvisação


Melódica na Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX,
2004. Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música. Centro
de Letras e Artes. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO
Esta tese de doutorado se propõe a estudar uma das áreas mais importantes da Música
Instrumental Brasileira no cenário carioca e suas afinidades com o Jazz. Utilizando como
método de pesquisa entrevistas com improvisadores importantes, transcrições parciais
de solos e de composições relevantes para o repertório do improvisador, buscou-se fazer
um estudo abrangente do que seria necessário à formação de um improvisador, desde os
conhecimentos harmônicos até a construção de um vocabulário consistente para a prática
da improvisação. O estudo focou sobretudo no saxofone como instrumento solista dentro
da música instrumental.

Palavras-chave: Improvisação – Música Instrumental Brasileira – Saxofone.


Sumário
Sumário

Introdução 1

1 Improvisação: Parâmetros De Compreensão 11

1.1 Improvisação musical – parâmetros de compreensão . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 Improvisação e a música erudita – uma rápida discussão . . . . . . . . . . 14

1.3 A Música popular das Américas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

1.4 Improvisação no choro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

1.5 O Jazz norte-americano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

2 Genealogia das Influências 23

2.1 Entrevistas – justificativa e metodologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

2.1.1 Juarez Araújo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

2.1.2 Nivaldo Ornellas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

2.1.3 Marcelo Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

2.1.4 Eduardo Neves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

2.1.5 Nelson Faria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

2.1.6 Widor Santiago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

2.1.7 Marcio Montarroyos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

2.2 Considerações Importantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

2.3 Victor Assis Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

iii
iv SUMÁRIO

3 Considerações Harmônicas 75

3.1 Funções harmônicas dos acordes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

3.2 A Cadência II-V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

3.3 Harmonia Modal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

3.4 Empréstimo Modal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

3.5 As tensões harmônicas dos acordes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

4 Construção de um vocabulário 93

4.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

4.2 O Estudo das formas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

4.2.1 Entender a forma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

4.2.2 A Memorização dos acordes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

4.2.3 A Preparação de bases . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

4.2.4 Memorizar acordes por arpejos e padrões melódicos . . . . . . . . . 99

4.2.5 A Prática em formas curtas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

4.3 As Escalas dos acordes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108

4.3.1 Escala Jônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110

4.3.2 Escala Dórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110

4.3.3 Escala Frígia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110

4.3.4 Escala Eólia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

4.3.5 Escala Mixolídia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

4.3.6 Escala Lídia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

4.3.7 Escalas Lócria e Super-Lócria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

4.3.8 Escala Diminuta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

4.3.9 Outras escalas interessantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

4.4 Resoluções Cromáticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

4.5 Fragmentos melódicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

4.5.1 Sobre a progressão II-V-I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125


SUMÁRIO v

4.5.2 II-V interligados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126

4.6 Transcrições de Solos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

4.7 Contextos Modais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

5 Recursos Técnicos Adicionais de Vocabulário para Improvisação no Sa-


xofone 135

5.1 O Saxofone – um dos principais instrumentos utilizados nos improvisos . . 136

5.2 False fingering . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

5.3 Harmônicos - Overtones . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144

5.4 Multifônicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

5.5 Observações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

6 Seleção de um repertório referencial para a prática da improvisação na


música instrumental do Rio de Janeiro 153

6.1 Os Standards . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

6.2 A Importância das bases gravadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

6.3 Aebersold e a Bossa Nova . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156

6.4 Sobre o repertório selecionado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

6.5 Repertório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

Conclusão 165

Glossário 171

Bibliografia 173

Bibliografia de Apoio 177

Discografia 179

seEntrevistas 181
vi SUMÁRIO

ANEXOS 183
Introdução

A gênese deste trabalho foi o desejo de estudar e entender um pouco mais a respeito da arte
da improvisação musical e de seus principais atores, os improvisadores, ambos elementos
importantes dentro do espectro da música instrumental brasileira. Logo no início das
pesquisas ficou evidente a necessidade de diminuir o escopo do estudo, concentrando o
mesmo apenas nos elementos artísticos e estéticos relacionados à improvisação presentes
no cenário da música instrumental da cidade do Rio de Janeiro, uma vez que cobrir todo
o país demandaria recursos inexistentes no programa. Essa decisão acabou por trazer
benefícios ao estudo, pois pude aproveitar o fato de ter um entendimento prévio dos
movimentos musicais locais e, em várias situações, ter, na existência de parcerias prévias
com outros músicos, um canal de comunicação com a comunidade musical que viria a ser
vital para o desenvolvimento do presente trabalho.

O primeiro capítulo procura definir o objeto de estudo, uma vez que o termo improvi-
sação tem um significado diferente para cada manifestação musical, estando presente em
cada uma delas com grau de importância diferenciado e funções próprias pertinentes a
cada linguagem. Para chegar à definição de improvisação que realmente interessava a esse
estudo, comecei pela definição do Dicionário Aurélio pois, mesmo não sendo uma obra re-
comendada para a consulta de termos especificamente musicais, forneceria uma definição
genérica, que estaria em sintonia com a percepção – ainda que ampla – que pessoas sem
intimidade técnica com os elementos musicais teriam da improvisação.

O próximo passo foi caminhar desta percepção genérica até chegar à improvisação

1
2

jazzística, que acabou sendo, como a série de entrevistas com improvisadores da música
instrumental brasileira iria demonstrar, a matriz influenciadora principal. O jazz, que
desde o século passado influenciou e vem influenciando músicos no mundo inteiro1 , nos
interessa por ser a linguagem musical que tratou – dentro do universo da música ocidental
– da improvisação não como mais um dos seus elementos, mas como o seu elemento
principal. Hobsbawn nos fala da influência do jazz dizendo que:

“O mundo do jazz não consiste apenas em sons produzidos por uma determinada
combinação de instrumentos tocados de uma forma característica. Ele é formado também
por seus músicos, brancos e negros, americanos ou não. O fato de ser tocado por jovens
operários em Newcastle é tão interessante quanto e mais surpreendente do que o fato
de ter surgido nos longínquos saloons do vale do Mississipi (. . . ) Dele faz parte aquela
larga fatia da música popular moderna, comercial e de entretenimento, profundamente
transformada e influenciada pelo jazz” (Hobsbawn,1990. p.27)

Durante o século XX, o jazz se desenvolveu, tornando-se uma música que, ainda se-
gundo Hobsbawn, se estabelecia como forma de arte de padrão sofisticado:

“O jazz, efetivamente, se desenvolveu não só na linguagem básica da música popu-


lar, mas também no sentido [de]2 um tipo de arte sofisticada, que busca não só se fundir
mas também competir com a música de arte estabelecida do mundo ocidental.” (Hobs-
bawn,1990. p.30)

Para entender melhor essa relação do jazz com a improvisação na música instrumental
brasileira foi preciso, na ausência de uma bibliografia dedicada ao assunto, recorrer aos
próprios improvisadores, no segundo capítulo do presente trabalho, que é praticamente
todo dedicado às entrevistas. A partir do depoimento de improvisadores atuantes no ce-
1
Devido à grande influência do jazz em nossa música instrumental, principamente entre os saxofonistas
e os improvisadores, encontramos muitos anglicismos difundidos no jargão desses músicos. Por essa
razão, neste trabalho serão encontrados muitos termos em inglês, pois são os que estão em uso corrente
na comunidade musical. As traduções, quando aparecerem, são de minha autoria e servem apenas ao
propósito de clarificar o trabalho. Para dinamizar a leitura, alguns anglicismos foram colocados em um
glossário no final do trabalho que pode ser consultado quando o termo for desconhecido para o leitor.
2
Há um erro na edição brasileira, e o “de” foi omitido. Foi incluído aqui, entre chaves, para que não
haja estranhamento na leitura do trecho.
3

nário da música instrumental carioca, foi possível traçar algumas influências comuns que
acabariam por mostrar que o jazz foi um dos principais elementos na sua formação. Outra
característica comum que sobressaiu das entrevistas foram os métodos de aprendizado e
desenvolvimento dos músicos, associado quase sempre à tradição oral, assim como as rela-
ções com as chamadas manifestações da música popular. Voltando a Hobsbawn, podemos
ver nítidos contornos de similaridades:

“(. . . ) se eu tivesse que fazer um resumo da evolução do jazz em uma só sentença


eu diria, é o que acontece quando a música popular não sucumbe, mas se mantém no
ambiente da civilização urbana e industrial. Pois o jazz, na sua raiz, é música popular
do tipo comumente estudado por colecionadores e experts: tanto rural quanto urbana. E
algumas das características fundamentais da música popular foram mantidas por toda a
história; por exemplo, a importância da tradição oral para sua transmissão e da ligeira
variação de uma execução para outra, entre outros aspectos. Muito dessa música se
modificou a ponto de se tornar irreconhecível, mas isso, afinal, é o que se espera que
aconteça com uma música que não morre, mas continua a se desenvolver em um mundo
dinâmico e tempestuoso.” (Hobsbawn,1990. p.35)

A seleção dos entrevistados foi composta de nomes que tivessem representatividade


artística e histórica na música instrumental brasileira. Em alguns casos a entrevista se
mostrou muito oportuna, como no caso do saxofonista Juarez Araújo, que viria a falecer
alguns meses após a mesma. Essa entrevista acabou sendo não só um dos poucos, mas
também o último depoimento do reconhecido músico sobre a sua trajetória artística e sua
formação musical.

Houve uma opção preferencial por saxofonistas entre os entrevistados, por entender
que seria uma forma de contribuir mais significativamente para a historiografia do meu
instrumento. Mesmo assim foram coletados, além dos depoimentos dos saxofonistas Ni-
valdo Ornellas, Eduardo Neves, Widor Santiago e Marcelo Martins, os depoimentos de
um guitarrista – Nelson Faria – e um trompetista – Marcio Montarroyos. Interessante
4

acrescentar que Marcio Montarroyos e Nivaldo Ornellas tocaram com o saxofonista Vic-
tor Assis Brasil, que mereceu um tópico específico neste trabalho por se tratar de um dos
principais improvisadores em toda a história da música brasileira. Victor Assis Brasil, por
ter sido um dos pioneiros na arte da improvisação, não poderia deixar de ser mencionado
nesse trabalho. Gostaria de ter entrevistado também o trompetista Claudio Roditi3 , que
foi um grande amigo e companheiro de Victor Assis Brasil no Berklee College of Music e
o pianista Luiz Avellar4 , o qual, além de ser um improvisador de estilo próprio e marcante,
chegou a ser o pianista do grupo de Victor. Entretanto, em ambos os casos não nos foi
possível encontrar uma data adequada para a entrevista.

Como a improvisação melódica na música instrumental e também na música popular


brasileira se faz sempre sobre uma progressão harmônica definida, o capítulo 3 é dedi-
cado a uma discussão de aspectos harmônicos que seriam fundamentais na formação de
um solista. Há casos de músicos que são improvisadores articulados mesmo carecendo
de uma boa formação harmônica. Esse músicos, que improvisam de forma basicamente
intuitiva, são um tópico de discussão interessante. Ocorre que improvisadores dessa natu-
reza, mesmo obtendo alguns resultados fascinantes, ficam limitados a estruturas da escala
diatônica, baseando a sua criação em torno de um uma escala jônica ou de um centro
tonal. Dentro do repertório de improvisadores desse tipo não poderão constar peças onde
ocorram modulações ou muitos acordes de empréstimo. Na prática, contudo, naquilo
que poderíamos chamar de “repertório básico da música instrumental”, são encontradas
inúmeras peças repletas de elementos harmônicos dessa natureza, obrigando o músico-
improvisador profissional a adquirir um bom conhecimento desses conceitos. É verdade
que muitos improvisadores não tocam um instrumento harmônico e, para estes músicos, o
conhecimento dos recursos harmônicos citados na formação de um improvisador completo,
mesmo que restrito ao campo teórico, é fundamental.

O estudo se concentra a seguir, no quarto capítulo, no que poderia se chamar de


3
Claudio Roditi (1946- )
4
Luiz Avellar (1956- )
5

elemento fundamental na formação do estilo e da identidade de um improvisador, a cons-


trução do seu vocabulário musical dirigido para a improvisação. O desenvolvimento desse
vocabulário, ao lado do seu conhecimento harmônico, fornece subsídios para que o músico
se expresse livremente. Talvez o melhor paralelo para entender a importância de um bom
vocabulário na arte de improvisar seria com a literatura. Assim como na música, na arte
da escrita é necessário adquirir um vocabulário rico para que se possa contar histórias5 na
ficção ou comover as pessoas com uma poesia. O vocabulário não muda a história que se
quer contar, mas muda a forma como se pode contá-la. O vocabulário será a caixa de fer-
ramentas do improvisador para as situações musicais. Ferramentas adequadas resultarão
em solos precisos e conseqüentes em cada estilo musical abordado.
Para um improvisador completo, o desenvolvimento desse vocabulário não terminará
nunca. Ele estará sempre procurando novas sonoridades e abordagens que possam enri-
quecer a sua pletora musical. No mundo inteiro há centenas de publicações a respeito de
técnicas para o desenvolvimento do vocabulário e todas são válidas. Sempre aparecerá
uma nova abordagem e essa é a beleza da arte da improvisação, cada um a fará à sua
maneira. Nesse estudo foram listadas, ilustradas e exemplificadas algumas técnicas de
estudo prático que aprendi na trajetória de improvisador e, em muitos casos, que desen-
volvi na atividade de professor de improvisação, tanto em aulas particulares para alunos
de saxofone ou de outros instrumentos, quanto como professor das matérias TECIM I e II
do curso de Música Popular da UNIRIO, em que lecionei por um ano e meio como parte
do estágio docente.
Principalmente dentro do cenário nacional, onde temos poucas publicações dedicadas
ao tema, espero que este trabalho suscite discussões e possa auxiliar outros improvisadores
na busca de seus próprios vocabulários. As técnicas abordadas aqui não são, de forma
alguma, as únicas nem as mais corretas, mas simplesmente um caminho entre tantos
5
Embora alguns ainda usem a diferenciação entre “estória” e “história”, tanto o Dicionário Houaiss
da Língua Portuguêsa (edição eletrônica, versão 1.0, dezembro de 2001) quanto o “Manual de Redação
e Estilo” do jornal O Estado de S. Paulo (O Estado de S. Paulo, 1990) consideram “estória” uma forma
antiga, e recomendam usar apenas “história”, sem qualquer distinção entre o caráter ficcional ou não dos
fatos da narrativa.
6

outros.

Desde o início da pesquisa, por ser a improvisação uma prática comum a vários ins-
trumentos melódicos – como por exemplo flauta, trompete, trombone, guitarra elétrica e
violão –, havia o desejo de dedicar um capítulo inteiramente ao saxofone. Essa seria uma
contribuição específica para os especalistas no saxofone. Para esse capítulo, o de número
5, resolvi tratar de técnicas de interpretação não-ortodoxas para o instrumento, tais como
os false fingerings, overtones 6 e multifônicos. Essas técnicas, que podem ser consideradas
como sendo recursos adicionais, foram abordadas do ponto de vista prático e ilustradas
com gráficos de dedilhados específicos, que possibilitam uma adição ao vocabulário do
saxofonista improvisador moderno.

O sexto capitulo, a última etapa deste etudo, trata das bases gravadas de um re-
pertório referencial da música instrumental brasileira para o estudo prático aplicado do
improvisador. Essas bases foram produzidas com o auxílio dos músicos Bruno Migliari,
Cláudio Infante, Andre Rodrigues, Renato Calmon e Marco Tommaso, seguindo o for-
mato de separação em estéreo adotado na série do educador americano Jamey Aebersold,
com o piano e a bateria no canal direito e o baixo e a bateria no canal esquerdo. Essa
forma de apresentação possibilita o aproveitamento deste material didático também para
baixistas e pianistas, bastando para isso direcionar o controle de balanço do equipamento
de som para o canal apropriado. Para os outros instrumentos melódicos, basta deixar o
mesmo controle em sua posição normal, no centro.

O repertório escolhido tentou cobrir, além de peças que já tenham se tornado stan-
dards 7 – como Partido Alto, Melancia e A rã –, também um panorama contendo nossos
principais compositores instrumentais como Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, Victor
Assis Brasil e Toninho Horta. As partituras destas peças estão incluídas em anexo à tese
e foram digitalizadas por mim no programa de escrita musical Finale.

A tese vem acompanhada de um CD de bases contendo as oito peças escolhidas em duas


6
Ver Glossário.
7
Ver Glossário.
7

versões. As primeiras oito faixas, de 1 a 8, contêm minhas interpretações dessas peças


com o intuito de ilustrar todo este trabalho sobre improvisação, desde a demonstração dos
vocabulários discutidos até os recursos adicionais para o saxofone. As faixas restantes,
de 9 a 16, são as bases sem melodia para a prática instrumental. As versões nas quais
interpreto essas obras seriam, de uma maneira poética, a trilha sonora deste trabalho e
dos quatro anos dedicados a ele.

Bibliografia Comentada

Nesse tópico serão discutidas as publicações que foram fundamentais para este tra-
balho, as quais influenciaram e auxiliaram na confecção deste estudo. Em outros casos,
serão mencionadas algumas publicações que não estão completamente em sintonia com
as abordagens desse estudo, mas devem ser discutidas mesmo assim pelo fato de serem
largamente difundidas e estarem, de alguma forma, tratando de assuntos similares aos que
abordo aqui. Comentários de outros estudiosos sobre essas obras, quando houver algum
disponível, também aparecerão. Esses comentários não invalidam as publicações a que se
referem, mas enfatizam a falta de sintonia com os objetivos desta pesquisa.

Um dos livros mais importantes durante toda a pesquisa foi Thinking in Jazz, de Paul
Berliner (1994), que acabou por se revelar uma ferramenta indispensável pois aborda, de
forma objetiva e metódica, muitos dos aspectos fundamentais para o estudo e a prática da
improvisação. Encontrei também no livro de Mark Gridley (2000), Jazz Styles – History
and Analysis, uma fonte de importantes informações já que, além de cobrir a história do
jazz, o autor analisa os seus estilos musicais em ordem cronológica. Ambas publicações
foram pródigas em fornecer definições de práticas jazzísticas que me foram muitos úteis
neste trabalho. Além disso, ajudaram a desenvolver uma metodologia analítica indispen-
sável para a minha pesquisa sobre a improvisação.

Outra obra que devo mencionar é A História Social do Jazz, de Eric Hobsbawn (1990).
Esta trouxe uma visão diferente pois seu autor, cujo vínculo com o jazz se dá como estu-
dioso e amante da música, mas não através da prática. Por ser sobretudo um historiador
8

e sociólogo, ele pôde abordar o jazz destro de um escopo mais abrangente que sua própria
prática, trazendo percepções que me foram indispensáveis.

Ben Sidran (1991,1995), um escritor que tem entre as suas atividades a de músico
profissional, escreveu dois livros interessantes. Um deles é Black Talk, na verdade a versão
editada de sua tese de doutorado. Nele, o autor trata do desenvolvimento da cultura negra
norte-americana, principalmente no que diz respeito às manifestações musicais que, como
ele defende com propriedade, se basearam, durante toda a sua história, na tradição oral.
O outro livro de Sidran, Talking Jazz, é um livro de entrevistas com músicos de jazz que
foi editado a partir de transcrições de um programa de rádio por ele coordenado durante
alguns anos. Como um capítulo quase inteiro deste trabalho se baseia em entrevistas com
improvisadores, este livro foi providencial e serviu como um modelo tanto na gravação
das entrevistas quando ao fazer as edições necessárias para a versão final das mesmas.

Os conceitos de harmonia funcional utilizados aqui foram extraídos do método de


harmonia do Berklee College of Music, obra de vários autores (1987) que é, na verdade,
uma obra aberta, pois é constantemente revista pelos professores da instituição. A edição
utilizada foi a que estava em uso quando fui aluno dessa instituição, no final do anos
oitenta.

Tive também a sorte de poder recorrer a um artigo de um colega, o bandolinista da


tradição do choro, Paulo Sá (2000). Seu artigo sobre o improviso no choro clarificou
questões relevantes sobre o estilo. A tese de doutorado de Laura Rónai (2002), flautista e
professora da UNIRIO, foi outra excelente fonte, pois abordou aspectos da improvisação
na música erudita.

A série de discos com acompanhamento do educador americano Jamey Aebersold


contribuiu como um modelo de playalong para o estudo da improvisação. Esse trabalho
trabalho se concentra em uma área que ele ainda não abordou com propriedade, a música
brasileira. Livros variados de transcrições de solos foram importantes referências para a
confecção de notações musicais de exemplos também muito útéis.
9

Há outras publicações de menção relevante, mesmo não tendo sido referenciais impor-
tantes nessa pesquisa. Primeiro há a série de dois LPs para estudo lançada pela Funarte
em 1986, chamada Dê uma Canja. Mesmo sendo um excelente material, não foi concebido
para improvisadores e, portanto, não é indicado para essa prática.
Sobre o livro O Vocabulário do Choro de Mário Séve (1999), o melhor comentário
vem de Laura Rónai, que assim o descreve:
“(...) no (livro) Vocabulário do Choro de Mário Sève (1999), (...) há uma tentativa de
codificar as dificuldades particulares do estilo, numa seqüência de fórmulas repetidas que
se pretende preparatória ao estilo de improvisação. Ainda que isso não seja abertamente
declarado, estes exercícios têm uma relação direta com a tradição de estudo do século XIX,
e não diferem grandemente dos Exercices Journaliers de Taffanel & Gaubert.” (p.79)
O livro de Luciano Alves (1977), Escalas para Improvisação em todos os tons para
todos os instrumentos serviu apenas como fonte de consulta, uma vez que a abordagem
de escalas não deve ser entendida como um elemento dissociado de um estudo das relações
das mesmas com os elementos da harmonia e também de uma técnica que explique como
se estudar e aplicar esse conhecimento para o desenvolvimento de um vocabulário para a
improvisação.
Já o livro de Nelson Faria (1991) A Arte da Improvisação chega muito perto do
âmago dos problemas enfrentados pelos improvisadores, proporcionando uma excelente
fonte de consultas sobre os elementos técnicos relevantes na prática da improvisação, mas
não estimula aos estudantes a construir seus próprios padrões melódicos, uma questão
importante pois a criação original é, de fato, aquilo que irá definir o estilo próprio e a
identidade de cada improvisador.
10
Capítulo 1

Improvisação: Parâmetros De
Compreensão

1.1 Improvisação musical – parâmetros de compreen-

são

A palavra improvisação, por si só, tem várias conotações, pois improvisação é algo que
fazemos constantemente nas nossas vidas. Ao sairmos de casa pela manhã, não sabe-
mos tudo o que vai acontecer nesse dia, todos que vamos encontrar, o que vamos dizer,
etc. Conforme o dia se desenrola, vamos improvisando nossas atitudes e nossas reações.
Quando encontramos algum amigo na rua e perguntamos “como vão as coisas”, não sa-
bemos qual será a resposta e, de acordo com essa resposta, se seguirá um diálogo que
improvisamos no momento. E assim será durante todo esse dia, o dia seguinte e assim
por diante. Seguindo esse raciocínio chegaremos à conclusão que, em sua maioria, as
atividades de nossas vidas são, de alguma forma e em algum grau, improvisadas.

O Dicionário Aurélio nos dá a seguinte definição do verbete “improvisar”:

“De improviso + -ar2.

V.t.d. 1. Fazer, arranjar, inventar ou preparar às pressas, de repente: improvisar

11
12 CAPÍTULO 1. IMPROVISAÇÃO: PARÂMETROS DE COMPREENSÃO

uma fantasia; improvisar uma mentira. 2. Falar, escrever, compor, sem preparação,
de improviso: improvisar um discurso. 3. Citar falsamente; falsear (aquilo que não
existe): improvisar um documento, uma lei. V. int. 4. Discursar ou versejar de
improviso: "atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da
Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, .... um
homem, de pé, que improvisava." (Eça de Queirós, Notas Contemporâneas, p. 367).
5. Mentir levemente. 6. Adotar dolosamente, ou por necessidade eventual, uma
profissão, uma qualidade; arvorar-se em: "Uma passageira loura e magra improvisou-se
em enfermeira e dirige os curativos." (Érico Veríssimo, México, p. 30.) (Aurélio Buarque
de Hollanda.1986. p.926)”

Podemos ver então que a definição de improvisação está ligada à criação de algo.
Improvisar é, basicamente, criar algo que não estava pronto de antemão. Algumas vezes
essa improvisação acontece quase inconscientemente, como no caso do encontro com o
amigo na rua. Outras vezes, quando improvisamos, sabemos que o estamos fazendo, como,
por exemplo, um almoço preparado às pressas por termos convidados inesperados. O ato
de improvisar é inerente à própria vida e à natureza humana. Improvisar é imprescindível
ao ser humano em inúmeras situações inerentes à própria vida.

A improvisação, quando associada à música, acaba por ter significados diferentes para
cada um, pois as experiências individuais com a música improvisada podem ser de natu-
reza muito variada. É possível afirmar que todos que trabalham com a música já tiveram
alguma experiência com improvisação e portanto, têm algum elemento referencial que
possa servir de ponto de partida para uma definição pessoal de improvisação musical. Por
essa razão, acredito ser, antes de mais nada, necessário definir o meu objeto de estudo
antes de qualquer elaboração que venha a fazer sobre ele, evitando assim armadilhas para
o leitor, que poderia ser levado a equívocos pela simples razão de estarmos, tanto eu como
o leitor, abordando formas musicais diferenciadas.

Se a improvisação é parte da vida de todos os seres humanos, podemos concluir que há


1.1. IMPROVISAÇÃO MUSICAL – PARÂMETROS DE COMPREENSÃO 13

improvisação em todas as culturas e, por conseguinte, em todas as manifestações culturais


que acontecem no planeta. No caso que nos interessa, que é a música, vemos que atual-
mente há estilos de música de lugares variados do planeta constantemente expostos para o
público ocidental, criando uma disponibilidade de um repertório cultural sem precedentes
em nossa sociedade. A imprensa batizou essa nova tendência de world music 1 , que é um
termo mal usado pois qualquer música é, por si só, do mundo e portanto a definição já
nasceu ambígua. Essas formas musicais, quando são novas para os nossos ouvidos, muitas
vezes nos confundem por não entendermos como e porque a música começa, de que ma-
neira se desenvolve, nem como ela termina. Por exemplo: os parâmetros estruturais de
uma raga indiana só serão identificados por aqueles que tenham um conhecimento mais
aprofundado desse estilo. Ouvintes para os quais essa música é nova, como é meu caso,
serão incapazes de acompanhar seu desenvolvimento musical. Portanto, se me pergunta-
rem se há improvisação na raga, serei incapaz de responder, posto que não conseguiria
saber quais elementos são improvisados ou estruturados. Meu instinto musical me levará
a pensar que há alguma forma de improvisação ocorrendo mas, sem um conhecimento es-
pecífico da música da Índia, não posso afirmar nem se existe, nem quando a improvisação
ocorre. Resta sempre, contudo, a possibilidade de esclarecer o assunto, bastando para isso
consultar um especialista.
A mesma falta de um referencial cultural se processará quando, por exemplo, um indi-
víduo que não fale inglês tentar entender as indicações dadas por um britânico sobre um
determinado lugar em Londres. Sem o conhecimento da língua as indicações se perdem
em um vazio, não possuindo significado para quem as recebe. O mesmo acontecerá na
música quando o ouvinte – no exemplo acima, eu – for questionado a respeito da impro-
visação na raga. Simplesmente não possuo dados culturais suficientes para saber se há,
ou como se processa, a improvisação nesse caso.
Antes de mais nada é portanto fundamental que se compreenda que, para ser capaz
de formular reflexões sobre a improvisação musical é necessário que se tenha um amplo
1
Ver Glossário
14 CAPÍTULO 1. IMPROVISAÇÃO: PARÂMETROS DE COMPREENSÃO

entendimento do universo da manifestação musical na qual ela se processa. Caso contrário,


a mensagem musical jamais poderá ser entendida.

1.2 Improvisação e a música erudita – uma rápida dis-

cussão

No universo da música erudita de matriz européia a improvisação existiu mais fortemente


no passado, quando havia uma separação menor entre as funções do compositor e do in-
térprete. Laura Rónai (2003), professora de flauta da UNIRIO, em sua tese de doutorado
intitulada “Em busca de um mundo perdido – Métodos de Flauta do Barroco ao Século
XX” comenta:

A dicotomia que surgiria mais tarde entre compositor/intérprete não existia no pe-
ríodo Barroco. Por isso mesmo não havia, por parte do compositor, a preocupação de
notar inequivocamente suas intenções. Mesmo nos casos em que não era o intérprete
visado, o compositor compartilhava com este a linguagem de sua época. E os intérpretes
dominavam a ornamentação como parte desta linguagem, – a qual era executada na hora,
de improviso. Daí não ser descabida a comparação, aliás bastante freqüente, entre dois
estilos tão diferentes como o Barroco e o Jazz. Assim como no Jazz, a partitura barroca
é freqüentemente apenas um ponto de partida.” (Rónai. 2002. p. 142)

O desenvolvimento da música erudita na qual, principalmente a partir do período


barroco, o papel criador centrou-se principalmente no compositor, acabou por diminuir a
improvisação na prática musical. Atualmente a fidelidade ao texto musical é exigida dos
intérpretes que, na maioria dos casos, abrem mão até de compor suas próprias cadenzas 2 .
Cadenza – de acordo com o “The Concise Oxford Dictionary of Music” a cadenza é: A flourish
2

(properly improvised) inserted into the final cadence of any section of a vocal aria or solo intr. Mo-
vement.(. . . )From the time of Mozart and Beethoven in instrumental music the tendency grew for the
composer to write the cadenzas in full. (p.116) ou seja: “um floreio, de preferência improvisado, inse-
rido na cadência final de qualquer seção de uma ária vocal ou movimento de um solo instrumental (. . . )
Na música instrumental do tempo de Mozart e Beethoven ceresceu a tendência do compositor escrever
totalmente as cadenzas.
1.2. IMPROVISAÇÃO E A MÚSICA ERUDITA – UMA RÁPIDA DISCUSSÃO 15

Para um intérprete erudito há uma pressão muito grande no sentido de ser perfeito, de
não cometer erros. Esses dois fatores – o papel de criador sendo legado ao compositor e
a busca da perfeição – acabam por deixar pouco ou nenhum espaço para a improvisação,
pois, segundo Laura Rónai “por definição, a improvisação tem de ser espontânea, não-
escrita.”(p.147)

Ao que tudo indica, nem sempre foi assim. Na música barroca era comum o intérprete
improvisar um trecho antes do início da peça. Laura Rónai comenta essa prática de
preludiar :

“Segundo inúmeros relatos da época, era comum o intérprete improvisar um pequeno


trecho antes de tocar a composição propriamente dita. Este Prelúdio servia para “esquen-
tar” a flauta e o flautista, fazendo com que ele se habituasse aos intervalos próprios da
tonalidade da peça. E também para preparar os ouvidos para o “affect” da obra executada,
com sua tonalidade particular.” (Rónai. 2003. p.148)

A importância dada ao compositor, na música erudita, permitiu um desenvolvimento


singular dessa forma de arte que passou, do século XVIII em diante, por várias revoluções
estéticas e formais. Movimentos estéticos e formais como o clássico, o romântico, o im-
pressionismo e o atonal se sucederam. Da mesma forma, mestres da música se sucederam,
tais como Beethoven3 Schumann4 , Debussy5 e Schoenberg6 , além de muitos outros, aju-
dando a construir o riquíssimo vocabulário da música erudita ocidental. Essas diferentes
escolas não tinham, entretanto, a improvisação como uma ferramenta importante e essa
prática acabou sendo quase esquecida. Laura Rónai dá a sua explicação para esse fato:

“A arte de improvisar vai sendo esquecida à medida que se dá o processo de incorporar


a ornamentação na própria composição, um fenômeno que ocorre de forma mais ou menos
gradual, ao longo de todo o século XVIII. Às vezes é difícil determinar o que foi a causa
e o que foi a conseqüência da morte da prática de improvisar. Muitos atribuem o seu
3
Beethoven (1770-1827).
4
Schumann (1810-1856).
5
Debussy (1862-1918).
6
Schoenberg (1874-1951).
16 CAPÍTULO 1. IMPROVISAÇÃO: PARÂMETROS DE COMPREENSÃO

enfraquecimento ao desaparecimento do baixo cifrado que, como as cifras do Jazz e da


MPB, é um estímulo natural ao improviso.” (Rónai. 2003 p.158)

De qualquer maneira, a verdade é que, na música erudita ocidental, a improvisação


deixou de ser uma presença significativa no século XIX, voltando a se intensificar no século
XX. Todavia, movimentos musicais considerados populares ou que vinham de camadas
que não faziam parte das elites dominante das Américas, criariam uma nova música, que
mais tarde viria a ser denominada de música popular.

1.3 A Música popular das Américas

Em todo o continente americano, desde os primórdios da colonização européia, surgiram


novas manifestações musicais que se originaram da fusão das culturas dos colonizadores,
basicamente européia, com a cultura africana dos escravos trazidos de pontos diferentes
da África e, em um grau possivelmente menor, das culturas locais indígenas.

Essas novas músicas tinham características próprias para cada localidade. Assim, a
música da América Central era diferente daquela da América do Norte, que por sua vez
tinha particularidades que a diferenciavam da que surgia na América do Sul e assim por
diante. Mesmo dentro de um único país é possível observar diferenças muito acentuadas no
ritmo, na melodia e na interpretação musical. Curiosamente, porém, apesar das diferenças
elas têm, em sua gênese, mecanismos semelhantes, pois são todas resultantes da fusão de
culturas desses três continentes: o europeu, o africano e o americano.

Essas condições históricas e sociais formaram os embriões das manifestações musicais


que resultariam nas diversas vertentes da música popular. No decorrer do século XX,
essas vertentes desabrocharam pelo mundo inteiro, resultando em estilos como o blues 7 e
o jazz americano; o reggae jamaicano; a salsa, o merengue e o mambo centro-americanos;
o samba e o choro brasileiros, entre muitos outros.

No livro Raízes da Música Popular Brasileira, Ary Vasconcellos (1991) faz uso de uma
7
Ver Glossário
1.3. A MÚSICA POPULAR DAS AMÉRICAS 17

citação de Silvio Romero, que nos dá uma descrição interessante sobre o fenômeno da
nossa música:

“O que se pode assegurar é que, no primeiro século de colonização, portugueses, índios


e negros acharam-se frente uns aos outros, e diante de uma natureza esplendida, em luta,
tendo por armas o arco, a flecha e a enxada, e por lenitivo as saudades da terra natal. O
português lutava, vencia e escravizava; o índio defendia-se, era vencido, fugia ou ficava
cativo; o africano trabalhava, trabalhava. . . Todos deviam cantar, porque todos tinham
saudades; o português de seus lares, d’além mar, o índio das selvas, que ia perdendo, e
o negro de suas palhoças, que nunca mais havia de ver. Cada um cantava as canções de
seu país. De todas elas amalgamadas e fundidas num só molde- a língua portuguesa, a
língua do vencedor – é que se formaram nos séculos seguintes os nossos cantos populares.”
(Vasconcellos. 1991. p.13)

Com o passar do tempo, a música nova desse continente, que já mostrava algumas de
suas características, passou a fazer parte do caldo cultural dessas novas nações. Essas
manifestações musicais, todavia, , na maioria dos casos eram consideradas na época como
música de entretenimento pelas elites culturais, não recebendo o status de arte. Consti-
tuíam a trilha musical que acompanhava as festas populares, os bailes, o trabalho – caso
por exemplo das canções de trabalho (work songs) norte-americanas – e até, em muitos
casos, a trilha musical de bordéis.

No âmago da prática musical de cada uma dessas músicas estava a improvisação que
havia, então, caído em desuso na música erudita. A própria natureza de música para
entretenimento fazia com que as práticas musicais se tornassem mais livres, menos pom-
posas, sem a necessidade de uma busca pela perfeição – e, também, sem o reconhecimento
artístico – que um concerto romântico, por exemplo, trazia.

Outro aspecto vinha das características da música africana que continha práticas ditas
populares, como a tradição oral e as improvisações rítmicas e melódicas.
18 CAPÍTULO 1. IMPROVISAÇÃO: PARÂMETROS DE COMPREENSÃO

1.4 Improvisação no choro

Gostaria de abrir aqui um parêntese para comentar, rapidamente, a improvisação no


choro. O choro, uma das principais vertentes de nossa música instrumental, privilegia
na sua interpretação, a composição, tendo a improvisação um caráter secundário, sendo
muitas vezes inexistente. Mesmo quando a improvisação está presente, ela aparece de uma
forma mais discreta, mais ligada à tradição da música barroca onde pequenas variações
melódicas e ornamentais são empregadas na interpretação.

Paulo Sá, bandolinista oriundo do choro, escreveu um artigo sobre a improvisação


no choro onde explica:

“Os limites de caráter improvisatório entre o jazz e choro começam no fato de que no
jazz, o pensamento do intérprete se concentra quase que exclusivamente no contexto das
funções e dos encadeamentos harmônicos, que se apresentam ao músico como provedores
de estímulos improvisatórios. O chorão por sua vez manifesta sua capacidade improvi-
sadora fundamentada muito mais na melodia do choro que está interpretando, sendo a
harmonia mais um decurso do que propriamente a idéia central ao redor da qual seria
realizado um improviso.” ( Sá. 2000.p.67)

Além dos aspectos harmônicos, Paulo Sá aponta outro fato relevante:

“Outra diferença básica entre os dois tipos de improviso pode ser através das forma do
jazz e da forma do choro. Expor o tema, improvisa-lo tendo como base a idéia harmônica
e em seguida finalizar expondo novamente o tema, é esta a forma daquele gênero musical
norte-americano, onde os temas são curtos e escritos para serem improvisados do início
ao fim. Não é esta a proposta do choro. Sua forma, tradicionalmente ternária com cinco
seções ABACA, não propicia o mesmo tipo de improviso realizado no jazz, isto é, o chorão
não se propõe a expor um tema e depois improvisa-lo na íntegra.” (Sá. 2000. p.67)

O mais interessante das questões levantadas por Sá em relação ao improviso no choro


é que a improvisação, mesmo presente no choro, não é a característica mais relevante
do estilo. Para ser um bom chorão o músico não precisa ser um grande conhecedor do
1.4. IMPROVISAÇÃO NO CHORO 19

universo harmônico ou ser reconhecidamente um hábil improvisador, devendo possuir


outros recursos interpretativos pertinentes a esse gênero musical. Espera-se, porém, que
o chorão tenha a capacidade de re-interpretar uma melodia de forma pessoal e, para
isso, pode recorrer a elementos improvisados, que muitas vezes estarão mais próximos da
variação e ornamentação melódica do que da criação de uma melodia em tempo real:
“No caso do choro não existe um improviso nascido de divagações, isto é, não se es-
pera do músico chorão que ele simplesmente improvise melodias que por ventura venham
à sua mente ou aos seus dedos, compondo assim uma espécie de choro instantâneo. O
improviso chorão nasce de um choro previamente concebido, portanto, ele possui um re-
ferencial que será também o seu limite. Mas tendo em vista que o tipo de improviso que
se costuma fazer no choro é fundamentado na melodia, o que ocorre, portanto, é que esta
´permanentemente lembrado ou citada na improvisação. Trata-se por conseguinte de uma
variação melódica. (Sá.2000.p.69)
Recentemente novos grupos e músicos de choro vêm tentando incorporar mais a im-
provisação dentro do estilo do choro. Sergio Álvares, professor de educação musical da
Universidade Federal do Espírito Santo, que escreveu uma tese de doutorado sobre o en-
sino do choro, manifestou por via de um correio eletrônico uma visão que resume bem a
questão:
“A visão da improvisação no choro como variação temática é uma visão tradicional
e prevalecente, mas não é a única presente no cenário atual. Ou seja, a maioria
dos chorões improvisa variando enquanto violão de 7 cordas, improvisa as linhas de forma
semelhante ao walking bass do jazz e tem, sem dúvida, muito mais liberdade. Porém
a partir das décadas de setenta e principalmente da década de oitenta, os novos chorões
começaram a se soltar, como podemos ver nos trabalhos de Rafael Rabelo (violão), Paulo
Sergio Santos (clarinete e sax-soprano), Carlos Malta (flauta e saxofone) e o próprio
Paquito de Rivera8 e outros que, quando tocam choro, improvisam de uma forma mais jaz-
8
Paquito D’Rivera – clarinetista e saxofonista cubano residente nos Estados Unidos onde é um dos
nomes mais proeminentes do latin jazz. Paquito, grande apreciador da música brasileira, gosta de incluir
choros no seu repertório.
20 CAPÍTULO 1. IMPROVISAÇÃO: PARÂMETROS DE COMPREENSÃO

zística. Tal ponto é motivo de debate entre alguns estudiosos, onde os ortodoxos criticam
essa liberdade e os liberais a incentivam, enquanto os etnomusicólogos se deleitam nesse
debate.” (Alvarez. 2005. correio eletrônico do endereço salvares@npd.ufes.brrecebido em
2 de fevereiro de 2005)

Toda essa discussão, apesar de extremamente interessante, passa ao largo do presente


trabalho, pois este se dedica a estudar a música instrumental na qual a improvisação não
é apenas um elemento, mas sim a sua mais importante característica. Essa música feita
no nosso país e que deriva do jazzpode ser chamada de “jazzbrasileiro” e não deve ser
confundida com o choro, como explica Paulo Sá:

“O jazz difundiu-se de forma tão maciça em diversos países, inclusive o Brasil, que
a palavra improviso no choro acabou por ser confundida com o tipo de conotação a ela
atribuída no contexto jazzístico. Não é raro ouvir por parte até de músicos que “o choro
é o jazz brasileiro”. Se fosse possível tal comparação, seria mais lógico afirmar que o
jazz é o choro norte-americano, já que o choro nasceu cerca de vinte anos antes do jazz
(este último teria surgido em New Orleans por volta de 1890, quando o choro surgiu
aproximadamente em 1870).” (Sá. 2000.p.67)

1.5 O Jazz norte-americano

Nos Estados Unidos surgiu uma música que iria fazer da improvisação não somente uma
parte dela, mas sim a sua essência. O jazz, uma música surgida também de uma fusão
de culturas, desenvolveu-se na América do Norte entre o final do século XIX e o início do
século XX. Tendo surgido inicialmente em Nova Orleans, espalhou-se por todas as regiões
dos Estados Unidos e, posteriormente, conquistou o mundo.

Dentre todas as formas musicais originadas nas Américas, o jazz é talvez a que mais
tenha se espalhado pelo mundo e o que mais caracteriza o jazz é justamente a impor-
tância nele dada à improvisação. Mark C. Gridley (2000) apresenta algumas observações
1.5. O JAZZ NORTE-AMERICANO 21

interessantes no seu livro “Jazz Styles – History and Analysis”:


“Muitos tipos diferentes de música são chamados de jazz. [...] A despeito desses proble-
mas, existem dois elementos que estão presentes em todos os estilos de jazz – improvisação
e suingue.” (Gridley. 2000. p.4)9
Ao contrário do que muitos pensam, no jazz não há um só nível de improvisação: o que
ocorre é uma improvisação coletiva dentro de idioma conhecido por todos os participantes.
Não só o solista do momento está improvisando, como também o acompanhamento é
improvisado, uma vez que os acordes são simplesmente cifrados, e servem para que o
pianista – ou qualquer outro instrumento harmônico – improvise os seus voicings 10 e os
seus padrões rítmicos, assim como a linha de baixo, que no jazz é chamada de walking
bass line 11 , também é improvisada. A bateria também não segue uma figura pré-definida,
podendo alternar os acentos e as partes do instrumento que podem ser tocadas livremente.
Em uma entrevista transcrita do livro Talking in Jazz, de Ben Sidran (1994), Winton
Marsalis comenta alguns aspectos dessa improvisação coletiva:
“ A música (jazz) é uma improvisação coletiva. Por exemplo, Bach improvisava, assim
como Beethoven. O que eles não faziam era improvisação coletiva, onde todos improvisam
ao mesmo tempo. Essa é uma concepção diferente onde você precisa da improvisação de
todos do grupo. Você precisa de músicos que sejam melhores que você, que tenham uma
visão. Se você não conta com músicos assim você está com problemas pois a primeira
coisa que todos devem entender é o seu papel. A bateria tem uma função, o baixo tem
uma função, o piano tem uma função, o solista tem uma função, seja ele um saxofonista
ou trompetista. Vejamos um grupo (de jazz) como um automóvel: a bateria é o motor, o
baixo as rodas, o piano o corpo e os sopros ou quem quer que esteja solando está no lugar
do motorista, dirigindo para onde quer ir.” (Sidran. 1994. p.345)12
9
“Many different kinds of music have been called ‘jazz.’ Despite these problems, there are two elements
that most jazz styles have in common – improvisation and jazz swing feel.”
10
Ver Glossário.
11
Ver Glossário.
12
“The music (jazz) is group improvisation. I mean, Bach could improvise. Beethoven could improvise.
But he couldn’t improvise with everybody improvising at the same time. That is another conception.
You need group improvisation. You need musicians who are better than you, who have a vision. If you
22 CAPÍTULO 1. IMPROVISAÇÃO: PARÂMETROS DE COMPREENSÃO

Além de trazer a improvisação para a posição de elemento fundamental de sua estru-


tura musical, o jazz criou alguns padrões que foram seguidos em outros estilos de música
como, por exemplo, a estruturação de uma seção rítmica composta de um contrabaixo,
um instrumento harmônico (preferencialmente o piano) e uma bateria13 . Essa forma-
ção acabou por se tornar a instrumentação clássica para o acompanhamento de cantores
ou solistas improvisadores no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde essa foi uma das
formações mais comuns da bossa nova.
Outra contribuição do jazz foi a utilização de vários instrumentos de sopro juntamente
com uma seção rítmica. Essa formação, também conhecida como big band, acabou por se
disseminar mundialmente, principalmente durante os anos quarenta e cinqüenta, criando
a trilha musical de um mundo pós-guerra.
Todavia, é a improvisação que vai marcar e definir mais profundamente o jazz, pois
em todos os seus estilos e épocas, ela estará sempre presente e sua disseminação fez da
improvisação jazzística uma prática musical encontrada em todas as partes do ocidente,
chegando, mais recentemente, a influenciar culturas orientais. Já podemos encontrar nos
dias de hoje vários grupos de jazz em lugares como Japão ou Coréia. Essa improvisação
possibilitou também o surgimento e o desenvolvimento de todo um vocabulário musical
melódico que se transforma com a mesma rapidez com que o jazz absorve novas tendências
e cria novas correntes. Esse trabalho busca entender tecnicamente algumas características
desse vocabulário quando relacionado à nossa música instrumental, ou nosso Brazilian
Jazz, como ela é conhecida ao redor do mundo.

can’t get musicians like that, you’re in trouble. The first thing that everyone has to understand is their
role. The drums have a function, the bass has a function, piano has a function, the soloist have a function,
whether it is a saxophone or a trumpet. Let’s look this a band like a car. The drums are the motor, the
bass the wheels, the piano the body. And the horn players, or whoever’s soloing, are in the driver’s seat,
guiding whatever it’s going to go.” (p.345)
13
A bateria moderna durante muito tempo chamou-se de jazz drum set pois foi no jazz que ela se
estruturou com a forma de bumbo (kick drum ou bass drum), tom-tons (tons) e pratos (hi hatts, ride
cymbal, etc) e caixa clara (snare drum).
Capítulo 2

Genealogia das Influências

2.1 Entrevistas – justificativa e metodologia1

Para se obter uma compreensão ampla do desenvolvimento da linguagem e do vocabulário


utilizado pelos improvisadores da nossa música instrumental é fundamental traçar uma
genealogia das principais influências encontradas no cenário musical. Todo improvisador
tem sempre, na sua formação, ícones artísticos e referenciais de linguagem. Na falta
de uma documentação satisfatória a respeito, a melhor – senão a única – ferramenta
encontrada foi a condução de entrevistas com alguns dos principais solistas improvisadores
da cena musical carioca. A escolha dos entrevistados foram fundamentadas a partir de
suas influências no cenário instrumental carioca como improvisadores ou músicos que
atuem primordialmente na área da música instrumental. Como saxofonista, foi natural
que o meu foco de interesse tenha recaído mais fortemente neste instrumento. Por essa
razão apenas, há mais entrevistas com saxofonistas. Porém, enriqueceu o trabalho incluir
algumas entrevistas com improvisadores de outros instrumentos, quando as atividades
artísticas e, em alguns casos, pedagógicas exercidas por eles se mostraram relevantes a
esse projeto.
1
As informações necessárias sobre as enterivistas como ano e mídia estão na parte destinada aos dados
técnicos sobre o capítulo de nome Entrevistas.

23
24 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

As entrevistas foram inicialmente gravadas e posteriormente transcritas para que fos-


sem editadas as informações relevantes à formação musical do entrevistado, assim como à
sua metodologia de estudo e, principalmente, às suas principais influências como impro-
visador.

2.1.1 Juarez Araújo2

A história musical de Juarez Araújo é um bom exemplo de como o músico brasileiro


busca informações e também de como se processa a formação do músico na ausência de
instituições de ensino. O talento e o interesse musical de Juarez se revelaram muito cedo,
como ele nos conta:

“Aos 5 ou 6 anos meu talento para música já era notado. Eu ficava fascinado ouvindo
as bandas de festa no interior de Pernambuco. Quando fui estudar no Colégio Salesiano,
inicialmente fui encaminhado para ser tipógrafo, pois na escola já éramos designados para
aprender um ofício desde cedo. Após 1 ano estudando nesta escola meu pai faleceu e a
situação ficou muito difícil, pois éramos muito pobres, e fiquei ameaçado de ter que deixar
a escola. Foi quando tive contato com a banda de música pois ficava sempre assistindo
os ensaios e o maestro, notando meu interesse, me perguntou se eu gostaria de participar
do grupo. O maestro me indicou o trompete, um instrumento ao qual eu não me adaptei.
Ofereceu-me então o clarinete, pois apreciava muito a minha musicalidade, e me apaixonei
de imediato pelo instrumento. Pelo fato de o maestro ser trompetista, fui encaminhado
para ter aulas com outro aluno que estava estudando clarinete a algum tempo. Após 4 ou
5 meses de aula eu já havia passado o meu professor devido à minha dedicação. Por isso
me considero praticamente um autodidata pois aprendi a escala cromática do instrumento
devido a minha própria curiosidade.”

Como não havia professores disponíveis, Juarez teve que “descobrir” a digitação da
escala cromática sozinho. Mais tarde, quando a música o levou a uma outra cidade, ele
2
Juarez Araujo (1930-2003)
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 25

encontrou o seu primeiro grande mestre:

“. . . e quando me mudei para outra cidade chamada Araguari, tive a felicidade de


conhecer o maestro Guerra Peixe3 que me viu tocar em uma orquestra muito boa que lá
havia. Fazia sempre muitas perguntas a ele sobre música e ele, ao ver meu interesse, se
ofereceu para me dar aulas. Naquela época eu já tirava muita coisa de ouvido dos discos
e, ao mesmo tempo, tinha uma leitura muito boa devido à minha experiência em bandas.
Tinha grande facilidade para tirar frases de ouvido pois possuía, como me dizia o próprio
Guerra Peixe, “ouvido absoluto”. Comecei então a freqüentar sua casa nos fins de semana
e foi onde aprendi as minhas primeiras noções de harmonia. Descobri que coisas que eu
tocava estavam fora das “regras” e fui então me aprimorando.”

Foi pela via da tradição oral, aqui na presença do maestro Guerra Peixe, que Juarez
começou a entender os princípios básicos da harmonia, podendo assim aproveitar, de forma
mais consciente, de suas habilidades musicais. Neste período, outra grande influência de
Juarez se processou no seu próprio trabalho, pois sua principal área de atuação eram os
grupos maiores, mais próximos das big bands, que ele chama de orquestras4 . Esse contato
com a música americana foi, segundo ele mesmo, fundamental:

“Muitas orquestras do sul do país costumavam se apresentar no nordeste e, em uma


ocasião, chegamos a tocar lado a lado com a orquestra de Tommy Dorsey. Nós tocávamos
muitos frevos e sambas e eles tocavam aquelas músicas americanas. E os músicos eram
fabulosos. Acredito que foi através de uma influência dos músicos americanos que eu
ouvia e de outros músicos locais, como o Guerra Peixe, que eu fui desenvolvendo meu
estilo de tocar.”

O jazz o aproxima do instrumento que o consagrou, o saxofone tenor, por influência


principalmente de Coleman Hawkins5 :
3
Guerra Peixe (1914-1993)
4
É importante não confundirmos as duas situações quando Juarez fala de orquestras, pois ele não foi
um músico de orquestra sinfônica, mas sim de grupos maiores de atuação popular, como bandas de frevo,
big bands, bandas de baile, etc.
5
Coleman Hawkins (1904-1969)
26 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

“Nesta época eu era mais clarinetista, ou melhor, mais requintista do que saxofonista.
Tocava em várias gafieiras e fui pegando muita prática tocando na noite e já improvisava
bastante nesta fase. Tocava muita coisa errado mas ia acertando com o passar do tempo.
Meu primeiro contato com o sax foi com o sax alto mas, através da influência de C.
Hawkins, optei pelo tenor.”

Outro ponto relevante que Juarez menciona são as transcrições de solos:

“Quando tocávamos arranjos americanos conhecidos eu tocava igualzinho ao disco. Na


verdade, nem sabia que aquilo era um improviso, eu tirava do disco e repetia ao vivo.
Só depois, estudando, é que fui entendendo o que se passava. Mais tarde, eu transcrevia
tudo que podia do Coleman Hawkins, o meu músico favorito até então. Como já disse
tinha muita facilidade para ouvir e rapidamente tocar as frases ouvidas. Aplicava também
alguma coisa dos ensinamentos de Guerra Peixe. Depois conheci Moacir Santos e ele me
mostrava coisas no piano. Ele me ensinou mais algumas coisas de harmonia e de como
tirar mais proveito do meu ouvido absoluto.”

Juarez, então morando em São Paulo, se mudou para o Rio de Janeiro:

“Osvaldo Borba foi para S. Paulo e me convidou para ir para o Rio em 58/59, onde
comecei a trabalhar também como músico de estúdio. Ele era dono da TV Rio. Lá
tínhamos uma excelente orquestra e eu era sempre requisitado como improvisador pois,
apesar do meu pouco conhecimento teórico, meus colegas sempre gostavam das “coisas
diferentes” que eu fazia: eu pegava alguns elementos do frevo que fizeram parte da minha
formação e aplicava nos solos, e isto fazia uma diferença.”

No Rio, Juarez travou contato com um movimento musical que viria a ter um enorme
impacto na música brasileira, a bossa nova:

“No Rio já começava a ter influência da Bossa Nova, onde já se desenvolvia o solo
sobre o tema. Mas eu não pensava muito sobre isso e continuava a fazer do meu jeito os
meus solos. Freqüentava muito o Beco das Garrafas, o Plaza, e comecei a ouvir nomes
como Sonny Stitt, Thelonious Monk, Coltrane, George Coleman, Miles Davis, Stan Getz
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 27

etc. Entre os brasileiros, eu gostava muito do Zé Bodega.6 ”

Durante a década de sessenta, Juarez foi para a Europa, onde teve a oportunidade de
tocar principalmente em grupos menores e de conviver com grandes músicos de jazz. Essa
experiência foi muito importante para ele:

“Eu tive a sorte de ser convidado para ir a Europa onde fiquei por 2 anos em Munique.
E lá fiz uma substituição para um grande saxofonista local chamado Tommy em uma das
casas mais badaladas de jazz da cidade. Neste lugar já haviam tocado nomes como John
Coltrane, Maynard Fergusson, Freddy Hubbard etc.”

Por fim, Juarez reflete sobre a importância da improvisação para músicos instrumen-
tistas como ele:

“É onde o músico pode mostrar sua capacidade de saber um tema a fundo e aplicar
conhecimentos de composição, contraponto etc, além de saber ouvir os instrumentos que
estão te acompanhando, piano, baixo e outros, para poder se comunicar com eles. O jazz
foi sem dúvida uma grande inspiração para mim, É ótimo ter podido ouvir músicos como
C. Hawkins, Coltrane, S. Stitt e ter tido a oportunidade de ter conhecido alguns deles
pessoalmente e ver que são pessoas simples como nós, além de ter podido trocar algumas
idéias e mostrar coisas da música brasileira para eles também.”

2.1.2 Nivaldo Ornellas7

O saxofonista mineiro Nivaldo Ornellas é um dos mais importantes músicos do movimento


musical originário de Belo Horizonte que ficou conhecido nacionalmente como Clube da
6
Zé Bodega (1923-2003) – José de Araújo Oliveira foi importante saxofonista que faleceu recente-
mente. Era Irmão de Severino Araújo e foi um dos destaques da Orquestra Tabajara por muitos anos.
Infellizmente, é muito difícil achar algum registro seu como improvisador. Críticos citam o album “Um
sax no samba", lançado pela antiga Continental - cujo acervo pertenceà Warner. Neste LP, o tenorista
se fazia acompanhar pela Orquestra de Severino Araújo, seu irmão, na verdade uma versão ampliada da
Tabajara.. No cardápio, composições como "Água de beber", de Tom Jobim". Infelizmente abandonou
o saxofone nos anos oitenta, após ser ovacionado em São Paulo. Achando que ia morrer do coração,
na volta ao Rio vendeu o saxofone e deixou de vez a música. (fonte: Tribuna da Imprensa Online -
http://www.tribunadaimprensa.com.br/anteriores/2003/outubro/10/bis.asp?bis=cultura0 - in-
fomação obtida em 20 de fevereiro de 2004)
7
Nivaldo Ornellas (1941- )
28 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

Esquina 8 . Músico com carreira sólida, atuou como solista e improvisador em grupos
instrumentais como o Som Imaginário 9 e Academia de Danças 10 , além de ter se destacado
nos grupos de Hermeto Paschoal, Wagner Tiso, Flora Purim, Milton Nascimento e muitos
outros durante sua carreira. Vindo de uma família muito musical, Nivaldo usufruiu do
projeto de educação musical de Heitor Villa Lobos:

“Meus pais são músicos amadores, eles têm um grupo de choro onde minha mãe é can-
tora e meu pai toca violão de sete. Com nove para 10 anos, meus pais ficavam admirando
meu talento musical, e também o de todos os meus irmãos. Meu irmão toca violoncelo
em Belo Horizonte e minha irmã toca acordeom. Enfim, a família toda é musical. Então,
com 10 anos eu já estava na escola de musica e meu grande sonho era tocar acordeom.
Dessa escola surgiu o pai do Marcos Vianna, que faz trilha para novelas da Globo, o pai
dele era assistente do Villa Lobos aqui no Rio. E ele era diretor desta escola lá em Belo
Horizonte, que fazia parte do projeto do Villa Lobos. E a gente recebia um salário mínimo
para estudar nestas escolas, como ajuda de custo. Então eu tive uma formação sólida de
musica, teoria, solfejo, ditado, história da música.”

Na escola de música os alunos deviam escolher os instrumentos e Nivaldo acabou


O livro Os Sonhos não Envelhecem, do letrista Marcio Borges, conta a história do Clube da Esquina,
8

movimento musical mineiro surgido na década de sessenta que revelou alguns dos mais importantes
músicos deste estado que apareceram nas décadas de sessenta e setenta. O artista mais conhecido é o
cantor e compositor Milton Nascimento, mas faziam parte desse cenário também os guitarrista Toninho
Horta e Chiquito Braga, os tecladistas Wagner Tiso e Helvius Villela, os bateristas Paulinho Braga e
Pascoal Meirelles, além dos cantores e compositores Lô Borges e Beto Guedes, e os letristas Fernando
Brand e Marcio Borges, além de muitos outros. Esse movimento deu nome a dois discos de Milton, o
Clube da Esquina e o Clube da Esquina II. Esses músicos recriaram a música popular mineira juntando
além de elementos regionais, influíencias do jazz, da bossa nova e até do rock. Projetou esses músicos
nacionalmente e depois que vários deles mudaram para cidades maiores como o Rio de Janeiro e São
Paulo, acabou por incorporar músicos desses outros centros que, por afinidade, acabaram por fazer parte
do Clube, como o baterista Robertinho Silva, o baixista Luis Alvez, e tecladista e compositor Zé Rodrix,
etc.
9
Originalmente formado para aompanhar o cantor Milton Nascimento durante a década de 70, o
grupo durante a sua existência contou também com os bateristas Robertinho Silva e Paulinho Braga, os
guitarristas Fredera, Tavito e Toninho Horta, os baixistas Luiz Alvez e Jamil Joanes, além de Nivaldo
Ornellas e o então flautista Danilo Caymmi. Pela criatividade e alto nível de seus músicos o grupo acabou
por fazer uma carreira paralela a sua função de acompanhar Milton, chegando a lançar discos e fazer
apresentanções memoráveis.
10
Egberto Gismonti se apresentou durante praticamente toda a década de 70 com o nome de Egberto
Gismonti e Academia de Danças que foi título de um disco seu lançado em 1974. Desse grupo fizeram
parte além de Nivaldo Ornellas, o flautista e saxofonista Mauro Senise, os bateristas Robertinho Silva e
Nenê e os baixistas Luiz Alvez e Zeca Assumpção.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 29

estudando clarinete, como ele mesmo diz, “meio a contragosto a princípio”, e teve um
progresso exemplar nesse instrumento: desde essa época ele já começava a tentar criar
algumas melodias, que não eram muito bem recebidas pelos professores:

“Nós tínhamos que escolher entre um instrumento de corda ou de sopro, e eu escolhi


o clarinete, meio a contragosto pois eu o achava meio chato. Mas ai escutei um disco do
Benny Goodman tocando o concerto de Mozart para clarinete e tomei gosto pela coisa. Aos
16 anos já estava tocando direitinho. Mas ao mesmo tempo eu já gostava de improvisar
e os professores lá achavam aquilo meio ruim, enquanto eu achava aquilo tudo muito
engraçado. Nos ensaios eu dava umas improvisadas e os professores ficavam me cortando,
mas fiquei com aquilo na cabeça.”

O saxofone apareceu para Nivaldo também no princípio, também a contragosto:

“Eu conheci o Helvius Villela, que tocava no grupo do Célio Balona, pelo qual passavam
vários músicos, em uma época na qual o Milton Nascimento era o cantor, e o Wagner
(Tiso) o pianista. Era um conjunto muito bom, existe até hoje. Um dia eles falaram que
queriam trompete e tenor, era aquele som de baile. E eu tava em outra, não gostava de
sax tenor, eu queria música erudita improvisada, aquele som eu adorava. Tinha o Artie
Shaw também que eu adorava. O Buddy de Franco, eles tocavam música erudita e o que
eu queria era aquilo. Realmente não gostava de sax tenor. Além disso, a desinformação
era muito grande naquela época, para conseguir um disco era uma dificuldade. O Helvius
queria que eu tocasse tenor pra ficar igual ao Moacyr Silva e eu não queria de jeito
nenhum. Foi quando o Balona me levou na casa dele e me deu um disco do Stan Getz
– eu falei, opa esse é o cara! Gosto dele até hoje. Foi aí que me animei a tocar sax, eu
ficava com aquele disco pra baixo e pra cima.”

Para Nivaldo, como para tantos outros jovens, o saxofone acabou sendo a porta de
entrada para o mundo do jazz:

“Eu ainda não tinha o sax. Eu tocava então clarineta em uma orquestra sinfônica
jovem, onde eu era o primeiro clarinete com 18 anos. Só depois eu fui conseguir um sax
30 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

e pude começar a estudar. Para quem toca clarinete, o começo fica mais fácil pois já sai
som, e a mão já anda um pouco. Eu falei isso aqui é “mole para mim”. Mais tarde que
eu vi que a coisa não era tão simples assim. Um dia eu fui na casa de um cara chamado
Bolão, que era uma das pessoas mais inteligentes que eu conhecia, e ele me mostrou um
disco do Sonny Rollins e outro do (John) Coltrane. Era um disco do (Thelonius) Monk
e do Coltrane. Eu ouvia aquele som e achava que aquilo não era saxofone, aquele som
grandão, sem vibrato. E era exatamente aquele som que eu queria, que era o som que eu
tinha no clarinete. Em seguida ganhei outro disco do Art Blakey com o Johny Griffin,
que quebrava tudo. Depois outro disco do Charlie Mingus. Bom, depois de ter ouvido isto
tudo eu me dei conta de que eu não tocava nada, que precisava estudar harmonia.”

Mas o estudo de harmonia funcional nos parâmetros jazzísticos não fazia parte do
currículo das escolas de música e se revelou um tremendo desafio para o jovem que queria
improvisar:

“Eu perguntava para as pessoas e elas me diziam que estava bom o que estava tocando,
mas eu sabia que não estava. Eu achava que elas estavam escondendo o jogo e ficava
revoltado. Só anos mais tarde descobri que não era por causa disso, eram eles que também
não sabiam coisa nenhuma. Depois disso conheci um cara chamado Marilton, que era
bom de harmonia e tratei de colar nele. Comecei pelas musicas dos Beatles, que aprendi
todas, eram coisas mais simples e naquela época tinha muito Beatles rolando. Ai comecei
a conviver com o Chiquito Braga e eu ficava horas vendo ele tocar, depois conversava
com ele sobre improvisação. E me dei conta que era impossível improvisar sem saber
harmonia.”

Nivaldo conta uma interessante prática musical que experimentou nesse período:

“Outras pessoas importantes para mim foram o Valtinho, o Toninho Horta11 , que já
fazia umas coisas muito legais, e o Milton (Nascimento), que tocava bem também, e eu
tratei de ficar colado nestes caras. Então comecei a botar em prática. O Valtinho reunia
11
Toninho Horta (1948-) – guitarrista, violonista e compositor mineiro dos mais influentes na música
brasileira.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 31

a garotada, fazia uma roda, botava o Milton no meio fazendo harmonia e agente ficava
improvisando de boca. Cada um improvisava um chorus12 . Pegava uma musica fácil,
explicava a forma A A B e ficávamos horas fazendo isso, ele tocava uns 200 chorus. Com
isso todos nós evoluímos muito.”
Essa fascinação com o improviso levou essa turma a criar um clube de jazz em Belo
Horizonte:
“Resolvemos então fazer um clube de jazz em Belo Horizonte – eu, Helvius (Vilella),
Paschoal (Meirelles), Paulinho Horta (irmão do Toninho) no baixo, Chiquito, Valtinho.
Era na verdade mais um boteco. Colocamos umas fotos na parede, uma do Coltrane, uma
do Modern Jazz Quartet, e uma do Jorge Ben, que era o grande lance do Brasil nesta
época. Ele cantava com o Sergio Mendes, que tinha um grande quinteto, no final dos anos
sessenta. E o Jorge Ben foi em BH com o Meireles e o Copa 5 cantando Chove Chuva,
era uma revolução.”
Um festival que aconteceu nesse período fez o jovem Nivaldo querer sair de Belo
Horizonte e vir para o Rio de Janeiro:
“Aconteceu em Belo Horizonte um festival onde foram o quinteto do Sérgio Mendes com
o Aurino (saxofonista) e o Maciel (trombonista). Tocaram também o Barra Quatro com
o Raul de Souza (trombonista), Tenório Junior (pianista), Edson Machado (baterista) e
Zé Bicão (baixista) e o Copa Trio, com o Dom Um Romão (baterista), um cara chamado
Gusmão, e a Flora (Purim) cantando. Ai todo mundo pirou, a gente tinha que ir para
o Rio, Belo Horizonte estava por fora. Neste festival eu ganhei uma medalha do Bebeto
(baixista do Tamba Trio).”
Nivaldo iniciou uma nova fase, em que começou a estudar inglês e a ouvir muito Miles
Davis, principalmente os saxofonistas que faziam parte dos discos de Miles, como George
Coleman, Wayne Shorter e seu preferido, John Coltrane. Uma apresentação de Elvin
Jones, que havia sido o baterista do famoso quarteto de John Coltrane, representou para
Nivaldo a possibilidade de ter uma lição com o saxofonista do grupo de Elvin Jones, Frank
12
Ver Glossário
32 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

Foster:

“Um dia apareceu uma notícia que e o Elton John ia fazer um show em Belo Horizonte.
Na verdade não era ele não, era o quarteto do baterista Elvin Jones, e isso bem depois
dele tocar com o Coltrane, já em 1970. Com ele veio o saxofonista Frank Foster, que
som! Dois saxofones, pela primeira vez na vida eu via um som ao vivo assim pra valer.
Então eu fui lá no hotel e falei para ele que queria tocar daquele jeito e nós fomos para
um parque onde ele falou pra eu tocar e eu quando eu toquei, ele me perguntou se eu
tinha dor nas costas e eu respondi que tinha muito. Então ele me falou que eu não estava
respirando direito. Viu a boquilha, a palheta, e estava tudo errado. Ele me ensinou um
exercício de soprar numa vela acesa sem apagar. Eu passei a fazer isso por horas e foi a
partir daí que meu som engordou legal.”

Outro momento marcante foi seu encontro com Victor Assis Brasil:

“O Vitor (Assis Brasil) era um gênio, com vinte anos ele já tocava bem. Uma vez
viemos ao Rio ver um jogo Brasil e Argentina e aproveitei para ver um show do Vitor no
teatro Casa Grande. Foi a primeira vez que vi ele tocar. Ele ainda estava começando,
mas a carreira dele ascendeu muito rápido e, quando ele foi a Belo Horizonte, já era um
sucesso. Falaram pra ele que tinha um garoto lá em Belo Horizonte que tocava bem, e
este garoto era eu – que já nem era tão garoto assim – mas a fama correu rápido, e ele
me chamou para uma canja. Eu mandei ver e então ele me chamou pra tocar com eles
em Ouro Preto também.”

Antes de vir para o Rio de Janeiro pela primeira vez, Nivaldo montou um grupo
chamado Quarteto Contemporâneo, junto com Paulinho Braga, onde exercitou um pouco
do que se chamava free jazz, estilo no qual os músico podem improvisar sem a necessidade
de apresentar um tema antes ou de designar uma progressão harmônica sobre a qual os
solos se desenvolverão.

Ao chegar ao Rio de Janeiro Nivaldo encontrou uma cena musical forte e achou o nível
dos saxofonistas muito alto:
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 33

“Quando eu cheguei no Rio é que eu vi que os caras estavam tocando muito mais.
Tinha o Oberdan (Magalhães), que tinha um somzaço, o Luiz Bezerra, que tocava na
orquestra do Severino (Araújo) e também tinha um somzaço. Sem falar no Zé Bodega e
no Juarez Araújo. O Juarez fazia uns improvisos em choros que eram demais. Quando o
George Coleman esteve aqui ficou impressionado com o Juarez. E ainda tinha o Aurino
e o Meireles que não faziam parte deste time. Em suma, o nível era muito alto e eu
descobri de novo que eu não tocava nada. Entrei para uma banda jovem que Paulo
Moura montou e os saxofonistas eram o Ricardo Pontes, o Macaé, o Oberdan e eu. A
banda tinha também o (pianista) Osmar Milito, os trompetistas Marcio Montarroyos e
Cláudio Roditi. A banda era boa, mas eu resolvi tirar um ano só pra estudar. A ficha
tinha caído e voltei para casa do meu pai. Tocava só numa banda de baile para ganhar
um troquinho e fiquei praticamente só me dedicando a estudar.”

A passagem do grupo do pianista de jazz americano Horace Silver por Minas Gerais
criou, para Nivaldo, a oportunidade de conhecer e ter uma segunda aula com o então
jovem saxofonista americano Michael Brecker, que lhe mostrou novos acessórios como
boquilhas e palhetas:

“Apareceu o Michael Brecker tocando com o Horace Silver e foi outro choque. Foi o
primeiro cara que me deu uma palheta LaVoz. Ele era muito invocado, não que estivesse
tirando onda não, mas era muito sistemático, e eu pensava: qual é a desse cara? Ele
mandou ver, tocou pra caramba, era um outro lance. Ai eu falei: ta ruim pra mim! Então
fui lá falar com ele, e ele me mostrou as boquilhas que usava, que eram uma Duckoff D6
e uma Duckoff M7. A palheta dele era nº 3 e eu na época tocava com uma nº 1 ou 2. Ele
me mostrou que elas eram muito moles e meus agudos eram ruins.”

Após esse período de estudo em Minas, Nivaldo retornou ao Rio de Janeiro, tocando
muito melhor, mas foi em São Paulo que ele teve um grande impulso na carreira, quando
conheceu Hermeto Paschoal:

“Depois deste ano eu voltei para o Rio e já estava tocando bem melhor. Em 1973,
34 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

fui para São Paulo junto com o Paulinho Braga. O Ion Muniz (saxofonista) também
foi conosco. Lá eu conheci outros músicos, principalmente o Hermeto (Paschoal). Em
São Paulo tinha um saxofonista chamado Nestico que tocava com o Roberto Carlos e era
muito bom, mas era só ele que me impressionava porque o resto eu não gostava muito
não. Achava o pessoal lá meio brega, sei lá,. O Hermeto falou isto comigo, ele ia gravar
um disco com a Flora (Purim) nos Estados Unidos e quando voltasse ele queria montar
uma banda, mas não queria os músicos de lá não. Ele queria saber de onde eu era e onde
eu tinha aprendido a improvisar. Quando ele voltou nós formamos a banda e foi assim
que eu toquei na primeira banda do Hermeto. Nesta época tinha um baile no Canecão
aqui no Rio toda segunda-feira e me chamaram pra fazer parte do grupo. Ia rolar uma
grana legal, mas eu preferi ficar com o Hermeto em São Paulo. Eu pagava um preço alto
por só querer tocar em trabalhos que me levavam pra frente e por isso eu vivia duro. Os
três saxofonistas do Hermeto eram eu, o Hamleto e o Mazinho. Eu me diferenciava por
improvisar sabendo o que eu estava fazendo harmonicamente, e o Hermeto me valorizava
muito por isso. A banda era um sucesso em todo Brasil, mas todos nós ficamos em São
Paulo. Nessa época o Paulinho Braga estava com a Elis e eu com o Hermeto. Nossos
amigos em Minas estavam morrendo de inveja.”

A partir desse momento iniciou-se a carreira de um dos mais importantes saxofonistas


da música brasileira. Há solos históricos de Nivaldo, como os que ele fez no disco Minas,
Milagre dos Peixes e Milagres dos Peixes ao Vivo com Milton Nascimento, o disco Hermeto
Paschoal ao Vivo em Montreux e o disco Wagner Tiso ao Vivo em Montreux. Muito
interessado também em música erudita, Nivaldo se destacou durante décadas por buscar
um desenvolvimento musical e experimentar sempre. Ter tido a possibilidade de trabalhar
com artistas que não temiam a criatividade foi um fator determinante na sua formação:

“Em 1975, quando eu estava no Rio, tocava com o Egberto Gismonti. A banda era eu,
o Robertinho Silva e o Luiz Alves e nós tínhamos espaço para criar. Uma vez em um show
em Porto Alegre os membros da banda Genesis estavam na primeira fila nos assistindo e
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 35

o Egberto saiu para tomar um comprimido para dor de cabeça e nós ficamos fazendo um
clima no palco e quando ele voltou ele ficou curtindo o som da coxia e não entrou. Que
cara que faz isso hoje em dia sendo o dono do show? Com o Hermeto era a mesma coisa,
rolavam uns climas e a gente quebrava o pau! Aliás, com o Hermeto foi que eu vi um cara
improvisador de verdade. Ele não conhecia nada, eu botava Coltrane pra ele ouvir e ele
perguntava, quem era esse cara, legal a música desse cara. Eu já estava estudando Giant
Steps.”

Suas principais influências foram John Coltrane e Stan Getz no saxofone tenor. No
saxofone soprano, instrumento no qual Nivaldo é um dos pioneiros na música brasileira e
um dos mais significativos mestres, ele cita o saxofonista Wayne Shorter. Como também
é um exímio flautista, Nivaldo lembra do músico Joe Farrel como uma de suas principais
influências, uma vez que Farrel é um dos poucos músicos de jazz americanos a ter muita
desenvoltura na flauta, além dos saxofones tenor e soprano.

Ao refletir sobre a importância da improvisação, Nivaldo diz simplesmente:

“A improvisação para mim é tudo, é a própria liberdade (. . . )No campo da música


isto significa para mim que em um futuro próximo o negócio vai ser sair tocando mesmo,
quase que uma coisa de telepatia, telesonia, sei lá. Tudo e todos improvisando. Os caras
eruditos já faziam isso, sabia? Bach, Mozart. Eles faziam apresentações tipo: hoje aqui
Mozart, traga o seu tema. Então você levava um tema de oito compassos e falava pro
cara improvisar em cima. Então o negocio é sair tocando. Eu tive um professor de
composição, o Arthur Bosman, na verdade eu gostava mesmo era de ver ele tocar, ele não
gostava muito de jazz e eu falava pra ele que o que ele fazia era jazz. Talvez você não goste
daquele negócio de blue note americano, aquilo tem hora que é chato mesmo, como samba,
tem samba que é legal e tem samba que é chato. E ele saia tocando mesmo, e eu perguntava
o que ele estava fazendo e ele me falava que estava só divagando! Tipo o (pianista) Keith
Jarrett. Pra mim isso é que é jazz, improvisação verdadeira. Porque existe a variação
onde você estuda os modos e a harmonia e depois improvisa em cima. No choro, por
36 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

exemplo, não houve uma motivação para evoluir, a coisa ficou estagnada. Pixinguinha era
um gênio, mas ficou naquilo ali. Nós, os músicos brasileiros, não nos sentimos tentados
a dar continuidade, ninguém fez nada, vai ser preciso começar de novo.”

Ao contrário do que dizem vários artistas, Nivaldo defende a cidade do Rio de Janeiro
com a capital cultural do país e critica o que seria o excesso de informação que pode
empobrecer os conceitos artísticos:

“Em relação à época em que eu comecei o grande lance era aqui no Rio mesmo, sempre
foi. Por incrível que pareça, com tudo de ruim que aconteceu e acontece ainda, o Rio
ainda é a capital cultural deste país, pelo menos é o que eu acho. Foi aqui que eu achei as
respostas. Neste meio tempo participei de um movimento que nós não sabíamos que era
um movimento, pois era uma coisa sem pretensão. O próprio lance do Clube da Esquina
acabou acontecendo aqui, e aqui no Rio foi que aconteceu o boom da musica instrumental
brasileira. Sempre aconteceu muita coisa boa aqui. Eu acho que a Bossa Nova foi o
maior movimento de música surgido no mundo nos últimos tempos, influenciou o mundo
inteiro. Eu estou atualmente comprando os CDs do: Edson Machado e o samba novo,
Meireles e os Copa Cinco, Sergio Mendes, Os Cobras. (. . . ). Este movimento pré-Bossa
Nova foi bom demais. E a nossa turma quando chegou começou a fazer uma música mais
conceitual, isto realmente começou aqui. Porque o momento era propicio para isso. O
Brasil do ponto de vista da educação ainda era um país educado (. . . ). Hoje, de uma
maneira geral, a coisa evoluiu muito do ponto de vista tecnológico: qualquer músico hoje
tem tudo em casa, tem os MP3, os vídeos ao vivo. No nosso tempo não tínhamos nada.
Hoje, do ponto de vista técnico, qualquer garoto toca bem, toca mesmo. Agora, o conceito
eu não sei se evoluiu. Não vou dizer que estacionou, as coisas sempre andam pra frente,
mas eu acho que vai vir um movimento disto tudo ainda.”

2.1.3 Marcelo Martins13


13
Marcelo Martins (1969- )
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 37

Flautista e saxofonista de Niterói14 , Marcelo Martins é muito atuante tanto na música


instrumental tanto da sua cidade natal como na cidade do Rio de Janeiro. É também
um músico muito presente no mercado da música comercial produzida no Rio. Possui cré-
ditos de participação com músicos como o baixista Arthur Maia15 , o trompetista Marcio
Montarroyos, e os cantores Djavan16 e Gal Costa17 , entre muitos outros. Como vários mú-
sicos brasileiros, Marcelo começou os seus estudos com uma mistura de aulas particulares,
banda de escola e muita curiosidade:
“O meu início foi em banda de colégio [. . . ]Paralelo a isso eu estudava em aulas par-
ticulares e fazia teoria musical no conservatório de música do Estado do Rio em Niterói.
Fazia aulas de saxofone particular com o Renato Franco, que foi o cara que começou a me
ensinar. Mas na verdade considero a minha formação muito autodidata pois, apesar de
todas as aulas, sempre ouvi muito e procurei tirar muita coisa [. . . ] Mais tarde eu estudei
harmonia com o Sérgio Benevenuto que havia estudado na Berklee.”
Anos depois, quando Marcelo já era um músico de sopro de atuação profissional desta-
cada, o interesse pela improvisação o levaria aos Estados Unidos em duas oportunidades.
Na primeira vez foi para Los Angeles e passou um mês tendo aulas particulares com o
saxofonista Bob Sheppard. Algum tempo depois voltaria à América, dessa vez indo para
Nova Iorque, onde teve aulas com vários músicos da cidade:
“Em 1994, depois de eu já estar trabalhando, fui para fora do Brasil e tive umas aulas
de sax com o Bob Sheppard que foram mais representativas na teoria do instrumento do
que na parte de improvisação, mas me abriu a cabeça para algumas coisas. Mais tarde,
em 96/97, viajei de novo e passei duas semanas em NY e duas semanas em Boston,
pude fazer aulas avulsas que serviram para eu dar uma medida se estava indo no caminho
certo. Os professores foram George Garzone, Hal Crook18 , Rick Margitza – que foi a aula
14
Antiga capital do estado do Rio de Janeiro, devido à proximidade da cidade do Rio de Janeiro
os músicos nascidos, criados ou residentes em Niterói são totalmente inseridos no cenário musical dessa
cidade.
15
Arthur Maia (1962- )
16
Djavan (1950- )
17
Gal Costa (1946- )
18
George Garzone e Hal Crook foram os principais professores de improvisação do autor quando aluno
38 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

que mais gostei –, e com o Donny McAslin...Todas as aulas foram legais mas não me
apresentaram muita coisa nova, teoricamente falando. A aula com o Garzone foi mais
estranha, pois ele me passou uma coisa muito solta e eu precisava um tempo maior com
ele para entender o que ele tinha pra ensinar. Com o Hal Crook foi bom, pois me mostrou
que eu estava na direção certa.”

Para o improvisador é muito importante aprender com os outros solistas e Marcelo


comenta que quando ele estava começando a improvisar até o acesso a métodos e discos
era restrito:

“(No começo) eu ouvia muita coisa e tirava tudo que eu gostava. Hoje em dia é muito
mais fácil conseguir os discos novos que acabaram de sair, até pela internet. Naquela
época (segunda metade dos anos 80) não, e a gente absorvia mais aquilo que conseguia e
por isso eu ouvia muito mais as mesmas coisas. A partir disso eu decorava alguns solos
mas nunca fui um cara muito metódico, por isso deixava de escrever esses solos e assim
perdia muita coisa. Mas mesmo assim eu absorvia muita coisa como o senso melódico,
não de uma forma muito racional, mas de uma maneira meio intuitiva.”

Como quase todos os saxofonistas do Brasil, Marcelo foi muito influenciado pelos
grandes saxofonistas do jazz:

“É até meio complicado responder isso (a respeito de influências) mas um cara que eu
realmente ouvia muito, incansavelmente numa época, foi o Michael Brecker. Não cheguei
a tirar muitas coisas dele pois são muito complicadas, mas cheguei a estudar alguns solos
a partir de transcrições do disco Three Quartets19 . Ouvia muito Parker, mas isso ainda

antes de eu tocar sax. Depois ouvi mais o Cannonbal Adderley, da época em que ele tocou
com o Miles Davis. Joe Farrel foi outro que eu ouvi bastante também. E o John Coltrane,
não que ele tenha me influenciado de uma maneira primordial, eu só vim a ouvir ele mais
tarde pois o Coltrane já era mais difícil de ouvir e entender.”

Alguns saxofonistas brasileiros tiveram alguma influência no estilo de Marcelo Martins:


da Berklee College of Music.
19
Disco do pianista Chick Corea com muito destaque do saxofonista Michael Brecker.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 39

“Eu ouvia o Nivaldo Ornellas, o Cacau quando ele ainda morava aqui e tocava com o
Hermeto, e eu gostava muito do Hermeto e ouvia muito a música dele. O Mauro Senise
o Raul Mascarenhas também eram muito presentes.”

Todavia, Marcelo acredita que as suas maiores influências são mesmo os jazzistas:

“Minhas grandes influências foram mesmo os músicos americanos de jazz como, além
dos que já falei, o Bob Mintzer e da nova geração, o Chris Potter e o Joshua Redman.
Sempre um pouco de todos.”

Como um dos músicos mais requisitado nos estúdios e nas produções de música co-
mercial, essa experiência acabou por influenciar também o estilo de Marcelo Martins:

“Várias (pessoas com quem toquei) me influenciaram, mas o Arthur Maia foi um cara
que me influenciou muito porque ele tem muita influência da música Soul, uma vertente
da música negra americana, e é uma coisa que está incorporada nele quando ele canta
e toca as melodias, como desde muito novo eu comecei a tocar com ele, aprendi muito
dessa linguagem. Eu tocava sax alto e sentia que a maneira como eu tocava, como eu
inflexionava o instrumento, não era condizente com o contexto, então isso me incomodava
muito e ai eu procurava tocar com aquele feeling, aquele sotaque e inflexão e isso realmente
me influenciou muito. Outro cara que me influenciou de uma certa maneira na música
pop foi o guitarrista Torquato Mariano. Engraçado que as minhas influências na música
pop não foram de saxofonistas e sim de outros instrumentos, no caso baixo e guitarra. O
Djavan também foi importante de uma maneira rítmica e melódica pois eu fiquei muito
tempo bebendo naquela fonte.”

Por fim Marcelo Martins reflete sobre a importância da improvisação para ele como
instrumentista:

“Para mim a improvisação é fundamental. É uma das coisas que eu mais gosto de
fazer, de estudar e de correr atrás pra alcançar um nível legal. Isso me traz muita satisfa-
ção. E mais, que tanto no mercado da música pop quanto no jazz a improvisação é muito
útil. Se você domina a improvisação você tem domínio maior para construir solos em
40 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

contextos diversos (. . . )A improvisação sempre me ajudou em todos os trabalhos que eu


fiz. E ainda tem a parte criativa onde você esta sempre estimulado para composição e ar-
ranjos, pois lidamos com melodias em cima de harmonias, então isso amplia o repertório
melódico e na hora que é preciso fazer um arranjo você recorre a este repertório melódico
que você tem na cabeça. Quer dizer, a improvisação ajuda em todos os sentidos.”

2.1.4 Eduardo Neves20

Um dos instrumentistas mais originais de uma nova geração de músicos que apareceu no
cenário a partir da década de noventa, Eduardo Neves pode ser considerado um improvi-
sador com uma formação musical diferente, pois tem na matriz de sua educação musical
o choro. Ainda garoto ele se interessou pela flauta e pelo choro e passou por alguns
professores até encontrar em Copinha21 um mestre singular. Ele mesmo comenta esse
período:

“Minha família não é de músicos e em casa não havia o hábito de ouvir música. Meus
pais já eram separados e eu morava com a minha mãe. Meu pai ainda tinha alguns discos,
mas de uma forma geral eu tinha pouquíssimos discos por perto, portanto eu posso dizer
que realmente vivia em um ambiente pouco musical. Então comecei a prestar atenção nos
programas de televisão que, de alguma forma, tocavam choro. Foi assim que me apaixonei
pelo choro com 10 anos de idade. Aí comecei a estudar flauta doce na escola pública por um
tempo mas parei logo. Depois voltei a estudar com um professor particular três vezes por
semana e este professor era o Carlos Malta22 , que tinha na época 18 anos. Foi bem legal,
pois me abriu muito a cabeça. [. . . ] Aos 12 anos passei para a flauta transversa. Depois
disso o Malta sumiu e eu perdi o contato com ele, e comecei a ter aula com o Lenir
Siqueira que era professor da Escola de Música e flautista da sinfônica brasileira. Era
aquela coisa muito erudita. Estudei com ele por um ano, e eu não gostava, as aulas eram
20
Eduardo Neves (1968- )
21
Copinha, nome artístico de Nicolino Cópia (1910-1984)
22
Carlos Malta (1960- ) – flautista e saxofonista carioca que tocou muitos anos no grupo de Hermeto
Paschoal.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 41

muito chatas e quando ele desmarcava eu achava ótimo. Eu realmente queria estudar
choro e como não tinha muita facilidade para tirar música de ouvido, eu precisava de
alguém que me estimulasse para fazer isso e o Lenir realmente não era a pessoa. Até que
com 13 para 14 anos eu vi uma entrevista do Copinha na TV, e peguei o telefone dele na
lista telefônica e liguei para ele e me apresentei falando que queria estudar choro. Ele me
arrumou um tempo e então fui ter aulas com ele. Até hoje considero ele o meu mestre.
Na primeira vez estudei com ele por pouco tempo, apenas seis meses, pois ele teve um
enfarte, ficou muito doente e quase morreu mesmo. Fui visitá-lo no hospital e depois ele
sumiu por problemas familiares, eu perdi o contato. Depois consegui o telefone dele de
novo através do Paulinho da Viola e ele estava morando em Copacabana. Fui ter aulas
com ele de novo. Mas as aulas eram muito desorganizadas e eu tocava um pouco e depois
saíamos para tomar um chope e ficávamos conversando e ele falava de sua vida musical
com Pixinguinha, etc. Mas acredito que ele tenha me passado o essencial, que era o amor
pela música. Nessa época eu era muito vaidoso e achava que já podia gravar um disco e
ele me botava no meu devido lugar. [. . . ]. Era uma coisa boba e ele ia me cortando sem
falar muito, deixava a coisa meio solta, foi um mestre mesmo.”

As primeiras experiências musicais de Eduardo foram em rodas de choro que ele


freqüentava ainda bem novo, com apenas quatorze anos. Apesar de ter no choro a pri-
meira paixão, as estruturas das rodas de choro e a atitude dos chorões acabaram por não
trazer satisfação ao jovem instrumentista:

“Aos 14 anos eu freqüentava algumas rodas de choro aqui na zona sul e também na
zona norte. Aqui na zona sul eu tocava muito com o Rodrigo Lessa23 e com o (Marcos)
Suzano24 que faziam parte de um grupo mais jovem. Ao mesmo tempo eu tocava muito
com os coroas e aquilo foi me enchendo um pouco, pois era aquela coisa super formal
[. . . ]Uma das características de muitos músicos de choro daquele tempo é que eles não
sabiam ler música direito e portanto eles tocavam exatamente como estava nos discos e
23
Rodrigo Lessa (1962- ) – bandolinista, membro do grupo Nó em Pingo D’água.
24
Marcos Suzano (1963- ) – percussionista, muito conhecido pelo seu estilo de tocar pandeiro.
42 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

não criavam nada em cima [. . . ]E esta característica de imitar muito os arranjos originais
acabou por me afastar muito do choro [. . . ]Eu me lembro que vi pela TV (novamente pela
TV!), num show no Parque da Catacumba, o Oberdan Magalhães25 , da banda Black Rio,
tocando sax soprano e achei legal. Eu já conhecia o instrumento e naquela época, com
16 anos, eu realmente parei com aquilo tudo e comecei a tocar outras coisas como Bossa
Nova, baião, samba e tentar compor também.”

O interesse por outros estilos acabou por fazer Eduardo Neves estudar também saxo-
fone, um instrumento que abria novas possibilidades:

“Copinha morreu quando eu tinha 15 anos e uns 6 meses depois eu fiz contato nova-
mente com o Carlos Malta e comecei a freqüentar os ensaios do Hermeto. Nesta época eu
tinha uma coisa forte contra música americana, era uma coisa meio ufanista onde só a
música brasileira tradicional tinha espaço. Conhecendo o trabalho do Hermeto de perto eu
encontrei algo que não corrompia minhas ideologias e ao mesmo tempo me abria algumas
portas, pois a música do Hermeto era uma mistura da música brasileira com outros estilos,
era uma coisa meio inqualificável, não dava pra dizer direito qual era o seu estilo. Ali eu
ouvia muito o saxofone e percebi que era um instrumento que tinha mais pegada para se
tocar com bateria, coisa que a flauta não tinha. Aí foi mais natural a passagem para o sa-
xofone que era um instrumento mais auto-suficiente em matéria de volume. Comecei com
o (saxofone) soprano com 16 e com o (saxofone) tenor aos 18 anos. No sax eu fiz questão
de não pegar o repertório de choro que eu tinha na flauta. Meu repertório começou a ficar
outro, primeiro aquelas músicas todas que eu estudava do Hermeto. Decorei um monte de
frevo, de baião, um monte de coisas difíceis de tocar, estudava muito aquilo ali. Enfim,
não era um repertório que eu podia chegar num bar ou numa jam session e tocar aquelas
musicas. A partir daí eu comecei a buscar outro repertório mais para tocar na noite, um
repertório com o qual eu pudesse tocar por aí. E o sax era um instrumento com o qual eu
podia chegar nos lugares e mesmo sem microfone tocar confortavelmente. Ai eu colei no
Oberdan Magalhães (1945-1984) – saxofonista e flautista muito ativo durante a década de setenta.
25

Um dos fundadores da edição original da Banda Black Rio.


2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 43

Idriss (Boudrioua)26 também e comecei a dar canja com ele onde ele estivesse tocando.
Então o saxofone acabou por me afastar quase completamente do choro”

Da fase ligada ao choro, Eduardo Neves tirou pouca informação referente à improvisa-
ção. Todavia, como as melodias do choro se baseiam muito em arpejos, ele conta de uma
aula que teve com o amigo Rodrigo Lessa que lhe mostrou alguns conceitos básicos:

“O contato com improvisação ainda envolvendo o choro foi com o Rodrigo em uma
aula que eu tive com ele onde ele me mostrou uma progressão harmônica em sol maior
que depois modulava pra mi menor, então tinha: D7 G B7 Em27 , ai ele me mostrou
as notas do acorde de D7 que eram: Ré, Fá#, Lá e Dó. E mostrou também as notas do
acorde de G que eram: Sol, Si e Ré. Aí eu comecei a improvisar usando somente as
notas do arpejo e aquilo tinha um sentido para mim, era musical. Esta foi a única aula de
improviso que eu posso dizer que eu tive, mais do que isso eu não aprendi com ninguém.”

Mesmo não tendo estudado harmonia metodicamente com nenhum professor, o inte-
resse de Eduardo por esse conhecimento era grande e ele foi buscá-lo tanto na prática
da tradição oral – aprendendo com informações passadas por colegas –, como em livros e
apostilas que chegavam ao seu alcance:

“Eu nunca tive aula de harmonia, eu sempre fui pegando com pessoas que sabiam
muito como o Rodrigo (Lessa). Depois disso eu conheci o Rafael Vernet28 quando eu
tinha uns 20 anos e eu sempre toquei, graças a Deus, com bons músicos e sempre fui um
cara muito curioso assim de ficar olhando, prestando muita atenção e perguntando muito
26
Idriss Boudrioua (196?- ) – saxofonista francês residente no Rio de Janeiro. Idriss tem uma forte
formação jazzística e é também um educador muito ativo.
27
Para me referir a acordes em um contexto de harmonia funcional não-tradicional, utilizare o sistema
alfabético anglo-saxônico de nomenclatura de notas:
A = Lá
B = Si
C = Dó
D = Ré
E = Mi
F = Fá
G = Sol
Os sustenidos e os bemóis são colocados à direita da letra. Ex: Bb = Si bemol ou A# = Lá sustenido.
28
Rafael Vernet (196?- ) pianista de origem gaucha radicado no Rio de Janeiro, parceiro de Euardo
Neves nos grupos Balya e Trato a três.
44 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

sobre acordes e escalas etc. E eu procurava informações em livros também. Caia livro
na minha mão eu ia lendo. Livros como o “Dicionário de acordes cifrados”, por exemplo,
que eu até não gosto muito, mas ali tinha alguma informação. Apostilas também, eu
sempre fui muito curioso, nunca rejeitei nenhuma informação. Hoje eu posso dizer que
sei bastante harmonia, mas sempre aprendendo dessa forma.”

O próximo fato marcante que vai fazê-lo perder o preconceito contra o jazz e se inte-
ressar definitivamente pela improvisação foi a descoberta da música de John Coltrane:

“Um momento definitivo para mim foi a primeira vez que eu ouvi John Coltrane. Eu
tinha ido fazer um show em São Paulo. Eu estava com 19 anos. Foi como um soco na
cara, meio como uma experiência mística, indescritível. Nós estávamos em casa de amigos
e um amigo guitarrista que morava em NY, depois de ouvir toda sorte de comentários
idiotas sobre jazz, onde a gente falava que Charlie Parker era igual ao Coltrane, que aquilo
era um monte de frases prontas e mais um monte de besteira, ele pegou e nos mostrou
um disco do Coltrane ao vivo no Village Vanguard e aquilo calou a nossa boca, foi muito
sensacional mesmo.”

A respeito desse preconceito que músicos de choro tradicionalmente manifestam em


relação ao jazz, Eduardo Neves tem uma reflexão interessante:

“Sempre existiu uma espécie de xenofobia por parte dos músicos brasileiros que tocam
exclusivamente música brasileira, mais precisamente samba e choro, porque a mídia sem-
pre deu mais espaço à musica americana e isso gerou muita raiva e este preconceito vem
daí. Eu acho tudo isto uma grande besteira, até porque hoje em dia isto não é mais assim.
Não adianta a gente ficar falando o tempo todo que eu só faço música brasileira etc. É a
mesma coisa que eu ter que ficar falando o tempo todo que eu sou brasileiro. A gente já
nasceu aqui então não precisa falar, você toca e já está óbvio, é como se fosse uma digi-
tal. Esta bandeira eu acho que faz parte de uma coisa que envolve política, aquela coisa
meio ideológica, e o samba e o choro fazem parte disso aí. E não tem nada de errado
nisso, só não pode se fechar para outras coisas. Por exemplo, se um artista muito bom
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 45

compõe um choro, se for uma coisa muito boa, aquilo se torna uma coisa universal. Se
uma pessoa no Japão tiver este mesmo tipo de preconceito a coisa nunca ia acontecer de
jeito nenhum, e a arte não é isso, ela serve justamente para quebrar todas as fronteiras.
Se você acredita que o samba e o choro são universais você também tem que ser, senão a
coisa não funciona.”

A partir da descoberta de Coltrane, o músico se abriu para uma forte influência do


jazz na sua música:

“Depois de ouvir muito Coltrane, eu me lembro que ganhei um disco do Michael Brec-
ker, que eu ouvi até furar [. . . ]Depois que caiu aquele preconceito eu me sentia mais nor-
mal. Eu havia perdido completamente aquela resistência. Ouvi solistas brasileiros também
como o Zé Bodega, Nivaldo Ornellas, Raul Mascarenhas. Tem também o Proveta29 de São
Paulo, que eu acho um craque.. Acho que o Proveta tem uma historia parecida com a
minha com a coisa de vir do choro e tal. Isso me identifica um pouco com ele, pelo jeito
dele tocar.

Mas a improvisação que o jazz permite mudou a maneira de Eduardo pensar:

Vou ser sincero, pra mim o jazz é a expressão artística mais forte que existe na música.
O que foi feito naquela fase, por exemplo, do quinteto do Miles Davis, com (Wayne)
Shorter e (Herbie) Hancock, não tem nada mais interessante pra mim do que aquilo.
Uma forma artística que privilegia o artista, que tem espaço para todo mundo e pode ser
feita de várias formas também. Às vezes(o jazz) é muito chato, mas ai não é culpa da
música, é do músico. E é isso que eu busco fazer, misturar isso com a música carioca, o
samba e a gafieira.”

Quando perguntado sobre as razões pelas quais, em sua opinião, o choro como prática
musical não desenvolve bons improvisadores, apesar das tentativas dos grupos novos de
colocar mais espaço para improvisações no choro, Eduardo reflete:
29
Nailor Azevedo (1960- ) – mais conhecido como Proveta, o clarinetista e saxofonista, Nailor é o
fundador e principal arranjador da Banda Mantiqueira, que com uma formação parecida com as das big
bands americanas desenvolve um trabalho de excelente qualidade e reconhecimento internacional tendo
a música brasileira como repertório característico.
46 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

“Sinceramente eu acho que o problema principal para transformar o choro é que temos
que matar ele mesmo. Matar no sentido de fazer uma música nova. É como você querer
entrar numa casa de dois quartos com três camas de casal. Não adianta, você vai ter que
construir outro espaço pra caber tudo. E é justamente o que essa rapaziada jovem está
querendo fazer, enfiar tudo naquele apartamento, e realmente não vai caber! O que tem que
ser feito é criar algo novo que tenha este espaço. É o que eu tento fazer no Pagode Jazz30 ,
nas minhas composições. Se ficar naquela estrutura tradicional eles vão ficar perdidos. A
pegada deles é boa, a idéia é boa, a performance destes músicos normalmente é muito
boa, porque o choro dá muita técnica ao musico. Mas eles têm que partir para composição
pois este edifício que foi construído pelo Pixinguinha, pelo Jacob (do Bandolim), já foi
decorado. Se ficar só na releitura a coisa vai se transformar num “Frankenstein”. Acho que
eu sou meio tradicional nesta visão, se quiser criar um espaço para improvisar tem que
compor coisas novas, e deixar o tradicional como está, tem que respeitar aquela forma. Na
verdade eu acho que improvisar na estrutura do choro é muito difícil. O choro tradicional
normalmente tem três partes o A A B B A C C A, e normalmente isso ai tem que ser
respeitado. Cada parte dessa possui de 16 a 32 compassos. Esta forma gera uma dúvida
de onde entraria o improviso. Normalmente são dois solistas expondo o tema e com este
problema de forma o improviso fica sempre subordinado ao tema mesmo. Ao contrário
do jazz onde a forma tem às vezes uma parte só, com uma harmonia ótima de solar com
apenas um acorde a cada 2 compassos, no choro são dois acordes em um compasso de 2/4,
ou então tríades. É basicamente uma música com harmonia triádica e com inversão de
baixo, e é essa característica que vai dando a graça do choro, são esses caminhos do baixo
com uma harmonia com pouca tensão. Por isso é difícil improvisar no choro porque o jeito
de tocar é um pouco diferente, você pega um tema e mexe um pouco nele, vai mexendo,
mexendo, mexendo, isso faz com que o improviso fique sempre subordinado ao tema, o
cara improvisa três compassos e volta ao tema depois improvisa mais um pouco e volta ao
30
Pagode Jazz Sardinha’s Club – grupo liderado por Eduardo Neves e Rodrigo Lessa que foi descrito
pelo antropólogo Hermano Viana, no encarte do CD de estréia como o que seria “um disco dos 8 Batutas
(famoso grupo de Pixinguinha e Donga) se eles estivessem gravando o primeiro disco agora”.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 47

tema de novo. É mais perto de uma variação melódica e muitos se perdem ao tentarem
fazer algo diferente disso aí. Outra coisa é que a musica pode começar a ficar grande
demais. Vamos supor que você pegue a terceira parte para improvisar, aí ao invés de você
tocar duas vezes, você toca seis, separando quatro chorus para improvisar. A maioria dos
músicos que toca choro não está acostumado com isso e esse negócio começa a gerar um
mal estar no grupo porque a musica vai ficando longa demais. E em diversos casos você
toca com músicos que você nunca tocou antes, e aquilo não foi ensaiado. É diferente de um
ambiente de jazz, onde você vai tocar e as pessoas estão ali para o improviso, acostumadas
a isso. Então se as pessoas começarem a mexer muito nesta estrutura vira levação de som,
vira outra coisa que não é choro, o que eu particularmente não tenho nada contra. Uma
pessoa que eu acho que improvisa muito bem no choro, sabendo os limites da linguagem é o
Paulo Moura, ele realmente domina isso. Outra pessoa é o Sivuca, esses caras são mestres
da improvisação no choro. Não é uma arte, como improvisação, para ser comparada ao
jazz. Você pega 5%, ou 10% do repertório de choro tradicional, que tem somente duas
partes onde tem espaço para improvisar. “Assanhado” do Jacob, por exemplo, é um choro
que é um convite para improvisar, principalmente a segunda parte31 .”

Como improvisador, Eduardo Neves diz que busca sempre um caminho melódico den-
tro da harmonia estabelecida tentando respeitar o estilo da música que está sendo tocada:

“Eu busco sempre uma melodia. Eu faço isso sempre calcado na harmonia, eu não
sou aquele cara que não precisa da cifra para improvisar, eu busco sempre uma melodia
em cima da harmonia que está sendo tocada. Procuro entrar em um solo com um tema
forte. Procuro cada vez mais ouvir o que é que a música esta pedindo.”

Atualmente Eduardo também desenvolve uma intensa atividade como professor par-
ticular, principalmente de improvisação. Como a sua formação musical de improvisador,
podemos dizer, não foi tradicional, ele desenvolveu o seu próprio método de ensinar tam-
bém:
31
Curiosamente a harmonia da segunda parte de Assanhado, de Jacob do Bandolim é uma sequencia
em quartas de acordes dominantes que lembra muito as progressões do blues norte-americano.
48 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

“Eu tento aplicar mais ou menos o que eu desenvolvi para mim e que eu chamo de
“Caminhos criativos para improvisação”, ou seja, desde o inicio procurar fazer os estudos
do método sem ler. Por exemplo, em escalas, eu peço para o aluno desenvolver padrões
dentro daquela escala e tocar eles em todos os tons. Normalmente eu dou uns dois ou três
desses padrões e peço para o aluno me trazer mais outros três compostos por ele mesmo.
Mas sem ser uma coisa aleatória, tem que ter uma métrica. Com relação à harmonia
eu procuro ensinar os voicings dos acordes e mostrar as mudanças das notas cruciais em
determinada progressão. Ensinar os campos harmônicos e fazer o aluno tocar dentro dele
sem ficar ziguezagueando sem sentido melódico. É importante fazer ele ouvir a mudança
de acordes e isso não é fácil, depende muito do dom da pessoa, pois afinal de contas
improvisar é compor em tempo real.”

2.1.5 Nelson Faria32

Mesmo sendo um guitarrista, a escolha de Nelson Faria como um dos entrevistados se


justifica por várias razões. Primeiro, porque Nelson é um excelente improvisador, com
dois discos creditados em seu nome. Em segundo lugar, Nelson se destaca também como
educador, tendo escrito um dos melhores livros sobre improvisação disponíveis no mercado
nacional. Seu livro “A Arte da Improvisação” apresenta uma abordagem da improvisação
muito próxima à deste trabalho, pois é um método escrito por alguém que também optou
pela improvisação como um dos aspectos mais importantes de sua atividade musical.

A formação musical de Nelson Faria foi como a de muitos músicos brasileiros, come-
çando de forma autodidata e posteriormente tendo um mestre que o influenciou para que
encontrasse o caminho do estudo sério da música:

“Eu comecei como autodidata aos 12 anos, aos 17 anos eu tive meu 1º professor que
foi um cara fundamental na minha formação que foi o Gamela33 , como ele era conhecido.
32
Nelson Faria (1963- )
33
Sidney Barros (1943- ) – violonista de Brasília, mais conhecido omo Gamela. Não existe muitos
dados biográficos ou discográficos a respeito dele.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 49

O nome dele é Sidney Barros. Ele foi o cara que me aplicou a coisa do violão solo, chord
melodies, e me introduziu ao jazz sobre o qual eu não conhecia nada até então. Ele foi
realmente um cara decisivo pois eu estava começando um curso de economia na faculdade
antes de completar 18 anos e já começava também a tocar na noite e ele me sugeriu que
eu fosse estudar música de verdade e me indicou a GIT34 nos EUA que era uma escola
que ele conhecia. Acabei trancando meu curso de economia e fui naquele ano mesmo pra
lá.”

A oportunidade de estudar no exterior colocou Nelson em contato com guitarristas


importantes do jazz como Joe Diorio, Joe Pass, Robben Ford e Ron Eschete:

“Lá nos EUA eu tive alguns professores importantes também como o Joe Diorio, que
me abriu muito para a improvisação e harmonia porque até então com essa coisa de
autodidata eu me espelhava muito nos músicos que eu curtia tipo Toninho Horta e João
Gilberto. Além do Joe eu tive a oportunidade de estudar também com o Joe Pass e ele
fazia uma coisa que o Joe Diorio também fazia que era o Open Counseling, uma sala
onde se chegava, assinava na hora e fazia 30 a 40 minutos de aula. E era muito bom
porque apesar de estes caras serem super assediados, como a escola tinha muitos alunos
que só queriam saber de rock, muitas vezes estes professores ficavam super disponíveis e
eu por vezes ficava a tarde toda lá levando som com eles. [. . . ] Robben Ford35 que fazia
alguns Open Counseling esporádicos, além do Frank Gambale36 , do Scott Henderson37 e

34
GIT – Guitar Institute of Technology é o departamento de guitarra do Musicians Institute, ou MI,
escola de música localizada em Los Angeles que oferece um cuso livre de duraçâo de uma ano. Além de
Nelson Faria, vários guitarristas brasileiros foram estudar no GIT como Heitor Castro, Eduardo Caribé,
Fernando Vidal e muitos outros.
35
Robben Ford (1951- ) – guitarrista com origem no blues da costa oeste dos Estados Unios. Desenvolve
um trabalho que se situa entre as linguagens do jazz e o do blues. Tocou com Miles Davis durante a
década de oitenta.
36
Fank Gambale (1958- ) – guitarrista australiano que foi aluno e posteriormente professor do GIT.
Seu estilo é calcado no jazz-rock. Substituiu Scott Henderson na Chick Corea Elektic Band , do teladista
Chick Corea na década de oitenta.
37
Scott Henderson (1955- ) – guitarrista de jazz-rock de Los Angeles. É um dos principais professores
do gênero do GIT. Foi o primeiro guitarista da Chick Corea Elektic Band. É membro do grupo Tribal
Tech que é o grupo mais representativos de jazz-rock das últimas décadas.
50 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

do Ron Eschete38 que também foram meus professores. Depois disso eu voltei pro Brasil
e até hoje estudo este material que eu colhi lá”.
A partir daí, o jazz passou a ser muito importante para Nelson, como podemos cons-
tatar quando ele fala de suas principais influências:
“. . . a minha primeira grande influência foi o Joe Diorio39 , depois eu “colei” muito
no Scott Henderson e no Mike Stern40 de quem eu tirei muita coisa também. No lado
brasileiro teve o Helio Delmiro41 e o Heraldo do Monte42 , que foram diferentes fases e
quando eu começava a ver que estava soando muito parecido com fulano ou sicrano eu
mudava. Procurava ouvir outros instrumentos também, Bill Evans eu ouvia muito e ouço
ainda até hoje. Teve uma fase em que eu adorava ouvir também Michael Brecker.”
Para a carreira de Nelson Faria a improvisação pode ser considerada a característica
mais marcante:
“A improvisação é uma marca fundamental para mim porque as pessoas me procuram
muito com este enfoque e a minha música esta sempre recheada com muita improvisação
desde o meu primeiro CD. Mesmo quando eu atuo em outros trabalhos, muitas vezes é
por causa da minha habilidade como improvisador”
Essa proximidade com a improvisação levou a escrever um livro sobre o assunto, que
foi lançado pela Lumiar Editora em 1991 e ainda hoje continua disponível no catálogo da
Editora.
“Este livro, na verdade eu resolvi escrever pela dificuldade que eu encontrei quando
estudei com alguns professores aqui no Brasil que eram excelentes improvisadores mas
38
Ron Eschete (1951- ) – guitarrista de jazz de Los Angeles. Além de professor do GIT, também é um
atuante músico de estúdio.
39
Joe Diorio (1938- ) – guitarrista de jazz de técnica limpa e apurada. Na costa oeste norte-americana
é uma das mais importantes referências, sendo um dos principais professores do GIT.
40
Mike Stern (1953- ) – guitarrista de jazz-rock que começou aparecer no grupo de Miles Davis na
década de oitenta. Tem uma prolífica carreira solo, tendo lançado até o momento quatorze CDs. Nos
últimos anos tem vindo regularmente tocar no Brasil.
41
Helio Delmiro (1947- ) – violonista e guitarrista carioca. Se tornou conhecido por sua atuação no
grupo de Elis Regina e também pelo disco Samanbaia que lançou em formato de duo com o pianista
Cesar Camargo Mariano.
42
Heraldo do Monte (1935- ) – guitarrista de origem nodestina com forte atuaçâo na cidade de Sâo
Paulo. Foi membro do famoso Quarteto Novo, juntamento com Hermeto Paschoal, Airto Moreira e Theo
de Barros.
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 51

não sabiam ensinar como foi que eles chegaram lá. Aos poucos eu mesmo fui descobrindo
que nem eles mesmos sabiam como haviam chegado lá, pois são músicos de uma formação
muito intuitiva. Então, o cara aprendeu de uma forma desorganizada. Com a maturidade
ele se torna um bom improvisador mas não sabe dizer qual foi o 1º passo, ou o 2º, o 3º,
etc. Eles ouviam coisas e tiravam e eu queria saber aonde eles tinham ouvido aquilo e eles
não sabiam dizer. Assim eu nunca encontrava uma resposta uma resposta sobre o assunto
que me satisfizesse. Quando eu fui para os Estados Unidos eu encontrei uma situação
muito diferente pois o ensino da improvisação já estava na academia havia muitos anos,
coisa que aqui no Brasil até hoje está meio. . . . Então lá os caras sabiam te dizer quais
eram os primeiros passos, os segundos, os terceiros etc. . . aí eu fiz essa estrada lá na
teoria e um pouco na prática porque fiquei lá só um ano e não tive tempo de praticar tudo
o que eu aprendi. Quando voltei para o Brasil foi que comecei a organizar estas coisas, um
caminho do que fazer e como fazer. Ai eu comecei a dar aulas de improvisação porque as
pessoas me procuravam muito, e para dar aulas você tem que organizar essas informações
para passar adiante. Então eu comecei a organizar e fui montando umas apostilas com as
coisas que eu tinha aprendido. Um dia esta apostila caiu na mão do Almir Chediak e ele
gostou e me perguntou se eu não queria fazer daquilo um livro.”

Nelson explica então a maneira como ele organizou as informações que colocou no
livro:

“Os pilares do meu trabalho foram assim uma coisa progressiva, eu costumo dizer que
ensinar uma pessoa a improvisar é quase como ensinar uma pessoa a nadar. No fundo,
fazendo um paralelo, a pessoa que sabe nadar, nada tanto numa piscina rasa como no
meio da lagoa, é a mesma coisa – não tem diferença para quem sabe. Para quem não
sabe nadar, se você for ensinar no meio da lagoa, ela vai se afogar. Você ensina o cara
com ele enxergando as bordas, tem que estar raso e tal. Na improvisação é a mesma
coisa, pra quem sabe improvisar, qualquer nota serve. Na verdade qualquer nota serve
em cima de qualquer acorde, basta você saber de onde você veio e para onde você vai, se
52 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

aquela nota precisa ser resolvida ou não, se vai criar uma determinada tensão, se é um
outside43 ou uma nota do acorde etc. Para quem não sabe, se você falar pra ele “tudo
certo, basta você saber resolver”, o cara vai sair tocando e não vai saber resolver e vai
dar tudo errado. Então esse meu livro é assim, ele parte de uma piscininha rasinha,
quase um lava pé, ou seja, o cara vai tocar primeiro diatônico em cima de uma harmonia
diatônica, que eu chamo de improvisação por centros tonais. A pessoa pega uma harmonia
em algum tom maior e improvisa usando qualquer nota daquela escala, depois eu começo
a fazer um filtro e falo: “olha neste acorde algumas notas são muito boas e outras podem
ser evitadas” depois eu faço esta mesma analogia para tonalidades menores. Em seguida
começo a inserir acordes não diatônicos e mostrar as escalas que são bem vindas nestes
acordes. No segundo capítulo vem a parte de dominantes secundários e substitutos. Aí
vem as escalas alteradas, acordes alterados, uso das pentatônicas, uso das simétricas, tons
inteiros, aproximação cromática, modos, construção de fraseados em II-V, e construção
de solos, como ver um solo como um todo. Enfim, o livro trata disso.”
Nelson Faria reconhece que a principal fonte de informações para o livro veio do jazz
e de sua experiência nos Estados Unidos mas tem uma visão interessante de como esse
material jazzístico se funde com a música brasileira:
“[. . . ] a improvisação na música brasileira é muito calcada na improvisação jazzística,
com algumas exceções: por exemplo o Heraldo do Monte é Barney Kessel puro, só que
aplicado ao nosso baião, ao nosso frevo. Você nota que muitas das coisas que ele toca
são em cima do Barney Kessel. Hermeto por exemplo, se você pegar o começo da vida
dele tocando na noite tem uma formação bem jazzística. Cada músico, cada pessoa que
está tocando sempre coloca elementos novos e isso tudo vai formando uma identidade
brasileira, com muita influencia do jazz. Eu sinto isso em todos os músicos, mas com
muitos traços regionais brasileiros.”
Há exceções, é claro, como Nelson reconhece ao falar de Toninho Horta, por exemplo:
“Toninho Horta, improvisando, apesar de não ser considerado um grande improvisador
43
Ver Glossário
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 53

– a improvisação não é muito a praia dele – mas ele improvisando não tem nada a ver
com jazz, é uma coisa muito dele.”

A seguir Nelson Faria fala das diferenças harmônicas que encontramos na música
instrumental brasileira:

“A harmonia da bossa nova tem um paralelo com o jazz, muitos paralelos com a harmo-
nia jazzística. A musica mineira, por exemplo, é muito complexa porque tem influência
da música européia, Stravinsky, modal, dos impressionistas todos, Ravel, Debussy. Por
exemplo: tem uma musica do Toninho, que uso no meu livro, chamada Beijo Partido,
com todas as escalas que é a mais difícil e é um dos últimos exemplos do livro (risos).
Fazendo uma lista com todas as escalas e com a análise harmônica dos acordes, você acaba
chegando ao esqueleto dela e acaba entendendo como ela é harmonicamente.”

Segundo Nelson, conhecer a harmonia de uma música ajuda muito para se construir
um solo, mas existem abordagens menos complexas:

“Fazendo essa relação de melodia e harmonia eu sinto que harmonizar e improvisar


é a mesma coisa. Quando você está harmonizando você pega aquelas notas e toca elas
todas simultaneamente, e quando você está improvisando você cria melodias com aquelas
mesmas notas. No fundo estamos falando da mesma coisa. O enfoque do músico que
toca um instrumento de harmonia é diferente de um musico que toca um instrumento
de melodia que muitas vezes não tem tanta consciência harmônica. Existem vertentes
diferentes, por exemplo, tem o musico melodista que toca bordando em cima da melodia
e que não esta muito preocupado com a harmonia.”

Todavia, essa abordagem estritamente melódica não oferece subsídios para os contextos
harmônicos complexos:

Quanto mais harmonia você sabe, melhor, esta é a minha visão. Quando eu toco estou
sempre tocando em cima da harmonia, eu me guio muito mais pela harmonia do que pela
melodia, é lógico que a melodia está na minha cabeça e eu cito ela aqui e ali mas, quando
estou improvisando, estou basicamente trabalhando em cima da harmonia. O resultado
54 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

é um retrato melódico do que está acontecendo na harmonia. Eu sei que existem muitos
músicos que estão ligados basicamente na melodia mas, em músicas como O Samba de
Uma Nota Só, isto não funciona, pois a melodia está parada em uma nota só enquanto
a harmonia esta se movendo. E realmente em algumas musicas se você não estiver ligado
na harmonia você não consegue improvisar – Giant Steps44 é um exemplo.

2.1.6 Widor Santiago45

Nascido em Anápolis, cidade do interior de Goiás próxima à Brasília, Widor Santiago,


como tantos outros músicos brasileiros que nasceram e cresceram em cidades pequenas,
é um artista que lutou desde o princípio pela informação dentro de uma realidade difícil
e repleta de obstáculos. Filho de um músico também saxofonista, ele começou a ter
contato com a música ainda muito novo, entre três e quatro anos de idade, quando ficava
fazendo o ritmo nos tambores da bateria enquanto seu pai estudava. Quando tinha apenas
sete anos um colega de seu pai, baixista da banda de música de Anápolis, convenceu seu
pai a colocá-lo na banda tocando percussão, mais propriamente caixa, na banda. Por
essa época começou a se interessar pelo saxofone e como tinha o instrumento em casa
começou a praticar. Ele lembra que “logo no primeiro dia eu consegui tocar uma música
de carnaval chamada “Mulata Bossa Nova. . . ” Mas a proximidade do pai saxofonista não
foi tão instrutiva como é possível imaginar:

“Na verdade ele foi meu primeiro mestre, e nesta época eu não gostava que me ensi-
nassem nada mas ele sempre vinha me corrigir pois obviamente eu estava fazendo muitas
coisas erradas, principalmente o ataque da nota que eu fazia com a garganta e deveria ser
com a sílaba “tu”, pronunciada com a língua . E eu ficava bravo porque todo saxofonista
sabe como é difícil fazer este ataque quando se está começando. E com esta teimosia eu
deixava de aprender muita coisa com ele. Eu acredito que seja muito difícil para um pai
44
Giant Steps é uma composição de John Coltrane que se tornou um clássico e é um desafio ao
improvisador pois é uma peça construída em um sistema tritônico.
45
Widor Santiago (1961- )
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 55

ensinar música para um filho. É uma relação em que entra muito o emocional e com um
professor é mais fácil, pois a relação é mais racional.”

Nessa época o jovem saxofonista teve seu primeiro contato com o jazz e a improvisação
por intermédio da rádio BBC de Londres, que ele gostava de ouvir, bem como pelos estudos
do pai com os amigos, que ele lembra como sendo “completamente de ouvido, pois eles não
tinham nenhum conhecimento harmônico.” Logo ele saiu da percussão e foi para o naipe
de saxofones, tocando saxofone alto. Algum tempo depois já estava tocando o saxofone
tenor também, como ele recorda: “eu tocava o sax alto mas já me metia a tocar o tenor
também. Comecei a ir tocar nas gincanas dos colégios e todo mundo achava esquisito
porque o instrumento era maior que eu.”

Após sete anos na banda de música, foi convidado para se juntar a uma banda de baile
e, apesar das preocupações do pai – afinal tinha apenas quatorze anos –, ele convenceu a
família e assim ficou por um ano na banda de baile. Foi quando decidiu que já era hora
de se mudar para Brasília, onde aspirava encontrar um ambiente mais próximo de suas
ambições:

“Então eu toquei nesta banda de baile por um ano e achei que já estava na hora de
mudar para Brasília, uma boa cidade pra se estudar, pois lá tem uma excelente escola de
música que não é um curso superior mas é um curso que qualquer um pode entrar e tem
todos os instrumentos. Mas eu mesmo acabei não estudando lá porque a escola não tinha
um curso de saxofone dirigido para o caminho que eu queira que era o do jazz. Mas eu
usava o espaço físico da escola mesmo sem nunca ter me matriculado no curso.”

Então com dezesseis anos e tocando em bandas de baile de Brasília ele experimentou
um momento de grande progresso vivendo em comunidade com outros músicos:

“Em Brasília eu comecei a tocar nos conjuntos de baile. Isto foi em 1977 e naquela
época, em Brasília, existiam muitos conjuntos de baile com muitos músicos bons que faziam
questão de tocar as músicas exatamente como elas eram no original, ou seja, ninguém
escrevia nada, tudo era tirado de ouvido. Assim cada um tirava a sua parte. Eu morava
56 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

em uma casa com um conjunto que se chamava Brasília Som Sete. Todo mundo morava
na mesma casa. Isso pra mim foi uma verdadeira escola de música, pois ouvíamos música
desde a hora que acordávamos até a hora que íamos dormir. Eu estava aperfeiçoando
meu ouvido mas ainda não sabia como estudar o saxofone.”

Widor sentia muita dificuldade em aprender sozinho, sem ter sequer um livro ou um
método para aprender a tocar e improvisar no saxofone. A mudança viria por meio de
um livro emprestado por um amigo:

“Eu queria improvisar, tocar jazz mas nunca nem havia tido um professor real de sa-
xofone, além daquele começo com o meu pai. Assim todo músico da banda era melhor
que eu. Eu tinha o potencial, todos me falavam que eu tinha que estudar mas eu não
sabia como. Até que um belo dia, no meio de um carnaval, um trombonista falou que ele
tinha um método do Jimmy Dorsey de saxofone e me emprestou. Esse método realmente
ensinava a improvisar utilizando uma metodologia pra ensinar improvisação que era a
seguinte: ele dava por exemplo um G7, aí ele dava algumas frases podiam ser tocadas
naquele acorde, como se ele estivesse dando inicio a uma improvisação. Depois ele mos-
trava outros intervalos que você poderia utilizar com aquele mesmo acorde. Assim ele ia
passando por todos os acordes. Então eu entendi como se fazia para improvisar.”

Outro amigo, o saxofonista Ricardo Matos, que havia estudado na Berklee College of
Music, deu para Widor uma série de exercícios que ele havia estudado lá e, de posse desse
material ele pode dar início à sua formação de improvisador. Essa descoberta levou a
outra: a necessidade de aprender harmonia:

“Nesta época eu também arrumei um violão para estudar harmonia pois para um im-
provisador improvisar sem saber harmonia é como você voar dentro de um quarto e ficar
batendo com a cabeça no teto. Assim eu acordava cedo e ficava no violão até meio dia e
depois ia para o sax e ficava o resto do dia. Ninguém agüentava ficar perto de mim.”

A partir daí entrar na cena de jazz de Brasília foi um passo:

“Aí abriu uma casa pra tocar chamada London Tavern, que era uma casa de jazz em
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 57

Brasília. Nesse momento eu realmente entrei no mundo do jazz, conheci o Real Book46
e convivia com outros músicos que tocavam aquele tipo de música. Assim eu encontrei a
fórmula para estudar e foi um grande barato na minha vida.”

Surgem nesse momento as primeiras influências musicais com os saxofonistas Lenny


Picket e Victor Assis Brasil. A presença de Picket como influência é fundada na atividade
de Widor como músico de baile, uma vez que Lenny Picket é um dos grandes tenoristas
de um jazz com inclinações de soul music 47 , sendo um dos fundadores do grupo Tower
of Power que fez muito sucesso nos anos setenta. Victor Assis Brasil então despontava
como um autêntico jazzman nacional, tendo estudado no exterior e tendo a improvisação
como a sua maior marca. Sobre eles Widor comenta:

“Tanto o Victor (Assis Brasil) quanto o Lenny Picket entram pra tocar sem brinca-
deira, eles tocam tirando tudo do instrumento. Isso era uma das coisas no Victor que eu
amava e tentei absorver isso dele. Aquela raça era a expressão da vontade dele de tocar.
Eu acho que mesmo quando você tem que tocar algo mais lírico, tem que ser tocado com
pressão. Se não houver pressão, falta harmônico nas notas, e elas ficam com um som
pobre.”

Ainda em Brasília Widor entra para a banda do Corpo de Bombeiros onde fica por
dois anos e a sua leitura melhora muito e ele aprende a necessidade de se estar bem de
saúde e em boa forma física para poder tocar bem:

“Quando eu entrei no Corpo de Bombeiros eu estava muito fraco fisicamente. Eu tocava


muito à noite e ficava sem dormir direito, Além disso eu fumava e também bebia um pouco
e lá na banda nós éramos obrigados a fazer ginástica e assim eu fiz muito exercício físico.
Essa ginástica me deu um porte físico que me ajudou sobremaneira com o instrumento.
Isso ficou para minha vida inteira. Hoje em dia se eu tiver meia hora apenas para me
preparar eu prefiro fazer um exercício físico do que com o saxofone. Porque se você estiver
46
Real Book – livro de peças referenciais do repertório jazzístico, ou seja, standards. Esse livro foi
elaborado na década de 60 pelos alunos da Berklee College of Music e desde então circula de maneira
clandestina entre os músicos de jazz do mundo inteiro. Até hoje, essa edição é considerada ilegal.
47
Ver Glossário
58 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

bem fisicamente você tem mais entusiasmo para tocar o saxofone. Você pega nele com mais
vontade. Não adianta você ter só musicalidade, que se você não tiver disposição física você
não consegue se expressar. O saxofone é um instrumento pesado e o ar é a matéria prima.
Assim o saxofonista tem que ter uma resistência física. Outra coisa é o braço, o saxofone
você tem que tocar ele empurrando ele para frente, se não você ficará todo curvado e terá
problemas por causa disso.”

Em 1983, ao vir passar férias no Rio a convite do baixista Adriano Giffoni, que havia
conhecido em Brasília, começa uma nova etapa na vida de Widor Santiago. Ele conta
como aconteceu essa mudança:

“Eu vim pra o Rio a convite do Adriano Giffoni para passar um mês na casa dele.
Aí nos últimos dias, antes de ir embora, o Adriano me falou que estavam precisando
de saxofonista no Café Nice e eu fui lá dar uma canja. O líder era um trompetista já
falecido de nome Celinho, e eles tocavam de seis até meia noite. Ele tinha um livro
com tudo escrito para sax tenor e trompete. Então eu ataquei com ele e foi maravilhoso,
fizemos um som muito bom. Ele me convidou para ficar na banda e eu perguntei se ele
me esperaria voltar de Brasília pois eu precisava dar baixa do Corpo de Bombeiros. Só
que quando ele me falou do salário eu disse que não dava e fui falar com o dono e, por
incrível que pareça, ele me pagou o que eu pedi. Daí eu fui para Brasília, dei baixa, voltei
pro Rio e comecei a tocar na Café Nice e lá também foi uma escola muito boa, porque os
músicos eram muito bons. Eu fiquei 5 meses tocando lá e toquei também em outra casa no
centro da cidade em cima do Amarelinho com tecladista muito doido chamado D’Angelo
que levava um revólver e botava debaixo da perna sempre que ia tocar.”

O desenvolvimento de Widor no Rio de Janeiro foi imediato pois além de tocar dia-
riamente com músicos bons e experientes ele foi exposto a várias influências na forma de
discos. Podia praticar com outros colegas, como o trompetista Nelson Henrique, quando
foram vizinhos no bairro de Pedreira:

“Eu e o Nelson éramos vizinhos de parede e quando um ouvia o outro estudando batia
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 59

na parede e íamos estudar juntos. Por essa época eu conheci o trabalho do Michael Brecker
com o grupo dele com o irmão trompetista, o Randy. Ele foi uma influência forte. Teve
um disco dele com o Claus Ogerman48 chamado Cityscape que é a coisa mais linda. Ouvia
também muito John Coltrane e outros americanos. Ia também dar canja num barzinho
chamado O Viro Do Ipiranga. Quem tocava lá era o (guitarrista) Romero Lumambo, o
(baixista) Nilson Matta e muitos outros, muita gente boa.”

Logo ele foi tocar com os cantores chegando a ter créditos com artistas importantes
como Milton Nascimento, Djavan e João Bosco. Tocar com os artistas representava
uma oportunidade de ganhar melhor, mas Widor reconhece que não era a música de que
realmente gostava:

“Eu fui chamado pelo (saxofonista) Chico Sá para tocar na banda do Erasmo Carlos,
que estava formando uma big band para um show novo dele. Ai eu comecei a tocar
com os cantores aqui no Rio e a minha vida mudou porque eu comecei a tocar e ganhar
mais dinheiro pois os artistas podiam pagar uma sobrevivência melhor pra mim, com mais
dignidade. Isso era muito bom, mas era emprego.”

Tocando com Cazuza, Widor conseguiu fazer alguma economia e seguindo uma tendên-
cia de muitos músicos cariocas na década de oitenta, foi passar algum tempo nos Estados
Unidos onde ele pode acumular conhecimento e experiência convivendo entre músicos de
jazz. Certa vez mostrou à cantora brasileira residente nos Estados Unidos, Flora Purim,
uma gravação que havia feito no Rio de Janeiro. Ela se impressionou e disse que se um
dia precisasse de um saxofonista ela o chamaria para tocar. Na volta ao Brasil Widor
retomou o trabalho de músico acompanhante, tocando também com vários nomes impor-
tantes da música instrumental, como o baixista Nico Assumpção, o pianista Luiz Avellar,
o pianista Rique Pantoja e o baterista Robertinho Silva, entre muitos outros.

Então veio o convite da Flora Purim para tocar no grupo Fourth World que ela tinha
com o marido, o grande percussionista Airto Moreira. Widor ficou alguns anos no grupo e,
48
Claus Ogerman (1930- ) – arranjador alemão radicado nos Estados Unidos. Muito conhecido do
público brasileiro pelos trabalhos com Tom Jobim e João Gilberto.
60 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

mesmo residindo no Rio, viajava todo ano para fazer turnês na Europa e Estados Unidos:

“Tocando com a Flora e o Airto eu pude entrar no circuito de jazz mundial. Pude ver
também como funciona esse mundo, que apesar de ser repleto de boa música, não conta
com tanta estrutura, não há mordomias, a banda toda carrega equipamento, faz check in,
todos ajudam. Foi também um momento muito importante da minha vida.”

Widor lançou em 2003 o primeiro CD solo, chamado A Rosa que conta com partici-
pações de Luiz Avellar, Airto Moreira, Flora Purim, entre outros. Ele fala a respeito da
improvisação e da procura pela identidade musical:

“A improvisação para mim é a parte mais importante pois eu posso mostrar a minha
personalidade musical. É o espaço do músico, do instrumentista. É muito importante
também ter o som próprio. Durante muito tempo eu ouvia demais o Brecker, o Bob Berg
e percebi que estava ficando influenciado demais. Mudei a boquilha, a palheta, e fui buscar
o meu próprio som. Isso é o mais importante.”

2.1.7 Marcio Montarroyos49

Não há dúvidas que o trompetista Marcio Montarroyos é um dos mais importantes perso-
nagens da história da música instrumental brasileira. Com uma carreira sólida de quase
quatro décadas e perto de dez discos com a sua assinatura, a reputação e o reconheci-
mento alcançados por Marcio ultrapassam as fronteiras brasileiras, mesmo sem que ele
tenha morado fora do país, sem contar o período que passou estudando no exterior. A
música sempre foi um elemento importante na vida de Montarroyos, pois quase toda a
sua família era ligada a música:

“Minha família toda, por parte de mãe, era composta de pianistas. Minha avó tocava
em cinema mudo e foi ela que me ensinou piano. Já minha mãe era professora da Escola
Nacional de Música, era também concertista e tocava muito bem. Ela ainda esta viva.
Mas ela não tinha muita paciência para me dar aula não. Dizem que o filho homem
49
Marcio Montarroyos (1948- )
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 61

sempre capta a veia artística da mãe, mas o meu pai também tocava um violão rasqueado
paraguaio da fronteira. Mas ele era brasileiro mesmo. O nome Montarroyos é de cristãos
novos que foram expulsos da Espanha. Portanto, eu comecei no piano aos quatro anos de
idade e iniciei o estudo de trompete aos quatorze com o professor Valdomiro Alvez, da
Escola Nacional de Música.”
A educação musical de Marcio apontava para uma carreira de pianista mas tudo mudou
quando ele ouviu Night in Tunisia, composição de Dizzy Gillespie50 sendo tocada por uma
banda de baile. Ele lembra:
“Tudo mudou quando eu ouvi Night in Tunisia com o grupo do Ed Lincoln num dia
em que ele mesmo não estava tocando. Em seu lugar estava o Tenório Junior no piano e
até o Paulo Moura no saxofone. Essa música me fez ir ouvir o Dizzy e isso me despertou
para o trompete. Na verdade eu não queria ser um pianista clássico pois tinha descoberto
o jazz, e achava que o piano não era um bom instrumento para o jazz. Era besteira minha,
é claro, mas achei isso e também fiquei fascinado pelo trompete. Toco piano até hoje e
isso foi fundamental para a minha música.”
Rapidamente o jovem músico já estava tocando profissionalmente, participando de
grupos e shows pelo país:
“Meu primeiro conjunto foi o Fórmula 7, junto com o Helio Delmiro, o Luisão Maia, o
Helio Celso, e o Claudio Caribé. Com este conjunto eu gravei 4 discos para Odeon. Acho
que isso foi em 1967. Logo depois estreamos no programa na TV do Roberto Carlos, e
então agente trabalhava muito pois os programas proporcionavam vários bailes e também
shows pelo Brasil todo. Este foi o meu começo profissional. Algum tempo depois o pianista
Osmar Milito me chamou inaugurar o Number One, clube de jazz em Ipanema e foi então
que eu comecei a tocar na noite. Foi onde conheci o (saxofonista) Oberdan (Magalhães),
ficamos muito amigos e a coisa era diária com o som indo até as cinco da manhã.”
Algum tempo depois o universo de Montarroyos sofreria uma mudança quando foi
convidado para tocar junto ao naipe de metais em uma apresentação de Stevie Wonder e
50
Dizzy Gillespie (1917-1993)
62 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

conheceu o saxofonista americano Bobby Eldridge:

“O Bobby Eldridge, que é o sobrinho do (trompetista) Roy Eldridge, esteve aqui tocando
com Stevie Wonder e me convidou para tocar com eles no naipe e me falou sobre a escola,
o Berklee College of Music. Eu fui um pouco depois do Victor Assis Brasil e fiquei quase
dois anos nos Estados Unidos graças a uma bolsa de estudos. Um dos meus principais
professores lá foi o Leny Johnson, que havia tocado com o Charlie Parker. Ele ensinava
História do Jazz e Jazz Improvisation. Além disso eu tocava muito por lá, muitas vezes
com o Victor, que tinha a sua big band, a Victor Assis Brasil International Boston Or-
chestra, que era muito boa. Além dessa eu tocava também em uma outra big band que era
diferente pois era só de brancos, enquanto a do Victor era misturada. Eu tocava também
muito em Roxbury, bairro negro e posso dizer que foi lá que aprendi inglês.”

Para ir estudar em Boston, Marcio contou com uma ajuda importante do então diretor
da TV Globo, José Bonifácio Sobrinho, o Boni, que era apreciador de jazz e ofereceu ao
músico a passagem aérea caso ele conseguisse a bolsa de estudos. Na volta ao Brasil, Boni
influenciaria mais uma vez a carreira de Montarroyos:

“Quando eu voltei ao Brasil eu voltei a tocar no Number One, só que agora o show era
meu e a ultima musica do show que eu tocava era sempre o Carinhoso. Até que em uma
noite diretoria da Globo estava lá e me falaram para eu estar no estúdio às nove horas
da manhã pois eles queriam aquela música para abertura de uma novela. Assim, às nove
estávamos lá para gravar e isto deu um impulso enorme na minha carreira. Eu devo isso
ao Boni. Acho até que, do ponto de vista de popularidade, foi o fato mais importante
da minha carreira. Sabe lá o que é você ter toda noite milhares de pessoas te ouvindo,
ouvindo uma gravação sua, um solo seu? O brasileiro é muito ligado em novela e aquilo
foi uma exposição incrível!”

Após a novela, Marcio teve outro impulso da Globo gravando para a gravadora Som
Livre o disco Marcio Montarroyos/Stone Alliance com os músicos americanos Steve Gros-
sman no saxofone, Don Alias na bateria e na percussão e Gene Perla no contrabaixo. Esse
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 63

disco contou também com a participação de Hermeto Paschoal e foi o primeiro trabalho
assinado por Montarroyos que foi lançado também no exterior. Anos depois, outro disco
seria também fundamental para a carreira dele:

“Foi na sala Funarte, acho que no final dos anos setenta, que um produtor alemão
falou que queria um disco meu para lançar lá fora. Ele disse para eu gravar que ele ia
tentar vender e, se não conseguisse vender, fazia ele mesmo. Assim sendo, gravei o que
viria a se chamar Magic Moment. Acabou que ele conseguiu vender para a Columbia
Records americana e eu acabei sendo o primeiro brasileiro a ser contratado pela Columbia
americana.”

Outros discos vieram como Carioca, Terra Matter, The Best of Marcio Montarroyos
e The Congado Celebration, fazendo de Marcio um dos artistas da música instrumental
brasileira com mais discos lançados. Refletindo sobre as sua influências Montarroyos
destaca principalmente os trompetistas de jazz como Louis Armstrong51 , Lee Morgan52 ,
Miles Davis53 , Dizzy Gillespie, Freddie Hubbard54 , Roy Eldridge55 e Clifford Brown56 .
Esse último, como Marcio, era um bom pianista que chegou até a chamar a atenção de
Dizzy Gillespie que quando o conheceu nem imaginava que Cifford era um virtuose do
trompete.

Uma outra característica de Montarroyos é ser um ótimo líder. Por seus grupos inici-
aram ou passaram músicos como os baixistas Arthur Maia e Andre Neiva, os bateristas
Claudio Infante e Ivan Conti, os tecladistas Lincoln Olivetti e Glauton Campello e os
guitarristas Ricardo Silveira e Victor Biglione, entre muitos outros. Ele lembra de suas
principais influências como líder:

“Ser um líder eu aprendi com os músicos com quem trabalhei , principalmente com
o Hermeto Paschoal e o Sergio Mendes, além de aprender com os meus próprios erros,
51
Lios Armstrong (!901-1971)
52
Lee Morgan(1938-1972)
53
Miles Davis (1926-1991)
54
Freddie Hubbard (1938- )
55
Roy Eldridge (1911- 1989)
56
Clifford Brown (1930-1956)
64 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

pois se você começa a seguir a opinião dos outros e as coisas dão errado quem tem a
responsabilidade é você. Então é melhor quebrar a cara pelas próprias idéias do que pelas
dos outros. Mas com o Hermeto, que foi o músico mais impressionante com quem eu
toquei na vida, eu aprendi a tirar do músico aquilo que nem ele mesmo sabe que tem lá
dentro. Ele era um cara que botava você para abrir o show dele sozinho. Dizia “se vira aí”
e te colocava para buscar as coisas que nem você mesmo sabe que estão lá dentro. Com
o Sergio Mendes aprendi a tratar todos os músicos que trabalham comigo com elegância.
Sempre antes de entrar no palco ele vinha com uma taça de champanhe e agradecia um
por um por estar ali tocando com ele. Era muito legal.”

Marcio também fala da importância do piano na sua música:

“O piano é um instrumento de percussão, além de ser harmônico, e por tocar piano


eu pude me concentrar também nas funções rítmicas, no entrosamento da sessão rítmica.
Tem também a coisa da composição mas eu não me considero um compositor completo,
daqueles que se dedicam às técnicas de composição. O que acontece é que eu quero tocar
dentro de um estilo e para que isso aconteça eu tenho de compor as músicas pois elas não
existem. Então eu faço para que eu mesmo possa tocar o que quero.”

Em relação a improvisação, que é tão marcante na música de Marcio ele tem sen-
timentos dúbios, pois a improvisação pode se tornar, na sua opinião, uma exibição de
técnica:

“Eu me considero um músico de jazz e o musico do jazz está sempre pronto para
improvisar porque ele adquire muita técnica e vocabulário para fazer isso. Mas o que
eu tento fazer é ir de encontro ao meu inconsciente, ou seja, não deixar o inconsciente
dominar pois ele sempre vai fazer com que agente toque aquilo que estudou. Então eu
tento ir de encontro a ele e me forçar a tocar outra coisa pois assim eu me surpreendo
tocando coisas diferentes. Há uma tentação em mostrar destreza que devemos controlar
pois o importante para mim é comunicar algo musicalmente. Hoje em dia não quero mais
tocar coisas que eu tenha de ficar contando. O difícil é fazer isso sem tornar a coisa
2.1. ENTREVISTAS – JUSTIFICATIVA E METODOLOGIA 65

cafona, encontrar esse equilíbrio. “

Ele relembra também a experiência de tocar com Victor Assis Brasil:

“O Victor era um músico de jazz e tanto. Ele tinha muito domínio do vocabulário
jazzístico e muita musicalidade. Tocava piano e compunha muito bem, mas dependia
de alguma mulher. Tinha de estar sofrendo. Quanto mais sofria mais ele compunha.
Ter estudado na “Berklee” me ajudou muito quando fui tocar com ele. Senão não dava.
Gravei um disco ao vivo com ele no Teatro da Galeria com o (baixista) Paulo Russo, o
(pianista) Alberto Farah e o (baterista) Lula Nascimento que foi um desafio para mim
pois em Boston eu só havia tocado na big band dele, ou seja, no final às vezes ele nem
tocava, só regia,ou nem aparecia, pois muitas vezes ele tinha uma dor no braço. Acho que
já era o começo da doença dele, ninguém sabia o que era exatamente, até hoje não sabem
ao certo.”

Na sua carreira Marcio Montarroyos foi músico acompanhante de muitos artistas,


alguns deles músicos também como Ed Lincoln, Raul de Souza, Hermeto Paschoal, Victor
Assis Brasil e muitos outros. Contudo, também trabalhou com muitos cantores como Gal
Costa, Maria Bethania, Roberto Carlos, Ney Matogrosso, Jorge Ben... A lista é quase
interminável. Esse tipo de trabalho rende bem financeiramente para o músico mas não
traz muita satisfação artística:

“Infelizmente, apesar de o Rio ser um pólo cultural, está difícil aqui para o músico
instrumentista. Mas o Brasil não é só o Rio, então você tem que batalhar. Eu continuo
acreditando. Aliás, o problema é mundial, não é só aqui. Se você entrar em um site de
um festival de jazz do Brasil só tem cantor. Os encarregados de levar a música brasileira
pra fora do Brasil só levam cantores, que geram interesses para as gravadoras(. . . ) Tem
gente que me pergunta “aonde é que você vai cantar hoje?”. O negócio é terrível. Em
Portugal também tem muito cantor, mas na Europa primeiro vem o músico depois vem o
cantor. Cantor é aquele que não conseguiu tocar nada e vai cantar. Nos Estados Unidos o
cara para cantar tem que ser muito bom pois lá os caras cantam mesmo. Eu gosto de ver o
66 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

lado positivo dos cantores, a sua performance de palco, o profissionalismo. Afinal ninguém
pode ser perfeito, mas eu nunca encontrei um cantor que eu achasse completo. Sempre o
repertório que eles escolhem é um que eu jamais escolheria. Enfim, a concepção musical
é muito diferente. Eu vim de um ambiente musical erudito e passei para o jazz. Nunca
fiz um baile de carnaval, mas se tiver que fazer um baile sozinho eu faço. Mas nunca fiz,
então eu acho que não sou tão popular assim. Cheguei a gravar Pixinguinha. Gravei com
o Tom (Jobim) uma musica do Noel Rosa, mas acho que musicalmente falando, eu acabo
sendo meio elitista.”

Por fim Montarroyos fala dos seus planos e do jazz brasileiro:

“Sabe, eu não gosto muito do músico brasileiro tocando jazz, com raríssimas exceções.
Eu gosto do jazz brasileiro, o chamado “brazilian jazz”. Aí eu acho bem legal, porque
eu gosto mesmo é de misturar música erudita com elementos modernos, lidar com o
passado e o futuro o tempo todo. Organizar isso de uma forma que você transmita uma
emoção, porque se você não se comunicar, pode ser tão bom quanto quiser que não vai
adiantar nada. Eu procuro essa linha do presente, do passado e do futuro. Eu já toco
um instrumento melódico que é o trompete, então eu posso me dar luxo de usar a parte
eletrônica, que é o computador e tentar humanizar o máximo possível. Eu gosto da
tecnologia e eu gravo aqui em casa. Eu até prefiro gravar aqui. “

2.2 Considerações Importantes

A oportunidade de conduzir as entrevistas com músicos da qualidade e importância dos


que foram entrevistados foi uma experiência enriquecedora em muitos aspectos pois esses
artistas não têm, mesmo sendo mestres em seus instrumentos, muitas oportunidades de
expressarem pensamentos sobre a sua carreira e a sua arte. Mesmo sendo amigo pessoal
de muitos deles, foi importante criar um distanciamento crítico que permitisse vê-los não
como os grandes amigos ou colegas de profissão que são, mas como artistas que forneceriam
2.2. CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES 67

informações relevantes ao meu objeto de estudo.

Um outro aspecto que deve ser destacado foi a desconstrução de alguns pressupostos
que faziam parte de diretrizes iniciais desse estudo e que não correspondiam à realidade vi-
vida pelos músicos. Esses pequenos equívocos foram resultado da minha formação musical
que, por ter se dado na maior parte do tempo no exterior, me fazia pensar sobre a edu-
cação musical do músico formado aqui no Brasil de uma forma algumas vezes idealizada
e outras de maneira imprecisa.

Um dos pressupostos que as entrevistas desmontaram foi a de que os improvisadores


brasileiros tinham formações e influências diversas, e isso em parte pode ser verdade.
Contudo, todos os entrevistados, sem exceção, declararam que se tornaram improvisadores
quando descobriram o jazz, e que esse gênero musical acabou se tornando um divisor de
águas nas suas carreiras. A influência do jazz se mostrou muito maior do que imaginada
inicialente. Para o improvisador da música instrumental o jazz não era só mais um
estilo onde era possível encontrar a prática das improvisação, era o gênero musical que
havia exercido a maior influência para que eles tivessem decidido estudar e se dedicar a
improvisação.

A questão dos conhecimentos harmônicos também surpreendeu uma vez que existem
alguns improvisadores criativos que atingem resultados interessantes sem um amplo co-
nhecimento harmônico. Todavia, mais uma vez os depoimentos mostraram uma outra
realidade quando todos os entrevistados disseram que em um determinado momento de
seu aprendizado concluíram que deviam estudar não só harmonia, como também aprender
a tocar um instrumento harmônico de apoio. Obter esse conhecimento se tornaria vital e
determinante nas carreiras e no estilo de todos eles.

Com exceção dos entrevistados que tiveram a oportunidade de estudar fora do país,
como Nelson Faria e Marcio Montarroyos, todos os outros aprenderam a arte da improvi-
sação da forma que todo jazzista norte-americano aprendia antes do jazz entrar para o
currículo de várias instituições americanas, ou seja, pela via da tradição oral onde o co-
68 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

nhecimento é passado adiante oralmente, de um professor particular para os seus alunos.

As influências se mostraram também surpreendentes havendo uma coincidência muito


interessante em relação a alguns nomes como – principalmente para os saxofonistas – os
saxofonistas americanos Michael Brecker e John Coltrane. A presença de Coltrane na
lista é fruto do seu trabalho inovador e pessoal que ainda hoje aponta caminhos para
muitos outros músicos. Brecker merece uma explicação maior pois aparece até como
influência para improvisadores não-saxofonistas como Nelson Faria. A verdade é que
Michael Brecker, a despeito de ser um dos maiores virtuoses do instrumento nos últimos
trinta anos, não recebe tanta deferência da crítica especializada tanto aqui no país como
no exterior, por apresentar uma característica que o aproxima da realidade do músico
brasileiro: o ecletismo. Enquanto Brecker aparece na sua carreira com créditos em áreas
distintas como jazz acústico, jazz rock, música pop e soul music, a maioria dos músicos
de jazz se restringe a uma atuação apenas no cenário artístico do jazz. Ele é considerado
um músico crossover, ou seja, aquele que cruza as fronteiras dos estilos. Isso é muito raro
de ser atingido por um músico de jazz mas é quase um pré-requisito ao músico nacional.
Aquele que não é capaz de se adaptar e tocar em estilos diferentes tem muito pouca chance
de se firmar no mercado de trabalho. Por essa razão há uma afinidade da linguagem e
atuação artística de Brecker com as necessidades do músico brasileiro.

Há casos de influências específicas, como, por exemplo, os trompetistas Dizzy Gil-


lespie e Miles Davis para Marcio Montarroyos e os guitarristas Joe Diorio e Mike Stern
para Nelson Faria, que são referências instrumentais diretas em relação aos instrumentos
escolhidos por eles.

Entre os brasileiros que surgem de forma mais presente como influencias, temos Her-
meto Paschoal como destaque. Sua originalidade e musicalidade é uma referência para
quase todo improvisador brasileiro. É pena que, apesar de todos os esforços feitos, não
ter sido possível agendar uma entrevista com Hermeto. Outros nomes aparecem, como o
saxofonista Victor Assis Brasil que, mesmo tendo falecido há mais de vinte anos, continua
2.3. VICTOR ASSIS BRASIL 69

sendo lembrado, além de músicos com personalidade e estilos marcantes como Toninho
Horta e Nivaldo Ornellas, que aparece neste trabalho como entrevistado também.

Por fim, ficou a certeza de que traçar uma genealogia dos improvisadores foi muito
importante, pois indicou uma trajetória correta para se entender com maior precisão o
músico que improvisa e suas necessidades. Algumas dessas necessidades apontaram a
necessidade de detalhar com mais clareza, alguns aspectos da improvisação como o que
será tratado no capítulo a seguir, de considerações sobre a harmonia e no capítulo sobre
as técnicas de construção de um vocabulário para os improvisadores.

2.3 Victor Assis Brasil57

A grande ausência nessa lista de entrevistados ficou sendo o saxofonista Victor Assis,
que, mesmo tendo falecido precocemente, figura como um dos grandes improvisadores do
Brasil de todos os tempos. Artisticamente, a importância de Victor se torna ainda mais
significativa por ter sido ele um dos primeiros instrumentistas que fazia da improvisação a
sua característica mais destacada. Durante sua vida, seu nome sempre esteve associado
ao jazz carioca e, conseqüentemente, à improvisação. Na impossibilidade de entrevistar
o artista, o perfil de Victor Assis Brasil foi construído a partir de informações em livros,
encartes de discos, internet e em depoimentos de amigos e familiares para se trazer para
a discussão sobre improvisação, a contribuição de um dos nossos maiores improvisadores.

Nascido no final dos anos 40, Victor começou na música tocando harmônica de boca
cromática e bateria, instrumento que havia ganho de presente ainda no início da adoles-
cência. Mais tarde, quando tinha dezessete anos, ganhou de presente um saxofone alto
e foi estudar com Paulo Moura. Logo no início já começou a se interessar pelo jazz que
tentava aprender sozinho copiando passagens musicais que ouvia em discos. Seu irmão
gêmeo João Carlos Assis Brasil comenta esse período:

“Victor estudou um tempo com o Paulo Moura, única pessoa de nome que existia na
57
Victor Assis Brasil (1946–1981),
70 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

época. Além disso, estudava muita coisa sozinho. Era fascinado pelo solo do Cannonbal
Adderley58 na peça Cherokee de um disco da Sarah Vaughan. Na verdade, esse disco
foi o primeiro disco de jazz que entrou lá em casa e ele adorava esse disco por causa do
Cannonball, Ele ficava ouvindo e depois tocava junto com o disco.”
Esse fascínio pelo jazz levou Victor a participar ainda jovem de inúmeras jam sessions,
onde foi ficando conhecido como músico, chegando até a tocar no legendário Beco das
Garrafas, um dos locais que fervilhava de música e músicos entre o final dos anos 50
e início dos anos 60, sendo um dos lugares que são reconhecidos como germinais do
movimento da bossa nova.
Em 1965, Victor tocou na inauguração do Clube de Jazz e Bossa, casa noturna que
apresentava grandes nomes do cenário musical. No ano seguinte gravou o seu primeiro
disco, chamado Desenhos. Nesse mesmo ano foi para Viena, onde seu irmão João Carlos
estudava piano, e participou de um concurso internacional, ficando em terceiro lugar
entre os saxofonistas. Permaneceu quase um ano na capital austríaca, sendo considerado
o melhor solista do Festival de Jazz de Berlim, na antiga Alemanha Ocidental. De volta
ao Rio de Janeiro, apresentou-se regularmente em teatros, bares e universidades no Brasil
e lançou o seu segundo disco em 1968, Trajetos.
Em 1969, ganhou uma bolsa de estudos e foi estudar na faculdade americana Berklee
College of Music em Boston, onde residiu por cinco anos. Durante esse período nos
Estados Unidos, durante as férias no Brasil em 1970, Victor gravou dois discos produzidos
por Roberto Quantin: o primeiro se intitula Victor Assis Brasil toca Antonio Carlos
Jobim, onde interpreta peças do nosso famoso compositor que escreve o encarte do disco
dizendo:
“É o Victor que vai, com seu saxofone, contar a estória verdadeira desse disco. O
Victor ganhou para o Brasil o Festival de Jazz de Viena em 68 e este ano tirou o terceiro
lugar com o sax-alto na votação da Downbeat59 . Merecidíssimo. O som e o improviso de
58
Julian Adderley (1928-1975) – também conhecido pelo apelido de Cannonball foi um dos maiores
virtuosos de sax alto do jazz, tendo tocado com Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans, etc.
59
Downbeat – uma das mais antigas e respeitadas revistas americanas dedicada ao jazz
2.3. VICTOR ASSIS BRASIL 71

Victor Assis Brasil me emocionam.”

O segundo disco, Esperanto, recentemente relançado – com o título The Legacy – em


CD juntamente com Jobim – título da nova edição do disco sobre a obra de Tom Jobim
–, mostra um Victor extremamente influenciado por John Coltrane na improvisação e
na composição, apresentando longos trechos recheados de improvisos onde ele toca com
muita energia sobre estruturas modais.

A experiência na escola americana foi fundamental para Victor pois ele adquiriu muita
técnica no instrumento e também desenvolveu conhecimentos nas áreas de composição e
arranjo, se tornando um músico completo. Durante sua estada na América tocou com
músicos americanos que se tornariam seus amigos como o flautista Jeremy Steig, o pianista
Chick Corea e muitos outros. Teve também oportunidade de escrever arranjos de suas
composições para todo tipo de formações orquestrais, ganhando inestimável experiência.

Na volta ao Brasil gravou um disco ao vivo no Teatro da Galeria e começou a se


destacar no cenário da música brasileira. Em 1975 foi trabalhar na TV Globo como
compositor de trilhas sonoras, onde escreveu a música – inclusive o tema de abertura – da
novela O Grito. A convite de Marlos Nobre, apresentou-se como solista junto com a OSB,
interpretando a primeira audição da peça de Nobre, Suite para Sax Soprano e Cordas.

Após algumas novelas, cansado de receber sem trabalhar, Victor pediu demissão da
TV Globo e passou a se dedicar ao que seria o seu período mais fértil artisticamente,
marcado pelo lançamento de dois discos, Victor Assis Brasil Quinteto e Pedrinho. Antes
disso, entretanto, lançou um disco ao vivo gravado no MAM – Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro – onde já se mostrava muito amadurecido como solista e compositor.
Nesse disco encontramos a peça Pro Zeca – um baião que pode ter sido o seu primeiro
tema admirado por muitos músicos. Em uma entrevista à revista Veja em 1974, Victor
definiria o seu estilo como jazzístico mas enraizado em duas influências básicas, “as raízes
brasileiras e cariocas.” 60
60
Informação extraída do site: http://assisbrasil.org/vitorbio.html obtida no dia 2 de fevereiro
de 2004.
72 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS

O disco Victor Assis Brasil Quinteto, lançado em 1978 pela gravadora Philips, foi
uma obra bem produzida, desde a capa até as condições técnicas de gravação e mostra
um Victor fluente no idioma do jazz brasileiro como improvisador e compositor. Algumas
peças desse disco se tornaram clássicos, como Blues for Mr. Saltzman, Balada para Nadia
e Waltz for Phil, essa última provavelmente dedicada a uma de suas grandes influências,
o saxofonista americano Phil Woods.61 Esse disco foi lançado nos Estados Unidos pela
gravadora Inner City e lhe valeu um convite para tocar no Festival de Jazz de Monterey
na Califórnia, ao lado dos trompetista Dizzy Gillespie e Kenny Wheeler, dos saxofonistas
Sonny Stitt e Richie Cole, do baterista Roy Hanes, do contrabaixista Dave Holland e
muitos outros.

O disco que seguiu, Pedrinho, lançado em 1979 pela gravadora Odeon e recentemente
relançado em CD, marca o ápice da carreira de Victor Assis Brasil onde, acompanhado
por um trio de piano, contrabaixo e bateria ele desenvolvia solos sobre temas brasileiros
– O Cantador de Dori Caymmi e Nelson Motta e Nada Será Como Antes de Milton
Nascimento e Ronaldo Bastos – com uma fluência de idéias impressionante, temas de jazz
americanos como It’s Alright with me, S’Wonderful e Night and Day, além de apresentar
duas composições próprias fortes como a balada Pedrinho e a empolgante Penedo.

Não muito tempo depois do lançamento desse disco Victor começaria a sentir os efeitos
da doença rara, a periarterite nodosa, que acabaria por tirar-lhe a vida aos trinta e cinco
anos. Uma carreira rápida e marcante que o crítico de música José Domingos Raffaeli
definiria assim:

“Victor foi um exímio músico, dotado de uma técnica invejável. Seus improvisos,
muito criativos, eram de fraseado perfeito e bonito lirismo. Sabia interpretar uma me-
lodia, sempre conseguindo uma excelente expressividade com um lindo timbre. Victor
desenvolveu em cada trabalho uma atuação expressiva, criando em cada improvisação um
clima apropriado ao contexto, estendendo através de suas frases uma torrente de idéias
61
Phil Woods (1931- ) – um dos mais importantes saxofonistas de bebop do jazz. Herdeiro da tradição
de Charlie Parker.
2.3. VICTOR ASSIS BRASIL 73

precisamente articuladas e superiormente construídas. No sax-alto ou no sax-soprano, a


complexidade aparente de certas evoluções encerra uma lógica definida, cuja clareza reso-
luta é aparente aos que compreendem seu vocabulário. Ele não é somente um improvisador
de nível internacional, mas transcendeu a esse estágio para situar-se entre os criadores
do jazz, um músico cuja experiência, inventiva e bagagem musical empresta a cada solo
a marca indelével de sua individualidade, desenvolvendo idéias com forma, propósito e
beleza estética.” 62
Uma das grandes lições deixadas por Victor Assis Brasil foi a sua sinceridade e hones-
tidade musical, nunca se curvando a modismos e pressões comerciais. Em uma entrevista
para o jornal Folha de São Paulo em 1977, ele diria de si mesmo:
“É uma barra viver e sobreviver dentro desse esquema a que me propus. É preciso ter
peito, garra, passar fome, como eu passei nos Estados Unidos". E prometia - como, de
resto, cumpriu - "nunca tocar bolero na Praça Mauá"63

62
Idem
63
Idem
74 CAPÍTULO 2. GENEALOGIA DAS INFLUÊNCIAS
Capítulo 3

Considerações Harmônicas

A série de entrevistas realizadas para o capítulo anterior inspirou o desenvolvimento deste


capítulo, uma vez que todos os entrevistados levantaram a questão da importância do
conhecimento harmônico para a formação musical do improvisador – afinal, improvisar
melodias sobre progressões harmônicas pressupõe um conhecimento harmônico por parte
do improvisador. Apenas em contextos harmônicos extremamente simples e diatônicos
é possível improvisar melodias mesmo desconhecendo os acordes e suas funções. Mas a
verdade é que a maioria do repertório utilizado na música instrumental brasileira não é tão
simples nem completamente diatônico, contendo, muitas vezes na própria composição que
nos servirá de tema, acordes com funções múltiplas e, em muitos casos, até modulações.

O improvisador sério deve, portanto, buscar um mínimo de conhecimento harmônico,


ou ficará impossibilitado de improvisar livremente em qualquer peça. Quanto maior o
conhecimento das funções dos acordes, mais ferramentas esse improvisador terá a seu dis-
por. Uma vez que o presente trabalho se concentra na improvisação, será discutido aqui
apenas aqueles que considero serem conhecimentos harmônicos fundamentais para o im-
provisador, podendo e sendo recomendado que qualquer solista amplie o seu conhecimento
harmônico além dos aspectos aqui abordados.

Há uma distinção importante a ser feita no que se refere aos conhecimentos harmôni-

75
76 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

cos. Temos, na prática da música instrumental, músicos com instrumentos que, além de
sua capacidade melódica, possuem a capacidade de tocar acordes. Esses instrumentistas,
principalmente os pianistas, os contrabaixistas e violonistas ou guitarristas, estarão mais
próximos dos conhecimentos harmônicos que os instrumentistas que tocam instrumentos
puramente melódicos como o saxofone, trompete, flauta, etc. Por essa razão, recomenda-se
a qualquer improvisador que desenvolva alguma habilidade com um instrumento harmô-
nico, a fim de que possa aplicar os seus conhecimentos teóricos sobre harmonia, bem como
desenvolver uma percepção musical harmônica apurada. O musicólogo americano Paul
Berliner, em seu livro Thinking in Jazz descreve essa situação:

“Pianistas e guitarristas em geral aprendem acordes rapidamente, pois eles fazem parte
do ensino básico (desses instrumentos). Eles desenvolvem um conhecimento prático da
harmonia, uma vez que as peças mais simples dos respectivos repertórios exploram as pos-
sibilidades dos instrumentos de combinarem uma melodia com o seu acompanhamento.
Jovens instrumentistas que toquem instrumentos que não dispõem do recurso de prodizir
múltiplas notas simultaneamente muitas vezes acabam ficando atrasados no desenvolvi-
mento dos seus conhecimentos harmônicos em relação aos seus colegas. Aqueles que en-
contram dificuldades na percepção de acordes muitas vezes adotam o piano como segundo
instrumento, obtendo assim uma chave para o conhecimento harmônico.” (Berliner. 1994.
p.72)1

3.1 Funções harmônicas dos acordes

Sabemos que, dentro do universo da harmonia tonal, as funções harmônicas são tônica,
sub-dominante e dominante e que todos os acordes, sejam eles dos campos harmônicos
1
Pianists and guitarrists commonly learn about chords as part of their early instruction. They become
well practiced in apprehending harmony because even the simplest repertoire exploits the capacity of their
respective instruments to combine melody and accompaniment. Youngsters whose melody instruments lack
the capacity of perform multiple pitches simultaneously sometimes lag behind their friends in harmonic
development. Those who have difficult hearing chords commonly adopt piano as a second instrument,
providing them with the key to harmonic understanding. (p.72)
3.1. FUNÇÕES HARMÔNICAS DOS ACORDES 77

maiores ou menores têm, obrigatoriamente, uma dessas funções. Portanto, ao improvi-


sarmos sobre qualquer progressão harmônica, é importante que saibamos a qual função
pertence cada acorde. Vamos observar o quadro abaixo, onde os acordes estarão cifrados
para efeito de ilustração na tonalidade de Dó (C) maior:
Quadro 1 - Funções harmônicas do campo harmônico maior

Acorde – ex. em Dó (C)


Grau da escala Função
maior

I Cmaj72 Tônica

II Dm7 Sub-dominante

III Em7 Tônica

IV Fmaj7 Sub-dominante

V G7 Dominante

VI Am7 Tônica

VII Bm7b5 Dominante

O acorde que irá nos orientar tonalmente com muita clareza são os acordes dominates
ou como também são chamados, os acordes com sétima. Esses acordes tem a função de
direcionar o movimento harmônico pois contém o trítono, o intervalo qie define a resolução
para o primeiro grau. O acorde dominante, como vimos no gráfico, é o acorde originado
no quinto grau da escala, ou seja, se estivermos em Dó (C) maior, ele seria o G7 que
resolveria no primeiro graum sendo no caso, Cmaj7,
Há também dois casos especiais de acordes dominantes muito ocorrentes nas progres-
sões harmônicas da música instrumental, são os dominates secundários e os dominantes
substitutos. Os acordes dominantes secundários são os aordes com sétima referentes a
2
O universo da música instrumental não é, na sua grande maioria, triádico. Não há distinção de
função para uma tríade ou um acorde com sétima. Dessa forma, o I grau é Imaj7, ou seja, o acorde do
primeiro grau — o acorde da tônica — já leva a sétima maior e os conseguintes — IIm7, IIIm7, IVmaj7,
V7, VIm7, VIIm7b5.
78 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

cada grau da escala. Por exemplo, em Dó (C) maior, o dominante secundário do acorde
do segundo grau, Dm7, é o A7. O dominante secundário do acorde do segundo grau,
Em7, é o B7 e assim sucessivamente, Esses acordes não são diatônicos mas por terem uma
função de proporcionar uma progressão onde o dominante resolve em um outro acorde,
esse sim diatônico, eles enriquecem as progressões criando mais movimentos harmônicos.

O dominante substituto é simplesmente substituição do acorde dominante – por


exemplo em Dó (C) maior estamos falando do G7 – pelo outro acorde de sétima que
contém o mesmo trítono, que seria no nosso exemplo o Db7. Mesmo esse acorde tendo
notas não-diatônicas – caso da nota ré bemol e lá bemol – ele trará uma sensação forte,
porém diferente, de resolução quando caminha para o Cmaj7 pois as notas do trítono – si
e fá – resolvem em dó e mi, a tônica e a terça de Cmaj7 como acontece com o acorde de
G7. Podemos simplificar e dizer que todo acorde de sétima que se situa a meio tom acima
do primeiro grau também é um acorde dominante, com a diferença de ser considerado o
dominante substituto.

Quando a peça estiver em tom menor a maioria das funções não se alteram, apesar
dos acordes se alterarem sensivelmente. A maior diferença é que só temos dois acordes
pertencentes à área da tônica – mesmo assim o bIII3 é extremamente instável. Observemos
o quadro construído a partir da escala menor harmônica4 .

Quadro 2 – Quadro construído a partir da escala menor harmônica

Ao tratarmos de alteraçôes de meio tom – tanto para cima (sustenidos), como para baixo (bemóis)
3

- dos graus relativos aos acordes, colocamos a alterçâo antes do algarimo romano. Por exemplo, para
abaixarmos meio tom o III grau, colocamos o bemol antes do numeral: bIII. Ou para aumentarmos meio
tom, digamos, o quarto grau, colocamo o sustenido antes do numeral: #IV.
4
Quando estamos lidando com a tonalidade menor, muitas vezes evita-se na construção do I grau,
a utilização do sétimo grau da escala presente na escala menor harmônica. Pois essa nota nos dará um
acorde de primeiro grau menor com a sétima maior, no bIII um acorde com quinta aumentada, e o sétimo
grau um acorde diminuto. A melhor opção nessa situação é utilizar o sétimo grau da escala menor natural
para os acordes dos graus I, bIII e bVII. De uma forma mais genérica, em tonalidades menores serão
encontrados com mais frequência acordes construídos simultaneamente a partir das três escalas, de modo
que seja atingido um efeito musical mais homogêneo e com mais estabilidade.
3.1. FUNÇÕES HARMÔNICAS DOS ACORDES 79

Acorde – ex. em Dó (C)


Grau da escala Função
maior

I Cm(maj7) Tônica

II Dm7b5 Sub-dominante

bIII Ebmaj7(#5) Tônica


80 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

IV Fm7 Sub-dominante

V G7 Dominante

bVI Abmaj7 Sub-dominante

VII Bo7 Dominante

Para o caso da escala menor natural, a função do sétimo grau se altera mas temos o
enfraquecimento da função dominante com a ausência da sensível da escala no acorde do
V grau.
Quadro 3 -Quadro de funções harmônicas do campo harmônico menor a
partir da escala menor natural
Acorde – ex. em Dó (C)
Grau da escala Função
maior

I Cm7 Tônica

II Dm7b5 Sub-dominante

bIII Ebmaj7 Tônica

IV Fm7 Sub-dominante

V Gm7 Dominante

bVI Abmaj7 Sub-dominante

VII Bb7 Sub-dominante

A escala menor melódica, que na música instrumental é encontrada apenas na sua forma
ascendente, nos oferece algumas outras opções, com o aparecimento do grau IV7, VIm7b5
e bVIImaj7.
Quadro 4 - Quadro de funções harmônicas do campo harmônico menor a
partir da escala menor melódica
3.2. A CADÊNCIA II-V 81

Acorde – ex. em Dó (C)


Grau da escala Função
maior

I Cm(maj7) Tônica

II Dm7 Sub-dominante

bIII Ebmaj7(#5) Tônica

IV F7 Sub-dominante

V G7 Dominante

bVI Am7b5 Sub-dominante

VII Bbmaj7 Sub-dominante

É claro que não se improvisa consultando quadros, mas um conhecimento dos acordes e
suas funções relativas à tonalidade do momento nos ajudará a compreender o contexto
harmônico a partir do qual construiremos a nossa improvisação, além de nos facilitar o
reconhecimento de eventuais modulações.

3.2 A Cadência II-V

Os movimentos harmônicos formam cadências5 que poderão ser de três categorias:


A cadência dominante-tônica – onde um acorde de função dominante precede um
acorde com função de tônica.
A cadência subdominante-tônica – onde um acorde de função subdominante precede
um acorde com função de tônica. Essa cadência também é conhecida como plagal.
A cadência subdominante-dominante – onde uma acorde de função subdominante
precede um acorde com função de dominante. Geralmente um acorde de tônica aparece
ao fim de um tema ou da primeira parte de uma tema, fazendo com que a cadência
5
De acordo com o método de harmonia de Berklee cadência significa “movimento melódico e/ou
harmônico para um ponto de repouso.”
“The term cadence means melodic and/or harmonic movement to a point of rest.”(p.44-Harmony I)
82 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

se resolva, como esperado, na tônica. É muito comum, porém, que, nos temas para
improvisação, nem todas as cadências sejam resolvidas na tônica. Quando isso acontece,
chamamos esse movimento harmônico de cadência de engano6 , pois a nossa expectativa
de resolução na tônica não se realiza.

Por caminhar para a resolução e, conseqüentemente, proporcionar a sensação de final,


a cadência subdominante-dominante-tônica é uma das mais comuns. Mas em contex-
tos harmônicos criados ou utilizados para a improvisação, a cadência mais utilizada é a
subdominante-dominante, seja resolvendo-se posteriormente na tônica como simplesmente
repetindo-se inúmeras vezes enquanto o improvisador cria um solo sobre essa seqüência.

Se tomarmos como ilustração as cadências subdominante-dominante no tom de C


maior teremos as seguintes progressões:

1. O quarto grau indo para o quinto grau:

Figura 1 – Progressão harmônica do quarto para o quinto grau

2. O segundo grau indo para o quinto grau:

Figura 27 - Progressão harmônica do segundo para o quinto grau


Cadência de engano é também conhecida como cadência deceptiva, sendo que esse termo provavel-
6

mente se deriva do termo usado nos métodos em inglês, deceptive cadence. O autor, apesar de privilegiar
o termo cadência de engano, acha que o termo deceptiva explica melhor a cadência, uma vez que nâo
há engano por parte de quem a utiliza, e sim uma surpresa quando a cadêcia nâo se completa da forma
esperada.
7
Como não existe um padrão universal para a cifragem dos acordes, encontramos nas publicações
existentes, muitas variações, principalmente nos casos do acordes maiores com sétima maior e menores
com sétima menor. Alguns autores utilizam por exemplo, C7M, CM7, ou CMa7 para o acorde de Dó
maior com sétima maior. Na minha opinião, apenas a raiz do acorde deve levar a letra maiúscula, portanto
privilegio a forma utilizada pela Berklee College of Music, Cmaj7, que mesmo contendo uma abreviação
3.2. A CADÊNCIA II-V 83

3. O quarto grau indo para o sétimo grau:

Figura 3 - Progressão harmônica do quarto para o sétimo grau

4. O segundo grau indo para o sétimo grau:

Figura 4 - Progressão harmônica do segundo para o sétimo grau

De todos os exemplos acima, o que oferece melhores resultados é o de número dois,


pois vai criar um movimento de quartas ascendentes (ou quintas descendentes) no baixo
que auxilia tanto melodicamente quanto ritmicamente.

Essa cadência também aparece em contextos de modos menores:

Figura 5 - Progressão harmônica do segundo para o quinto grau em contexto


de tonalidade menor

Saber reconhecer rapidamente esse tipo de progressão é de suma importância para o


improvisador, pois essa seqüência de acordes irá aparecer inúmeras vezes e em diferentes
em inglès da palavra major, acredito possuir uma maior clareza. Já os acordes menores com sétima,
particularmente prefiro cifrar, no caso de Dó, Cm7. Todavia, o programa de escrita musical Finale, não
reconhece essa cifra pois ela não foi programada na chord library do programa. Haveria a possibilidade
de criar esse formato para esse trabalho mas, mesmo aparecendo corretamente na partitura,eu perderia
a possibilidade de usar uma da melhores ferramentas do Finale que é a função playback de acordes
cifrados.Portanto, em vários exemplos serão encontrados acordes menores com sétima cifraos com o sufixo
min7 que é o disponível no Finale.
84 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

contextos.

3.3 Harmonia Modal

Um outro contexto muito propício para a improvisação são as peças com estruturas harmô-
nicas baseadas em modos. Poderíamos dizer que aquilo que convencionamos chamar de
tonalidade maior advém da escala maior, ou modo jônico. Todavia, quando nos referirmos
à música modal, estamos querendo dizer que a peça tem por referência um modo outro
que não seja o jônico ou as escalas menores natural, harmônica ou melódica. No caso
dessas escalas menores, consideramos que a peça tem uma tonalidade menor, ou seja, que
segue as regras harmônicas da tonalidade maior, apenas tendo como ponto de repouso
um acorde menor.

Podemos ter música modal nos modos dórico, frígio e mixolídio. Os outros modos pro-
venientes da escala maior – lídio e lócrio – não se prestam à música modal. Por ser muito
próximo do jônico (uma escala idêntica, apresentando apenas o quarto grau aumentado),
o modo lídio apresenta uma grande dificuldade de se estabelecer como estrutura estável.
O caso do modo lócrio é mais instável ainda, pois o acorde que seria o mais importante
contém uma tríade diminuta.

Ex: Dó (C) lídio

Figura 6 – Escala de Dó (C) lídio

Dó (C) lócrio
3.3. HARMONIA MODAL 85

Figura 7 – Escala de Dó (C) lócrio

A música, para ser considerada modal, deve estabelecer um centro tonal que não pode
ser perturbado. É por essa razão que não há cadências na música modal, e também por
isso os movimentos dos acordes devem ser sutis, para que o acorde de dominante que
estará contido na escala não nos impulsione para uma resolução (que destruiria o efeito
modal) ou nos leve a uma cadência de engano.

Vejamos os modos menores transpostos em Dó (C):

Dó (C) dórico

Figura 8 – Escala de Dó (C) dórico

Dó (C) frígio

Figura 9 – Escala de Dó (C) frígio

E também o modo maior mixolídio:

Dó (C) mixolídio
86 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

Figura 10 – Escala de Dó (C) mixolídio


Assim como o modo sintético8 mixolídio #49 em Dó (C)

Figura 11 – Escala de Dó (C) mixolídio #4


Todos esses modos são adequados para a construção de temas modais propícios à
improvisação.

3.4 Empréstimo Modal

O empréstimo modal é uma das técnicas harmônicas mais utilizadas na música brasileira,
principalmente a partir da bossa nova. Consiste, de acordo com o método de harmonia do
Berklee College of Music, em “tomar emprestados acordes diatônicos de um modo (escala)
paralelo e utilizá-los no tom primário”.10 (Nettles & Ulanovski. Harmony II. 1987. p.43)
Vamos tomar como exemplo, na tonalidade de Dó (C), os acordes que formam os
campos harmônicos a partir das escalas jônica (maior) e da menor melódica.
Quadro 5 – Acordes que formam os campos harmônicos a partir das escalas
jônica (maior) e da menor melódica na tonalidade de Dó (C)

Cmaj7 Dm7 Em7 Fmaj7 G7 Am7 Bm7b5


Cm(maj7)
ou Dm7 Ebmaj7(#5) F7 G7 Am7b5 Bm7b5

Cm6

Consideramos um modo como sintético quando ele não é originário da escala maior.
8

O modo mixolídio #4 é também conhecido como lídio b7. Alguns autores consideram esse modo
9

como proveniente do modo lídio. Para esse estudo, como esse modo funciona de forma intercambiável
com o modo mixilídio, principalmente na música nordestina, fiz a opção por chama-lo de mixolídio #4.
10
“Modal Interchange is the borrowing of diatonic chords from a parallel mode (scale) and using them
in the primary key.” (p.43) Harmony II
3.4. EMPRÉSTIMO MODAL 87

Agora vamos observar quatro compassos da composição Triste de Tom Jobim:

Figura 12 – Fragmento de Triste


O primeiro acorde – Cmaj7 – é o primeiro acorde do tom. O próximo – Cmin7 – trans-
forma o primeiro grau em menor (emprestado, por exemplo, da escala menor natural), e
o terceiro acorde – Cmin6 – é um acorde de empréstimo da escala menor harmônica, ou
do modo dórico. Desse forma, a peça pode oscilar entre as tonalidades maior e menor,
mesmo estando primordialmente em C maior, tomando emprestado acordes dos modos
menores.
Outro bom exemplo pode ser Dindi, também de Jobim:

Figura 13 – Fragmento de Dindi


Nesse caso, tanto o acorde Bbmaj7 como o acorde Fm6 são acordes de empréstimo da
escala menor melódica.
A música mineira também tem exemplos ricos em empréstimo modal, como a coda da
famosa composição de Toninho Horta, Beijo Partido 11 :
11
Beijo Partido é uma composição originalmente em Mi(E) menor. Aqui eu transpus para Dó (C)
88 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

Figura 14 – Fragmento de Beijo Partido

O acorde de Cm9 é o primeiro grau, que pode ser considerado oriundo da escala menor
natural. O acorde de F13(b9) é um acorde de empréstimo de uma escala menor dórica
com a quarta aumentada. É possível observar que, no final, teremos o Fmaj7, que é um
acorde de empréstimo da escala jônica fazendo, em um tom menor, um empréstimo da
tonalidade maior.

O empréstimo modal é uma ferramenta harmônica tão presente na música brasileira


que faz com que os improvisadores mais intuitivos tenham dificuldades em improvisar so-
bre muitas peças que são consideradas referenciais. Conhecer a teoria e o comportamento
desses acordes é, portanto, primordial para o solista improvisador.

3.5 As tensões harmônicas dos acordes

Diferentemente do estudo da harmonia tradicional, que se aplica ao estudo da música


clássica, onde só as notas que compõem a tríade são consideradas notas dos acordes, na
música instrumental as sétimas também são consideradas notas dos acordes e, por assim
dizer, consonâncias. Notas acrescidas ao tetracorde serão consideradas tensões.

As tensões podem ser de três tipos: nonas, décimas primeiras ou décimas terceiras.
Esses intervalos são classificados em relação à tônica do acorde, independente do acorde
estar na posição natural ou em qualquer uma de suas inversões. Esses intervalos criam
dissonâncias, por isso essas notas são denominadas de tensões.

É possível reconhecer essas tensões nas cifras, que devem explicitar as tensões que
podem, ou devem, ser usadas em determinado acorde. Por exemplo, o acorde de sétima
menor para clarificar a análise, uma vez que todos os outros exemplos também estavam em Dó (C).
3.5. AS TENSÕES HARMÔNICAS DOS ACORDES 89

maior com nona deve conter essas informação, devendo ser escrito assim: Cmaj7,9. Como
as tensões são notas acima das sétimas e presumem que os acordes em questão são acordes
com sétima, podemos simplificar esse acorde e escrever simplesmente Cmaj9. Ambas as
formas de se escrever esse acorde são consideradas corretas e são entendidas pelos músicos.
Em alguns casos, esses intervalos acima da sétima criarão um intervalo de nona bemol
com alguma nota do tetracorde original e, nesse caso, a tensão é considerada indese-
jada. Por exemplo, a décima primeira no acorde de sétima maior criará um intervalo de
nona bemol com a terça desse acorde, criando uma dissonância excessiva e confundindo
a qualidade do acorde.
Ex:

Figura 15 – Acorde de Cmaj7 com a tensão 11


Nesse acorde, a décima primeira, o F, está a uma distância de nona bemol do E, que é
a terça do acorde e, portanto, a segunda nota mais importante hierarquicamente. Nesse
caso, a tensão não deve ser utilizada. A tensão de décima primeira no acorde de sétima
maior é uma tensão a ser evitada.
A seguir, reproduzo um quadro, originalmente do método de harmonia do Berklee
College of Music, para o uso de tensões disponíveis nos vários tipos de acordes de sétima:
Quadro 6 – Tensões disponíveis nos vários tipos de acordes de sétima

Tensões
Tensões Disponíveis
Acordes Disponíveis em apenas nas Exceções
quaisquer situações funções
diatônicas
90 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

Maj7 9, 13 #11 -

m(maj7) 9, 11, 13 - -
13 apenas no
m7 11 9
contexto dórico

m7b5 11, b13 9, #11, 13 b9, #9, b1312

7 9, 13 b9, #9, b1313

7(sus4) 9, 13 - -

7,#5 9, #11 - -
Todas as tensões
devem estar a uma
o7 nona maior de - -

distância de cada
nota do acorde

A música popular e a música instrumental brasileira são ricas na utilização de tensões dos
acordes em suas melodias. Vejamos alguns exemplos, como a parte B de A Rã de João
Donato:

12
As tensões alteradas são muito comuns nos acordes dominantes. Especialmente quando eles resolvem
em acordes menores.
13
Tensões alteradas nos acordes de 7(sus4) são raros, mas podem ser vistam em composições modernas
com harmonias híbridas.
3.5. AS TENSÕES HARMÔNICAS DOS ACORDES 91

Figura 16 – Fragmento de A Rã

Reparemos como o motivo melódico é harmonizado quase sempre com as notas sendo
tensões. Outro bom exemplo é Beijo Partido, de Toninho Horta, que tem uma melodia
sinuosa harmonizada principalmente por acordes nos quais os principais pontos melódicos
são tensões:

Figura 17 – Fragmento de Beijo Partido


92 CAPÍTULO 3. CONSIDERAÇÕES HARMÔNICAS

Ou ainda, na primeira parte de Brigas Nunca Mais, de Jobim:

Figura 18 – Fragmento de Brigas Nunca Mais


Saber reconhecer rapidamente as tensões nos acordes cifrados é fundamental para que
o improvisador consiga criar melodias sobre a harmonia de um tema que já contenha, na
natureza da sua composição, melodias construídas com uso constante de tensões.
Capítulo 4

Construção de um vocabulário

4.1 Introdução

Certa vez um aluno particular de improvisação chegou à minha casa para a primeira aula.
Ele estava ansioso e se mostrava muito animado. Após tirarmos os instrumentos dos esto-
jos, montá-los e emitirmos as primeiras notas para nos certificarmos que os instrumentos
estavam funcionando corretamente, ele me deu o caderno de música que eu havia pedido
que ele trouxesse para a aula. Era um caderno novo. Para descontraí-lo, eu abri na
primeira página, escrevi em letras garrafais a palavra “vocabulário”, fechei o caderno e o
devolvi anunciando o fim da aula. O aluno abriu o caderno, leu o que estava escrito e ficou
perplexo. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Eu simplesmente disse: essa
é a única coisa que posso te ensinar. Na verdade foi simplesmente uma forma de mostrar
ao aluno que o estudo da improvisação é, antes de mais nada, o estudo de um desenvol-
vimento de vocabulário. Ou é praticamente só isso. Ninguém ensina a um jovem a ser
escritor, a escrever romances, a contar histórias. Ensina-se gramática, os fundamentos da
língua, as estruturas formais e assim por diante. O improvisador, assim como o escritor,
se tornará tão bom quanto forem as histórias – no nosso caso, solos melódicos – que estão
na imaginação do artista. Mas são necessárias ferramentas para contar essas histórias ou

93
94 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

criar melodias. No caso do improvisador as ferramentas são os conhecimentos harmôni-


cos e melódicos que, aliados à desenvoltura técnica no instrumento e à personalidade do
músico, resultarão no estilo do solista.

Para que seja possível desenvolver conhecimentos harmônicos é necessário apenas estu-
dar harmonia funcional, ou seja, conhecer os acordes, suas funções e suas peculiaridades.
Como muitos improvisadores tocarão primordialmente um instrumento melódico – que
emite uma nota de cada vez – esse conhecimento pode se tornar teórico. É possível ser
um excelente improvisador sem estudar, mesmo que de forma rudimentar, um instru-
mento harmônico, mas algum conhecimento harmônico empírico será sempre um recurso
extraordinário para um solista. Se for o caso de escolher um instrumento harmônico com-
plementar, a escolha ideal é o piano, pois o teclado permite que se tenha um visão espacial
completa das notas e das vozes dos acordes.

No capítulo anterior discutimos os elementos harmônicos mínimos essenciais para um


improvisador. Nesse capítulo abordaremos o desenvolvimento de um vocabulário meló-
dico. Existem três matrizes básicas para o desenvolvimento de um vocabulário. Essas
matrizes não são, de forma alguma, excludentes entre si. Na verdade, elas se complemen-
tam. Cada uma delas pode se subdividir em estudos e aplicações específicas.

A primeira delas é o entendimento dos formatos das peças que servem para a impro-
visação. Esses formatos podem, e certamente irão, variar de gênero e estrutura musical,
pois algumas peças são compostas simplesmente de uma parte, enquanto outras têm uma
segunda, uma terceira, etc. No fundo, aquilo de que tratamos aqui é como saber “navegar”
pela composição de forma fluente ou, dizendo de outra forma, como não se perder na
forma durante um improviso. Não há nada pior para um improvisador do que se
perder na forma.

O segundo item é o conhecimento e manuseio das escalas dos acordes. Conhecer a


escala – ou escalas – que podem ser aplicadas a um determinado acorde é um passo
importante mas, sem o conhecimento de coisas básicas – como por exemplo, as notas que
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 95

devem ser utilizadas somente como notas de passagem –, mesmo tocando a escala correta
o solo pode acabar soando estranho ao estilo da composição. Ou seja, é possível estar
tocando a nota errada da escala certa dentro de um determinado contexto harmônico.

O terceiro é o estudo de fragmentos melódicos1 ou, como dizem os músicos, licks 2


ou clichés 3 . A partir da prática de frases melódicas curtas é possível desenvolver um
vocabulário específico para situações harmônicas que sejam muito correntes dentro do
repertório comum aos improvisadores. Essa prática é uma excelente ferramenta para
auxiliar o solista a desenvolver uma espécie de instinto melódico, pois esses fragmentos
curtos, quando bem escolhidos, possuem contornos melódicos interessantes que ampliarão
o espectro melódico do improvisador.

Há outras ferramentas que serão discutidas como as transcrições de solos e cromatis-


mos, que são excelentes e, em algum grau, imprescindíveis ao arsenal do músico improvi-
sador. Contudo, do ponto de vista de uma organização metodológica, essas técnicas não
deixam de ser uma extensão das três primárias apresentadas acima.

4.2 O Estudo das formas

4.2.1 Entender a forma

Um aprendiz de improvisador percebe que está se tornando um solista quando ele consegue
acompanhar uma forma de um solo tanto quando está improvisando como quando está
simplesmente tocando os acordes – caso de pianistas, guitarristas/violonistas e baixistas
– ou esperando a vez de improvisar ou retornar ao tema. Nesse contexto, aqueles que
tocam também instrumentos harmônicos levam muita vantagem, pois estão tocando o
ciclo de forma ininterrupta, acompanhando um solista e podendo dessa maneira entender
1
Fragmentos melódicos são também conhecidos como padrões ou padrões melódicos. Músicos uti-
lizam estrangeirismos como o galicismo cliché ou o anglicismo lick quando se referem ao estudo desses
fragmentos melódicos.
2
Ver Glossário
3
Ver Glossário
96 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

mais empiricamente a forma. Os solistas de instrumentos melódicos têm que desenvolver


uma capacidade auditiva de entender a forma do solo tanto quando estão atuando como
solistas como quando estão simplesmente ouvindo um outro improvisador solar. Essa
compreensão da forma antecede ao ato de improvisar propriamente dito, pois não há
nada pior do que se perder na forma. Hierarquicamente a forma é o pilar da estrutura,
pois irá determinar o ciclo no qual os solos se seguirão.

A maioria das formas consideradas propícias pelos improvisadores têm algumas carac-
terísticas em comum, tais como:

• ter um número par de compassos (ex. 12, 16, 24, 32);

• respeitar a forma do tema melódico;

• não ser excessivamente longas – menores que 36 compassos – para não tornar o
acompanhamento aural muito difícil;

• se encaixar em alguns formatos de canções já conhecidos como A, AB, ABC, AABA,


etc.4

Peças com mais de três partes já se tornam longas e complexas demais para o exercício
da improvisação e são incomuns dentro do repertório tradicional. Há contudo, peças mais
modernas nas quais, seja por sua complexidade em termos de forma ou de progressão
harmônica, os improvisos acontecem em uma parte separada, chamada de Seção de Solo.
Peças com essa natureza encontram mais dificuldade de se firmarem como standards 5 .

Há três maneiras básicas para um solista que toque um instrumento melódico acom-
panhar a forma do solo:
4
Os improvisadores se referem as partes de uma peça no qual vão improvisar utilizando as letras da
alfabeto, na sua ordem original, para designar as partes. Assim, a primeira parte seria o A da peça, a
segunda o B, e assim por diante.
5
Standard - o dicionário britânico Oxford Advanced Learner’s Dictionary, na definição número quatro
do verbete, diz widely accepted as the usual form, que pode ser traduzido como “o que é largamente aceito
como a forma usual”.
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 97

1. Contando o número de compassos – recomendado para formas curtas de 12 ou 16


compassos.

2. Aplicando percepção musical harmônica aos acordes da forma, reconhecendo os


acordes e acompanhando dessa maneira a progressão – excelente mecanismo mas
que exige uma percepção harmônica precisa, especialmente em peças de contextos
harmônicos muito complexos.

3. Cantarolando internamente (sem emitir ruído perceptível) a melodia do tema en-


quanto outro músico está improvisando, mecanismo muito eficiente mas que possui
o efeito indesejável de tornar aquele que o aplica um tanto alienado dos eventos
musicais que estão acontecendo.

Qualquer improvisador utiliza as três ferramentas de forma intercambiável, escolhendo-as


de acordo com o contexto musical. Eventualmente, após tocar várias vezes determinada
peça, o improvisador desenvolve uma espécie de instinto ao interpreta-la, ou seja, ele
não precisa mais pensar onde está na forma, pois ele pressente e reage de maneira quase
instintiva aos eventos musicais.
Com uma prática continuada, aquele que está aprendendo a improvisar acaba por ad-
quirir um conhecimento empírico de certos formatos musicais de um tema. Esse conheci-
mento será útil, uma vez que situações musicais irão se repetir, podendo ser eventualmente
reconhecidas em outras situações, como ilustra Berliner:
“Conforme os estudantes vão ficando mais familiarizados com o repertório jazzístico,
eles desenvolvem um perspectiva comparativa das suas formas.(. . . ) Um ingrediente fun-
damental no processo de aprendizado de um músico (de jazz) é a habilidade de reconhecer
um caso paralelo quando confrontado com um. Se elementos fazem lembrar componentes
de uma outra peça quando um novo tema é abordado, o estudante geralmente cataloga a
informação rapidamente de forma a poder recorrer aos conhecimentos adquiridos previa-
mente.” (Berliner. 1994. p.18)6
6
“As students become more familiar with the jazz repertoire, they develop a comparative perspective
98 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

O passo seguinte é memorizar a progressão harmônica.

4.2.2 A Memorização dos acordes

Esse tópico se destina basicamente aos instrumentos melódicos, uma vez que a memoriza-
ção dos acordes nos instrumentos com capacidade harmônica pode ser obtido pela simples
execução dos acordes da peça inúmeras vezes até que não haja mais necessidade de olhar
a partitura. Para os instrumentos harmônicos não há processo mais eficiente. Para os
instrumentos melódicos, que não dispõem desse recurso, se faz necessária de a utilização
de outros processos.
Mesmo sendo possível improvisar lendo a progressão harmônica – ou simplesmente,
como dizem os músicos, lendo a harmonia7 – o ato de improvisar tendo na memória toda
a progressão harmônica possibilitará uma performance muito mais fluída, sem mencionar
o embaraço de ter de abrir a partitura toda vez que um tema vá ser tocado8 . Por essa
razão, a memorização da progressão harmônica é uma habilidade imprescindível.

4.2.3 A Preparação de bases

As bases gravadas, como são conhecidos os playalongs 9 , que serão discutidos mais pro-
fundamente adiante, se tornaram um parceiro importante na memorização das harmonias
on its forms. (. . . ) An essential ingredient in learning to be a musician is the ability to recognize a
parallel case when you are confronted with one. If things remind you of other pieces when you approach
a new piece, you generally catalogue them very quickly so that you can draw upon your accumulated
knowledge.” (p.78)
7
Mesmo os instrumentistas de melodia, como saxofonistas, trompetistas, etc, que não produzirão
acordes na sua performance, quando necessitam da partitura com a progressão harmônica para a impro-
visação, se referem a esse ato como ler a harmonia.
8
O improvisador deve ter na memória todo ou a maior parte do seu repertório. Ser convidado, por
exemplo, para tocar uma música em uma jam session e ter de abrir a partitura é sinal de amadorismo.
9
Playalong foi um vocábulo que se criou em inglês para a prática de se estudar com as gravações
originais, ou como define Berliner, “playing along the (original) records”. Mais tarde, provavelmente
inspirados na série Music Minus One, que já existia e eram discos do repertório tradicional clássico para
o estudo dos instrumentistas, começaram a aparecer os primeiros discos de acompanhamento para a
prática da improvisação jazzística. O termo playalong acabou por ser firmar nos Estados Unidos pelos
esforços do educador Jamey Aeberold – o trabalho de Aebersold será tratado com mais detalhamento no
capítulo 6 – que chegou a registrar a marca play-a-long® para sua série de CDs de acompanhamento.
O termo se tornou um anglicismo usado entre os músicos brasileiros, que também o chamam jocosamente
de playalone, ou seja, estudar solitariamente.
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 99

dos temas de jazz, principalmente os de origem americana. Para o repertório nacional


existem algumas edições10 , a maioria de origem americana, mas podemos dizer que é tudo
muito incipiente, restando ao improvisador o recurso de preparar as suas próprias bases.

Na preparação dessas bases temos duas opções:

1. Gravar as bases com algum instrumento harmônico, como piano, violão ou guitarra.

2. Utilizar algum programa de computador que crie as bases em tempo real.11 Nesses
programas os acordes são digitados e o ritmo, assim como o estilo de acompa-
nhamento, é escolhido de acordo com um menu de opções. Para a memorização
de harmonias é uma ferramenta excelente, mas para um improvisador não inspira
muito pois, como o acompanhamento é eletrônico, ele não possui muita dinâmica e
os ritmos são percebidos como sendo muito mecânicos.

4.2.4 Memorizar acordes por arpejos e padrões melódicos

Há algumas formas de se memorizar harmonias sem o uso de tecnologia alguma ou sim-


plesmente com o uso de um metrônomo, como se fazia nos primórdios do jazz. Para isso
é necessário arpejar os acordes de uma progressão harmônica, seguindo as batidas de um
metrônomo. Por exemplo, sobre os primeiros compassos de Brigas, nunca mais, podemos
exercitar os arpejos de forma encadeada:
10
A Funarte chegou a lançar na década de oitenta, dois volumes chamada Dê uma canja, produzida por
Luiz Otvio Braga e Roberto Gnatalli. Esse material, que continha um LP e uma pequena brochura por
volume, continha um repertório variado de músicas brasileiras, principalmente sambas, choros e bossas
novas acompanhado de um conjunto de formação regional. Mesmo sendo um iniciativa primorosa de valor
grande didático, não era dirigido ao improvisador pois intercala as melodias e não divide a estrutura em
choruses para a improvisaçâo.
11
Os programas de acompanhamento utilizam técnicas algorítmicas de composição na sua programação
de forma que as bases sejam compostas quase em tempo real, utilizando uma pletora de ritmos e estilos.
O som pode ser produzido com o auxílio de algum equipamento MIDI ou utilizando a própria placa
de som do computador. Esses programas, como o Band in a Box ou Jammer, vem se tornando muito
populares nos últimos anos.
100 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 19 – Arpejos encadeados sobre os quatro primeiros compassos de


Brigas Nunca Mais
Ajustando o metrônomo para a nossa necessidade e capacidade, podemos dessa forma
memorizar toda a progressão por arpejos que também podem servir como uma fonte
alternativa de melodias para o improviso.
Padrões melódicos podem ser derivados das escalas dos acordes. Nesse caso, não
obtemos todos os graus do acorde mas conseguimos preservar algumas características
desses acordes, já que os padrões irão passar obrigatoriamente pelas tensões dos acordes.
Aplicando um padrão melódico sobre o mesmo trecho de Brigas, nunca mais poderemos
obter:
1. De formato ascendente:

Figura 20 – Aplicação de padrão melódico ascendente sobre os quatro pri-


meiros compassos de Brigas Nunca Mais

1. De formato descendente:

Figura 21 – Aplicação de padrão melódico descendente sobre os quatro


primeiros compassos de Brigas Nunca Mais
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 101

A utilização combinada dessas duas ferramentas – arpejos e padrões melódicos –


auxiliam o improvisador a memorizar uma progressão harmônica sem a necessidade de
um instrumento harmônico. Todavia, se o músico puder ter um instrumento de harmonia
acompanhando o exercício, ele se torna duplamente efetivo, pois fará auditivamente a
ligação dos arpejos com a progressão melódica.

4.2.5 A Prática em formas curtas

Ser capaz de acompanhar mentalmente a progressão harmônica de um tema é uma ha-


bilidade que é exigida dos improvisadores. Mas essa exigência é algo que os músicos que
tocam instrumentos melódicos e, portanto, não estão tocando os acordes, têm mais dificul-
dade de desenvolver. Recomenda-se iniciar praticando sobre formas curtas, contendo por
exemplo apenas quatro compassos, e aos poucos ir aumentando o número de compassos e
a quantidade de acordes.

Pode-se repetir indefinidamente essa progressão de apenas quatro compassos. E o


improvisador pode utilizar um quadro que determina quando tocar e quando simplesmente
acompanhar em silêncio a progressão:
Quadro 7 – Sugestões de fórmulas para o estudo de silêncios. Os números
se referem a compassoa que devem ser preenchido simplesmente com pausas.

Tocar Tacet

1 1

2 2
102 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

3 2

2 3

É possível alterar esses números, criando assim variações mais complicadas, como tocar
cinco vezes e parar duas, obrigando ao solista a contar mentalmente não só quando está
sem tocar, mas também durante o solo, para ter consciência de quando o final está se
aproximando.

A seguir podemos fazer o mesmo tipo de exercício – inclusive aplicando o mesmo


quadro – sobre uma progressão, também de II-V, mas de oito compassos com a inclusão
de uma leve modulação.

Figura 22 – Progressão II-V de oito compassos

Prosseguindo na quadratura, chegamos a uma forma de doze compassos, cujo melhor


exemplo é o blues tradicional de 12 compassos. Abaixo, temos essa forma na tonalidade
de Fá (F) maior, a mais utilizada pelos instrumentistas, principalmente os de sopro, por
ser uma tonalidade confortável para a improvisação.
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 103

Figura 23 – Forma tradicional de blues em Fá (F)

Podemos a seguir transformar essa forma básica em estruturas mais complexas, como
fizeram os músicos de jazz do século XX que, no decorrer dos anos, foram sofisticando
o blues, criando sonoridades de acordo com as concepções estéticas de cada período. Os
jazzistas em geral não utilizam muito a forma acima, optando por usar nos doze compassos
a forma abaixo, que contém mais acordes e abre possibilidades melódicas mais ricas, além
de recorrer ao recurso do turnaround 12 nos últimos dois compassos.

12
Turnaround é uma progressão harmônica de dois compassos colocada justamente nos últimos dois
compassos da peça que prepara a volta para o início da progressão. A forma mas tradicional teria no
primeiro compasso o I e o V/II, e no segundo V/V seguido do V/I. Para ilustrar, na tonalidade de C
maior teríamos no primeiro compasso C e A7, e no segundo, D7 e G7. Assim como no blues, as variações
são praticamente ilimitadas.
104 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 24 - Forma jazzística de blues em Fá (F)

As possibilidades de variações são quase ilimitadas e, mesmo que pequenas, acabam


por enriquecer essa progressão. Por exemplo, uma possibilidade de variação seria termos
uma inversão do acorde de F7 que aparece no sexto compasso e, em vez de um II-V de F
no último compasso, teríamos G7 e C7.
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 105

Figura 25 – Variação da forma jazzística de blues em Fá (F)

Uma outra variação, também muito popular entre os improvisadores e utilizada por
Charlie Parker no blues Billie’s Bounce cria ainda mais movimentos harmônicos.

Figura 26 – Progressão harmônica de Billie’s Bounce de Charlie Parker

Não há provas de que a variação acima tenha sido realmente composta por Charlie
Parker. Não há dúvidas, contudo, de que tenha sido de sua autoria a progressão que ele
utilizou na sua composição Blues For Alice – exemplo ilustrado abaixo –, onde transforma
os acordes do I e do IV grau em acordes com sétima maior para transportar o blues ao
universo do estilo bebop 13 .

13
Ver Glossário
106 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 27 – Progressão harmônica de Blues for Alice de Charlie Parker

Parker leva a extremos o quanto podemos alterar harmonicamente o blues e, ao utili-


zar uma estrutura formal muito familiar e curta – o blues de doze compassos – nos possibi-
lita exercitarmos a memorização e acompanhamento aural de uma progressão harmônica.

O blues ainda nos dá outras duas variações interessantes para praticar, como o
blues em tonalidade menor e o blues com dezesseis compassos. No blues menor temos
os acordes do I e do IV grau em sua forma menor dando uma característica peculiar. É
importante ressaltar que, como estamos em um contexto menor, portanto menos estável,
não há muitos movimentos harmônicos, mantendo-se os acordes de I e IV grau por mais
tempo. O acorde do V grau tem de levar tensões relativas a tonalidade menor, como o
b13 ou o b9.
4.2. O ESTUDO DAS FORMAS 107

Figura 28 – Progressão harmônica de blues menor em Dó (C)

O blues de dezesseis compassos não é tão comum mas pode ser uma boa ferramenta
para seguirmos na quadratura. A peça Watermelon Man de Herbie Hancock é um bom
exemplo.
108 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 29 – Progressão harmônica de Watermelon Man de Herbie Hancock


Depois que o improvisador tiver adquirido um bom domínio dessas formas, deve co-
meçar a improvisar em peças mais longas, com formas mais complexas como AB, AAB,
AABA, etc.

4.3 As Escalas dos acordes

Muitos pensam que para improvisar basta saber a escala de cada acorde14 , mas o conheci-
mento de qual – ou quais – escalas podem ser aplicadas a um determinado acorde, apesar
de ser uma informação extremamente útil, não garante um bom solo. É necessário enten-
der quais notas caracterizam cada escala e quais notas fazem parte da estrutura do acorde,
14
Apesar de teoricamente os acordes advirem das escalas, no caso da improvisação sobre uma progressão
harmônica ocorre o inverso, ou seja, o acorde cifrado é que dará diretrizes para a escolha da escala
adequada.
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 109

assim como é importante saber quais notas devem ser utilizadas apenas como notas de
passagem. Além disso, uma escala, mesmo sendo uma melodia por si só, é uma melodia
previsível, sendo necessário saber portanto desconstruir a escala para que as informações
nela contidas possam ser manipuladas de forma criativa pelo improvisador.

O quadro abaixo apresenta as escalas que derivam primordialmente dos principais


acordes, aqueles que são mais usuais15 :

Quadro 8 -Escalas derivadas primordialmente dos principais acordes

Acordes Escalas

Xmaj, Xmaj7, X6 Jônica ou Lídia

Xm7 Dórica, Frígia ou Eólia16


Mixolídia ou alguma escala dominante alte-
X7
rada17

Xmaj7(#11) Lídia

Xm7b5 Lócria ou Super-Lócria18

Xdim ou Xo7 Diminuta19

Tomando como base os acordes expostos no quadro anterior, vamos ilustrar com uma frase
musical de no máximo dois compassos como enfatizar a característica de cada escala. Para
efeito de contraste, todos os acordes terão como raiz, ou primeiro grau, a nota C.
15
Quando me referir a um acorde e não haja necessidade de se definir a raiz, utilizarei a letra maiúscula
“X” siginificando que qualquer nota pode ser a raiz desse acorde.
16
A escolha por qual escala deverá se dar pela relação do acorde menor com o tom. Por exemplo, no
tom de Dó (C) maior, um acorde de Em7 implica no uso do modo frígio por ser o acorde formado com a
raiz no terceiro grau da escala de Dó (C) maior.
17
As escalas dominantes alteradas são opcionais na medida que as tensões são delineadas pela cifragem
do acorde ou tom do momento. Por exemplo, uma acorde X7b9 nos diz que a tensão b9 está sendo
fazendo parte do acorde, portanto, devemos alterar o segundo grau da escala mixolídia de modo a haver
concordância harmônica.
18
A escala Super-Lócria é simplesmente a escala Lócria com o segundo grau elevado de meio tom,
formando uma segunda maior.
19
A escala diminuta é uma escala sométrica que se caracteriza por ser construída a partir da relação
tom-semitom, ou vice-versa. Pela natureza de sua simetria, obtemos três escalas diminutas diferentes que
só variam do grau em que começamos a construir essa escala.
110 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

4.3.1 Escala Jônica

Como é a escala maior natural, ela tem um ponto de atração forte no primeiro grau, que
deve ser enfatizado. O quarto grau, no caso a nota fá, é nota a ser evitada como nota de
repouso, pois fica a um semitom da terça do acorde. O músico que estiver acompanhando
deve evitar tocar acordes com sétima maior – mesmo se este estiver assim cifrado – no fim
do solo ou do tema, pois a sétima – no caso a nota si – irá estar também a um semitom
da nossa tônica.

Figura 30 – Exemplo melódico da escala jônica

4.3.2 Escala Dórica

O modo dórico é um dos preferidos pelos improvisadores por dois motivos. O primeiro é
por ser a escala do segundo grau, que é um acorde que aparece com muita freqüência nas
progressões harmônicas. E o segundo por ser uma escala na qual não há nota evitada,
ou seja, todas as notas podem servir de notas de repouso. O que caracteriza a escala é a
sexta maior – no caso a nota lá – em um modo menor.

Figura 31 – Exemplo melódico da escala dórica

4.3.3 Escala Frígia

Essa escala tem uma peculiaridade interessante, pois a nota que a caracteriza, o segundo
grau, está a um semitom da tônica – no caso a nota ré bemol – o que a transforma
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 111

simultaneamente em nota evitada para repouso e nota característica do modo. A melhor


maneira de utilizar essa escala é construindo uma melodia que enfatize o segundo grau
mas repouse no primeiro.

Figura 32 - Exemplo melódico da escala frígia

4.3.4 Escala Eólia

Sendo a escala menor natural, o modo eólio possui como característica básica a sexta
menor – no caso o lá bemol. Assim como no frígio, a nota que caracteriza o modo está
a um semitom de um grau da escala que é também uma nota que faz parte do acorde –
no caso a nota sol, quinta do acorde de Cm. Ela deve, portanto, ser tocada com algum
cuidado, pois mesmo não resultando em algo tão dissonante como o semitom com a tônica
ou a terça do acorde, pode criar um efeito de instabilidade que não é desejado quando
estamos tratando de um contexto menor.

Figura 33 - Exemplo melódico da escala eólia

4.3.5 Escala Mixolídia

A presença da sétima menor – no caso o si bemol – dá ao modo mixolídio uma sonoridade


muito particular, devendo ser essa a nota enfatizada em uma frase melódica. O grau que
devemos evitar aqui é o quarto: no, caso a nota fá, que só pode ser usada como nota de
passagem. A exceção seria a acorde de Xsus4, onde o quarto grau, por ser uma nota do
112 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

acorde, não é uma nota que precise ser evitada.20

Figura 34 – Exemplo melódico da escala mixolídia

4.3.6 Escala Lídia

O grau que vai caracterizar o modo lídio é o quarto, que é aumentado – no caso a nota
fá#. Todavia, nessa escala não temos notas evitadas pois os semitons estão entre o quarto
e o quinto grau e entre o sétimo e o primeiro mas, em ambos os casos, todos são notas do
acorde.21

Figura 35 – Exemplo melódico da escala lídia

4.3.7 Escalas Lócria e Super-Lócria

O acorde do qual essas escalas se derivam, o Xm7b5, vai aparecer sempre como um acorde
de preparação, seja como II grau de um II-V menor ou #IVm7b5 que resolve meio tom
abaixo em um acorde IVmaj7 ou IV722 . No caso do modo lócrio, o que vai caracterizar
20
Apesar da quarta no acorde X7 ser uma nota evitada, a recíproca não é verdadeira quando temos
um Xsus4. Isso ocorre pois a terça – no caso de C7sus4 a nota Mi – vai fazer com a quarta – no caso
a nota Fá – um intervalo de sétima maior, que é um intervalo de sonoridade desejável nos contextos
musicais da música brasileira. A única exceção pode ser feita para os instrumentos graves, como o
contrabaixo, trombone, etc, quando pode haver choque de semitom com o posicionamento do acorde pelo
harmonizador.
21
O desafio no caso é para o harmonizador que deve dispor as notas do acorde de forma que soe a
contento.
22
As notas do acorde Xm7b5 são praticamente as mesmas do IVmaj7, com exceção da tônica, que
está um semitom acima. Esse acorde funciona portanto, como um acorde de passagem com uma nota de
aproximação cromática.
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 113

a escala é o quinto grau diminuto – no caso o sol bemol – e a nota a ser evitada como
repouso é o segundo grau – no caso o ré bemol. O super-lócrio tem como característica a
mesma quinta diminuta, mas não possui nota evitada pois a segunda deixou de ser menor.

Lócrio

Figura 36 - Exemplo melódico da escala lócria

No super-lócrio a única alteração é no segundo grau e o mesmo exemplo se aplica se


alterarmos a devida nota.

Figura 37 – Exemplo melódico da escala super-lócria

4.3.8 Escala Diminuta

A escala diminuta, uma escala simétrica que segue a estrutura tom-semitom ou semitom-
tom, é uma escala que deriva dos acordes diminutos. Portanto, só existem três escalas
diminutas diferentes, sendo as restantes repetições das três primárias, tendo outra nota
como ponto de partida.

Escala Diminuta partindo da nota dó:

Figura 38 – Escala Diminuta I

Essa mesma escala pode ser aplicada ao acorde diminuto que se constrói a partir das
114 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

outras notas do acorde como mi bemol, sol bemol e lá.23

Escala diminuta a partir da nota dó sustenido:

Figura 39 – Escala Diminuta II

E por último, temos a escala diminuta a partir de ré:

Figura 40 – Escala Diminuta III

Os acordes diminutos aparecem em dois casos, sendo que o primeiro, e mais comum,
tem a função de um acorde de resolução cromática, tanto ascendente como descendente.

Ascendente:

Figura 41 – Progressão harmônica com acorde diminuto resolvendo croma-


ticamente I – forma ascendente

Descendente:

Figura 42 – Progressão harmônica com acorde diminuto resolvendo croma-


23
Todos acordes diminutos, mesmo que invertidos, geram intervalos que são idênticos entre si. Por
exemplo, se pegarmos Co7 que é composto pelas notas Dó, Mi bemos, Sol bemol e Lá, as notas que
formarão o acorde Ebo7 serão o Mi bemol, o Sol bemol, o Lá e o Dó, e assim sucessivamente.
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 115

ticamente II – forma descendente

No primeiro caso, quando ele resolve de maneira ascendente, devemos utilizar a escala
semitom-tom que começa na nota dó sustenido, pois essa escala tem a nota ré, que será
a raiz do acorde de resolução do diminuto:

Figura 43 – Escala diminuta partindo de Dó sustenido (C#)

Quando ele aparece com a resolução acontecendo na descendente, devemos usar a


forma tom-semitom, pois a nota que será a raiz do acorde, no caso o dó, está presente na
escala:

Figura 44 - Escala diminuta partindo de Ré bemol (Db)

O próximo passo é desconstruir essa escala de forma a construir melodias. Como essa
escala é simétrica e octatônica, ou seja, possui uma nota a mais que as escalas vistas
anteriormente, devemos descobrir maneiras de criar melodias, evitando que toquemos a
escala na sua forma básica. Para tanto o primeiro passo é ter como alvo a resolução do
acorde diminuto. Como exemplo vamos utilizar a primeira progressão ilustrada, onde
Cmaj7 se move para C#o7, que resolve em Dmin7.

Figura 45 – Exemplo melódico utilizando a escala diminuta I

Essa frase musical utiliza as notas do acorde diminuto, notas da escala diminuta e re-
116 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

solve cromaticamente em um grau do próximo acorde. É importante escolhermos algumas


notas da escala, pois é muito difícil tocarmos as oito notas da escala e conseguirmos bons
resultados.

Aplicando o mesmo princípio à segunda progressão, onde temos um Dm7 que se move
para Dbo7, que resolve em Cmaj7, podemos ter, por exemplo:

Figura 46 – Exemplo melódico utilizando a escala diminuta II

O outro contexto em que o acorde diminuto aparece é quando ele é usado como um
acorde de empréstimo modal, principalmente em um contexto com baixo pedal.

Figura 47 – Progressão harmônica com o acorde diminuto com função de


empréstimo modal

Nesses casos, não há uma regra para a escolha de qual escala diminuta devemos utilizar,
pois o efeito desejado é de uma variação entre as escalas, uma vez que o baixo pedal nos
dá uma referência tonal muito forte.
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 117

4.3.9 Outras escalas interessantes

O tópico referente a escalas para improvisação é quase inesgotável e, para aqueles que se
interessarem mais pelo assunto, há livros dedicados integralmente a ele. O mais interes-
sante talvez seja o que foi escrito pelo saxofonista, flautista e educador americano Yousef
Lateef24 que chegou a tocar com Dizzy Gillespie e Charlie Mingus. O seu livro Reposi-
tory of Scales and Melodic Patterns, de 1981, é um glossário de escalas onde podemos
encontrar escalas oriundas de diferentes culturas: egípcias, húngaras, chinesas, japonesas
etc, além de escalas sintéticas e assimétricas. Aqui no Brasil temos o livro do tecladista
Luciano Alves25 , Escalas para Improvisação, lançado em 1997 e que também pode ser
uma boa fonte de consulta.

Contudo, dentro da pletora de escalas à disposição de um improvisador, existem al-


gumas que eu considero imprescindíveis, pois são escalas que estão ligadas a acordes
específicos ou que fazem parte de contextos harmônicos ou melódicos muito presentes na
música instrumental brasileira.

Escala Hexafônica A escala hexafônica, ou escala de tons inteiros, é uma escala simé-
trica que se aplica principalmente ao acorde de sétima dominante com a quinta aumentada.
Ela possui apenas seis graus e soa exatamente igual, independentemente do grau em que
se começa a tocá-la. Há apenas duas escalas de tons inteiros. Por exemplo, se começarmos
na nota dó, teremos:

Figura 48 – Escala hexafônica I

Essa escala pode ser aplicada aos acordes C7#5, D7#5, E7#5, F#7#5, G#7#5 e
24
Yousef A. Lateef (1920- )
25
Luciano Alves (1956- )
118 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Bb7#5 e suas harmonias equivalentes. A outra versão dessa escala é a mesma construção
partindo de meio tom acima:

Figura 49 – Escala hexafônica II

Da mesma forma, ela pode ser aplicada aos acordes Db7#5, Eb7#5, F7#5, G7#5,
A7#5 e B7#5.

Como essa escala não possui semitons, a construção de melodias de contornos mais
sinuosos é mais difícil. Para se conseguir a construção de melodias dentro dessa escala é
recomendado se praticar alguns padrões melódicos que quebrem a monotonia da escala,
como por exemplo:

Figura 50 – Exemplo de padrão melódico utilizando a escala hexafônica

Escala Dominante com a #11 Também conhecida como escala lídia com a sétima
bemol, é uma opção interessante ao modo mixolídio. Pode ser aplicada a quase todos os
acordes dominantes e a escolha fica a critério do improvisador.

Figura 51 – Escala de Dó (C) mixolídio com #11

Quando estivermos utilizando essa escala devemos enfatizar os graus importantes do


acorde que são o terceiro, o quarto e o sétimo:
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 119

Figura 52 – Exemplo melódico utilizando a escala de Dó (C) mixolídio com


#11

Escala Cromática A escala cromática é uma escala simétrica e a única que não se
aplica a nenhum acorde específico, mas pode ser aplicada a todos. Ou seja, é uma escala
que por si só não define harmonicamente nenhum contexto específico. Só existe uma
escala cromática:

Figura 53 – Escala cromática partindo da nota Dó (C)

Essa escala apresenta dificuldades técnicas em praticamente qualquer instrumento e


portanto todos os instrumentistas devem dominá-la. Já a sua aplicação deve ser criteriosa,
sempre utilizando apenas um fragmento da escala:

Figura 54 – Exemplo melódico utilizando a escala cromática

Escala Pentatônica A escala pentatônica deriva da escala maior, mas tem o seu trítono
removido, de forma que se torna uma escala muito estável, pois a ausência do trítono retira
da escala o intervalo definidor do nosso sistema tonal. Em Dó (C) teremos:
120 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 55 – Escala de Dó (C) pentatônica

Assim como a escala menor natural, a pentatônica menor é a mesma escala maior que
se inicia no sexto grau. Nosso lá menor será:

Figura 56 – Escala de Lá (A) menor pentatônica

Construir melodias nessa escala é relativamente fácil, pois ela tem bastante esta-
bilidade. Soa muito bem quando aplicada a acordes de sus4, desde que utilizemos a
pentatônica apropriada, que não pode ser a do primeiro grau:

Figura 57 – Exemplo melódico da utilização da escala pentatônica sobre o


acorde de Csus

No caso acima foi utilizada a pentatônica maior do quarto grau – ou menor do segundo
– que contém notas que soam interessantes sobre o acorde de sus4. Mas temos outras
opções, como a pentatônica maior de si bemol – ou menor de sol:

Figura 58 – Exemplo melódico da utilização da escala pentatônica sobre o


acorde de Csus
4.3. AS ESCALAS DOS ACORDES 121

Cabe ao improvisador pesquisar as opções que mais lhe agradam, uma vez que as
possibilidades são inúmeras, podendo haver também alternância entre duas ou mais pen-
tatônicas sobre um mesmo acorde, caso o acorde se prolongue por muito tempo. No quadro
abaixo, seguem algumas sugestões para a utilização de pentatônicas sobre os acordes mais
comuns, onde a escala pode ser aplicada sem que nenhuma nota precise ser evitada. Para
efeito de clarificação, todos os acordes tem como raiz a nota dó.
Quadro 9 – Utilização de pentatônicas sobre os acordes mais comuns

Acorde Pentatônica maior

Cmaj7 CeG

Cm7 Eb, Bb e F (se estiver em um contexto dórico)

C7 C

C7sus4 F, Bb e Eb (se o acorde de Csus resolver em um Fm)

Cm7b5 F# e Ab

No caso específico das escalas pentatônicas, o maior desafio é criar melodias interessantes,
com um senso de propósito, em razão do caráter estável da escala.

Escalas Oriundas do Jazz Algumas escalas que fazem parte do vocabulário de muitos
improvisadores vieram da prática do jazz, como a escala de blues – ou simplesmente
blue scale, como é conhecida pelos músicos – e as escalas do bebop – ou bebop scales.
Inicialmente utilizadas apenas dentro do estilo da qual herdaram o nome, aos poucos
essas escalas passaram a fazer parte do vocabulário de todos os solistas e passaram a ser
aplicadas em outros contextos musicais também.

Escala de Blues – Blue Scale A escala de blues é uma escala pentatônica menor
acrescida de um cromatismo entre o terceiro e o quarto grau da escala. Assim, teremos a
escala de blues em Dó (C):
122 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 59 – Escala de blues em Dó (C)

Se aplicarmos a escala de C blues sobre o acorde básico de um blues em C – que seria


o C7 – teremos uma dissonância resultante da terça do acorde – a nota E – estar a um
semitom do segundo grau da escala. Essa dissonância é conhecida como blue note 26 . Essa
escala também é aplicada aos contextos menores, sobre o acorde Cm7.

Escalas maiores do Bebop Uma das características mais marcantes da improvi-


sação jazzística é o uso de cromatismos, especialmente no estilo bebop 27 . Os beboppers
26
Mark Gridley define a blue note como:
“Um componente central que disingue o blues é o uso frequente de cromatismos, em especial a terça
menor, a quinta diminuta e a sétima menor de uma escala maior. (. . . )Na tonalidade de C as blue notes
serão o Eb, o Gb e o Bb. (. . . ) Para criar a blue note basta reduzir em meio tom o terceiro grau da
escala. Na tonalidade de C significa trocar o E pelo Eb. As duas notas, E e Eb, são usadas na construção
de melodias no jazz, mas a nota Eb se destaca por não ser uma nota da escala de C ” (p.385)
“A central component of bluesly quality is the frequent use of chromatics, three chromatics in particular;
the flat third, flat fifth and flat seventh of the (C) scale. (. . . ) In the key of C, the blue notes are Eb,
Gb and Bb. (. . . ) To create a blue note we lower the third step of the scale. In the key of C thus means
changing E to Eb. We use both E and Eb in constructing jazz lines, but the Eb stands out because it is
not in the key of C.” (385)
27
Mark Gridley, descreve o bebop como um dos pilares do jazz moderno:
“Os primórdios do jazz e outros estilos precedentes aos anos quarenta são classificados como sendo o
período do jazz clássico. Os novos estilos que apareceram após 1940 são classificados como jazz moderno.
Os primeiros músicos modernos foram o saxofonista alto Charlie Parker, o pianista Thelonius Monk e o
trompetista Dizzy Gillespie. A música deles era chamada de bebop, ou simplesmente bop. Nos meados
dos anos 40 o bebop já tinha inspirado uma legião de músicos como o trompetista Miles Davis e o pianista
Bud Powell. (. . . ) BeBop era consideravelmente menos popular que o swing (era das big bands) e acabou
por não agradar aos que queriam dançar. Porém, o bebop contribuiu com uma geração de solistas
marcantes que continuaram a ganhar discípulos por todo o século XX. Os primeiros solistas do bebop
trouxeram um novo vocabulário de frases musicais e um processo distinto de combinar improvisação e
progressões de acordes. O bebop se tornou o mais substancial sistema do jazz pelos próximos quarenta
anos. Até nos anos noventa os músicos frequentemente avaliavam os novatos pelas sua capacidade em
tocar o bebop.” (p.147)

“ Early jazz and other pre-1940 styles are today referred to as the classic period. The new styles which
emerged after 1940 were classified as moderns jazz. The first modern musicians were alto saxophonists
Charlie Parker, pianist Thelonius Monk and trumpeter Dizzy Gillespie. Their music was called bebop, or
just bop. By the middle 1940’s, bop had inspired a legion of other creative musicians including trumpeter
Miles Davis and pianist Bud Powell. (. . . ) Bebop was considerably less popular than swing and it failed to
attract dancers. However, it did contribute impressive soloists who continued to gain disciples for the rest
of the century. The first bop soloists contributed a new jazz vocabulary of musical phrases and distinctive
methods of matching improvisation to chord progressions. This became the most substantial system of jazz
4.4. RESOLUÇÕES CROMÁTICAS 123

inseriram alguns cromáticos nas escalas maiores e menores gerando novas escalas. Temos
principalmente duas escalas de bebop, uma com o cromatismo entre a sétima menor e a
tônica, e a outra com o cromatismo na terça da escala.

1. Escala de bebop maior em C com o cromático na sétima.

Figura 60 – Escala de bebop em Dó (C) I

2. Escala de bebop menor em C com o cromático na terça

Figura 61 - Escala de bebop em Dó (C) II

Há também uma versão da escala de bebop com a sétima maior e o cromático entre o
quinto e sexto grau.

Figura 62 – Escala de bebop em Dó (C) III

4.4 Resoluções Cromáticas

Já vimos que as notas cromáticas acabam por dar uma nova sonoridade aos contornos
melódicos tanto de arpejos como de escalas, sendo, portanto, um recurso não-diatônico
de aplicação razoavelmente simples que enriquece o fraseado. Esse recurso pode ser ainda
mais eficaz quando aplicado à resolução de uma frase melódica. O falecido baixista virtu-
ose Nico Assumpção28 costumava brincar, dizendo que não havia nota errada em acorde
for the next forty years. Even during the 1990’s, musicians frequently evaluated new players according to
their ability to play bop.” (p.147)
28
Nico Assumpção (1954-2001)
124 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

nenhum, pois qualquer nota que fosse considerado como um “erro”estaria simplesmente a
“um semitom de uma nota ou tensão de qualquer acorde, bastando apenas que resolvêsse-
mos essa nota meio tom abaixo ou acima”.

Essa afirmação, mesmo dita em tom jocoso, é verdadeira. Se pegarmos, por exemplo,
a nota mais dissonante que poderíamos ter sobre um acorde maior, que é a segunda menor
–no tom de Dó (C), seria o Ré bemol – basta que essa nota resolva um semitom para
baixo (seria a nota Dó, tônica do acorde) ou para cima (seria a nota Ré, a nona, uma
tensão possível nesse contexto) para que tenhamos uma situação consonante.

Seguindo esse linha de pensamento, praticarmos resoluções cromáticas é extremamente


importante pois dará ao nosso improviso, principalmente nos finais de frase, uma resolução
forte. Por exemplo, mesmo uma frase muito simples, praticamente no formato da escala
maior, pode ser enriquecida se tivermos uma resolução cromática no final.

Figura 63 – Exemplo melódico de utilização de cromatismos I

Essa resolução fica muito mais efetiva se anteriormente tivermos um acorde dominante
que resolve na tônica, e enfatizarmos essa resolução com um cromático.

Figura 64 – Exemplo melódico de utilização de cromatismos II

Desenvolver a habilidade de utilizar a resolução cromática na cadência dominante-


tônica é muito importante. Assim como é importante, para o improvisador, ser capaz de,
ao tocar uma nota errada involuntariamente, reagir instintivamente e resolver – mover
essa nota – meio tom abaixo ou meio tom acima.
4.5. FRAGMENTOS MELÓDICOS 125

4.5 Fragmentos melódicos

Uma outra forma muito efetiva de se desenvolver um vocabulário é a prática de fragmen-


tos melódicos sobre progressões harmônicas específicas. Esses fragmentos, muitas vezes
chamados pelos nomes em inglês de licks ou patterns (padrões), ou pelo correspondente
em francês cliché, podem ser obtidos em livros sobre improvisação ou através da pes-
quisa de cada improvisador, seja pelas transcrições de solos ou até pela simples troca de
informações entre os músicos.

As progressões harmônicas mais comuns como II-V-I, II-V, II-bII7-I, IV-V-I, bIImaj7-
I e turnarounds são os alvos preferenciais desse estudo, pois são muito recorrentes no
repertório e o estudo dos fragmentos melódicos ajudam a desenvolver um senso harmônico
por intermédio de exemplos melódicos.

4.5.1 Sobre a progressão II-V-I

Um dos cenários harmônicos mais presentes da música instrumental, a prática de frag-


mentos melódicos sobre essa progressão é de extrema utilidade pois ajuda o solista a
desenvolver tanto o seu ouvido harmônico quanto seu instinto melódico.

Podemos ter padrões construídos sobre arpejos, que expõem as notas dos acordes de
forma melódica:

Figura 65 – Exemplo de padrão melódico I

Podemos ter padrões melódicos diatônicos sobre um II-V-I:


126 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 66 - Exemplo de padrão melódico II

Podemos ter uma pequena melodia com passagens cromáticas:

Figura 67 – Exemplo de padrão melódico III

Esses trechos melódicos, depois de escolhidos, devem ser praticados em todos os tons,
pois algumas tonalidades podem ser menos confortáveis que outras.

4.5.2 II-V interligados

Uma boa maneira de se praticar em vários tons é não resolver o II-V no I grau, mas
resolvendo em outro II-V um tom abaixo, que por sua vez, resolve outro tom abaixo e
assim sucessivamente:
4.5. FRAGMENTOS MELÓDICOS 127

Figura 68 – Progressão harmônica de II-V interligados I

Assim temos um ciclo que pode ser repetido inúmeras vezes. Todavia, ainda faltam
seis tonalidades e temos que forçar uma modulação para termos as doze tonalidades:
128 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 69 - Progressão Harmônica II-V interligados II

Dentro dessa progressão podemos ter uma frase que resolva sempre na tônica:
4.5. FRAGMENTOS MELÓDICOS 129

Figura 70 – Exemplo de utilização de padrão melódico sobre uma progres-


são harmônica de II-V interligados I

Essa frase vai resolvendo um tom abaixo até o acorde A7, quando temos que forçar a
modulação no acorde Ebm7:

Figura 71 – Exemplo de utilização de padrão melódico sobre uma progres-


são harmônica de II-V interligados II

Ao se exercitar, o músico não deve ler a frase, mas sim modular para cada tonalidade
usando sua percepção musical aural, olhando apenas a progressão de maneira a fazer uma
ligação entre as cifras e a frase estudada.

Podemos ter um outro padrão começando e resolvendo nas terças do acorde:

Figura 72 – Exemplo de utilização de padrão melódico sobre uma pro-


gressão harmônica de II-V interligados III

Todo músico deve pesquisar os seus próprios padrões melódicos de forma a construir
um vocabulário o mais pessoal possível, especialmente para progressões II-V que são muito
comuns.
130 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

4.6 Transcrições de Solos

Uma outra forma muito interessante de absorver novas informações e desenvolver o vo-
cabulário são as transcrições de improvisos gravados para a escrita musical. Berliner
descreve como seriam essas transcrições:

“Ainda que muitos músicos aprendam os solos essencialmente de ouvido, outros con-
sideram muito útil transcrevê-los, representando-os o mais próximo possível na notação
musical ocidental convencional. Para tanto, os músicos utilizam os seus instrumentos
como ferramentas. Após aprender a tocar um determinado solo já gravado, eles traduzem
cada frase musical em notas e então escrevem as mesmas em papel pautado.” (Berliner.
1994. p. 97)29

Ao transcrever um solo, utilizamos intensamente a percepção musical, pois ela é uma


ferramenta indispensável para conseguirmos tirar determinado solo de ouvido. Utilizamos
também um enfoque mais científico para traduzir o que foi tocado livremente em uma
representação gráfica, uma vez que temos que entender como cada nota está disposta no
tempo, no compasso e na harmonia. Muitas vezes nos deparamos também com um desafio
extra para encontrarmos representações gráficas para elementos da interpretação que são
importantíssimos em determinados contextos, ainda que não existam grafias padronizadas
adequadas. Nesse caso, muitas vezes somos obrigados a criar símbolos para que possamos,
nós mesmos, entender o que estamos transcrevendo. Qualquer transcrição de um bom solo,
por mais simples que seja, representa um enorme trabalho. Só aquele que já fez ao menos
uma destas transcrições sabe quanta dedicação é necessária. Todavia, com o passar do
tempo, aquele que se dedica a transcrições acaba por desenvolver uma habilidade específica
para fazer transcrições, e elas vão se tornando pouco a pouco menos laboriosas.

A partir das transcrições podemos analisar as características do estilo de um solista.


29
“Whereas many musicians learn solos essentially by ear, others find it useful to transcribe solos,
rendering them as closely as possible in conventional Western music notation. For this task, musicians
typically use their instrument as tools. After learning to perform a recorded solo, they translate each ph-
rase’s finger patterns into the letter name of the notes, then they write them on staves of music manuscript
paper.” (p. 97)
4.6. TRANSCRIÇÕES DE SOLOS 131

Podemos também isolar fragmentos melódicos que explicitam os elementos preferidos do


vocabulário rítmico, harmônico e melódico do improvisador. Desse estudo podemos absor-
ver as informações que irão se tornar, de uma maneira ampla, parte de nossas influências.
Por essa razão é importante nunca transcrever apenas um solista, nem transcrever apenas
um solo de um determinado artista. Ao fazermos várias transcrições de um improvisador,
conheceremos melhor os elementos do seu vocabulário que aparecem com mais freqüência,
possibilitando-nos um entendimento mais consistente do universo musical da improvisação
desse solista.

É comum um improvisador aprendiz passar por um período – em geral alguns anos –


interessado intensamente em transcrever os seus músicos preferidos. Ainda dentro desse
período o aprendiz passará por fases nas quais se dedica com afinco a um solista específico.
Reiterando o que foi dito anteriormente, é importante que as transcrições não sejam de um
único artista para que haja uma diversificação nas influências, uma vez que as transcrições
acabam por influenciar fortemente o aprendiz.

É muito importante ser capaz de estudar a transcrição de um solo junto com a gra-
vação original, pois isso ajuda a desenvolver a técnica do instrumento, além de fazer com
que a absorção do vocabulário não se processe apenas pela via intelectual, mas também
pela interação com o elemento empírico do aprendizado. A memorização desses solos é
igualmente recomendável. A meu ver, contudo, freqüentemente ocorre que, após ouvir
intensamente um solo, tirá-lo de ouvido, transcrevê-lo e praticar incansavelmente até ser
capaz de tocar junto com o original, o instrumentista esteja completamente saturado do
solo, tornando a memorização uma atividade por demais cansativa.

Alguns músicos preferem transcrever apenas fragmentos pequenos de um improviso,


aqueles que consideram mais interessantes. A partir desses fragmentos, formarão padrões
que posteriormente serão praticados em várias tonalidades e contextos. Essa maneira de
trabalhar com transcrições é também muito comum e difundida; dessa forma o aprendiz
gasta menos tempo, pois não precisa se debruçar sobre o solo por inteiro. Apesar de ser
132 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

um método válido, muitos elementos se perdem, pois o solo não é mais tratado como
uma peça integral. Também há uma perda na habilidade de analisar, e posteriormente
construir, um improviso como um todo, com início, desenvolvimento e conclusão.

Nos Estados Unidos e na Europa já existem muitas publicações de transcrições de


solos de artistas importantes. Apesar de ser ótimo poder ter acesso a transcrições que
jamais faríamos, seja porque determinado solista não está incluído no foco principal de
nosso estudo ou simplesmente porque é impossível transcrever tudo o que gostaríamos,
devemos nos dedicar por algum tempo a fazer algumas transcrições para desenvolver a
nossa percepção musical. Se apenas estudarmos através de transcrições editadas, per-
demos uma parte importante do processo. Aqui no Brasil ainda não há um único livro
editado sobre os solos de qualquer de nossos improvisadores.

4.7 Contextos Modais

Para se improvisar em peças puramente modais deve-se atentar para as características de


cada modo. Por exemplo, já vimos que a nota que caracteriza o modo dórico é a sexta
maior, portanto, se o improviso for se desenrolar sobre uma escala dórica – digamos Cm
dórico – a nota “Lá” deve aparecer com destaque no fraseado. Apesar de a improvisação
modal sugerir uma aparente simplicidade, a ausência de cadências e, conseqüentemente,
da relação tensão-relaxamento, cria um desafio na condução do improviso, uma vez que
não há movimentos harmônicos que façam surgir notas e escalas diferentes durante o solo.
Até o uso de cromatismos deve ser geralmente evitado, pois é possível destruir o caráter
modal involuntariamente com a inclusão de uma resolução cromática.

Com a harmonia estática em um ou dois acordes que possuem o mesmo teor harmônico
e uma só escala para se improvisar melodias, o improvisador tem de recorrer ao que prefiro
chamar de densidade, ou seja, a relação de volume de notas com a divisão rítmica. Por
exemplo, vamos observar uma melodia com notas de duração longas sobre oito compassos
4.7. CONTEXTOS MODAIS 133

de Cm dórico. Tocar modalmente dessa maneira cria uma sensação de relaxamento, pois
não há perturbação harmônica – próprio de contextos modais – nem rítmica.

Figura 73 – Exemplo melódico em Dó (C) menor dórico I

Para mudar essa atmosfera mantendo o mesmo vocabulário harmônico e melódico


pode ser criada uma pequena tensão, aumentando o volume de notas em cada compasso:

Figura 74 – Exemplo melódico em Dó (C) menor dórico II

A presença de mais notas e mais motivos melódicos cria uma textura mais densa.
Podemos aumentar esse efeito mexendo mais com a divisão das notas, criando síncopes e
quiálteras. A interação da sessão rítmica com esses elementos propostos pelo improvisador
pode realçar a riqueza rítmica.
134 CAPÍTULO 4. CONSTRUÇÃO DE UM VOCABULÁRIO

Figura 75 – Exemplo melódico em Dó (C) menor dórico III


Abordagens como as exemplificadas acima devem ser utilizadas dentro de contextos
modais de acordo com o efeito desejado pelo improvisador.
Capítulo 5

Recursos Técnicos Adicionais de


Vocabulário para Improvisação no
Saxofone

Como foi dito na introdução, mesmo sendo o tema tratado – improvisação – um assunto
de interesse de vários instrumentistas, como saxofonista gostaria de ter, neste trabalho,
algo dirigido especificamente ao saxofone e aos saxofonistas. A opção acabou sendo a de
abordar algumas técnicas que poderíamos chamar de incomuns, mas que enriquecem o
vocabulário de um saxofonista improvisador.

Serão disutidas as técnicas de false fingering, overtones e multifônicos, que não estão
presentes em nenhum manual ortodoxo e que poderíamos até colocar na categoria de
efeitos. Porém, se utilizados de forma a ampliar o vocabulário do solista, podem ser
ferramentas extremamente eficazes para enriquecer um improviso, tanto ritmicamente
como harmonicamente.

135
136CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

5.1 O Saxofone – um dos principais instrumentos utili-

zados nos improvisos

Assim como no jazz, um dos instrumentos que mais se destaca no papel de solista para
os improvisos na música instrumental é o saxofone, um instrumento relativamente novo
— criado pelo belga Adolphe Sax1 em 1841 — que vem ganhando destaque e já é sem
dúvida, um dos instrumentos mais presentes em todas as áreas da nossa música. Temos
ou tivemos no Brasil importantes expoentes do instrumento como Victor Assis Brasil,
Paulo Moura,2 Nivaldo Ornellas, Mauro Senise3 e Pixinguinha,4 para citar apenas alguns.
Dentro do universo da improvisação há aspectos exclusivos ao saxofone, assim como há
para qualquer outro instrumento. Este capítulo vai tratar de alguns recursos que não
podem ser aplicados à improvisação em outros instrumentos, sendo de aplicação exclusiva
ao saxofone.

A partir da década de 60, saxofonistas do mundo inteiro, influenciados principalmente


por John Coltrane5 – que foi um dos principais inovadores da linguagem do saxofone
– começaram a utilizar recursos adicionais ao vocabulário melódico. Esses elementos
adicionam recursos interpretativos que aumentam a tessitura – no caso dos harmônicos
ou overtones –, enriquecem as possibilidades de timbre e de ritmo – com os false fingerings
–, e – no caso dos multifônicos – possibilitam até alguma polifonia.

Gerações subseqüentes de saxofonistas improvisadores pós-coltraneanos – caso, por

1
Adolphe Sax (1814-1894).
2
Paulo Moura (1933- )
3
Mauro Senise (1950- )
4
Pixinguinha (1897–1973)
5
John Coltrane (1926-1967) foi, durante toda a sua carreira, um incansável inovador. Foi também um
dos primeiros a incorporar harmônicos, false fingerings e multifônicos em seus solos. Discos como Live at
the Village Vanguard e (1961) e A Love Supreme (1965) atestam que desde a década de sessenta, Coltrane
já pesquisava esses efeitos Uma passagem interessante de sua biografia,escrita por Eric Nisensen, relata
que o pianista Thelonious Monk (1917-1962) teria sido a primeira pessoa a perceber que os multifônicos
poderiam ser produzidos pelo saxofone, e estimulou Coltrane a pesquisa-los.
5.2. FALSE FINGERING 137

exemplo, de Michael Brecker6 ou David Liebman7 – trouxeram importantes contribuições


técnicas para utilização desses efeitos, contribuindo com novas digitações e aplicações,
ampliando assim o vocabulário à disposição dos saxofonistas.

5.2 False fingering 8

O false fingering é uma técnica que consiste em utilizar uma posição alternativa para a
produção de determinadas notas no saxofone, obtendo uma mudança no timbre da nota.
Essa alteração timbrística ocorrerá devido à abertura ou ao fechamento de determinadas
chaves, alterando levemente o som das notas, que podem ganhar maior ou menor brilho.
Ao contrário do multifônico e do split tone 9 , o false fingering é um recurso que podemos
obter em quase toda a extensão do saxofone10 .

Apesar do false fingering ser um recurso disponível em todos os instrumentos da famí-


lia do saxofone, resultados melhores serão obtidos nos instrumentos mais graves, como no
saxofone tenor ou barítono, onde os problemas com a afinação das notas resultante das
digitações alternativas serão menos perceptíveis. No caso dos saxofones alto ou soprano,
é possível fazer uso de false fingerings, mas com cautela, pois a região natural desses
instrumentos, mais aguda, faz com que a tolerância do músico e dos ouvintes a mudanças
timbrísticas, que podem algumas vezes afetar a afinação da notas, sejam menores. Na
6
Michael Brecker (1949-)
7
David Liebman (1946-) lançou recentemente pelo seu próprio selo – Libstyle Music – um CD de
saxofone tenor solo, chamado Colors, onde explora algumas das técnicas que serão discutidas aqui.
8
Ver Glossário
9
Split tones são muitas vezes confundidos com multifônicos. Porém, os split tones são notas monofô-
nicas produzidas de forma distorcida, seja com o auxílio de dedilhados especiais ou com alterações na
embocadura ou na coluna de ar. Quando aumentamos em excesso tanto a quantidade como a pressão
do ar dentro do instrumento, temos o que chamamos de overblowing. Esse excesso de ar pode fazer com
que as notas sejam obtidas de forma distorcida. A utilização da técnica de overblowing nas notas muito
agudas irá propiciar muitos split tones.
10
O saxofone tem a extensão de duas oitavas e uma quinta a partir da primeira posição de Si bemol –
Bb1 – até a terceira de Fá – F3. Como o false fingering não é possível na nota mais grave – onde todas
as chaves estão fechadas –, poderemos começar a explorar os false fingerings a partir da primeira posição
de Mi – E1 – até a nota mais aguda, que seria F3. Essas notas se referem à posição no instrumento,
independente do saxofone ser tenor, soprano, alto ou barítono. Como o saxofone é um instrumento
transpositor, e os diferentes tipos tem transposições diferentes, as notas reais dependerão do instrumento
que está sendo tocado.
138CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

maioria dos casos, porém, as nuances de timbre desejadas são pequenas, e, portanto, o
uso deste efeito não causará problemas perceptíveis na afinação. Mesmo assim, não se
recomenda o uso do false fingering como opção preferencial para a produção das notas, ex-
ceção feita para a nota D2 (segunda posição de Ré no saxofone) onde a posição alternativa
proporcionará um som com mais brilho que pode ser útil em casos específicos.

Os saxofones já oferecem naturalmente digitações opcionais para a execução de algu-


mas notas, caso do Bb2, Bb3, C2, C3, E3 e F3. Nesses casos, como no false fingering,
cada posição apresentará características próprias de timbre. Os músicos que se utilizam do
false fingering no seu vocabulário buscam uma posição alternativa para todas as outras
notas do instrumento. O saxofonista e compositor erudito americano Ronald Caravan
(1946-) escreveu a série Paradigms, para saxofone solo, onde, na peça Ballad in Color,
encontraremos passagens em que a nota Bb2 é sustentada por um longo período, havendo
mudanças de timbre a partir da utilização de vários false fingerings. No caso de peças
eruditas, é fundamental que as digitações estejam especificadas na partitura.
5.2. FALSE FINGERING 139
140CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

Figura 76 – Fragmento de Paradigms I


Na música instrumental, o false fingering pode ser uma excelente ferramenta para
adicionar texturas e variações rítmicas durante um improviso, enriquecendo o vocabulário
do solista. Possibilita também ao saxofonista a repetição de notas em qualquer andamento
durante um solo. Ao repetirmos determinadas notas, chamamos a atenção dos ouvintes
– e dos outros músicos que estão tocando conosco – para aspectos rítmicos de nossa
improvisação. Manipular os acentos em uma repetição de notas nos possibilita enfatizar
as síncopes, os tempos fortes, os double times 11 , ralentandos etc. Todavia, o saxofone
apresenta limitações à repetição de notas, pois a partir de um determinado andamento
a emissão de notas repetidas torna-se não só difícil como também tende a atrasar a
emissão dessas notas, causando imprecisão e perda de clareza na performance. O stacatto
duplo também é muito difícil de se conseguir no saxofone, e por essa razão, é pouco
utilizado, fazendo do false fingering a melhor solução para a repetição de notas durante
um improviso.
O false fingering permite que qualquer nota possa ser repetida em qualquer anda-
mento, pois independem de ataque, já que são tocadas em legato. Para isso basta que se
utilize um dedilhado alternativo. Se o false fingering causar uma desafinação excessiva
da nota, o instrumentista deverá pesquisar uma outra opção de dedilhado que cause um
efeito mais sutil. De qualquer maneira, o false fingering irá sempre funcionar em um
improviso, se for tocado com rapidez.12
Cada saxofonista deve desenvolver seus próprios dedilhados alternativos. Essa pesquisa
o levará ao desenvolvimento de melhores posições para o seu conjunto, composto do seu
instrumento, de sua embocadura, de sua boquilha e da palheta que utiliza. A seguir temos
um gráfico de dedilhados para false fingerings (Tabela 1) em todas as notas. Eles podem
ser aplicados a partir da segunda oitava do saxofone13 . Esse gráfico foi desenvolvido com
11
Ver Glossário.
12
Os saxofonistas americanos Michael Brecker, Ernie Watts (1945- ) e Bob Berg (1951-2002) nos
fornecem bons exemplos de como utilizar os false fingerings em passagens rápidas de forma eficaz.
13
Os false fingerings apresentam melhores resultados a partir da segunda oitava, pois na primeira
oitava o timbre tende a ficar muito fechado.
5.2. FALSE FINGERING 141

a ajuda de alguns livros,14 como os livros de solos transcritos de Brecker e Coltrane,


escritos por Carl Coan, e os livros de Ronald Caravan. Mas foi principalmente graças a
um estudo prático próprio – por ter grande interesse no assunto – que foi possível chegar
a muitas dessas digitações. Alguns dedilhados podem ser considerados universais, ou seja,
irão funcionar em qualquer instrumento – caso da digitação sugerida para a nota A, por
exemplo – mas não há uma regra rígida quanto a isso. Por essa razão, é fundamental que
o saxofonista interessado pesquise seus próprios dedilhados que estarão de acordo com
o seu conjunto – instrumento, boquilha e palheta - quando alguns sugeridos pela tabela
não surtirem resultados a contento.

Tabela 1 -Tabela de Dedilhado 1

14
Coan, Carl - John Coltrane Solos, Michael Brecker e Michael Brecker Collection.
Caravan, Ronald – Paradigms e Paradigms II.
142CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

Ao utilizar o false fingering como recurso rítmico na improvisação, o saxofonista deve


estar atento para sempre terminar a célula rítmica com a nota na sua posição normal,
uma vez que essa posição terá, na maioria dos casos, um som mais definido e com mais
brilho – exceção feita para a nota D2. Caso contrário, o músico pode acabar criando
um efeito timbrístico ao invés de efeito rítmico15 . Como ilustração, apresento os diversos
casos possíveis utilizando a posição de false fingering da nota A2.

Podemos dividir em dois casos as aplicações rítmicas:

1. Figuras com subdivisões binárias.

Ex: colcheias ou semicolcheias, principalmente em compassos simples.

Exemplo 1

Figura 77 – Exemplo de False Fingering I

(x)= false fingering

Neste exemplo, devemos começar a frase com a primeira nota sendo tocada com digi-
tação normal, a seguida com o uso do false fingering, e assim sucessivamente. É possível
repetir esse padrão quantas vezes quisermos, tendo em mente que o importante é que a
15
Efeitos de timbre obtidos com false fingerings são recomendados para músicas de andamento lento,
como baladas.
5.2. FALSE FINGERING 143

nota seguinte à conclusão do padrão, que nesse caso começa em uma cabeça de tempo,
deve ser produzida com a digitação normal.

2. Figuras com subdivisões ternárias.

Ex: tercinas ou sextinas em compassos simples.

Exemplo 2

Figura 78 - Exemplo de False Fingering II

Nesse caso, é melhor começar o padrão rítmico com o false fingering, pois assim po-
demos concluí-lo com a digitação normal da nota.

Uma exceção deve ser feita para o uso em antecipações rítmicas dentro de figuras com
subdivisão binária, onde devemos começar o padrão rítmico pelo false fingering para que
a nota de conclusão possa ser sustentada com a digitação normal.

Exemplo 3

Figura 79 – Exemplo de False Fingering III

Uma peça na qual o uso de false fingering pode ser bem demonstrado é Loro, de
Egberto Gismonti, onde na parte B temos muitas notas repetidas na melodia. Sem o false
fingering, a performance seria muito difícil, pois a peça exige andamentos rápidos.

Exemplo 4
144CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

Figura 80 – Fragmento de Loro com a utilização dos false fingerings ilus-


trados
(x)= false fingering

5.3 Harmônicos - Overtones

Harmônicos16 – também conhecidos no universo musical pelo termo em inglês overtones


– são notas emitidas acima do registro normal do instrumento a partir da utilização das
parciais da série harmônica. A tessitura do saxofone tem o limite de duas oitavas e uma
quinta, indo do Bb1 até F3. Qualquer nota mais aguda que F3 só poderá ser emitida
16
O uso preferencial da terminologia overtones – em detrimento do termo em português harmônicos –
se deve ao fato de que qualquer nota da segunda oitava do saxofone pode ser considerada um harmônico
da nota da primeira oitava que seja tocada com o mesmo dedilhado, acrescido apenas da chave de
oitava. Com o passar dos anos, os saxofonistas passaram a se referir aos harmônicos mais distantes como
overtones, possivelmente como uma forma de diferenciar dos harmônicos mais próximos. Uma outra
forma também existente de se referir a esse recurso é com a expressão “superagudo” que, apesar de ser
um termo que ajuda a esclarecer bem este efeito, não é muito utilizada pelos saxofonistas. Por essa razão,
neste trabalho, fiz a opção preferencial de chamar essas notas acima do registro de overtones, que apesar
de ser um anglicismo, é o termo corrente mais encontrado entre os profissionais do instrumento.
5.3. HARMÔNICOS - OVERTONES 145

como um overtone 17 , ou seja, como um harmônico de outra nota natural do instrumento.


Para se emitir overtones, utiliza-se técnicas especiais que serão descritas nos parágrafos
seguintes.

A utilização de overtones nos improvisos tornou-se freqüente a partir das décadas


de setenta e oitenta, quando uma nova geração de saxofonistas surgiu. Músicos como os
americanos David Sanborn,18 Ernie Watts e Michael Brecker, o norueguês Jan Garbarek,19
e os brasileiros Nivaldo Ornellas e Mauro Senise utilizavam os overtones como uma parte
importante do seu vocabulário desde o final dos anos setenta, adicionando praticamente
uma oitava extra à tessitura do saxofone.

Assim como acontece com os false fingerings, as digitações para obtenção dessas notas
não seguem uma regra rígida, devendo o instrumentista pesquisar as melhores opções para
o seu conjunto – boquilha, palheta e instrumento – de modo que não forcem em demasiado
a embocadura, pois há a necessidade de se fazer pequenos ajustes de embocadura de
modo a facilitar a emissão e a afinação dessas notas. Todavia, não devemos esquecer
que é primordial um controle da coluna de ar20 para que tenhamos um equilíbrio entre a
pressão e a quantidade de ar que nos possibilite uma emissão clara dos overtones.

Na Tabela 2, apresento uma tabela de posições para os overtones indo cromaticamente


de F#3 até Eb4.

Tabela 2 – Tabela de Dedilhado 2


17
Instrumentos mais modernos possuem chaves extras para F#3 e alguns até para G3. Contudo, o
padrão mínimo estabelecido é F3.
18
David Sanborn (1945-).
19
Jan Garbarek (1947-).
20
A coluna de ar é a matriz do som de qualquer instrumento de sopro. Dentro do tubo do saxofone,
a relação entre a pressão e a quantidade de ar deve estar balanceada. Um pressão de ar excessiva ou
insuficiente, assim como o desequilíbrio na quantidade de ar dentro do tubo do saxofone irá alterar a
sonoridade e a afinação de todas as notas. Naílson Simões, em seu artigo “ A escola de trompete de
Boston e sua influência no Brasil” para a revista Debates n° 5 explica que o “ar é a matéria prima
do som” e que “os instrumentos de sopro (trompete, trompa, flauta,etc) são apenas os amplificadores do
som produzido pelo nosso corpo”.(p.19) Por essa razão, assim como para a emissão de qualquer nota no
saxofone, a produção satisfatória de overtones e multifônicos só se tornará possível quando acompanhada
de uma coluna de ar equilibrada e uma respiração correta.
146CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

Em algumas situações poderemos ter duas posições para uma mesma nota, e nesse
caso fica a critério do músico utilizar a posição mais adequada ao momento. É possível
que várias dessas posições funcionem para muitas pessoas, mas sempre haverá casos onde
5.4. MULTIFÔNICOS 147

algumas notas não serão obtidas com a clareza ou precisão de afinação desejada. Em
outras situações, uma posição que para um saxofonista serve para uma nota, para outro
poderá servir para outra nota. Isso ocorre pelas características do equipamento de cada
um.

Utilizar overtones com muita freqüência requer um estudo específico para que se obte-
nha um mínimo de controle de maneira consistente. Aspectos técnicos, como a afinação,
a emissão e digitação dessas notas, somente serão dominados após um estudo dirigido do
assunto. Há alguns métodos práticos atualmente dedicados ao assunto, como Overtone
Practice, de Michael Furstner, Saxophone High Tones, de Eugene Rousseau e Prelimi-
nary Exercices & Etudes in Contemporary Techniques (1976), de Ronald Caravan, mas
devemos levar em conta as particularidades da embocadura e do equipamento de cada ins-
trumentista pois é possível que várias das posições sugeridas pelos livros não produzam
resultados satisfatórios.

A aplicação dos overtones como elemento do vocabulário improvisatório apresenta um


desafio mecânico, uma vez que a construção de melodias com a utilização de dedilhados
muitas vezes desconfortáveis exige que o saxofonista adquira uma habilidade específica.
Para se superar a dificuldade técnica recomenda-se praticar melodias, escalas e arpejos
na terceira oitava até que essa região se torne confortável.

5.4 Multifônicos

Multifônicos, de acordo com o livro Multiphonics for the saxophone, escrito pelo saxofo-
nista americano John Gross21 , é o “termo cunhado para descrever o efeito de duas notas
ou mais que soem simultaneamente no saxofone” (Gross. 1998. p.5) 22 . Como sabemos,
o saxofone é, pelo menos na sua essência, um instrumento monofônico, ou seja, capaz de
21
John Gross (1944-).
22
Ronald Caravan também considera multifônicos os intervalos produzidos pelo ato de se cantar uma
nota enquanto se toca outra normalmente no saxofone, mas ele reconhece que: “de uma maneira geral, o
multifônico produzido sem o auxílio da voz é o que é mais difundido no saxofone”. (p.18)
148CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

tocar apenas uma nota de cada vez. A emissão de duas ou mais notas simultaneamente
pressupõe algo além das possibilidades normais do instrumento.
Esse efeito ocorre por alterações na maneira como a coluna de ar se comporta dentro
do instrumento. As digitações normais do saxofone fazem com que o tamanho do tubo
aumente ou diminua de forma precisa, ou seja, o ar só vai vibrar proporcionalmente ao ta-
manho que o tubo possua em determinado momento. As chaves que fariam o instrumento
produzir os tons mais graves do que as notas desejadas devem estar – na maioria dos casos
– abertas. Ao utilizarmos dedilhados diferentes dos usuais, poderemos fazer com que a
coluna de ar passe a vibrar dentro do instrumento de maneira não uniforme, pois algumas
chaves – por estarem abertas ou fechadas de maneira não convencional – irão interferir na
maneira como ar irá se comportar dentro do tubo. Por essa razão, harmônicos de outras
notas passam também a soar junto à nota que corresponderia ao tamanho do tubo.
Vários outros elementos contribuem para esse efeito, como por exemplo:
O tipo de saxofone irá definir o tamanho do tubo. Por serem os que possuem tubos
maiores, os saxofones alto, tenor e barítono produzirão mais harmônicos. Pela mesma
razão, é mais difícil obter multifônicos nos saxofones soprano e sopranino.
Furstner propõe em seu livro sobre overtones duas classificações para os tubos dos
instrumentos da família das madeiras: tubos abertos (open pipe) e tubos fechados (closed
pipe) 23 . O tubo aberto vai propiciar a obtenção das parciais superiores do som funda-
mental – os harmônicos – tanto de valores pares como de ímpares, facilitando a produção
dos multifônicos. O clarinete, por exemplo, que teria um tubo fechado, permite apenas a
obtenção das parciais ímpares.
23
Os conceitos de tubo aberto (open pipe) e tubo fechado (closed pipe) não significa que a extremidade
do tubo seja fechada, como um raciocínio lógico poderia nos levar a crer. Segundo Furstner: “Instru-
mentos da família das madeiras utilizam uma coluna de ar para reforçar a vibração inicial. Como no
caso das cordas, a altura da nota é definida pelo tamanho do tubo. As madeiras possuem mecanismos
para controlar o tamanho do tubo, e conseqüentemente, a quantidade da coluna de ar. Acusticamente nós
podemos distingui os sistemas de tubo aberto ou fechado. . . Os tubos abertos permitirão que soem simul-
taneamente os harmônicos pares e ímpares, enquanto nos tubos fechados teremos apenas os harmônicos
ímpares,..Saxofones, oboés e flautas são considerados tubos abertos, já o clarinete, por exemplo, deve ser
classificado como tubo fechado.” (p.27)
Furstner faz essa diferenciação porque, nos tubos abertos, a coluna de ar irá formar a onda sonora e o
seu loop na extremidade do tubo, enquanto nos tubos fechados apenas o loop é formado na extremidade.
5.4. MULTIFÔNICOS 149

A boquilha e a palheta usadas pelo músico terão muita influência na produção dos
multifônicos. Boquilhas mais abertas, que possuem câmara interna maior, e palhetas mais
duras (mais resistentes) favorecem os multifônicos.

Os acordes obtidos com os multifônicos são extremamente dissonantes – uma vez que
são produzidas alterações não uniformes na coluna de ar dentro do tubo do instrumento.
A utilização musical desses acordes é um desafio muito grande. Na música erudita con-
temporânea, os compositores que escreveram para o saxofone, como Ronald Caravan,
utilizaram essa técnica para obter sons diferentes, dissonantes e exóticos. Entretanto,
como ferramenta do vocabulário da improvisação, sua aplicação é mais complicada, por
estarmos diante de um contexto tonal. Nesse caso, sua aplicação será útil principalmente
na criação de texturas fora da harmonia, onde as consonâncias não são desejadas ou, como
se fala no meio musical, para se improvisar outside.

Como no caso dos falses fingerings e dos overtones, os multifônicos também exigem
uma grande pesquisa por parte do saxofonista para descobrir dedilhados favoráveis à
emissão de sons simultâneos. Livros de transcrições de solos de solistas contemporâneos,
como Ernie Watts24 e Michael Brecker25 , podem ser uma excelente fonte de dados sobre
digitações possíveis que são utilizadas por outros instrumentistas. Esses livros trazem, na
maioria das vezes, uma tabela de dedilhados. Porém, não há garantia de que uma posição
utilizada por um músico em seu instrumento, sua boquilha e sua palheta funcionarão com
outro músico utilizando equipamento diferente. O livro de John Gross Multiphonics for
the Saxophone (1998) é um dos poucos dedicados inteiramente ao assunto e pode ser uma
excelente fonte de pesquisa, mas é um livro difícil de se encontrar, mesmo através da
internet. Ronald Caravan escreveu também um método com estudos dedicados a essas
técnicas26 que pode ser muito útil, pois além dos dedilhados o livro possui vários exercícios
de dificuldade progressiva com multifônicos.
24
Ernie Watts Saxophone Collection, de Jim Roberts. Hal•Leonard Corporation, 1995.
25
Michael Brecker e Michael Brecker Collection, de Carl Coan. Hal•Leonard Corporation, 1995 e
1999, respctivamente.
26
Preliminary Exercices & Etudes in Contemporary Techniques, Dorn Publications, 1976.
150CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

A segunda parte da pesquisa deve ser dedicada a experimentar os multifônicos em di-


ferentes contextos harmônicos. Devido à sua extrema dissonância, os multifônicos funcio-
nam melhor sobre acordes dominantes, pois eles possuem pelo menos um trítono. Acordes
híbridos27 também podem ser um bom veículo por serem estruturas ambíguas que muitas
vezes não obedecem às regras diatônicas. O saxofonista que queira utilizar esses recursos
de maneira fluente deve ter controle de emissão de no mínimo 3 ou 4 multifônicos para
que seja possível emiti-los sempre que desejar sem o risco do multifônico falhar.

A seguir seguem alguns dedilhados que eu utilizo preferencialmente para obter mul-
tifônicos:

Tabela 3 – Tabela de Dedilhado 3

27
Acordes híbridos são tratados pelo método de harmonia da Berklee College of Music como estruturas
instáveis: “Um acorde de estrutura híbrida irá sempre criar uma sensação de instabilidade, podendo seu
efeito ser dissonante ou suave, dependendo da disposição das vozes. Ele pode ser usado em situações
isoladas ou em uma série de acordes híbridos para criar uma progressão ambígua.” (p.53 – Harmony IV)
5.5. OBSERVAÇÕES 151

5.5 Observações

As utilizações desses recursos no saxofone de maneira alguma substitui um vocabulário


harmônico e melódico consistente. Afinal, a improvisação no saxofone, um instrumento
melódico, é primordialmente o exercício de se compor melodias sobre progressões harmô-
nicas. Os efeitos descritos neste trabalho visam a ampliar o arsenal disponível para o
instrumentista improvisador. Inserindo novas cores, efeitos rítmicos, possibilidades po-
lifônicas e ampliando a tessitura do instrumento, o saxofonista passa a dispor de novas
152CAPÍTULO 5. RECURSOS TÉCNICOS ADICIONAIS DE VOCABULÁRIO PARA IMPROVISAÇÃO

ferramentas que possam enriquecer seu solo.


Para que o músico possa explorar essas técnicas de forma confortável é necessária muita
dedicação, pois esses efeitos são o que poderíamos chamar de técnicas não-convencionais,
ou seja, não fazem parte dos requisitos técnicos básicos exigidos de um saxofonista, nem
fazem parte dos programas de ensino tradicionais.
O músico que quiser dominar técnicas dessa natureza deve procurar métodos específi-
cos e, principalmente, recorrer à tradição oral, prática comum no ensino da improvisação28 ,
que consiste em obter as informações desejadas com aqueles músicos que desenvolveram,
cada um à sua maneira, essas técnicas. Desse contato pessoal pode se extrair conheci-
mentos técnicos importantes, desde posições de false fingerings, de overtones e de mul-
tifônicos, até importantes conselhos sobre boquilhas ou palhetas que facilitem a execução
desses recursos.
É possível que em um futuro próximo, o ensino e a prática de recursos saxofonísti-
cos dessa natureza estarão muito mais disseminados, pois novas publicações são lançadas
tanto na Europa como nos Estados Unidos a cada ano. De qualquer maneira, já é possível
ver novas gerações de saxofonistas utilizando esses efeitos – principalmente os overtones
– como uma parte importante do seu vocabulário musical. Contudo, a discussão sobre
aspectos técnicos relacionados ao desenvolvimento dessas novas possibilidades do instru-
mento ainda está nos seus primórdios.

28
O jazz, uma das manifestações musicais mais associada à improvisação, se desenvolveu desde os seus
primórdios pela tradição oral. O livro Black Talk (1991), do americano Ben Sidran, trata do assunto e
sustenta que todo o desenvolvimento da cultura negra da América, principalmente o jazz, teve todo o seu
processo de desenvolvimento estabelecido pela via de transmissão oral do conhecimento.
Capítulo 6

Seleção de um repertório referencial


para a prática da improvisação na
música instrumental do Rio de Janeiro

6.1 Os Standards

A prática da improvisação tem, como vimos, uma longa associação com as práticas jazzís-
ticas. Durante décadas, músicos influenciados pelo jazz aprenderam que, para se dedicar
à improvisação, se faz necessária a seleção de um repertório sobre o qual se pratica e se
desenvolve a linguagem da improvisação propriamente dita. As peças que fazem parte
desse repertório, referencial comum a todos os improvisadores, são conhecidas no meio
musical como standards. Esses standards seriam peças das quais melodia, harmonia e
estrutura harmônica do improviso – que é, em alguns casos, diferente da melodia inicial
– deveriam ser completamente conhecidas e memorizadas por todos os improvisadores.
Como parte desse processo de padronização os instrumentistas acabam por definir tam-
bém as tonalidades preferidas e formas alternativas de arranjo, como introduções, codas
etc. Hobsbawn comenta sobre o repertório do jazz no seu livro A História Social do Jazz

153
154CAPÍTULO 6. SELEÇÃO DE UM REPERTÓRIO REFERENCIAL PARA A PRÁTICA DA IMPROV

dizendo:

“O repertório é formado basicamente de standards – temas que, por um motivo ou por


outro, se prestam particularmente ao modo de tocar do jazz. Podem ter as mais diversas
origens, sendo um blues tradicional e as músicas populares atuais as mais comuns. Os
standards costumam variar de um estilo ou escola de jazz para outro, embora alguns
tenham se mostrado adequados a outros gêneros.” (Hobsbawn, 1990, p.45)

Essa prática de se improvisar sobre standards se espalhou pelo mundo todo, mas
não sem as adaptações culturais pertinentes à cada localidade. Por exemplo, até mesmo
dentro dos Estados Unidos é possível observar que há diferenças entre as escolhas dos
standards preferidos. No período de sete anos no país – três anos e meio em Boston,
cidade que se localiza na costa leste dos Estados Unidos e outros três anos e meio em
Los Angeles, que fica na costa leste – reparei que haviam diferenças no repertório que os
músicos das duas cidades escolhiam para improvisar. Enquanto em Boston, talvez pelas
características de uma cidade de fortes tradições acadêmicas, o repertório privilegiava
peças do jazz tradicional, em Los Angeles tocava-se também um repertório mais moderno
e com a inclusão de outras influências étnicas, possivelmente pelo fato da cidade ser um
grande pólo de convergência de pessoas de diferentes etnias, principalmente hispânicas.

Aqui no Brasil, temos também a nossa lista de standards que variam de cidade para
cidade. Não há dúvida que há peças do jazz americano entre os standards encontrados no
cenário nacional, mas ainda assim é possível encontrar algumas peças que são consideradas
standards apenas no Rio de Janeiro. Há, sem dúvida, composições da nossa música
popular que devem fazer parte do repertório básico de qualquer improvisador. Mas é
possível encontrar diferenças não só de repertório, como também diferenças de tonalidades,
arranjos, etc. O último capítulo desse trabalho se debruça portanto, sobre algumas peças
de compositores brasileiros que, por diversas razões, se tornaram standards da nossa
prática instrumental de improvisar.
6.2. A IMPORTÂNCIA DAS BASES GRAVADAS 155

6.2 A Importância das bases gravadas

A improvisação de influência jazzística ocorre sempre sobre uma progressão harmônica.


Se, nos primórdios do jazz, essas progressões eram muito simples, em geral variações do
blues 1 de 12 ou 16 compassos, com o passar dos anos foram se sofisticando e os solis-
tas foram obrigados a entender cada vez mais as estruturas harmônicas e a desenvolver
vocabulários específicos para determinadas linguagens. Até a invenção do gravador mini-
cassete a única maneira de se estudar a improvisação que se desenvolve sobre harmonias
complexas era os músicos se juntarem para estudarem juntos, e pelo menos um deles
tocar a harmonia a ser estudada enquanto os outros se revezavam improvisando. Ape-
sar da prática jazzística ser extremamente social, ou seja, os músicos sempre gostaram
de estudar em grupo, são facilmente observáveis as limitações que o estudo, sendo feito
apenas dessa forma, apresentava aos praticantes da improvisação. A mais óbvia delas é
que, com exceção dos instrumentos harmônicos, todos os outros instrumentos melódicos
são incapazes de se auto-acompanhar, coisa que, por si só, impossibilitava a prática da
improvisação como um exercício solitário.

Com o advento do gravador mini-cassete, tornou-se possível pedir a um colega que


gravasse a harmonia de uma peça em uma fita cassete e assim foram criadas as primeiras
situações em que o improvisador podia praticar sozinho. Nessa época, contudo – meados
dos anos 60 –, a qualidade sonora e o volume desses aparelhos deixavam muito a desejar.
Isso sem mencionar que a fita cassete até os dias de hoje tem uma vida útil limitada
(experimente ouvir uma fita cassete gravada há mais de um ano para observar como a
qualidade do som piorou), e que a velocidade com que cada gravador individualmente gira
1
Blues - “The Concise Oxford Dictionary of Music” define o blues como: slow jazz song of lamentation,
generally for a unhappy love affair. Usually in groups of 12 bars instead of 8 or 16, each stanza being 3
lines covering 4 bars of music. Tonality predominantly major, but with flattened 3 rd and 7 th of the key (the
blue notes. Harmony tended towards the plagal or subdominant. (p.83) Ou seja: “canção de lamentação do
jazz lenta, geralmente sobre um caso de amor infeliz. Normalmente em grupos de 12 compassos ao invés
de 8 ou 16, cada parte cobrindo 3 linhas de 4 compassos. A tonalidade maior predomina, mas tem a terça
e a sétimas bemolizadas (as blues notes). A harmonia tende para cadências plagais ou subdominantes.”
Mas na verdade essa definição é insuficiente pois há muitos blues de 16 compassos, blues em tonalidades
menores, etc.
156CAPÍTULO 6. SELEÇÃO DE UM REPERTÓRIO REFERENCIAL PARA A PRÁTICA DA IMPROV

a fita é muito imprecisa, acarretando muitas dificuldades de afinação.

Por volta do período entre o final dos anos 60 e início dos anos 70, o educador americano
Jamey Aebersold lançou o que seria um marco para o estudo da improvisação, os primeiros
playalongs em LP (discos de acompanhamento). Sua série de playalongs, que ainda hoje
está em expansão (agora sob o novo formato de CD, a série já passa do volume 90)
revolucionou o ensino e a prática da improvisação. O seu método consiste em gravar um
trio de acompanhamento (piano, contrabaixo e bateria), separando-os na imagem estéreo,
colocando apenas o piano e a bateria no canal direito e apenas o baixo e a bateria no
canal esquerdo. Dessa forma, possibilitou que, além dos instrumentos melódicos, todos
os instrumentistas, inclusive pianistas e baixistas, pudessem utilizar as gravações. Para
isso, basta deslocar o controle de balanço do equipamento para o lado desejado, omitindo
assim o instrumento repetido. Por exemplo, os pianistas escolheriam ouvir somente o
canal esquerdo, onde estariam gravados o baixo e a bateria. Baixistas fariam o inverso.
Para todos os outros instrumentos basta deixar o controle de estéreo na posição normal.

6.3 Aebersold e a Bossa Nova

O jazz sempre foi uma das mais fortes influências culturais americanas no mundo todo.
Todavia, apesar de influenciar, o jazz também absorve elementos de todas as culturas com
o qual tem contato. No caso da música brasileira essa influência acabou sendo uma via
de mão dupla pois tanto o jazz influenciou a música brasileira como a música brasileira
pode ser considerada um capítulo próprio do jazz. A presença da música brasileira é
tão forte no jazz que conseguiu instituir, dentro do jazz, um gênero próprio com a Bossa
Nova. Peças de Tom Jobim e Luis Bonfá2 são consideradas obrigatórias no repertório

de qualquer instrumentista americano e discos de músicos de jazz americanos totalmente


dedicados à musica brasileira são comuns no jazz. Stan Getz3 (saxofonista), Cannonball
2
Luis Bonfá (1922-2001)
3
Stan Getz (1927-1991)
6.3. AEBERSOLD E A BOSSA NOVA 157

Adderley4 (saxofonista), Charlie Bird5 (violonista) e muitos outros se aventuraram em


improvisações sobre a música brasileira.
Como um educador que se esforçou por registrar as bases de quase todo o repertório
da música americana, na coleção de Aebersold não poderia faltar a bossa nova, que é
responsável pelo Vol.31 da série. Apesar da boa seleção de repertório, o resultado, para
nós, músicos brasileiros, deixa a desejar, pois o acompanhamento dos músicos americanos
Hal Galper (piano), Steve Gilmore (contrabaixo) e Bill Goodwin (bateria) soa equivocado.
Apesar de serem bons músicos profissionais, com créditos em discos de alguns monstros
sagrados do jazz (Phil Woods, Stan Getz, Cannonball Adderley, etc) quando tocam bossa
nova não conseguem evitar um sotaque exagerado. Por exemplo:

• A bateria utiliza muito as vassourinhas, que criam um movimento contínuo contra


o desenho do bumbo, não dando a sensação de leveza (pretendido quando se faz uso
das vassourinhas). Provavelmente a opção pelas vassourinhas é uma adaptação que
vem do jazz, já que, para o acompanhamento de baladas, prefere-se essas baquetas às
convencionais. Como a bossa nova tem uma dinâmica suave, os americanos recorrem
às vassourinhas para tocar bossa, mas essa prática não é comum no Brasil.

• Quando o baterista utiliza a baqueta no aro da caixa o efeito criado é de uma


intenção de clave, mas não existe clave 6 na música brasileira.

• O piano toca muitas vezes padrões rítmicos de montuno 7 sobre as bossas brasileiras,
criando um efeito histérico.

• O baixo toca na maioria das vezes apenas a tônica e a quinta dos acordes com
4
Cannonball Adderley (1928-1975)
5
Charlie Bird (1925-1999)
6
Clave – padrão rítmico ternário muito importante na música de países latinos americanos. O
enomusicólogo americano Dr. Eugene Novotney chamou em inglês de key pattern, pois clave em inglês
quer dizer chave. Informação coletada no site http://www.bembe,com/drclave.html em 12 de janeiro de
2002.
7
Montuno – termo usado para descrever um padrão de arpejos em rítmico sincopado que é tocado
pelo piano na salsa. Informação obtida no site University of Salsa – Glossary of Terms em 12 de janeiro
de 2002. http://www.planetsalsa.com/university_of_salsa/glossaryko.htm#sectM
158CAPÍTULO 6. SELEÇÃO DE UM REPERTÓRIO REFERENCIAL PARA A PRÁTICA DA IMPROV

um padrão rítmico muito repetitivo. Não há intenção de contraponto e, quando há


variações, elas geram uma tensão rítmica inadequada ao espírito musical da bossa
nova.

Muito posteriormente, no Vol. 98, Jamey Aebersold lançou uma outra edição de Bossa
Nova, dedicada apenas à obra de Jobim, desta vez com um baterista brasileiro radicado
em Nova Iorque, Duduka da Fonseca, e outros dois músicos americanos. Desta vez obteve
melhores resultados, mas ainda assim o volume apresenta alguns problemas como:

• A tonalidade de algumas músicas serem diferentes no playalong das que são prati-
cadas aqui no Brasil.

• Apesar de Jobim ser, sem sombra de dúvida, o mais importante compositor da bossa
nova, o repertório deixa de fora várias peças do próprio autor muito tocadas nas
apresentações dos instrumentistas no Brasil, caso de Brigas, Nunca mais, Ligia, e
muitas outras.

• O acompanhamento de violão, contrabaixo, bateria e percussão tem alguns bons mo-


mentos, mas o piano, como instrumento de acompanhamento para o improvisador,
seria preferível pela riqueza harmônica que propicia.

As críticas mencionadas refeream-se ao fato de que os esforços de Aebersold visam ao


mercado e aos músicos americanos e são inconsitentes com o músico brasileiro que mora e
atua no Brasil. O máximo que podemos fazer aqui é utilizar esse material com restrições
pois foi dirigido a outro público. Não há nada de errado com os volumes da coleção de Ae-
bersold dedicados à música brasileira – errados estamos nós por não termos nossa própria
coleção de playalongs 8 . Mas por que será que não temos nenhum playalong produzido no
Brasil com o nosso repertório?
8
Como mencionado anteriormente, foram lançados pela Funarte em 1986 dois volumes de uma sé-
rie chamada Dê uma canja. Mesmo sendo um excelente material, ele como não foi concebido para o
improvisador, não funciona bem para esse estudo.
6.3. AEBERSOLD E A BOSSA NOVA 159

Para chegarmos a uma resposta completa a esse pergunta seria necessário um estudo
mais amplo das condições do mercado fonográfico e da produção de materiais didáticos que
vai muito além do âmbito deste trabalho, mas acredito que é possível observar facilmente
duas razões:

1. O alto custo dos direitos autorais cobrados de produções independentes ou de qual-


quer uma que não faça parte do esquema de produção e distribuição das grandes
gravadoras. Essas mesmas gravadores detêm, curiosamente, a maior parte dos di-
reitos autorais do repertório da música popular brasileira, tornando muito difícil
uma negociação para que haja uma significativa redução nos custos desses direitos
autorais.

2. O argumento das editoras de material didático musical de que o mercado para esse
tipo de material não é grande o suficiente para justificar os investimentos.

Pode ser que não haja um grande mercado, mas a verdade é que não temos ainda um
material adequado às nossas necessidades. Por essa razão, um trabalho dedicado à impro-
visação na música instrumental brasileira não seria abrangente o suficiente se não tentasse,
pelo menos dentro do limite do possível, contribuir para diminuir um pouco essa falta de
bases gravadas dedicadas ao nosso repertório.

Seria impossível produzir as bases de todas, ou quase todas as peças que um improvi-
sador tem que deve saber. Por essa razão foi feita uma seleção que atingisse um equilíbrio
entre as peças mais tocadas e os compositores mais importantes da nossa música instru-
mental. Assim sendo, não foram colocadas duas peças de um mesmo autor, mesmo que
este autor esteja muito presente no repertório dos músicos, por ser relevante ampliar a
amostragem. Para se cobrir toda a demanda seriam necessários muitos CDs, tal a força
da nossa música.
160CAPÍTULO 6. SELEÇÃO DE UM REPERTÓRIO REFERENCIAL PARA A PRÁTICA DA IMPROV

6.4 Sobre o repertório selecionado

Como em qualquer seleção ou lista que se faça, a das músicas aqui escolhidas é incompleta
e arbitrária, pois deixa de fora muitas peças que são tocadas com muita frequencia. Fe-
lizmente para nós, brasileiros, para se chegar a uma seleção abrangente e mais completa,
vários CDs deveriam ser produzidos. Apesar de considerar esse projeto da maior impor-
tância para nós, instrumentistas improvisadores, tal empreitada ultrapassa em muito os
limites propostos pelo escopo desse trabalho.

Para chegar à lista dos oito standards que compõem o CD de bases que acompanha
esse trabalho foram seguidas duas diretrizes. A primeira visava selecionar peças que
fizessem parte do repertório que um solista improvisador deve conhecer completamente
para participar de qualquer jam session, ou seja: saber, de forma memorizada, a melodia e
a harmonia. A segunda foi ampliar o leque de compositores de modo a cobrir nomes mais
relevantes do cenário instrumental. Em alguns instantes podem ser encontradas algumas
contradições como no caso de compositores como Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti e
Toninho Horta que, pela complexidade de suas peças, não são autores muito tocados nas
jam sessions. Todavia, são compositores referenciais para o universo e a história da nossa
música instrumental e por essa razão uma composição de cada um deles foi incluída no
projeto.

Nos anexos estão as partituras das peças escolhidas em duas versões. Uma versão
onde a melodia se encontra escrita de forma simples, como é comum no universo dos im-
provisadores, muitas vezes com as divisões rítmicas apenas sugeridas. E a outra com uma
pequena transcrição explicitando alguns detalhes da minha interpretação. No jazz, sempre
que um instrumento apresenta o tema sem nenhuma dobra, ou seja, com o músico solando
a melodia, espera-se que haja uma interpretação pessoal desse material, encontrando-se
portanto muitas variações e diferenças em relação à partitura original. A transcrição das
minhas interpretações não são de forma alguma sugestões. Refletem apenas as variações
que fiz durante as gravações desse CD, nas respectivas performances. Possivelmente em
6.5. REPERTÓRIO 161

outro momento, mesmo tocando as mesmas peças, eu as interpretaria de forma muito


diferente.

6.5 Repertório

1. Brigas Nunca Mais (Tom Jobim)

A escolha da primeira faixa recaiu sobre uma composição de Jobim, provavelmente o


compositor brasileiro mais presente em jam sessions, tanto no Brasil como no exterior.
Escolher uma única composição do mestre é incorrer na certeza de cometer omissões,
pois todos os seus clássicos da bossa nova como, por exemplo, Desafinado, Garota de
Ipanema, Insensatez, Corcovado e tantas outras fazem parte desse universo. Porém, a
opção recaiu sobre Brigas Nunca Mais por duas razões: é uma peça muito mais tocada no
Rio de Janeiro que em outros locais e utiliza-se uma re-harmonização criada pelos próprios
músicos9 que oferece um desafio adicional ao improvisador na repetição da primeira parte,
quando a harmonia passa a ter um acorde por semínima.

2. A Rã (João Donato)

Donato10 é um dos compositores brasileiros mais admirado pelos instrumentistas, pois


suas composições tem natureza instrumental e só ganharam letras posteriormente. Autor
de clássicos como Bananeira, Amazonas e Beira do Mar, entre outros, peças de Donato
são ótimos veículos para as improvisações pois têm uma forma bem definida e progressões
harmônicas bem estruturadas. É possível que A rã seja a sua peça mais presente no
repertório dos grupos instrumentais.

3. Partido Alto (José Roberto Bertrami)

O grupo brasileiro Azymuth foi um dos que fez mais sucesso no exterior na década de
9
Foi impossível saber com certeza o autor da re-harmonização de Brigas Nunca Mais. Os músicos
entrevistados atribuíram a músicos diferentes a colocação desses acordes na peça. Fatos assim são muito
comuns em linguagens musicais que se utilizam da tradição oral.
10
João Donato (1934-)
162CAPÍTULO 6. SELEÇÃO DE UM REPERTÓRIO REFERENCIAL PARA A PRÁTICA DA IMPROV

70. Formado pelo tecladista José Bertrami11 , o baixista Alex Malheiros12 e o baterista
Ivan Conti13 , também conhecido por Mamão, o grupo lançou muitos CDs e possui uma
carreira que já dura três décadas. O repertório do grupo exerce uma enorme influência
sobre os improvisadores, estabelecendo standards como Partido Alto, Partido Alto 2 e
Linha do Horizonte, entre outros.

4. Tacho (Hermeto Paschoal)

A música de Hermeto14 é uma das maiores referências para todos os interessados


na música instrumental brasileira. Artista singular, multi-instrumentista e compositor
original, o legado de Hermeto é tão poderoso que atravessa as fronteiras da música clássica,
instrumental e popular brasileira. Compositor que gosta de utilizar estruturas complexas,
suas composições não são tão presentes no repertório dos improvisadores como seria de
se supor. A exceção fica com Ovo, do disco do grupo Quarteto Novo, que é um baião
de estrutura simples e harmonia modal nordestina. Todavia, para esse trabalho escolhi
Tacho, uma composição em compasso 7/8, pois Hermeto é um dos únicos artistas que gosta
de criar improvisações sobre compassos ímpares. Compassos desta natureza apresentam
um grande desafio para o improvisador pois a construção rítmica das melodias é mais
difícil. Recentemente foi lançado nos Estados unidos um livro com algumas composições
de Hermeto onde Tacho aparece em uma nova tonalidade, estando em Ré (D) menor,
possibilitando uma improvisação modal em dórico. Na minha versão, faço uso de um
arranjo próprio para essa peça onde há uma re-harmonizoação da melodia no tom de Lá
(A) menor eólio.

5. Beijo Partido (Toninho Horta)

Artista do grupo mineiro conhecido como Clube da Esquina, Toninho Horta é um


músico que atua com excelência em várias categorias, sendo um ótimo compositor, arran-
jador, instrumentista e eventualmente até um inspirado letrista. A música de Horta, com
11
José Bertrami (1946-)
12
Alex Malheiros (1946-)
13
Ivan Conti (1946-)
14
Hermeto Paschoal (1936-)
6.5. REPERTÓRIO 163

suas harmonias intrincadas, é um dos melhores exemplos da música instrumental mineira,


que tem como uma forte característica as suas progressões harmônicas.
6. Arroio (Victor Assis Brasil)
Um dos primeiros jazzistas e improvisadores de renome no país, quase toda a obra de
Victor Assis Brasil se presta à improvisação. Arroio tem uma história curiosa pois foi
lançada na década de 70 em um disco americano de Airto Moreira. Para essa gravação,
além de Victor, estava presente ao piano elétrico Nelson Ayres. Após a gravação, foram
chamados os americanos Chick Corea para gravar o solo de piano e o saxofonista Joe
Farrel para refazer todo o saxofone soprano de Victor pois ambos eram famosos jazzistas
nos Estados Unidos. Uma pena, pois essa peça jamais seria regravada pelo autor. Arroio
tem ritmo de baião e uma progressão harmônica similar ao blues e é um bom exemplo de
suas duas influências principais, a música brasileira e o jazz.
7. Loro (Egberto Gismonti)
Ao lado de Hermeto Paschoal, Gismonti15 é a outra grande referência internacional
da música instrumental brasileira. Os seus discos, principalmente os que foram lançados
na década de 70, apresentam composições que se tornaram clássicos, como Dança das
Cabeças, Frevo, Maracatu, Baião Malandro etc. Apesar de ser mais conhecido como
compositor do que como instrumentista, Egberto é um excelente pianista e um violonista
original e suas peças são de um valor inegável, exercendo uma influência marcante em
várias gerações de músicos brasileiros. Para esse trabalho foi selecionada Loro, um baião
de andamento rápido que apresenta uma particularidade interessante, pois para se tocar
a melodia da segunda parte no saxofone é necessário fazer uso dos false fingerings.
8. Melancia (Rique Pantoja)
O disco do grupo Cama de Gato de 1986 é um marco pois foi um lançamento financiado
pelo grupo e pela extinta gravadora Som da Gente, ou seja, uma empreitada independente,
que alcançou a incrível marca de mais de 70 mil discos vendidos. A faixa que abria o disco
era justamente Melancia, samba rápido em tonalidade menor, composta pelo tecladista
15
Egberto Gismonti (1947-)
164CAPÍTULO 6. SELEÇÃO DE UM REPERTÓRIO REFERENCIAL PARA A PRÁTICA DA IMPROV

do grupo, Rique Pantoja. Ainda hoje, é uma das favoritas dos improvisadores.
Conclusão

O estudo da prática musical nos fornece a possibilidade de refletir sobre alguns elementos
que, por serem fundados em grande parte no empirismo, não foram ainda totalmente
estudados sob uma abordagem científica. Por essa razão, este trabalho foi, um impulso
na direção contrária, ou seja, um estímulo para o desenvolvimento de métodos adequados
para a compreensão, comparações e conclusões do material escolhido e estudado.

O primeiro passo, no capítulo 1, foi o de definir o meu objeto de estudo e se revelou


um dos maiores desafios pela quantidade de significados, independente da localização, que
a própria palavra “improviso” já possui para cada indivíduo. Trazer para o leitor uma
definição de improvisação que representasse adequadamente a prática da maneira como
ela está presente na música instrumental brasileira, mesmo sendo o leitor um entendido em
música, passou pela necessidade de tomar emprestadas algumas definições já sedimentadas
pela prática jazzística e adaptá-las para o universo da música instrumental carioca.

Para estudar a improvisação na música instrumental do Rio de Janeiro era necessá-


rio primeiro entender os improvisadores. Esta certeza me levou ao estágio seguinte, já
no capítulo 2, que foram as entrevistas com alguns improvisadores atuantes na cidade.
A escolha dos que seriam entrevistados recaiu, preferencialmente, sobre os saxofonistas,
alguns já com muitos anos de atividade, como Nivaldo Ornellas e Juarez Araújo, e ou-
tros de gerações mais jovens, como Widor Santiago, Marcelo Martins e Eduardo Neves.
Para completar o painel foram entrevistados o guitarrista Nelson Faria e o trompetista
Marcio Montarroyos. Inicialmnte previstas, as entrevistas com o pianista Luiz Avellar

165
166

e o trompetista Claudio Roditi não chegaram a serem realizadas por dificuladades nas
agendas dos artistas. O guitarristas Nelson Faria proporcionou uma interessante discus-
são por ter sido o autor de um método prático sobre improvisação. Montarroyos, além
de fornecer uma importante contribuição por ser improvisador em outros instrumentos,
chegou a tocar com aquele que foi o primeiro saxofonista improvisador do país que além
de lançar vários discos, conseguiu ter uma projeção internacional. Por essa razão, Victor
Assis Brasil mereceu um tópico dedicado à sua vida e a sua carreira.

Talvez uma grande ausência que pôde ser sentida na lista de entrevistados, além de
Luiz Avellar e Claudio Roditi, já mencionados, foi a do multi-instrumentista Hermeto
Paschoal. Foram feitas várias tentativas de contato com Hermeto, seja através de músicos
que atuam ao seu lado ou por intermédio de pessoas responsáveis pelo contato profissional
com o músico. Mesmo com todo esse empenho, nenhuma resposta definitiva foi recebida.
Agradeço aos que tentaram ajudar para a condução da entrevista mas, infelizmente, parece
ter havido, por parte das pessoas ligadas a Hermeto, mais “boa vontade” que realmente
uma “vontade” de fazer com que a entrevista pudesse ser realizada.

Alguns dados colhidos nas entrevistas foram muito reveladores, demolindo algumas
“certezas” que faziam parte do roteiro das entrevistas. Uma das primeiras a ruir foi a de
que a vontade de improvisar tinha raízes diferentes para cada improvisador. Curiosamente,
todos os entrevistados declararam que, apesar de terem demonstrado desde cedo uma
verve criadora, foi a descoberta do jazz que os impulsionou no sentido de se tornarem
improvisadores. É possível que não seja apenas o jazz como linguagem e estilo musical
que desperte esse desejo, mas que ele se deva também ao fato de que o jazz permite a um
músico ser, acima de tudo, um improvisador ou, em outras palavras, um criador. Todos
declararam também que, como músicos, a improvisação seria a parte mais expressiva de
suas carreiras.

Outro dado surpreendente foi a maneira como os conhecimentos da improvisação são


absorvidos, quase sempre pela tradição oral, ou seja, tendo aulas particulares ou apren-
167

dendo com os colegas. Como temos uma carência de cursos especializados em improvisação
e poucas publicações dedicadas ao assunto disponíveis no mercado nacional, foi natural
o fato de que poucos tenham citado métodos ou escolas. Para a maioria, foram amigos
ou mestres que fizeram a diferença. A exceção ficou com Nelson Faria e Marcio Montar-
royos, que foram estudar em instituições americanas, o MI e o Berklee College of Music,
respectivamente. O próprio Victor Assis Brasil poliu os seus conhecimentos em Boston.

Entre os saxofonistas, algumas influências foram citadas de forma quase unânime,


como os americanos John Coltrane and Michael Brecker. A menção a Coltrane é fácil
de entender, por ter sido um dos saxofonistas mais influentes dos últimos quarenta anos
no mundo inteiro. Quanto a Brecker, ele é consegue uma unanimidade maior entre os
brasileiros do que entre os próprios americanos. A razão disso recai no fato de ser ele,
além de um virtuoso excepcional, um músico de atuação eclética, ou como chamam os
americanos, crossover 16 . Essa característica o aproxima da realidade do músico brasileiro
que tem de ser obrigatoriamente versátil.

Foi possível perceber a alegria com que muitos contavam a sua história pessoal e que,
apesar de serem grandes artistas, raramente haviam tido a possibilidade de falar de sua
vida e trajetória. Nesse momento, o âmbito proposto inicialmente foi amplado e as en-
trevistas, além de aspectos técnicos, passaram a possuir também um caráter documental,
ainda que esse não seja preponderante. Essa opção se revelou importante no caso espe-
cífico de Juarez Araújo que faleceu poucos meses após a entrevista que acabou sendo,
infelizmente, o seu último depoimento.

As entrevistas revelaram também um fator importante: que todo improvisador com-


pleto tem necessariamente de ter um conhecimento, nem que este seja apenas teórico, de
harmonia funcional. Os indícios disso vinham do fato de que praticamente todo o reper-
tório da música instrumental brasileira ser muito rico harmonicamente. A partir dessa
constatação, foi elaborado, no capítulo 3, o que viria a ser um pequeno guia de conceitos
16
Michael Brecker já tocou e gravou com músicos de jazz como Chick Corea, Herbie Hancock e Pat
Metheny e astros da múica pop como Paul Simon, Dire Straits e James Taylor, entre muitos outros.
168

e das funções harmônicas que ocorrem com muita freqüência nas peças encontradas no
nosso repertório. Os conceitos harmônicos não foram abordados em toda a sua comple-
xidade pois o objetivo era fornecer ao improvisador, mesmo aquele que não fosse hábil
em um instrumento harmônico complementar, subsídios para entender as progressões da
harmonia sobre as quais fosse improvisar.

Seguiu-se então, no capítulo 4, o que possivelmente é, junto com o CD de playalong,


a maior contribuição deste trabalho, que foi a discussão de ferramentas que possibilitem
ao improvisador desenvolver o seu vocabulário melódico para a prática da improvisação.
No capítulo mencionado, foram abordadas várias técnicas, começando pelo estudo para
a compreensão auditiva da forma de um improviso até a memorização de sua progressão
de acordes. Foram listadas também uma série de escalas úteis com suas característi-
cas ilustradas por exemplos musicais. Por fim, foram abordadas outras técnicas, como
o desenvolvimento de vocabulário pelo estudo de fragmentos melódicos, a aplicação de
cromatismos, as transcrições de solos e a improvisação em contextos puramente modais.
Essas técnicas, da maneira como foram abordadas, visam permitir que o improvisador
construa e enriqueça o seu próprio vocabulário melódico, buscando eventualmente de-
senvolver o seu próprio estilo. Foram evitadas, propositalmente, aplicações de modelos
e fórmulas pois abordagens dessa natureza muitas vezes podem resultar em um efeito
contrário, ou seja, limitam o improvisador a repetir clichés em vez de dar subsídios para
que ele liberte a sua imaginação musical.

O capítulo cinco foi dedicado aos saxofonistas com o estudo de técnicas menos con-
vencionais como false fingering, overtones e multifônicos. Essas técnicas são muito úteis
em determinados contextos, como por exemplo, para se tocar notas repetidas em peças de
andamento rápido no caso dos false fingerings ou quando a melodia ultrapassar a tessitura
do saxofone nos agudos, caso dos overtones. Além disso pode enriquecer o vocabulário do
improvisador possibilitando novos contextos e texturas.

O último capítulo tratou dos standards nacionais presentes no nosso repertório e da


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listagem das peças escolhidas que fazem parte do CD que acompanha esse estudo. Esse CD
é dividido em duas partes, a primeira com a minha performance sobre as peças discutidas
demonstrando a utilização dos vocabulários abordados e das técnicas adicionais para o
saxofone. E a segunda parte é composta das mesmas peças em formato de playalong, ou
seja, contando apenas com a base para o estudo prático da improvisação.
Ao término desse período de quatro anos que me debrucei sobre a improvisação, bus-
cando entender da forma mais ampla possível esse microcosmo da música instrumental
brasileira, temia que pudesse, do ponto de vista artístico e educacional, sentir um es-
gotamento do assunto. Todavia, o tempo foi passando, o estudo tomando forma e a
improvisação, que já era um das minhas práticas musicais preferidas, jamais se esgotou.
Ao contrário, posso afirmar que o meu interesse no assunto é ainda maior, como cresceu
mais ainda a minha admiração por todos os grandes improvisadores que temos no país.
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Glossário

Bebop – estilo do jazz surgido nos anos quarenta desenvolvidos principalmente pelo saxo-
fonista Charlie Parker, pelo trompetista Dizzy Gillespie e pelo pianista Thelonius Monk.

Blues – música tradicional norte-americana que serviu de base para a criação do jazz.

Chorus – um ciclo completo sobre o qual se desenvolve a improvisação.

Cliché – o mesmo que lick.

Double time – tempo dobrado. Tocar em double time é tocar utilizando figuras rítmicas
com a metade do valor da subdivisão.

False fingering – utilização de uma digitação alternativa para a obtenção de efeitos


timbrísticos no saxofone.

Lick – pequeno fragmento melódico que serve de padrão para aplicação sobre contextos
harmônicos semelhantes.

Outside – fora da harmonia. Tocar outside é tocar utilizando notas fora do contexto
harmônico da peça.

Overtones – harmônicos. Dentro de terminologia das técnicas do saxofone significa


super-agudos ou notas agudas tocadas acima do registro normal do instrumento.

Soul Music – estilo de música popular dos negros norte-americanos.

Standard – entre os músicos de jazz, standard é uma peça que seria parte do repertório
básico de todo improvisador. Uma composição que obrigatoriamente “todos” devem saber.

Voicings – disposição das vozes nos acordes tocadas pelo instrumento acompanhante.
No caso do jazz, todo o encadeamento das vozes dos acordes é improvisado.

171
172

Walking bass line – linha de baixo criada pelo contrabaixista em tempo real a partir
da interpretação dos acordes cifrados.
World music – qualquer estilo musical que contenha características marcantes extra-
ocidentais.
Bibliografia

1. ALVES, Luciano. Escalas para Improvisação;em todos os tons para diversos instru-
mentos. Irmãos Vitale. São Paulo, 1977.

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Chicago Press, 1994.

3. BORGES, Marcio. Os Sonhos não Envelhecem. Geração Editorial, 1996.

4. BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.–


2ª Edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1986.

5. CARAVAN, Ronald L. Paradigms I. Dorn Publications. 1976.

6. CARAVAN, Ronald L. Preliminary Exercises & Etudes in Contemporary Technique.


Dorn Publications, 1976.

7. CARAVAN, Ronald L. Paradigms II. Dorn Publications. 1991.

8. COAN, Carl. Michael Brecker. Milwaukee, Wisconsin, USA: Hal Leonard Corpo-
ration, 1995.

9. COAN, Carl. John Coltrane Solos. Milwaukee, Wisconsin. USA: Hal Leonard
Corporation, 1995

10. COAN, Carl. Michael Brecker Collection. Milwaukee,Wisconsin. USA: Hal Leonard
Corporation, 1998.

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11. FARIA, Nelson. A Arte da Improvisação, Rio de Janeiro, Brasil. Lumiar Edi-
tora,1991.

12. FURSTNER, Michael. Overtone Practise. National Library of Australia. Glenelg,


South Australia.

13. GRIDLEY, Mark C. Jazz Styles – History and Analyis. Seventh Edition. Prentice
Hall, Inc. New Jersey.

14. GROSS, John. Multiphonics for the Saxophone. Advance Music, 1998.

15. HOBSBAWN, Eric. A História Social do Jazz. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1990.

16. KENNEDY, Michael & BOURKE, Joyce. The Concise Oxford Dictionary of Music.
New York, USA: Oxford University Press, 1996.

17. KYNASTON, Trent. Michael Brecker Improvised Solos transcribed by Trent Ky-
naston. Hialeah, Florida: Columbia Pictures Publications, 1982.

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20. NETTLES, Barry & ULANOVSKI, Alex. Harmony 1, 2. 3 e 4. Boston, Massa-


chusetts, USA, 1987.

21. NISENSEN, Eric. Ascension – John Coltrane and his Quest. New York, USA: Da
Capo Press, 1993.

22. NETTLES, Barrie & ULANOVSKI, Alex. Harmony 1, 2, 3 e 4. Boston, Massa-


chusetts, USA: Berklee Press, 1987.
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23. RÓNAI, Laura T. Em Busca de um Mundo Perdido – Métodos de Flauta do Barroco


ao Século XX. Tese de doutorado – Programa de Pós-Graduação em Música. Centro
de Letras e Artes. Unisersidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2003.

24. SÁ, Paulo. Improviso no choro. Revista Pesquisa e Música Vol 5 número 1: Con-
servatório Brasileiro de Música, p.66. 2000.

25. SÈVE, Mário. Vocabulário do Choro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.

26. SIDRAN, Ben. Black Talk. New York, USA: Da Capo Press, 1991.

27. SIDRAN, Ben. Talking Jazz – An Oral Tradition. New York, USA: Da Capo Press,
1995.

28. SIMPKINS, C. O.. Coltrane – A Biography, Maryland, USA: Black Classic Press,
1975.

29. SIMÕES, Naílson. A escola de trompete de Boston e sua influência no Brasil.


Revista Debates, número 5. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música.
UNI-Rio, Centro de Letras e Artes, p. 18. 2001

30. VASCONCELLOS, Ary. Raízes da música popular brasileira. Rio de Janeiro: Rio
Fundo Ed..1991.
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Bibliografia de Apoio

1. AEBERSOLD, , John Coltrane Vol. 38. Indiana: Aebersold Press Press Inc., 1983.

2. AEBERSOLD, Jamey, John Coltrane Vol. 37. Indiana: Aebersold Press Press Inc.,
1983

3. AEBERSOLD, Jamey, How to Play Jazz and Improvise. Indiana: Aebersold Press
Press Inc., 1992..

4. ASSIS BRASIL, Paulo. Victor Assis Brasil – Coleção de partituras vol. 1. Rio de
Janeiro: By Brasil Compasso Produções Artísticas, 2001

5. LIEBMAN, David. Self-Portrait of a Jazz Artist. Rottenburg, West Germany:


Advance Music, 1988.

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Discografia

1. BERG, Bob. Enter the Spirit. USA. Stretch Records, Inc. p.1994. 1CD (ca.63
min.)

2. BRECKER, Michael. USA. Don’t try this at Home. Impulse. p.1988. 1CD (ca.
55min.)

3. BRECKER, Michael. USA. Michael Brecker. Impulse. p.1987. ICD (ca. 54 min.)

4. BRECKER, Michael. USA. Tales from the Hudson. Impulse, p.1996. 1CD (ca. 60
min.)

5. CAMA DE GATO, Cama de Gato. São Paulo, Brasil. Som da Gente, p.1986. 1LP
(ca.33 min.)

6. COLTRANE, John. A Love Supreme. USA. Impulse. p.1990. 1CD (ca. 33 min.)

7. COLTRANE, John. Giant Steps. USA. Atlantic. p.1960. 1CD (ca. 63 min.)

8. COLTRANE, John. The Complete 1961 Village Vanguard Recordings. USA. Im-
pulse. p.1997. 4 CDs (ca. 270 min.)

9. DÈ UMA CANJA Vol. I. PRG 86001. Funarte. Rio de Janeiro. P. 1986. 1 LP (ca.
40 min.)

10. DÈ UMA CANJA Vol. II. PRG 86002. Funarte. Rio de Janeiro. P. 1986. 1 LP
(ca. 40 min.)

179
180

11. LIEBMAN, David. Colors USA. Libstyle Music. p.2001. 1CD (ca. 51 min.)

12. PASCHOAL, Hermeto. Slaves Mass. USA. Warner Bros. p.1978. 1LP (ca. 35
min.)

13. SANBORN, David. Pearls. Warner Bros. p.1995. 1CD (ca. 51 min.)

14. WATTS, Ernie. Unit. JVC. p.1995. 1CD (ca. 65 min.)

15. AZYMUTH. Light as a Feather. Black Sun. USA. p.1979. (ca. 35 min.)

16. GETZ, Stan & GILBERTO, João. Getz/Gilberto. Verve Records, USA. p.1963.
1CD (ca. 39 min.)

17. GISMONTI, Egberto. Corações Futuristas. Brasil. EMI-Odeon, p.1976. 1CD


(ca.35 min)

18. HORTA, Toninho. Terra dos Pássaros. Brasil. EMI-Odeon, p.1977. 1CD (ca. 43
min.)

19. MOREIRA, Airto. Free. USA. CTI. p.1972. 1 LP (ca. 35 min)


Entrevistas

1. ASSIS BRASIL, João Carlos. Entrevista realizada na casa do entrevistado. Rio de


Janeiro. 2004. 1 fita cassete (60 min.).

2. ARAUJO, Juarez. Entrevista realizada na loja de CD Modern Sound. Rio de


Janeiro. 2003. 1 gravador de voz em disco rígido (75 min).

3. FARIA, Nelson. Entrevista realizada na casa do entrevistado. Rio de Janeiro. 2002.


1 fita cassete (60 min.).

4. MARTINS, Marcelo. Entrevista realizada na casa de espetáculos Espírito das Artes.


Rio de Janeiro. 2003. 1 fita cassete (60 min.).

5. NEVES, Eduardo. Entrevista realizada na casa do entrevistado. Rio de Janeiro.


2004. 1 fita cassete (60 min.).

6. ORNELLAS, Nivaldo. Entrevista realizada na casa do entrevistado. Rio de Janeiro.


2004. 2 fitas cassetes (120 min.).

7. SANTIAGO, Widor. Entrevista realizada no Quiosque Drink Café. Rio de Janeiro.


2004. 1 fita cassete (60 min.).

8. MONTARROYOS, Marcio. Entrevista realizada na casa do entrevistado. Rio de


Janeiro. 2005. 1 fita cassete (60 min.).

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ANEXOS

1. Partituras

Brigas, Nunca Mais (Jobim)

A Rã (J. Donato)

Partido Alto (J. R. Bertrami)

Tacho (H. Paschoal)

Beijo Partido (T. Horta)

Arroio (V. Assis Brasil)

Loro (E. Gismonti)

Melancia (R. Pantoja) – melodia e harmonia

Melancia (R. Pantoja) – melodia e harmonia e linha de baixo

2. CD

1 CD com as faixas:

Faixa 1 - Brigas Nunca Mais (Jobom. V. Moraes) – versão com saxofone

Faixa 2 - A Rã (J. Donato) – versão com saxofone

Faixa 3 - Partido Alto (J. R. Bertrami) – versão com saxofone

Faixa 4 - Tacho (H. Paschoal) – versão com saxofone

Faixa 5 - Beijo Partido (T. Horta) – versão com saxofone

Faixa 6 - Arroio (V. Assis Brasil) – versão com saxofone

Faixa 7 - Loro (E. Gismonti) – versão com saxofone

Faixa 8 - Melancia (R. Pantoja) – versão com saxofone

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Faixa 9 - Brigas Nunca Mais (Jobom. V. Moraes) – base para estudo


Faixa 10 - A Rã (J. Donato) – base para estudo
Faixa 11 - Partido Alto (J. R. Bertramii) – base para estudo
Faixa 12 - Tacho (H. Paschoal) – base para estudo
Faixa 13 - Beijo Partido (T. Horta) – base para estudo
Faixa 14 - Arroio (V. Assis Brasil) – base para estudo
Faixa 15 - Loro (E. Gismonti) – base para estudo
Faixa 16 - Melancia (R. Pantoja) – base para estudo
Ficha técnica do CD:
Brigas Nunca Mais Beijo Partido Loro Melancia Marco Tommaso – piano Bruno Mi-
gliari – baixo elétrico Claudio Infante – bateria A Rã Partido Alto Tacho Arroio Marco
Tommaso – piano elétrico Andre Rodrigues – baixo elétrico

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