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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

BEATRIZ SEQUEIRA DE CARVALHO

O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos

São Paulo

2017
BEATRIZ SEQUEIRA DE CARVALHO

O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos

Versão Corrigida

(versão original disponível na Biblioteca da ECA/USP)

Dissertação apresentada à Escola de Comunicação e


Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção
do título de Mestre em Ciências da Comunicação.

Área de Concentração: Interfaces Sociais da


Comunicação

Orientador: Prof. Dr. Waldomiro de Castro Santos


Vergueiro

São Paulo

2017
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Nome: CARVALHO, Beatriz Sequeira de

Título: O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos

Dissertação apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São


Paulo para obtenção do título de Mestre em Ciências da Comunicação.

Aprovado em:

Banca Examinadora:

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _____________________________________________________________

Julgamento: ____________________________________________________________

Assinatura: _____________________________________________________________

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _____________________________________________________________

Julgamento: ____________________________________________________________

Assinatura: _____________________________________________________________

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _____________________________________________________________

Julgamento: ____________________________________________________________

Assinatura: _____________________________________________________________
Para minha mãe, Fátima (in memorian).
Exemplo de mãe, de mulher, de profissional
e, acima de tudo, de ser humano.
AGRADECIMENTOS

À Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Comunicação, não só pela oportunidade de desenvolvimento
dada a tantos projetos importantes, mas pelo apoio ao universo da pesquisa, com um
agradecimento especial a todo o corpo docente e discente, assim como a todos os
funcionários da administração que tanto nos ajudam nesse processo.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio


financeiro para a realização desta pesquisa e que permitiu minha dedicação integral à
mesma.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, não só por ter
acreditado no potencial deste projeto, mas por todo o carinho, dedicação e orientação
rigorosa em cada etapa da pesquisa, transformando todo esse processo em uma
experiência inestimável. Com seu vasto conhecimento, mas sem nunca esquecer do bom
humor, cada uma de nossas conversas ajudou no meu desenvolvimento não só
profissional e acadêmico, mas também pessoal, com lições para toda a vida.

Ao meu pai, Carlos, por todo apoio e amor incondicional desde meu nascimento até
agora. Acadêmico que é, ainda contribuiu com vários conselhos sobre esse universo,
com conversas que abriram meu olhar para o mundo e me ajudaram a crescer.

Ao meus irmãos, Artur e Henrique, por serem os melhores companheiros e cúmplices


que uma irmã mais nova poderia pedir. Vocês são os verdadeiros amores da minha vida.

À minha tia Deo, por ser a admiração em forma de mulher. Obrigada por todo o apoio,
palavras de carinho e abraços nos momentos que mais precisei.

À Ester, por me mostrar, mesmo que não perceba, que é preciso buscar ser uma pessoa
melhor todos os dias. Além de me ensinar a ter paciência. MUITA paciência.

À Camila, que transformou o conceito de “cunhada” em obsoleto. “Irmã” talvez defina


melhor nossa relação.

Aos meus queridos avós, Zilka (in memorian), Efigênia (in memorian), Zoroastro e
Jader (in memorian) por todo amor, cuidado e histórias, que transformaram cada um dos
nossos momentos em memórias deliciosas.

À Dona Helena, Seu Hamilton (in memorian) e Heloísa, por abriem as portas de sua
casa e me encherem de amor, me fazendo sentir parte dessa linda família.

Às minhas tias Marize e Vânia, não só pelas palavras encorajadoras ao longo dos anos,
mas por terem se tornado verdadeiros exemplos para mim.
À Yara e Uli, meus “pais postiços”, e à Dona Vilma (in memorian), vulgo “Omi”, por
me ensinar a forma correta de falar “Spiegelman”.

À Adriana, Oscar e Eliana, por terem entrado na família e tornado tudo mais divertido.

À todos os meus tios e tias, primos e primas, meu mais profundo agradecimento. Seria
impossível listá-los sem esgotar todo o espaço, mas tenham certeza do lugar especial
que vocês têm na minha vida.

Aos professores doutores que ministraram as disciplinas que cursei na ECA, Mayra
Rodrigues Gomes, Sandra Reimão, Maria Cristina Palma Mungioli, Celso Frederico e
Alice Mitika, não só por todo o conhecimento que passaram, mas por me fazerem ter
certeza que aqui era meu lugar.

Ao Prof. Dr. Ian Gordon, por acreditar em meu potencial, por todas as dicas e conselhos
e pelas palavras de encorajamento nos último dois anos.

Aos membros da minha banca de qualificação, professores doutores Nobuyoshi Chinen


e Iuri Andreas Reblin, pela inestimável contribuição que deram a este estudo que, sem
dúvida nenhuma, deu os direcionamentos necessários para a conclusão dessa pesquisa.

Aos meus orientadores na PUC-SP, professores doutores Silvia Borelli e Edmilson


Felipe, responsáveis por me apresentar e me guiar no universo da pesquisa durante
minha graduação, além de todo o carinho e dedicação.

Às professoras doutoras Ana Laura Gamboggi e Soledad Galhardo, do Centro


Universitário SENAC, que com suas aulas durante minha especialização reabriram as
portas do mundo acadêmico para mim.

Aos companheiros do Observatório de Histórias em Quadrinhos, por me receberam tão


bem e por me fazerem sentir em casa a cada reunião. A cada encontro vocês
comprovam que esse é o melhor lugar para se estar.

Um agradecimento mais do que especial àqueles que são meu suporte, meu alicerce,
minha rocha, meus queridos amigos Beatriz Tolezano, Lenora Bruhn, Isabelle Pignot,
Bruno Gaspari, Gabriela Tremonte, Jaca Almeida, Daniela Marino, Maria Sant’anna,
Natália Marreti, Roberta Campi, Gabriela Favarini, Mariana Almeida, Gean Gonçalves,
Camilla Carandino, Guilherme Gurgel, Pricila Graziano e Luiza Dequech. Tenham
certeza que sem o amor e o suporte de vocês eu não teria chegado até aqui.

À todas e todos os entusiastas da Nona Arte, responsáveis por transformar esse


“processo de legitimação” em uma realidade. Ademais, um agradecimento especial aos
pesquisadores brasileiros que vieram antes de mim, e aos que compartilham desse
universo comigo hoje. Se não fosse por vocês, o campo dos quadrinhos não teria se
tornado tão rico e incrivelmente vasto e essa pesquisa não seria possível. Muito
obrigada!
Quando você não entende uma pintura, você acha que é burro.
Quando não entende uma história em quadrinhos, acha que o
cartunista é burro.
Chris Ware
RESUMO

CARVALHO, Beatriz Sequeira de. O processo de legitimação cultural das histórias


em quadrinhos. 2017. 175f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicação e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

O presente trabalho objetiva buscar um maior entendimento da história em quadrinhos


como produto cultural e compreender como, com o passar dos anos, ela passou por um
processo de legitimação que a tirou do estigma de mero artigo de massa, sem nenhum
valor cultural, para um objeto culturalmente valorizado. Buscou-se em um primeiro
momento compreender de onde surge o preconceito contra a cultura de massas e,
consequentemente, contra as histórias em quadrinhos, e como tal preconceito pode ser
entendido a partir de uma relação de poder estabelecida pelo uso do conceito de
“cultura”. Para tal, a abordagem metodológica inicial baseou-se nos Estudo Culturais,
especialmente a partir da reformulação do conceito de cultura proposto por Raymond
Williams, além das premissas de outros estudiosos da cultura, focando principalmente
nos conceitos de ideologia, de John B. Thompson, e de distinção, de Pierre Bourdieu.
Dentro de uma abordagem fenomenológica, foi selecionada a Hermenêutica da
Profundidade proposta por John B. Thompson. A técnica de coleta de dados utilizada é
a documentação indireta, formada pela pesquisa bibliográfica (os textos, acadêmicos ou
não, afins com o objeto e metodologia adotados) e a pesquisa documental (o conjunto
das histórias em quadrinhos selecionado). Traçou-se, a partir daí, uma linha do tempo
no contexto norte-americano que buscou demonstrar que o processo de legitimação
cultural teve início na década de 1960 com o movimento intelectual europeu e o
movimento underground norte-americano, seguidos pela publicação de Maus, de Art
Spiegelman, e da chegada das graphic novels ao mercado. Ademais, buscou-se elucidar
como as histórias em quadrinhos constituem-se como um campo de produção cultural
específico e autônomo, que pouco tem a ver com o campo da literatura ou das artes
plásticas. Para tal, voltamo-nos ao conceito de campo de Pierre Bourdieu. Como
resultados principais, foi identificado que os quadrinhos passaram a ser valorizados
como um produto cultural legítimo e instâncias que antes os desprezavam, passaram a
reconhecer seu valor e importância no espectro cultural mundial. Com esses resultados,
visa-se contribuir para a cristalização do entendimento da história em quadrinhos como
um campo de produção cultural legítimo, fazendo com que o debate sobre o mesmo
cresça e se diversifique cada vez mais.

Palavras-chave: história em quadrinhos; cultura; cultura de massa; legitimação cultural;


campo
ABSTRACT

CARVALHO, Beatriz Sequeira de. The cultural legitimation process of comics.


2017. 175f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2017.

This study aims to seek a greater understanding of comics as a cultural product and to
understand how, over the years, it has undergone a process of legitimation that has
removed it from the stigma of mere mass article, with no cultural value, for a culturally
valued object. We sought at first to understand where prejudice against mass culture and
consequently against comics arises, and how such prejudice can be understood from a
relation of power established by the use of the concept of "culture ". For this, the initial
methodological approach was based on the Cultural Studies, especially from the
reformulation of the concept of culture proposed by Raymond Williams, in addition to
the premises of other culture scholars, focusing mainly on the concepts of ideology, by
John B. Thompson, and of distinction, by Pierre Bourdieu. Within a phenomenological
approach, the Depth Hermeneutics proposed by John B. Thompson was selected. The
technique of data collection used is indirect documentation, constituted by bibliographic
research (texts, academic or not, related to the object and methodology adopted) and
documentary research (the set of selected comics). A time line was drawn, in the North
American context, which sought to demonstrate that the process of cultural legitimacy
began in the 1960s with the European intellectual movement and the North American
underground movement, followed by the publication of Art Spiegelman’s Maus and the
arrival of graphic novels in the market. In addition, we tried to elucidate how comics
constitute a specific and autonomous field of cultural production that has little to do
with the field of literature or the plastic arts. To this end, we turned to Pierre Bourdieu’s
field concept. As main results, it was identified that the comic books came to be valued
as a legitimate cultural product and instances that previously despised them, began to
recognize its value and importance in the world cultural spectrum. With these results, it
aims to contribute to the crystallization of the understanding of comics as a legitimate
cultural production field, making the debate about it grow and diversify more and more.

Keywords: comics; culture; mass culture; cultural legitimization; field


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – A análise quadro a quadro de Steve Canyon feita por Umberto Eco também
modificou os parâmetros das pesquisas em quadrinhos..................................................80
Figura 2 – Trabalho de S. Clay Wilson para a Zap Comix..............................................84
Figura 3 – Extrato de The Fabulous Furry Freak Brothers, de Gilbert Shelton……….86
Figura 4 – Mr. Natural, um dos grandes personagens do underground..........................88
Figura 5 – Capa original de Breakdowns, autobiografia de Spiegelman.........................95
Figura 6 – Trabalho de Spiegelman na capa da revista The East Village Other,
considerada um dos primeiros semanários underground e que ajudou a definir o que
hoje é conhecido como anos 60......................................................................................96
Figura 7 – Extrato de Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary, de Justin Green……98
Figura 8 – Capa da edição #7 da Arcade, que trouxe trabalhos de Robert Crumb, Harvey
Kurtzman, Spain Rodriguez, S. Clay Wilson, entre outros quadrinistas do
underground....................................................................................................................99
Figura 9 – A primeira versão de Maus, de 1972, publicada na revista Raw.................100
Figura 10 – A primeira cena de Maus e nosso primeiro contato com Vladek..............102
Figura 11 – Um pequeno exemplo do por que o tema, o estilo, a técnica e a coragem
fizeram de Maus uma obra sem precedentes.................................................................105
Figura 12 – Capa de Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, de Will
Eisner.............................................................................................................................111
Figuras 13 e 14 – Capas das duas edições de Maus, lançadas separadamente e depois
compiladas.....................................................................................................................113
Figura 15 – Capa do capítulo II de Watchmen. Publicada originalmente em doze edições
mensais, foi posteriormente compilada e classificada como graphic novel..................113
Figura 16 e 17 – Habib, de Craig Thompson e Asterios Polip, de David Mazzucchelli:
obras mais longas que já chegaram às mãos do público finalizadas.............................114
Figura 18 – Extrato do segundo volume de Terapia, disponibilizado na internet. O
primeiro volume ganhou versão impressa pela editora Novo Século...........................127
Figura 19 e 20 – Epiléptico, de David B. e Black Hole, de Charles Burns, histórias que
se privilegiaram e que talvez não fossem possíveis sem o novo suporte......................128
Figura 21 – Como a imagem e o texto funcionam em Alice no país das
maravilhas.....................................................................................................................156
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................12
Hipótese..........................................................................................................................15
Objetivo geral ..............................................................................................................15
Objetivos Específicos ....................................................................................................16
Metodologia e fundamentação teórica........................................................................16
A estrutura do trabalho................................................................................................22

1 A METACRÍTICA DA CULTURA DE MASSA: CULTURA, IDEOLOGIA E


DOMINAÇÃO........................................................................................................24
1.1 O conceito de “cultura”: uma problemática de poder........................................25
1.2 A origem da crítica à cultura de massa: os “apocalípticos” ..............................37
1.3 A metacrítica: os “integrados” da cultura de massa...........................................58
1.4 Como os quadrinhos se posicionam nessa configuração.....................................66

2 DO UNDERGROUND AO PULTZER: O INÍCIO DO PROCESSO DE


VALORIZAÇÃO CULTURAL DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS.......76
2.1 A década de 1960: como ela modificou o que se entendia por “quadrinhos”..78
2.2 O papel de Maus na revitalização do meio..........................................................92
2.3 A chegada das graphic novels ao mercado.........................................................109

3 RECONHECENDO O CAMPO DOS QUADRINHOS: A CONSOLIDAÇÃO


DO PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO CULTURAL.......................................133
3.1 Do que os quadrinhos são feitos..........................................................................135
3.2 O campo dos quadrinhos: ele existe e é legítimo...............................................143

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................160

REFERÊNCIAS.........................................................................................................167
12

INTRODUÇÃO

A pesquisadora britânica Mel Gibson (2012) conta em British Girls’ Comics,


Readers and Memories como seu interesse no estudo de quadrinhos, voltado para a
pesquisa de audiência, teve início. Segundo ela, três incidentes que aconteceram em
diferentes períodos de sua vida influenciaram sua escolha de entender como a leitura
dos quadrinhos era e é percebida na cultura britânica. Contar a história desses três
incidentes, afirma Gibson, possibilita ilustrar como as questões que gostaríamos de
pesquisar podem surgir de experiências pessoais ou profissionais.

O primeiro incidente aconteceu quando a autora tinha apenas 5 anos de idade e


sua professora pediu para que os alunos levassem à aula seu material de leitura favorito.
Sem pestanejar, ela levou uma história do Batman. Ao mostrar o que havia escolhido à
professora, a mesma ordenou que Gibson voltasse para casa e retornasse à classe apenas
com um material de leitura que fosse apropriado. Isso fez com que ela desenvolvesse
uma vontade ainda maior de ler quadrinhos, levando-a a procurar entender porque eles
eram considerados inadequados e impróprios. “Uma pergunta inicial que pode levar à
pesquisa poderia ser, simplesmente, por que os quadrinhos aborreciam tanto aquela
professora?” (GIBSON, 2012, p.267).

A partir do que aconteceu, Gibson (2012) buscou compreender como, no Reino


Unido, os quadrinhos eram diretamente relacionados a uma noção de cultura popular
como insignificante em comparação com a alta cultura, como a pintura e a ópera, por
exemplo. As visões expressas por sua professora, ela diz, podem estar ligadas a uma
série de questões, incluindo censura, classe, o medo dos quadrinhos diminuírem as
habilidades literárias e a corrupção da juventude, e o que também pode ser descrito
como “pânicos morais” (GIBSON, 2012, p. 267). E é exatamente isso que buscarei
abordar nesta pesquisa. Isso, porque este primeiro incidente descrito por Gibson mostra-
se bastante semelhante a minha experiência pessoal - mesmo que ela tenha ocorrido já
na graduação em Ciências Sociais, quando comecei a entrar no universo dos quadrinhos
– e o que me levou a escolher os quadrinhos como objeto de pesquisa.

Sou, digamos, uma leitora recente de quadrinhos. Apesar de desde pequena ter
contato com as histórias em quadrinhos, meus interesses se estendiam à Turma da
Mônica, Mafalda e uma ou outra revista da Disney que minha mãe trazia para casa
quando ia comprar suas palavras-cruzadas. E era só. Meu entendimento do que eram as
13

histórias em quadrinhos se resumia a isso. Ainda que meus pais jamais tenham proibido
a leitura delas, nem mesmo quando eu e meus dois irmãos saímos da infância, tampouco
nenhum de nós três tomou os quadrinhos como um hobby. Isso, entretanto, não impediu
que Artur, Henrique e eu nos interessássemos pelos outros produtos derivados das
grandes histórias de super-heróis. Éramos, os três, loucos pelo desenho dos X-Men da
década de 1990 e eu, particularmente, apaixonada pelos dois filmes do Batman de Tim
Burton (1989; 1992), por mais que o Pinguim do Denny DeVitto me desse - e ainda dê
– calafrios e que ainda considero como os melhores filmes baseados no Homem-
Morcego - mesmo que praticamente todo mundo que conheço prefira a Trilogia o
Cavaleiro das Trevas dirigida por Christopher Nolan (2005; 2008; 2012). Fazer o quê?

E assim eu segui durante toda minha infância e adolescência. Continuei lendo


Turma da Mônica e Mafalda, é claro, mas os livros policiais de Agatha Christie e a saga
do gênero fantasia protagonizada pelo jovem Harry Potter eram minhas verdadeiras
paixões, enquanto o tão vasto universo dos quadrinhos permanecia muito distante. Por
isso, não faltaram momentos em que eu mesma questionei: “o que estou fazendo aqui,
tendo as histórias em quadrinhos como objeto de pesquisa, se nem quadrinhos eu lia na
infância?”. Bom, essa é uma ótima pergunta. E ela teria uma resposta bem diferente se a
história terminasse por aqui. Mas ela não termina.

Aos 18 anos, enquanto fazia cursinho para prestar o vestibular de jornalismo,


algo mágico aconteceu: conheci as Ciências Sociais. Quando fui apresentada a esse
mundo, ele parecia tão mais rico, tão mais vasto que qualquer outro que eu me
apaixonei perdidamente. Mesmo ninguém da família entendendo o curso, nem sequer
tendo ouvido falar dele, eu prestei o vestibular para Ciências Sociais e não me
arrependi. Mas não mesmo. Sou daquelas que quando perguntam “mas qual a sua
formação?”, levanto a cabeça, bato no peito com muito orgulho e digo: “sou cientista
social”. E foi durante a graduação que os quadrinhos ressurgiram na minha vida. E,
dessa vez, de maneira avassaladora.

Logo no primeiro semestre da graduação em Ciências Sociais na PUC-SP, a


antropologia foi a cadeira que de cara me fascinou. Por conta disso, já no segundo ano
eu resolvi fazer uma iniciação científica na área e foi assim que conheci minha
orientadora, Prof. Dra. Silvia Borelli, que me apresentou e me guiou pelo mundo da
pesquisa acadêmica durante grande parte da minha graduação. No grupo de pesquisa
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coordenado por ela, do qual fiz parte, o foco era a etnografia. Intitulado Jovens
Urbanos: ações estético-culturais e novas práticas políticas, a proposta era a de fazer
uma análise das novas práticas políticas juvenis do Brasil que estivessem desvinculadas
da política tradicional, focando em manifestações estético-culturais que se constituem
como lugares de ações políticas. Apesar de ter feito parte do grupo e aprendido muito
durante dois anos e meio, na hora de escolher o tema da monografia me vi presa em um
dilema. E não porquê eu não gostava do que fazia na iniciação científica, mas porquê no
terceiro ano, um pouco antes dos alunos escolherem o tema dos seus trabalhos finais, li
uma obra que acabaria mudando para sempre - sem exageros – a minha vida: Maus.

A história de Art Spiegelman (2005) modificou tão profundamente minha


percepção das coisas que acabei desistindo de fazer minha monografia seguindo o tema
da minha iniciação científica, que já trabalhava há dois anos, para escrever sobre Maus e
mergulhar de vez no universo dos quadrinhos. E, enquanto desenvolvia o projeto,
começaram a acontecer os “incidentes” de que fala Mel Gibson: algumas pessoas
passaram a, de certa forma, condenar o meu objeto de pesquisa. Enquanto alguns
colegas não entendiam o porquê da minha escolha por estudar uma mídia considerada
de “massa” e “alienante”, um professor afirmou que meu tema não deveria passar pelo
departamento de antropologia, pois história em quadrinhos é literatura e não ciências
sociais.

Por isso, assim como aconteceu com Mel Gibson, esses incidentes aumentaram
ainda mais minha vontade de estudar as histórias em quadrinhos para entender, afinal, o
porquê do choque das pessoas quando aquelas se tornam um objeto de pesquisa. Para
mim, não fazia sentido dizer que uma obra como Maus, ou qualquer outra que passei a
ler desde então, podia ser considerada menos interessante ou relevante do que qualquer
outro objeto escolhido por meus colegas. Além disso, como alguém podia dizer que
quadrinhos são literatura se, para mim, uma coisa não tinha nada a ver com a outra? Foi
então que minha monografia, concluída em 2011 e intitulada A “Art” de Spiegelman: as
histórias em quadrinhos como gênero literário e a estética mausiana (CARVALHO,
2011), que focaria apenas em Maus e em Art Spiegelman, ganhou um pequeno capítulo
que buscava entender o que se tinha contra os quadrinhos e a cultura de massa. E foi a
partir desse pequeno capítulo, e de toda a discussão que ele gerou na minha cabeça, que
eu cheguei até aqui.
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Hipótese

Por conta desses meus “incidentes” durante a graduação, entender as histórias


em quadrinhos no contexto da cultura de massas e o preconceito gerado ao redor delas
tornou-se minha meta. Entretanto, com o passar do tempo percebi que, apesar de ainda
haver resquícios desse tipo de julgamento em relação ao meio, as coisas pareciam estar
mudando. Ao me aprofundar cada vez mais nesse universo, percebi que os quadrinhos
estavam recebendo mais atenção positiva da crítica e agregando cada vez mais leitores,
leitores esses diferentes dos já fãs dos quadrinhos de super-herói das grandes editoras.
Então, o que havia mudado? O porquê de todas aquelas teorias e textos que havia lido
execrando os quadrinhos, além daquele punhado de pessoas que haviam criticado meu
objeto de estudo, estarem perdendo força enquanto uma nova visão sobre os quadrinhos
passou a ser construída nos últimos anos? Por que obras quadrinísticas agora são
altamente elogiadas e um novo mercado, cada vez mais diverso e rico, cresce a cada
dia?

Levando-se em consideração o que foi anteriormente mencionado, minha


hipótese baseia-se na ideia de que se antes as histórias em quadrinhos eram
consideradas como um “subproduto” da cultura, nas últimas décadas elas teriam
passado por um processo de legitimação cultural. Entender, então, as origens dessa nova
percepção em relação aos quadrinhos tornou-se, de uma maneira geral, o objetivo da
presente pesquisa, conforme definido a seguir.

Objetivo Geral

Buscar um maior entendimento da história em quadrinhos como produto


cultural e compreender como, com o passar dos anos, ela passou por um processo de
legitimação que a tirou do estigma de mero artigo de massa, sem nenhum valor cultural,
para um objeto culturalmente valorizado. Por isso, na tentativa de entender esse
processo, foram delineados alguns objetivos específicos que visaram ajudar nessa
compreensão.
16

Objetivos específicos

1) Compreender de onde surge o preconceito contra a cultura de massas e,


consequentemente, contra as histórias em quadrinhos, e como tal preconceito
pode ser entendido a partir de uma relação de poder estabelecida pelo uso do
conceito de “cultura”.

2) Mostrar como dois movimentos da década de 1960, o movimento intelectual


europeu e o movimento underground norte-americano, modificaram o
entendimento do que eram as histórias em quadrinhos, tornando-se, assim, o
marco inicial do processo de legitimação cultural do campo, seguidos pela
publicação de Maus, de Art Spiegelman, e da entrada das chamadas graphic
novels no mercado.

3) Elucidar como as histórias em quadrinhos constituem-se como um campo de


produção cultural específico e autônomo, que pouco tem a ver com o campo da
literatura ou das artes plásticas.

Metodologia e fundamentação teórica

Levando-se em consideração a trajetória que me trouxe até aqui, e de acordo


com o tema, objetivos e hipótese explicitados, a abordagem inicial proposta neste
estudo privilegiará os Estudos Culturais. Isso, porque os Estudos Culturais, desde sua
origem, incluem as formas nas quais os rituais da vida cotidiana, suas instituições e
práticas, a cultura popular e os meios de comunicação de massa ao lado das Artes, como
constitutivos de uma formação cultural, transgredindo assim um passado que entendia a
cultura apenas como artefatos. Ao ampliar o significado do que é “cultura”, os Estudos
Culturais permitiram que toda produção de sentido pudesse ser considerada objeto de
estudo (MATTELART, NEVEU, 2004).

Dentro da Universidade de Birmingham, na cidade de Birmingham, na


Inglaterra, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), que deu origem aos
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chamados Estudos Culturais, nasceu em 1964 com o intuito de renovar os instrumentos


de análise crítica tradicionais. Para isso, utilizou os métodos e os instrumentos da crítica
textual e literária e deslocou sua aplicação dessas obras clássicas e “legítimas” para os
produtos da cultura de massa e para o universo das práticas culturais populares
(MATTELART, NEVEU, 2004). A área dos Estudos Culturais não constituiu
necessariamente uma nova disciplina, mas é resultado de uma insatisfação com algumas
disciplinas e seus limites. Constitui-se, assim, como um campo de estudos em que
diversas disciplinas interagem para estudar os aspectos culturais da sociedade
contemporânea (ESCOSTEGUY, 1998).

Desse modo, a partir do momento em que os Estudos Culturais passam a focar


nas formas de expressão cultural não-tradicionais, a legitimidade cultural é transposta.
Como consequência, a cultura popular e os meios de comunicação de massa passam eles
mesmos a alcançar a legitimidade, tornando-se lugar de análise crítica de práticas que
antes eram entendidas fora da esfera da cultura. Esta legitimidade, acreditamos, é um
processo pelo qual as histórias em quadrinhos também vêm passando. E é por isso que
os Estudos Culturais constituem nosso posicionamento epistemológico, pois
construíram, desde o início, uma propensão fundamental de crítica cultural que
questiona a fixação de hierarquias entre formas e práticas culturais (MATTELART,
NEVEU, 2004), estas instituídas a partir de oposições como “alta” e “baixa” cultura,
entre cultura “superior” e “inferior”, e outra vertentes opostas entre si.

O procedimento de abordagem que irá orientar a pesquisa, dentro do escopo da


abordagem epistemológica, é o enfoque fenomenológico. Este enfoque permitirá
reconstruir o objeto pesquisado – no caso, as histórias em quadrinhos – em busca de sua
compreensão. Dentro da modalidade da fenomenologia, a abordagem metodológica será
a Hermenêutica, esta especializada na interpretação das narrativas e das formas
simbólicas. Mais especificamente, utilizaremos a Hermenêutica da Profundidade
proposta por John B. Thompson (1995) em Ideologia e Cultura Moderna.

A Hermenêutica da Profundidade de Thompson parte da compreensão imediata


que se tem de uma forma simbólica, analisa objetivamente essa interpretação preliminar
e reinterpreta seu significado (GOMES, 2015). A Hermenêutica da Profundidade, para
Thompson (1995), estabelece-se como um referencial geral para a análise cultural e que
pode, além disso, ser adaptado para a análise da ideologia. Como se pretende, na
18

primeira parte deste estudo, fazer uma análise cultural a partir das noções de ideologia e
dominação, este se constitui em um bom caminho a ser seguido.

Seguindo a proposta de Thompson (1995), esta forma de análise especificada é


empregada com o objetivo de realçar o caráter ideológico das formas simbólicas, ou
seja, o objetivo seria o de evidenciar as maneiras como o sentido funciona para
estabelecer e sustentar relações de dominação. Interpretar a ideologia, portanto,
significa especificar a relação entre o sentido que é mobilizado pelas formas simbólicas
e as relações de dominação que esse sentido sustenta, desmascarando o sentido que está
a serviço do poder. Entretanto, enquanto Thompson (1995) procura analisar o caráter
ideológico das formas simbólicas que são mediadas pelos meios de comunicação de
massa, na presente análise outro caminho será proposto: o de entender o caráter
ideológico da dita “alta cultura”, esta entendida como uma forma simbólica, e sua
relação de dominação com a cultura de massa e, mais especificamente, com as histórias
em quadrinhos, e como essa relação se sustenta a partir da distinção e ideologia
impostas por um grupo dominante sobre a massa que ascende socialmente, o que
impediria a consideração dos quadrinhos como um produto cultural legítimo.

Ademais, dentro da chamada “abordagem tríplice” proposta por Thompson


(1995) este estudo privilegiará o emissor como objeto, ou seja, o foco será a análise
sócio-histórica da produção e transmissão da história em quadrinhos dentro do contexto
da cultura de massa em oposição à alta cultura, de maneira a tentar entender como se dá
o processo de valorização cultural pelo qual os quadrinhos têm passado. Esta análise
sócio-histórica proposta por Thompson (1995), que visa reconstruir as condições sociais
e históricas de produção, será utilizada a partir dos seguintes métodos conjugados: a
história geral do objeto, sua história editorial e técnica e seus momentos dramáticos,
sempre pensados no contexto da “alta” versus “baixa” cultura. Somente após realizar
esta análise da condição sócio-histórica dos quadrinhos, dentro deste contexto
específico, foi possível escolher os momentos-chave e as obras que melhor contribuem
para análise de procedimento.

Neste sentido, a técnica de coleta de dados utilizada nesta pesquisa é a


documentação indireta, formada pela pesquisa bibliográfica (os textos, acadêmicos ou
não, afins com o objeto e metodologia adotados) e a pesquisa documental (o conjunto
das histórias em quadrinhos selecionadas) (GOMES, 2015). Portanto, para a realização
19

da pesquisa proposta, o enfoque foi o trabalho teórico a partir da leitura, síntese e


análise das bibliografias referentes aos temas e conceitos propostos. Ademais, para a
análise dos momentos-chave e histórias em quadrinhos selecionadas, a técnica utilizada
foi o entendimento da relevância social e histórica destes para o processo de legitimação
cultural dos quadrinhos. Em outras palavras, esta análise buscou compreender qual a
importância no contexto em que foram criadas e como modificaram as percepções
acerca das histórias em quadrinhos. Nossa seleção privilegiou os momentos e autores
mais significativos a partir da década de 1960, entendida, na presente análise, como a
chave para se compreender a valorização cultural das histórias em quadrinhos.

Seguindo as premissas acima elencadas, a fundamentação teórica também tem


como ponto de partida os Estudos Culturais. Dado que, assim como colocado
anteriormente, os integrantes do CCCS se preocuparam, logo de partida, com os
produtos das culturas popular e de massa, que representavam e expressavam os
caminhos da cultura contemporânea (ESCOSTEGUY, 1998, p. 89). O ponto de partida
do campo, portanto, é a atenção sobre as estruturas sociais e o contexto histórico como
fatores básicos para o entendimento da ação dos meios massivos, assim como o desvio
do eixo da cultura em sua tradição elitista para as práticas cotidianas. Por conta disso,
assim como os objetos que estuda, o Centro foi, desde seu início, marcado pela
marginalidade institucional, ao não se encaixar na ortodoxia das pesquisas acadêmicas
tradicionais. Por isso, a escolha desse campo de estudos como base referencial teórica
desta pesquisa não poderia ser mais preciso.

O Centro surge inspirado na pesquisa As Utilizações da Cultura, de Richard


Hoggart (1973a; 1973b), que faz o foco voltar-se sobre os anteriormente menosprezados
materiais culturais da cultura popular, por meio de uma metodologia qualitativa. Este
trabalho de Hoggart inaugura a visão de que, no espaço popular, não existe apenas
submissão, como sempre se pensou, mas também resistência. O CCCS nasce, dessa
forma, de uma recusa do legitimismo, das hierarquias acadêmicas e dos objetos
considerados nobres. “Eles se fixam sobre a aparente banalidade da publicidade, dos
programas de entretenimento, das modas vestimentares” (MATTELART, NEVEU,
2004, p. 72) e, ao fazerem isso, deslocam o foco da figura dos dirigentes para o da
sociabilidade cotidiana dos grupos que fazem parte do universo do popular.
20

Destarte, se num primeiro momento pretende-se compreender a razão pela qual


as histórias em quadrinhos sofreram com o desprezo cultural, é preciso pensar essa
questão a partir de uma problemática de poder, que opõe a “alta” cultura de um grupo
dominante à “baixa” cultura da massa que começa a ascender socialmente. E por isso os
Estudos Culturais se mostraram de vital importância no desenvolvimento deste estudo.
Isso, porque como coloca Douglas Kellner (2001), as lutas focalizadas pelos estudos
culturais críticos são contra a dominação e subordinação. Contudo, sua maior
preocupação não é a de desenvolver a análise de qualquer luta ou resistência, e sim da
luta contra a dominação e contra as estrutura desiguais e opressoras que são destacadas
por esses estudos.

Tais estudos, dessa forma, situam a cultura em um contexto sócio-histórico no


qual esta pode promover tanto dominação quando resistência, assim como criticam as
formas culturais que promovem a subordinação. O ponto de maior relevância para nós é
ressaltar que os estudos culturais subvertem a distinção entre cultura superior e inferior
e acabam valorizando formas culturais antes vistas como “inferiores”, como o cinema, a
televisão e também as histórias em quadrinhos, que foram deixadas de lado por grande
parte das teorias que os antecederam. Segundo Kellner (2001), os integrantes da escola
de Birmingham foram os responsáveis por rejeitar o termo “cultura de massa”,
considerando que este termo tende a ser elitista ao criar uma oposição entre “alto” e
“baixo”. O conceito “cultura de massa”, portanto, despreza essa “massa” e sua cultura.

Raymond Williams é o teórico dos Estudos Culturais que melhor tratou a ideia
de que uma cultura dita “superior” rejeita a cultura de massa graças a uma visão elitista
que despreza a massa em si. Isso, porque Williams (1979; 1992; 2003; 2011)
compreendeu que, ainda no século XVIII, a cultura passou a significar algo em si
mesma, um valor que se possui ou, mais especificamente, um valor que apenas alguns
têm ou que podem aspirar a ter. Quando se espiritualiza, portanto, automaticamente se
exclui, pois essa “verdadeira cultura” se confunde com a educação a que apenas alguns
têm acesso: os homens superiores. Raymond Williams, deste modo, junta-se ao
movimento de desconstrução dessa ideia de cultura, levando a cabo assim a
reconstrução do conceito.

Essa reformulação da compreensão do conceito de cultura a partir de sua crítica,


proposta por Raymond Williams, demonstra como a cultura se configura como um
21

campo de batalha que diferencia e separa os grupos em dominantes/dominados e


superiores/inferiores. Com isso, produzem-se hierarquias e classificações que estão de
acordo com os propósitos das elites dominantes. Dessa maneira, para entender melhor
como se produzem essas separações e hierarquias, iremos além dos Estudos Culturais e
partiremos para as premissas de outros estudiosos da cultura, focando mais
intensamente nos conceitos de “ideologia” de John B. Thompson (1995) e de
“distinção” de Pierre Bourdieu (2007).

O conceito de “ideologia” de Thompson (2015) ajudará a entender como o


sentido em uma forma simbólica, no caso a “alta” cultura, serve para estabelecer e
sustentar relações de dominação, ao passo que o conceito de “distinção” de Bourdieu
(2007) nos traz à visão que os gostos funcionam como definidores de classe, o que leva
à distinção de uma “nobreza cultural” por meio da diferenciação desses gostos e ideias
sobre a cultura, transformando a definição dominante como a forma correta de
apropriação cultural. Ambos os conceitos, aliados à reavaliação do conceito de cultura
de Williams, ajudaram a entender a origem dos preconceitos contra as histórias em
quadrinhos ao questionar e revisar a compreensão difundida do que é cultura,
estimulando uma reflexão crítica sobre as relações de poder e dominação presentes na
oposição entre a cultura da elite e a cultura de massa, colocando em evidência as
posições daqueles que mais se beneficiam e dos que menos se beneficiam das relações
sociais existentes.

É só a partir de todas essas premissas que, acredito, seja possível entender como
as histórias em quadrinhos passaram por um processo de legitimação cultural. Se antes
elas sofriam com o desprestígio, que pode ser melhor compreendido por meio dos
questionamentos levantados a partir da contextualização dos conceitos dos autores
apresentados, parece agora que elas dissolveram as barreiras entre “alta” e “baixa”
cultura e passaram a figurar no hall dos grandes objetos culturais. Isso, porque os dois
movimentos que se estabelecem na década de 1960, somados à publicação e
reconhecimento de Maus e à invasão das graphic novels no mercado permitiu que os
quadrinhos deixassem de lado o estigma que por décadas carregaram de ser apenas um
entretenimento barato e sem nenhum valor cultural. Entretanto, esse processo de
legitimação cultural ainda não chegou ao fim. A solidificação desse processo só se dará
quando a noção de que história em quadrinhos constitui um campo de produção cultural
específico, que pouco tem a ver com o da literatura ou das artes plásticas, como
22

comumente se disseminou, de fato venha a se estabelecer. Para tal, tomarei emprestado


mais um conceito do pensador francês Pierre Boudieu (1992): o conceito de “campo”.

A estrutura do trabalho

A partir desta introdução, em que conto um pouco da minha trajetória, além da


explicitação da minha hipótese, objetivo, metodologia e fundamentação teórica, foram
delineados três capítulos, além das considerações finais:

 No primeiro capítulo, intitulado A metacrítica da cultura de massa:


cultura, ideologia e dominação, farei a revisão da noção de “cultura de
massa” a partir de uma ideia de metacrítica, a fim de compreender a
origem do preconceito contra a cultura de massa. Esse preconceito se
estabelece quando a noção de “cultura” é utilizada pelas classes
dominantes como uma forma de subjugar, a partir de uma lógica de
poder, a nova classe que ascende socialmente ao desconsiderar como
cultura legítima tudo aquilo que foge aos preceitos e regras da elite. As
histórias em quadrinhos, nascidas dentro da cultura de massa, acabam
também sofrendo com esse desprestígio. Por isso, antes de entender
como se dá o processo de legitimação cultural dos quadrinhos, é preciso
entender porquê eles não eram considerados legítimos e, para tal, busquei
situar os quadrinhos nessa configuração.
 O segundo capítulo tratará dos momentos e obras-chave que permitiram
a abertura para a aceitação dos quadrinhos como um produto
culturalmente valorizado. Em Do underground ao pulitzer: o início da
valorização cultural dos quadrinhos, o movimento intelectual europeu e
o movimento underground norte-americano são considerados os que, ao
modificarem o entendimento do que são as histórias em quadrinhos,
deram o pontapé inicial para o processo de legitimação cultural do meio,
seguidos posteriormente pela publicação e aclamação de Maus, de Art
Spiegelman, e pelo aumento na produção e nas vendas das graphic
novels.
23

 Reconhecendo o campo dos quadrinhos: a consolidação do processo de


legitimação cultural, terceiro e último capítulo, busca demonstrar que as
histórias em quadrinhos configuram-se como um campo de produção
cultural próprio, e não parte de outros campos de produção, como a
literatura ou as artes plásticas e que, a partir desse entendimento, os
quadrinhos se estabeleceriam por completo como um objeto cultural
legítimo.
 Nas considerações finais, as noções fundamentais delineadas durante
toda a pesquisa serão resgatadas e discutidas, especialmente a ideia de
que houve um processo de legitimação que vem reconhecendo os
quadrinhos como produto cultural de grande valor, e as consequências
desse processo.
 Nas referências constarão as obras utilizadas ao longo da dissertação.
24

1 A METACRÍTICA DA CULTURA DE MASSA: CULTURA, IDEOLOGIA E


DOMINAÇÃO

Edgar Morin (1986), define a palavra “cultura”, no segundo volume do livro


Cultura de Massas no Século XX, da seguinte forma:

Cultura: falsa evidência, palavra que parece uma, estável, firme, e no


entanto é a palavra armadilha, vazia, sonífera, minada, dúbia,
traiçoeira. Palavra mito que tem a pretensão de conter em si completa
salvação: verdade, sabedoria, bem-viver, liberdade, criatividade...
(MORIN, 1986, p.75).

A palavra “cultura” talvez seja uma dessas palavras na qual o seu verdadeiro
significado permaneça uma incógnita. Se puxarmos pela memória, lembraremos de
vários momentos em que as conversas com os amigos, ou mesmo na sala de aula,
levantaram a questão: “Mas, afinal, o que é cultura?”. E a resposta a essa pergunta
sempre parece sem solução. Entretanto, sempre que essa pergunta surge, ela está ligada
a algum questionamento referente ao que pode ou não ser considerado como “cultura de
verdade”, ou seja, aquilo que é digno de ser considerado ou não como um objeto
cultural. Muitos são os exemplos: enquanto a música clássica, o filme cult do grande
diretor europeu e a literatura são considerados como “cultura de verdade”, o funk, a
franquia de filmes blockbuster e - por muito tempo – as histórias em quadrinhos, são
considerados como inferiores, como não dignos de serem chamados pelo nome de
“cultura”.

No caso das histórias em quadrinhos, objeto da presente pesquisa, suas raízes e


forma de difusão popular explicariam a rejeição ao meio como um objeto culturalmente
valorizado. Como um meio de comunicação, uma de suas origens remonta às empresas
jornalísticas norte-americanas, no final do século XIX que, a fim de aumentar a
circulação de seus jornais, iniciam a publicação deste tipo de conteúdo. Desde o
começo, sua principal característica foi a de comunicação de massa: com a necessidade
de atingir um grande público, exigiu dos produtores melhores e mais modernos
processos de impressão gráfica (LUYTEN, 1987). É nesse contexto de criação, ou seja,
inseridas como produto das empresas jornalísticas norte-americanas, e posteriormente
vendidas em bancas em formato de revista – funcionando assim como uma forma
25

alternativa e mais barata de entretenimento -, que se atribui à história em quadrinhos sua


característica de comunicação de massa.

Por isso, apesar dos inúmeros desenhistas que levaram à frente um pensamento
mais amplo, criando histórias que retratam, por meio do humor e da crítica social, cada
época, cada momento da vida do ser humano da maneira mais direta possível,
marcando, definitivamente, os acontecimentos do século XX (LUYTEN, 1987), os
quadrinhos sofreram muito no que diz respeito ao desprestígio por parte de intelectuais
e educadores. A condição de “subproduto da cultura” que segue os quadrinhos se dá
exatamente por sua estrutura industrial de grande escala, que envolve interesses
econômicos que poderiam, segundo críticos, comprometer seu relacionamento mais
dinâmico com a cultura.

Mesmo quando levamos em consideração que os quadrinhos “ultrapassaram a


condição de instrumento de consumo para tornarem-se símbolo da civilização
contemporânea” (LUYTEN, 1987, p. 09) e, por isso, cada um de seus elementos -
design, desenho, cartum e a criação escrita – merecerem consideração isoladamente, as
histórias em quadrinhos foram, durante anos, ignoradas como forma digna de discussão
(EISNER, 2010), pois foram transformadas no bode expiatório perfeito dos críticos da
chamada “cultura de massa”, relegando os quadrinhos a uma condição de “baixa
cultura”, opondo-se assim aos grandes objetos culturais da chamada “alta cultura” que
deveriam, segundo seus defensores, determinar os gostos e comportamentos dos
homens.

Nesse contexto, nosso questionamento não será mais aquele discutido na roda de
amigos ou na sala de aula que tentava entender “mas, afinal, o que é cultura?”; agora,
para tentar explicar o porquê dos quadrinhos terem sido por tantas décadas considerados
como um subproduto da cultura, nosso foco será o de tentar responder à seguinte
pergunta: “mas, afinal, quem definiu o que é e o que não é cultura?”.

1.1 O conceito de “cultura”: uma problemática de poder

O conceito de cultura, etimologicamente falando, deriva do conceito de natureza.


Segundo Terry Eagleton (2011), esta palavra, considerada a mais nobre das atividades
26

humanas, também tem sua origem no trabalho e na agricultura, colheita e cultivo. Para
Eagleton (2011), a palavra “cultura” representa uma dessas raras ideias que são
essenciais tanto para a esquerda política quanto para a direita, o que faz com que sua
história social seja extraordinariamente confusa e ambivalente. Assim, indo no sentido
oposto ao da maioria, afirma Eagleton que a definição de cultura é menos uma questão
de desconstruir a oposição entre cultura e natureza e mais uma questão de se reconhecer
que o termo “cultura” é, por si só, uma desconstrução. Entretanto, ainda segundo
Eagleton (2011), há outro sentido no qual a palavra cultura está voltada para duas
direções opostas, sugerindo uma divisão entre nós mesmos: entre aquela parte de nós
que se cultiva e refina, e aquilo que dentro de nós constitui a matéria-prima para esse
refinamento (EAGLETON, 2011, p. 15).

Em Palabras Clave (2003), Raymond Williams distingue três sentidos modernos


da palavra. Tendo como base suas raízes etimológicas no trabalho rural, a palavra vai,
primeiramente, significar “civilidade”; no século XVIII, torna-se sinônimo de
“civilização” no sentido de progresso intelectual, espiritual e material - como sinônimo
de “civilização”, a cultura pertencia ao espírito geral do iluminismo, com o seu culto ao
desenvolvimento secular, progressivo e racional; a partir do século XIX, deixa de ser
sinônimo de civilização e passa a ser seu antônimo.

Como sinônimo de “cultura”, a palavra “civilização” é em parte descritiva, pois


pode designar neutramente uma forma de vida (como a civilização Asteca, por
exemplo), e em parte normativa, cuja designação remonta a uma forma de vida por seu
esclarecimento e refinamento (o que o adjetivo “civilizado” faz, hoje em dia, de uma
maneira mais óbvia). Em outras palavras, cultura como civilização significa a vida
como a conhecemos, mas também indica que ela é superior ao barbarismo
(EAGLETON, 2011, p. 20). A palavra, desse modo, implica um juízo de valor: algo que
não é apenas correto, mas muito melhor do aquilo que o precedeu. O termo, segundo
Eagleton (2011), remete a uma classe média europeia pré-industrial, de boas maneiras,
refinamento e elegância.

Contudo, no século XIX, “civilização” passa a adquirir uma conotação


imperialista, o que desacreditou a palavra aos olhos de alguns liberais.
Consequentemente, era necessária outra palavra para dizer como a vida social deveria
ser ao invés de como era. Assim, os alemães, tomando emprestado o termo culture dos
27

franceses, fizeram da palavra “cultura” o nome da crítica romântica pré-marxista.


Enquanto “civilização” remete aos bons modos e maneiras cordiais, cultura passou a ser
algo mais solene, crítico e de altos princípios, ao invés de estar em total acordo e
harmonia com o mundo. Em suma, a emergência pela palavra “cultura” é o fato de que
“civilização” começou,cada vez mais, a soar menos plausível como um termo valorativo
(EAGLETON, 2011, p. 22).

Contudo, o conceito de cultura nos termos modernos, segundo Raymond


Williams (2011), surgiu à época da Revolução Industrial. A partir dos textos de grandes
escritores e pensadores da língua inglesa do século XIX, no livro Cultura e Sociedade,
publicado originalmente em 1958, o pensador inglês situa a história do conceito de
cultura e como ele se desenvolveu para o entendimento que temos dele hoje.

Segundo Williams (2011), entre o final do século XVIII e até a metade do século
XIX, palavras que hoje são importantes na língua inglesa surgiram pela primeira vez e,
mesmo aquelas que já haviam sido utilizadas anteriormente, ganharam novos
significados também importantes. Tais palavras estão ligadas entre si, na medida em
que há um padrão geral de mudança em todas elas, e este padrão fornece um caminho
que torna possível analisar mudanças mais amplas na vida e no pensamento. Estas
palavras, segundo Williams (2011), são: indústria, democracia, classe, arte e cultura.
As mudanças ocorridas com essas palavras em língua inglesa, naquele período, são
indicativos de uma mudança geral também nas instituições sociais, políticas e
econômicas, os objetivos dessas instituições, as relações com elas e os objetivos de
nossas próprias atividades.

Entre todas as palavras mencionadas, ressalta Williams (2011), o


desenvolvimento da palavra “cultura” é o mais surpreendente. Isso, porque as questões
ligadas aos significados da palavra “cultura” são diretamente relacionadas com as
grandes mudanças históricas advindas das transformações que a indústria, a democracia
e a classe representam, assim como intimamente ligadas com as mudanças na arte. O
desenvolvimento da palavra cultura é representativo de um registro das reações
importantes e permanentes causadas por essas tantas mudanças em nossa vida social,
econômica e política.

Antes desse período crítico e cheio de mudanças, “cultura” significava apenas,


como também descrito por Eagleton (2011) “tendência ao crescimento natural” e
28

depois, por analogia, um processo de treinamento humano. Esse último uso, de cultura
de “algo”, passou por uma transformação no século XIX e caiu em desuso, dando
espaço para uma cultura “como tal”, uma coisa em si mesma. Nesse sentido, são quatro
as características desse novo significado: 1) “um estado geral ou hábito da mente” –
ligado com a ideia de perfeição humana; 2) “uma situação de desenvolvimento
intelectual em uma sociedade comum a todos”; 3) “o corpo geral de artes”; 4) “todo um
modo de vida, material, intelectual e espiritual” - ou seja, “cultura” em seu sentido
antropológico (WILLIAMS, 2011, p. 18).

Uma das fontes primárias da ideia de cultura encontra-se, dessa forma, nos
escritos de Wordsworth (WILLIAMS, 2011). Baseando-se na teoria social de Burke,
Wordsworth entendia a cultura como o “espírito personificado de um povo”, como uma
espécie de padrão de excelência, em que o conhecimento do povo é algo superior ao
verdadeiro curso dos eventos e do funcionamento do mercado. No decorrer do século
esse padrão de excelência passou a ser disponível, como uma espécie de tribunal de
recursos em que os reais valores eram definidos a partir de sua oposição com o que
considerava padrões artificiais.

Estes padrões artificiais eram aqueles nascidos do mercado, o que levou à


sujeição das artes aos seus princípios e passou a ser vista como uma forma especializada
de produção sujeita, na maioria das vezes, às mesmas condições de qualquer outra
forma de produção mercadológica. Essa especialização da função, sua sujeição ao
mercado, fez com que o romance, naquela época, se transformasse também em
comércio. Assim, a rejeição do público e a popularidade transformaram-se nos padrões
de mérito de uma obra ou autor. Na mesma linha de pensamento, Tom Moore acabou
por fazer a distinção entre o que era a “multidão” e as “poucas pessoas cultas”. Dessa
forma, “cultura” passou a ser a antítese normal para o mercado (WILLIAMS, 2011, p.
59).

A arte começou a significar um caminho para a verdade imaginativa, enquanto o


artista passou a ser visto como um tipo especial de pessoa, o agente da revolução para a
vida por conter em si a capacidade de ser o portador da imaginação criativa. Aqui, mais
uma vez, encontra-se uma das principais fontes da ideia de cultura: a associação da ideia
de “perfeição geral da humanidade” com a “prática e o estudo das artes” (WILLIAMS,
2011, p. 86). A arte era entendida como a incorporação de certos valores e capacidades
29

humanas, e estava inevitavelmente ameaçada pelo desenvolvimento de uma sociedade


que caminhava rumo à civilização industrial. Desse modo, por defender termos e
valores opostos a essa ideia de uma humanidade geral comum, da ênfase do amor e do
relacionamento, essa nova sociedade industrial estava condenada, pois partia do
princípio do individualismo agressivo e das relações baseadas em fatores econômicos.

Houve uma consequência positiva da ideia de arte e cultura feita pelos idealistas
românticos: entendê-las como uma realidade superior oferecia as bases para a crítica ao
industrialismo. Entretanto, também houve, segundo Williams (2011) a consequência
negativa: à medida que a oposição se desenvolvia, tendeu-se a isolar a arte,
especializando a faculdade imaginativa nesse único tipo de atividade, enfraquecendo
assim sua função dinâmica e tendendo a ligar diretamente a noção de “cultura” à de
“arte”.

Fica claro, para Williams (2011), que na sociedade à época da Revolução


Industrial, a ideia social de cultura introduzida no pensamento inglês era sinônimo dos
valores que eram independentes da “civilização”, ou seja, independentes do progresso
da sociedade. Por isso, Coleridge defendia a ideia de uma classe dotada cujo negócio
deveria ser o “cultivo geral”, isto é, uma classe que se dedicasse exclusivamente à
preservação e extensão do cultivo em oposição ao progresso industrial que tomava conta
da sociedade. Foram dessas noções, afirma Williams (2011), que a construção de
“cultura” em termos de arte se originou.

Dando continuidade à ideia da cultura como um corpo de artes e erudição, como


um espaço em que se prima pelos valores superiores em oposição ao progresso
ordinário da sociedade, está Carlyle (WILLIAMS, 2011). Seguindo essa noção como
uma das principais linhas de crítica à nova sociedade que emergia, enfatizava a
concepção de uma “aristocracia espiritual”, composta por uma minoria educada e
responsável que tivesse como meta definir e enfatizar os valores mais altos que uma
sociedade deve almejar. Essa ideia de uma elite formada para o bem comum da
sociedade permanece, segundo Williams (2011, p. 110), até os dias de hoje. Assim, a
cultura acabou sendo definida como uma entidade separada e uma ideia crítica.

Segundo Eagleton (2011), a nova ideia de cultura que se instaurou já no século


XX acabou se limitando às artes ditas mais “imaginativas”, como a música, a pintura e a
literatura, sugerindo que os valores “civilizados” agora só podem ser encontrados na
30

fantasia. De tal modo, a cultura passou a designar, assim como reforçado por Williams
(2011) a erudição e as artes, atividades restritas a uma pequena porção da humanidade
(EAGLETON, 2011, p. 29). A cultura, a partir desse momento, passa a significar um
corpo de trabalhos artísticos e intelectuais de valor reconhecido, juntamente com as
instituições responsáveis por produzir, difundir e regular esses trabalhos.

A partir dessa significação, passou a haver a distinção entre o que era produzido
com fins estritamente culturais – a fim de cumprir a exigência do entendimento de que
cultura seria apenas o cultivo da mente, ou seja, como artes e como o trabalho
intelectual – e o que era produzido apenas com fins mercadológicos. Um exemplo disso,
afirma Williams (1992), é a noção da cultura letrada como sinal de privilégio. Isso,
porque com a invenção da escrita, de acordo com Williams (1992), surge junto com ela
uma assimetria fundamental entre o uso desse novo meio e a participação. Essa
assimetria se agrava à medida que a escrita vai ganhando cada vez mais importância, ao
mesmo tempo em que a capacidade de leitura cresce a passos muito lentos. As relações
entre a cultura oral e esse novo e importante setor dentro dela se tornam cada vez mais
complexas, fazendo com que surja assim uma diferença qualitativa entre a área oral, que
todos compartilham - ao mesmo tempo em que a maioria está confinada a ela - e a área
letrada, que cresce cada vez mais em importância cultural e que é, ao contrário,
privilégio de uma minoria dominante.

Posteriormente, a invenção da imprensa ampliou enormemente o acesso a uma


cultura que antes ficava limitada a uma minoria, tornando-a uma cultura da maioria.
(WILLIAMS, 1992, p. 107). Entretanto, criou-se a ideia/estereótipo do produtor cultural
como um indivíduo, ou, mais especificamente, um autor - inclusive, a associação da
palavra “autor” com o sentido de “autoridade” não é mera coincidência. Dessa forma,
criam-se as distinções e privilégios desse autor dito “autônomo”, em que “de um lado da
divisão estão os que ‘escrevem’, do outro, os que ‘imprimem’. O primeiro processo é
considerado produção cultural, o último, meramente instrumental” (WILLIAMS, 1992,
p. 114).

É nesse contexto que a maioria da população passa a ter acesso aos meios
culturais; e é a partir daí que os problemas começam. Segundo Russel Nye (1982), uma
cultura que estivesse ao alcance de todos, assim como suas artes derivadas, não poderia
existir em um contexto sociocultural anterior ao século XVIII. É claro que é possível
31

supor que um grande número de pessoas antes desse período encontrava prazer em
vários meios de diversão, mas foi apenas com a emergência e ascensão da sociedade de
massa no século XVIII, ou seja, a inclusão da maioria da população na sociedade, que
uma cultura com caráter popular passou a existir. Em outras palavras, foi apenas com o
aparecimento de uma civilização da classe média no mundo ocidental, seguido
diretamente pela queda na importância da elite e na diminuição da população das
classes mais baixas, que o cenário cultural se modificou radicalmente. O período, dessa
forma, viu estabelecer na sociedade uma tradição artística “tripla”: a arte popular (folk
art, a arte folclórica de cada povo), a arte “alta” e a nova arte “pop”, a última uma nova
arte voltada para a massa que ascendia socialmente. Nessa nova conjuntura, a elite não
mais podia legislar tão imperiosamente frente à nova e poderosa classe média.

A principal condição para o aparecimento dessa nova cultura foi o grande


crescimento da população da Europa e das Américas e a consequente concentração
dessa população nas áreas urbanas que apresentavam características sociais, econômicas
e culturais em comum. O resultado de todas essas mudanças foi a criação de um enorme
mercado de entretenimento que conseguia conversar com os desejos desse novo público,
criando assim a chamada “indústria do entretenimento” (NYE, 1987, p. 02).

Segundo Nye (1987), quando essa revolução acabou com os padrões culturais da
classe dominante, o espraiamento da educação e da alfabetização pelas demais classes
acabou criando uma nova audiência que representava os gostos da população em geral,
que passou a deter os meios de produção e transmissão culturais, antes dispostos apenas
nas mãos de uma pequena elite privilegiada. Essa nova sociedade que se formava, mais
democrática, tinha mais tempo livre e mais recursos e precisava, em consequência, de
uma cultura – que não fosse a folclórica ou a de elite – que pudesse preencher esse
tempo e fazer uso desse dinheiro.

Ademais, essa cultura também foi consequência do desenvolvimento tecnológico


e das novas formas que possibilitaram a multiplicação dos objetos, além de métodos
mais eficientes de produção e distribuição. Passando pela predominância da prensa no
século XIX, o século XX alcançou um público ainda maior ao abrir outros canais de
comunicação cultural – como o rádio e o cinema -, fazendo com que a cultura se
tornasse acessível por meio de uma variedade de meios. Esta nova cultura acabou
confirmando a experiência da maioria, tornando-se, assim, um espelho do
32

comportamento, vontades e anseios da sociedade para a qual é produzida. Entretanto,


como para os críticos ela é considerada de menor qualidade estética do que a arte
voltada para a elite, foi descartada como um meio para se acessar a história, valores e
ideias da sociedade (NYE, 1987).

Assim sendo, se a cultura, ao longo do tempo, se configurou como um fato


aristocrático, de acesso limitado e possível apenas a uma pequena elite, a simples
possibilidade de uma cultura partilhada por todos, que se adapta a todos e elaborada por
todos, gerou uma crise na configuração. Para essa mesma elite, essa nova cultura que
surgia, posteriormente denominada de “cultura de massa”, acabou significando uma
“anticultura” (ECO, 2008, p. 08), o sinal de uma queda de valores e crenças que seria
irrecuperável. Indo na direção oposta de seus carrascos, os defensores da cultura de
massa veem nela uma possibilidade de alargamento cultural, em que o acesso é maior e
a circulação de uma arte e de uma cultura popular se torna possível.

No final das contas, a cerne do problema não é essa nova cultura de massa, e sim
a possibilidade de acesso das massas aos demais “níveis” de cultura: é um problema
político e social, de escolaridade, de possibilidade de escolha. O problema se encontra,
portanto, na cultura como ferramenta de distinção e como ideologia de dominação de
uma classe sobre a outra. Para tentar entender, portanto, como a definição de uma
cultura entendida como “superior” por uma classe minoritária e dominante funciona
como instrumento de dominação, nos debruçaremos sobre as noções de “distinção” de
Pierre Bourdieu (2007) e de “ideologia” de John B. Thompson (1995).

Em A Distinção, Pierre Bourdieu (2007) afirma que os bens culturais também


possuem uma economia. Para o pensador francês, indo no sentido contrário de uma
ideologia carismática que entende os gostos como um dom da natureza, sendo os gostos
pensados como a cultura dita “legítima”, a observação científica traria outra visão a esse
respeito: de que, na verdade, os gostos não são inatos, mas produto da educação, isto é,
estão diretamente ligados ao nível de instrução e à origem social do indivíduo. Por isso,
a hierarquia socialmente reconhecida das artes corresponde diretamente à hierarquia
social dos consumidores. Assim, os gostos acabam funcionando como os marcadores
privilegiados da “classe” (BOURDIEU, 2007, p. 09). Nas palavras de Bourdieu, “o
gosto classifica aquele que procede à classificação; os sujeitos sociais distinguem-se
pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu
33

intermédio, exprime-se ou traduz a posição desses sujeitos na classificação objetiva”


(BOURDIEU, 2007, p. 13).

Tendo em vista que os gostos funcionam como definidores de classe, Bourdieu


(2007) ressalta, então, que a definição de uma “nobreza cultural”, como explicitamos
anteriormente, é apenas um pretexto para uma luta que ocorre desde o século XVII e
que opõe, quase que declaradamente, grupos que possuem ideias distintas sobre a
cultura, sobre a relação legítima com a cultura e com as obras de arte e, desse modo,
sobre as condições de aquisição destas. Nesse sentido, a definição dominante do que
seria a forma correta e legítima de apropriação cultural e da obra de arte favorece
aqueles que desde cedo, seja pela origem ou pelo privilégio escolar, tiveram acesso à
cultura considerada legítima.

Segundo Bourdieu (2007), a ideia de uma percepção artística que se impõe como
legítima, ou seja, a disposição estética como uma capacidade de ver as obras legítimas –
aquilo que popularmente chamamos de um “olho bom” para identificar objetos culturais
legítimos - tanto as vistas como “culturais” como as que ainda estão em vias de
consagração (as chamadas “artes médias”), é uma invenção histórica, reproduzida pela
educação, que surge a partir do aparecimento de um campo de produção artístico
autônomo, capaz de determinar suas próprias regras, seja na produção ou no consumo
de seus produtos.

O gosto funciona, portanto, como um dos pretextos para as lutas que se dão no
campo tanto da classe dominante quanto no campo da produção cultural, e isso ocorre
por dois motivos: primeiramente porque o julgamento do gosto é a ferramenta perfeita
para que se chegue ao discernimento, que define o homem; em segundo lugar, porque a
definição do que é indefinível revela o “filistinismo”, a ignorância cultural,
transformando o gosto no mais certeiro indício do que representa a verdadeira nobreza
cultural (BOURDIEU, 2007, p. 17).

Assim, segundo Bourdieu (2007), de todos os objetos oferecidos para que os


consumidores escolham, os que melhor determinam a classe são as obras consideradas
legítimas, que permitem a produção de distinções em vários níveis. O gosto, ademais, é
determinado pelos níveis escolares que, na maior parte das vezes, estão associados ao
pertencimento a uma determinada classe social. Portanto, a distinção sobre o que é
“bom” ou “ruim”, “legítimo” ou “ilegítimo”, é determinado pelos gostos oriundos das
34

classes e a educação escolar correspondente a elas. O esforço de apropriação cultural,


dessa forma, está ligado aos títulos que abrem as portas aos direitos e deveres da
burguesia, enquanto o espaço em que se produz a imposição de títulos é a instituição
escolar. Aqueles definidos por esses títulos, isto é, os diplomas, que os legitimam e
predispõem a ser o que são, e que fazem com que suas ações sejam as manifestações
superiores, dividem a função de cada um baseando-se em uma hierarquia de seres, que
estão separadas por uma diferenciação de natureza, dividindo essa “nobreza cultural”
dos “plebeus da cultura” (BOURDIEU, 2007, p. 28).

Destarte, essa noção de “nobreza cultural”, como colocado por Bourdieu (2007)
é definida a partir do gosto de um grupo, transformando-se em ferramenta de distinção
social ou, em outras palavras, em ferramenta de dominação. Assim, a nobreza cultural
define e aprecia a dita cultura legítima - ou a “alta cultura”, em oposição à “baixa
cultura, como a cultura de massa -, que se constitui, então, como uma forma simbólica
que se estabelece como “ideologia”, assim como na visão de John B. Thompson (1995)

Thompson (1995) reformula o conceito de ideologia ao se posicionar no sentido


contrário de outros autores, que defendiam o conceito a partir de suas compreensões
neutras e críticas. Thompson está menos interessado nestas concepções específicas do
termo e mais interessado nas argumentações gerais sobre a natureza e o papel da
ideologia nas sociedades modernas (THOMPSON, 1995, p. 75). O autor procura, dessa
forma, combater a neutralização do conceito ao formular uma concepção crítica de
ideologia, esta podendo oferecer as bases para um enfoque útil e defensável para a
análise da ideologia, orientado para o exame concreto dos fenômenos sócio-históricos,
ao mesmo tempo em que mantém o caráter crítico transmitido durante a história do
termo.

A análise da ideologia, a partir da concepção proposta por Thompson, interessa-


se inicialmente pelas maneiras como as formas simbólicas se entrecruzam em relações
de poder, ou seja, “estudar a ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para
estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON, 1995, p. 76). Entretanto,
é preciso ressaltar que fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos significativos
desde que eles sirvam, em circunstâncias sócio-históricas específicas, para estabelecer e
sustentar relações de dominação. Isso, porque diz o autor, os fenômenos simbólicos não
são ideológicos em si, e sim se configuram como tal apenas quando servem, nestas
35

circunstâncias particulares, para manter relações de dominação. Por isso, só se pode


determinar que fenômenos simbólicos servem ou não para estabelecer e sustentar
relações de dominação ao examinar as maneiras como estes fenômenos são empregados,
transmitidos e compreendidos dentro de contextos sociais estruturados.

Desse modo, Thompson (1995) define “formas simbólicas” como um “[...]


amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são reproduzidos por sujeitos e
reconhecidos por eles e outros como constructos significativos” (THOMPSON, 1995, p.
79). Caracterizar os contextos e processos como “socialmente estruturados” significa
dizer que existem distinções sistemáticas no que concerne à distribuição ou ao acesso
aos recursos, o que implica que pessoas situadas dentro de contextos socialmente
estruturados têm, de acordo com sua localização, diferentes quantidades e graus de
acesso a esses recursos. Em outros termos, Thompson (1995) afirma que a localização
social e as qualificações associadas às posições de um indivíduo, em determinado
contexto, fornece a estes diferentes graus de poder, entendido como uma capacidade
conferida a eles socialmente ou institucionalmente, que viabiliza o poder a alguns para
tomar decisões e realizar seus interesses.

Falar de dominação, portanto, é falar de relações estabelecidas de poder que são


“sistematicamente assimétricas” (THOMPSON, 1995, p. 80), em que grupos
particulares de agentes detêm o poder de uma maneira permanente e significativa,
enquanto para outros agentes este poder permanece inacessível.

Existem inúmeras maneiras, afirma Thompson (1995), em que o sentido pode


servir, dentro de condições sócio-históricas específicas, para manter relações de
dominação. Para isso, identifica certos “modos de operações” gerais da ideologia a fim
de apontar alguns dos modos como eles podem estar vinculados, em circunstâncias
particulares, com estratégias de construção simbólica. Os modos gerais são divididos
em cinco, contendo cada um deles estratégias típicas de construção simbólica. São eles:
legitimação (racionalização universalização e narrativização), dissimulação
(deslocamento, eufemização e tropo), unificação (estandartização e simbolização da
unidade), fragmentação (diferenciação e expurgo do outro) e reificação (naturalização,
eternalização e nominalização/passivização). Estas estratégias de construção simbólica
são os instrumentos que possibilitam que as formas simbólicas, capazes de criar e
36

sustentar relações de dominação, possam ser produzidas, facilitando assim a


mobilização do sentido.

Tendo em vista tais modos e suas estratégias, o que nos interessa, para fins dessa
pesquisa, é o modo chamado por Thompson (1995) de “legitimação”. Relações de
dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas
como legítimas, ou seja, como justas e dignas de apoio, como é o caso dos defensores
de uma “alta cultura”. A representação das relações de dominação como legítimas pode
ser entendida como uma exigência de legitimação baseada em certos princípios e
expressa em certas formas simbólicas e que pode, dependendo das circunstâncias, ser
mais ou menos efetiva.

As formas simbólicas, desse modo, são ideológicas apenas quando servem para
estabelecer e sustentar relações sistematicamente assimétricas de poder e é esse
princípio, que está a serviço de grupos e pessoas em posições dominantes, que
circunscreve o fenômeno da ideologia, concedendo-lhe sua especificidade e
distinguindo-o da circulação de formas simbólicas em geral. Ideologia, dentro da
concepção proposta por Thompson (1995), é por natureza hegemônica, pois reproduz,
por meio das relações de dominação, a ordem social que favorece esses grupos
dominantes. Portanto, a concepção de uma cultura verdadeira e legítima, em sua
acepção culta, chamada de “alta cultura”, funciona como uma forma simbólica
ideológica utilizada pelas classes dominantes para se distinguirem das demais classes e
legitimarem a sua própria forma de apreciação cultural, ignorando e menosprezando as
demais.

Nesse sentido, o consumo cultural, como por exemplo o consumo de obras de


arte, representa uma das maiores manifestações de abastança e de disposição, no sentido
de condição (BOURDIEU, 2007, p. 55). A disposição estética, assim, define-se como
uma espécie de gosto e, como toda espécie de gosto, ela une e separa ao mesmo tempo:
sendo ela o produto dos condicionamentos associados a uma classe que possui atributos
de existência específicos, une todos aqueles que possuem os mesmo atributos, e
distingue-se de todos os outros, uma vez que o gosto, define Bourdieu, “[...] é o
princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros,
daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo que se é classificado.”
(BOURDIEU, 2007, p. 56).
37

O gosto, como preferência manifestada, constituiu a afirmação prática de uma


diferença inevitável; inclusive, para se diferenciarem e justificarem, afirmam-se ao
negar: utilizam uma recusa oposta aos outros gostos. Para Bourdieu (2007), quando se
fala em gosto, toda determinação é negação, na qual os gostos se definem pela total
aversão e intolerância ao gosto dos outros. Isso tudo, porque cada gosto está baseado na
natureza, fazendo com que o gosto alheio seja tratado como uma contranaturalidade. A
intolerância estética gera e exerce a violência, violência essa representada pela aversão
aos estilos de vida diferentes, que acaba se constituindo em uma das principais barreiras
entre as classes. Dessa forma, aos que acreditam ser os donos do gosto legítimo, é
intolerável que haja a reunião dos gostos, pois eles, por natureza, deveriam ser
separados; está aí, dado, o problema em relação à ascensão das massas e aos novos
meios de comunicação de massa: a pretensão burguesa a uma “distinção natural” gera
uma “absolutização” da diferença (BOURDIEU, 2007), estabelecendo assim uma
relação assimétrica de poder e de dominação (THOMPSON, 1995). A cultura de massa,
desse modo, está no centro dessa problemática.

1.2 A origem da crítica à cultura de massa: os “apocalípticos”

A cultura de massa pode ser definida, segundo Edgar Morin (2011) em A


Cultura de Massas no Século XX, como aquela produzida segundo “as normas maciças
de fabricação industrial; propagada pelas técnicas de difusão maciças [...] destinando-se
a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos
aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, família, etc.)” (MORIN,
2011, p. 04). Atingindo seu ápice no século XX, com o maior e mais rápido
desenvolvimento de técnicas e tecnologias, a cultura de massa rompeu as barreiras que
delimitavam o acesso à cultura de acordo com a classe social, idade e níveis de
educação. Apesar de não completamente abolidas, novas estratificações foram criadas e
diferentes setores instituíram para si públicos específicos. Contudo, tais estratificações
não conseguiram acabar com o dinamismo particular da cultura de massa: ainda na
primeira metade do século XX surge um novo tipo de imprensa, de cinema e de rádio
cuja característica principal é a de se dirigir a todos (MORIN, 2011, p. 04).
38

Nesse sentido, o desprezo em relação à cultura de massa que deplora a chegada


desses produtos, tem origem tanto na direita quanto na esquerda: a direita a considera
como um divertimento simples e digno apenas de plebeus; por outro lado, a crítica de
esquerda, a partir de uma concepção marxista, considera a cultura de massa apenas
como o “novo ópio do povo”, como uma nova alienação da civilização burguesa, em
que esta falsa cultura agora aliena o homem não apenas no trabalho, mas também no
consumo e no lazer. Dessa forma, seja de direita ou de esquerda, o desprezo pela cultura
de massa se dá porque ela é considerada apenas como uma mercadoria cultural feia,
ordinária e sem valor artístico, levando a uma resistência geral da dita “classe
intelectual” ou “cultivada” (MORIN, 2011, p. 07).

A concepção dos marxistas e seu combate contra a cultura de massa podem ser
explicados pelas decepções destes com as massas. Isso, porque segundo Lazersfeld e
Merton (1971), existem três fatores relacionados que são a base da preocupação do
homem com os meios de comunicação de massa. Em primeiro lugar, muitos temem a
onipresença e poder potencial desses meios; em segundo lugar, a preocupação com os
atuais efeitos desses meios de comunicação em seu público extenso e, principalmente,
que o avanço desses meios e seus efeitos possam levar ao fim das faculdades críticas e a
um conformismo inadvertido; por último, o temor de que esses instrumentos
tecnicamente desenvolvidos da comunicação de massa constituam uma grande abertura
para a deterioração dos gostos estéticos, constituindo-se deliberadamente em canais de
suprimento para gostos vulgarizados.

Estes temores, segundo os autores (LAZARSFELD; MERTON, 1971), podem


conter suas origens nas mudanças sociais advindas dos “movimentos de reforma”
(LAZARSFELD; MERTON, 1971, p. 235). Nesses movimentos de reforma, foram
estabelecidas leis trabalhistas que diminuíram as jornadas e aboliram o trabalho infantil,
além da institucionalização de uma educação universal e livre. Estes, entre outros
progressos, significaram grandes vitórias para os reformistas. A partir daí, as pessoas
passaram a dispor de mais tempo para o lazer, além de um acesso maior e mais fácil aos
bens culturais na esperança de que, assim que livres de suas amarras, as pessoas se
beneficiariam dos grandes e verdadeiros produtos culturais da nossa sociedade, como
Shakespeare e Beethoven. Ao contrário, elas passaram a consumir os produtos da
cultura de massa (LAZARSFELD; MERTON, 1971, p. 235).
39

Para aqueles que fizeram parte do movimento reformista, esses novos meios de
comunicação fraudaram os frutos das vitórias por eles alcançados. O ataque à cultura de
massa, portanto, encontra uma de suas origens na suposta traição que se cometeu contra
a instrução e a nova liberdade conseguida. Entretanto, para Edgar Morin (2011), a
crítica de direita talvez tenha sido a mais condenatória e, em consequência, a que mais
males tenha causado à imagem da cultura de massa. Tal crítica, segundo o autor, tem
suas raízes num viés elitista e aristocrático.

Isso, porque, segundo Morin (2011), o acesso à cultura e aos objetos culturais,
fossem quais fossem, ficavam retidos pelas fronteiras de classes. Desse modo, mesmo
quando o camponês ou operário tiveram o primeiro acesso à cultura a partir da
alfabetização, ainda assim permaneceram à margem dos demais. O teatro, por exemplo,
continuou a ser um privilégio de consumo burguês (MORIN, 2011, p. 30). O cinema,
então, foi a primeira das culturas de massa a reunir em seus circuitos espectadores de
todas as classes sociais, sejam elas urbanas ou camponesas. Nesse sentido, entende-se
que as fronteiras culturais são abolidas com a chegada da cultura de massa. Mais ainda:
as estratificações são reconstruídas no interior dessa nova cultura. Pode-se dizer, é claro,
que o cinema de “arte” e o cinema “popular”, ou dos ditos “blockbusters” diferenciam o
público cinematográfico, mas essa diferenciação não é a mesma que a das classes
sociais. Para Morin, portanto, “[...] a cultura industrial é o único grande terreno de
comunicação entre as classes sociais” (MORIN, 2011, p. 31).

Essa nova cultura, a cultura de massa, é parte do complexo formado pela


economia capitalista que - mesmo com as ressalvas e críticas às deficiências e
desigualdades do sistema - democratizou o consumo a partir da formação e do
desenvolvimento de outro público assalariado e pela progressão de valores diferentes
daqueles das sociedades com classes estratificadas. A nova cultura acabou se
transformando em um “lugar comum” (MORIN, 2011, p. 33), o meio de comunicação
entre as diferentes classes. Se a cultura sempre foi propriedade de uma elite, assim que
ela se espalhou levou, segundo Umberto Eco (2008), o acesso das classes ditas
subalternas ao controle da vida associada e o modelo cultural que prevalecia até então
entrou em crise. É por isso, então, que as críticas à cultura de massa têm uma raiz
aristocrática: é desprezo que apenas parece voltar-se à cultura de massa, mas que na
verdade se dirige contra as massas (ECO, 2008, p. 36).
40

Os críticos da cultura de massa têm um sentimento de nostalgia de uma época


em que os valores da cultura eram atributo de uma classe, e não a disposição de todos.
Essa nova concepção do papel e do lugar das multidões na sociedade que começou a
surgir gerou o medo e o desprezo das minorias aristocráticas pelo “sórdido
povo”(MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 52). Os efeitos dessa industrialização capitalista
sobre o quadro de vida das classes populares foram nítidos e a sociedade se viu afetada
por movimentos de massa que, para o desespero da burguesia, colocaram em perigo os
“pilares da civilização” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 53).

A minoria dominante acreditava que a aceitação popular condenaria a arte e que


a cultura de massa, por definição, é medíocre, falsa e ruim (NYE, 1987, p. 417). Para os
críticos mais ferrenhos, comenta Russel Nye (1987), a única forma de preservar a alta
arte era reestabelecendo a linha que tinha se esvaído entre a aristocracia e as classes
mais baixas, trazendo a arte para o controle da aristocracia e longe da intromissão
popular. Nesse sentido, para melhor entender como se origina e dissemina a crítica
dominante dos efeitos da mídia e da cultura de massa na primeira metade do século XX
é antes de tudo necessário, segundo Bart Beaty (2005), entender a atmosfera intelectual
da época.

A análise cultural dos Estados Unidos no século XX era dominada por uma
única perspectiva: a tendência a comparar o gosto das diferentes audiências umas com
as outras. A concepção de uma cultura elevada, a chamada “alta cultura”, relacionada a
uma minoria que representava uma elite cultural, era vista com alto prestígio e
legitimidade, enquanto denegriam-se as escolhas culturais da maioria do público. A
crítica à cultura de massa, dessa forma, baseou-se em uma gama de forças que criou
relações entre arte e política (BEATY, 2005, p. 48), levando ao triunfo de uma
abordagem altamente conservadora e elitista no estudo da cultura da mídia que enxerga
os receptores como simples massificados.

Naquele período, a elevação dos acadêmicos dos estudos literários à posição de


“analistas supremos da cultura” (BEATY, 2005, p. 50, tradução nossa1) se espalhou por
toda a nação. Segundo Leo Rosten (apud BEATY, 2005), a crítica da cultura de massa
sempre se baseou mais nas preocupações sociais, inclinações, preconceitos e
pressuposições dos críticos do que por uma pesquisa empírica baseada nos variados

1
Supreme cultural commentators.
41

usos e efeitos das mídias de massa. Não obstante, apesar de seu alcance e proeminência
na história norte-americana, o ponto de vista crítico da cultura de massa esteve
associado com uma forma europeia particular de distinguir classes e pertencimento
social por meio da cultura. A perspectiva pessimista adotada pelos intelectuais da época
seguia, segundo Beaty (2005), a adoração a uma ideia de alta cultura, ou “arte genuína 2”
(BEATY, 2005, p. 58), que poderiam mostrar como é o mundo ao mostrar como ele não
é.

Nesse contexto, o posicionamento da Escola de Frankfurt em relação à cultura


de massa chama a atenção. Na verdade, esse posicionamento talvez possa ser melhor
entendido pelo contraste entre as visões dos outros membros com a de um associado em
particular: Theodor Adorno não acreditava que a classe trabalhadora pudesse ser um
agente revolucionário de mudança social (BEATY, 2005, p. 58). Com o conceito de
indústria cultural, dissemina uma das críticas mais radicais feitas à cultura de massa na
primeira metade do século XX que, segundo Jesus Martín-Barbero (2015), tem como
base a experiência traumática do nazismo: com o regime nazista, o capitalismo deixa de
ser apenas economia e passa a mostrar sua faceta política e cultural: sua tendência à
totalização, em que os processos de massificação vão, pela primeira vez, ser pensados
não como substitutos, mas como parte constitutiva da estrutura conflitiva do social.

O conceito de indústria cultural nasce em 1947, em texto escrito em parceria


entre Adorno e Max Horkheimer (1985), contextualizando o termo não só nos Estados
Unidos da democracia de massas, como também na Alemanha nazista. Pensam a
dialética histórica que, partindo de uma razão ilustrada, cai em uma irracionalidade que
acaba articulando o totalitarismo político e a massificação cultural como duas faces de
uma mesma moeda. Parte-se da ideia de “caos cultural”: perda do centro e consequente
dispersão e diversificação dos níveis e experiências culturais, estas descritas e
descobertas pelos teóricos da cultura de massa, afirmando assim a existência de um
sistema regulador, na medida em que também a produz, da dispersão. A “unidade”
desse sistema se dá, segundo Adorno e Horkheimer (1985), pela introdução na cultura
da produção em série – destruindo o que distinguia a lógica da obra da lógica do sistema
social – e pela imbricação entre a produção de coisas e a produção de necessidades:

2
“Genuine art”
42

Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu


esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se
delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em
encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se
confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se
apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio,
eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que
propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como
indústria, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores
gerais suprimem toda a dúvida quanto à necessidade social de seus
produtos. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100)

O termo “indústria cultural” chega, portanto, para substituir o termo “cultura de


massa” já que, para Adorno (1971a), este último dá a entender que essa cultura é algo
que surge espontaneamente das próprias massas ou como uma forma de arte popular.
Para ele, o termo indústria cultural é mais apropriado visto que essa cultura não é feita
pela massa e para a massa, e sim por uma indústria acima dela que cria produtos
adaptados ao consumo, determinando o mesmo. Em outras palavras, o consumidor
nesse sistema não é o chefe, como a indústria cultural nos faz acreditar, pois ele não se
configura como o sujeito dela, e sim como seu objeto. As massas, portanto, não seriam a
medida, e sim a ideologia da indústria cultural, mesmo que essa última não possa
sobreviver sem se adaptar a essas massas.

Na crítica adorniana, a indústria cultural vai mais além ao forçar a união dos
domínios da arte superior e da arte inferior, que por muitos anos permaneceu separada.
Essa união, no caso, só causaria prejuízo para ambos os lados: “a arte superior se vê
frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de
sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era
inerente enquanto o controle social não era total” (ADORNO, 1971a, p. 288).

Todas as práticas da indústria cultural transferem as motivações voltadas ao


lucro para as criações artísticas. Assim, a autonomia das obras de arte, apesar de nunca
ter sido pura e completa, se vê completamente abolida pela indústria cultural. As
produções do espírito passam a ser completamente mercadorias. O termo “indústria”,
dessa forma, não deve ser entendido de maneira literal. Ele designa, segundo Adorno
(1971a), a estandartização de qualquer produto e a racionalização das técnicas de
distribuição, mas não se refere necessariamente ao processo de produção.
43

Para o pensador, a ideia de que o mundo quer e gosta de ser enganado é hoje
mais verdadeira do que nunca. Se os próprios defensores da indústria cultural, diz ele,
objetam à ideia de que ela pretende ser arte, isso constitui-se como ideologia ao querer
eximir-se da responsabilidade em relação à base de seu negócio. As ideias que ela
coloca em ordem são, sempre, as do status quo, aceitas sem objeção ou análise e, por
isso,

Assim como mal podemos dar um passo fora do período de trabalho


sem tropeçar em uma manifestação da indústria cultural, os seus
veículos se articulam de tal forma que não há espaço entre elas para
que qualquer reflexão possa tomar ar e perceber que o seu mundo não
é o mundo. [...] Quanto mais completo o mundo como aparências,
tanto mais inescrutável a aparência como ideologia. (ADORNO,
1971b, p. 347)

A técnica dessa indústria conquista seu poder sobre a sociedade, em que a


racionalidade técnica se transforma em racionalidade da dominação. Por meio desta
ideologia, a indústria cultural consegue substituir a consciência pelo conformismo, pois
a ordem por ela estabelecida nunca é confrontada. As considerações impostas pela
indústria cultural não podem ser consideradas normas para uma vida feliz, pois são
apenas conformações advindas dos interesses dos poderosos. Por conta disso, ocorreria
inevitavelmente a atrofia da imaginação e da espontaneidade de quem consome os
produtos da indústria cultural, paralisando suas capacidades (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 105).

Nesse sentido, entendemos que para Adorno, “a massa é representada por


pessoas que participam de um comportamento de massa [...]” (BLUMER, 1971, p. 178)
e só. O indivíduo, exposto a esses meios de comunicação de massa, torna-se
inevitavelmente alienado diante da realidade e não consegue mais pensar por si,
necessitando de algo que venha de cima para iluminar suas ideias. Para Adorno, na
verdade, mesmo que se possa considerar que as mensagens transmitidas pela indústria
cultural são inofensivas, o comportamento que ela transmite não é. Isso, porque a
“satisfação compensatória” (ADORNO, 1971a, p. 294) que ela oferece aos indivíduos
ao dar a falsa impressão de que o mundo está em ordem, frustra-os na própria ideia de
44

felicidade que ela enganosamente propicia. Ela impede, assim, que os indivíduos sejam
autônomos, independentes e capazes de julgar e de tomar decisões por conta própria.

Entretanto, Robert Witkin (2003) nos lembra que Adorno nunca deixou de
reconhecer que havia artistas talentosos e habilidosos trabalhando dentro do sistema da
indústria cultural. O problema, para ele, não era esse, mas aos interesses que serviam
esses artistas e os usos que eram feitos de seus trabalhos. O maior problema de Adorno,
portanto, é que, em sua visão, a cultura deveria ser uma ferramenta de mudança e
autodesenvolvimento do indivíduo. Ao contrário, a indústria cultural, o que o pensador
chamava de “pseudo-cultura”, como produto do mercado capitalista, servia apenas para
manter as pessoas na linha, em uma escravidão conformada, neutralizados (WITKIN,
2003, p. 30).

A crítica à cultura de massa, entretanto, não se encerra em Adorno. Muitos


outros autores da época perpetraram a mesma visão, algumas vezes muito mais radicais,
sobre o novo meio que surgia. Seguindo a mesma linha da crítica adorniana, por
exemplo, Bernard Rosenberg (1957) afirma em A cultura de massa nos Estados Unidos
que “na pior das hipóteses, a cultura de massa ameaça não só cretinizar o nosso gosto,
mas também brutalizar os nossos sentidos, ao mesmo tempo em que abre caminho para
o totalitarismo” (ROSENBERG, 1957, p. 22).

A crítica de José Ortega y Gasset (2013) no livro A rebelião das massas talvez
seja uma das mais severas. Logo nas primeiras páginas desta que é considerada sua obra
prima, Ortega y Gasset (2013) aponta que o problema central da nossa sociedade é a
ascensão ao poder do “homem de massa”. Para ele, a massa não respeita mais os valores
da elite portadora de cultura e busca desbancar tais valores e impor os seus próprios. A
massa, na visão do autor, avançou para o primeiro plano da vida social e passou a gozar
dos lugares, instrumentos e prazeres que antes eram reservados a poucos. O autor chega
a ponto de constatar que os lugares não são destinados à multidão, pois esses não
conseguem acomodá-la em seu espaço, causando o transbordamento do mesmo. Esse
novo fenômeno de ascensão das massas está “[...] suplantando as minorias” (ORTEGA
Y GASSET, 2013, p. 43). Para Ortega y Gasset, a vulgaridade tomou conta da
sociedade, e é a massa que proclama o direito à vulgaridade e tenta impô-la a todo
custo. Na ideia de estandartização, ainda assinala que a massa esmaga tudo aquilo que é
diferente, individual, excelente, seleto e qualificado. Quem não pensar e agir como todo
45

o mundo, pode até mesmo ser eliminado. “E claro que esse ‘todo o mundo’ não é ‘todo
o mundo’. ‘Todo o mundo’ era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias
discrepantes, especiais. Agora todo o mundo é só massa” (ORTEGA Y GASSET, 2013,
p. 44, grifo do autor).

Já na visão de Dwight Macdonald (1957), durante quase um século a cultura


ocidental foi dividida em duas: o que ele chama de “gênero tradicional”, ou
simplesmente a “Alta Cultura”, e a “cultura de massa”, manufaturada por atacado para o
mercado. A cultura de massa, para Macdonald, desenvolveu meios próprios em que o
“artista sério” não se aventura: esses meios são a televisão, o cinema, o rádio e, como
esperado, as histórias em quadrinhos. A cultura de massa se desenvolve, segundo
MacDonald (1957), a partir da democratização política e do crescimento da educação
popular no final do século XIX, que quebram as barreiras do antigo monopólio da
cultura nas mãos da classe superior. As empresas encontraram nesse desenvolvimento
um mercado lucrativo a partir das demandas culturais dessa massa e, aliado com o
avanço tecnológico, tornou possível a produção barata e em série de livros, jornais,
música e quadrinhos, todos em quantidade suficiente para dar conta do novo mercado
que surgia. Além disso, novos meios de comunicação nascidos desse avanço
tecnológico puderam surgir, como o cinema e a televisão.

Macdonald (1957) faz sua crítica partindo da premissa de que a cultura de


massa, ou o “kitsch” - palavra alemã que designa a cultura de massa (MACDONALD,
1957, p. 78) -, suprimem a “alta cultura”, extraindo dela sua riqueza e não lhe dando
nada em troca. Os “senhores do kitsch” (MACDONALD, 1957, p. 78) exploram as
necessidades culturais das massas com o intuito de obter lucro e/ou manter o domínio
da sua classe. A partir daí, faz a diferenciação entre a arte folclórica e a cultura de
massa: a primeira era uma expressão espontânea, natural, feita pelo e para o povo e sem
intervenção da alta cultura; a segunda é imposta, vem de cima. Para Macdonald, a arte
folclórica era o mundo particular do povo, em que a alta cultura não poderia interferir;
era a separação clara entre povo comum e aristocracia. A cultura de massa, entretanto,
derrubou o muro que os separavam fazendo com que o povo agora ficasse refém da alta
cultura e convertendo-a, dessa forma, em instrumento de dominação política.

Para Macdonald (1957), a cultura de massa é de fato uma força dinâmica,


revolucionária, que quebra as velhas barreiras de classe, gosto e tradição e assim acaba
46

com as distinções culturais. Ao fazer isso homogeneíza e, ao homogeneizar, destrói


todos os valores já que, para ele, determinar valor pressupõe discriminação. A cultura de
massa, dessa forma, é sim muito democrática, pois se recusa a discriminar quem ou o
que quer que seja. Afinal, “tudo é grão para o seu moinho e tudo sai de lá, de fato, muito
bem moído” (MACDONALD, 1957, p. 81). A ascensão da cultura de massa não
significa a sua elevação, seu engrandecimento. Na verdade, significa apenas a corrupção
da alta cultura. Ora, “nada é mais vulgar do que o kitsch sofisticado” (MACDONALD,
1957, p. 83).

A crença desses e de tantos outros autores no mito que a cultura irá declinar se a
massa ascender revelou que a cultura de massa acabou se tornando o receptáculo de um
problema cultural sério no período pós-Segunda Guerra: a briga entre a conservação da
elite e ascensão das massas (SELDES apud BEATY, 2005, p. 73).

Esses críticos do início do século XX que se opunham e combatiam a cultura de


massa, em defesa da “alta cultura” de que fala Macdonald, têm sua raiz aristocrática,
segundo Edgar Morin (1986) em dois tipos de elitismo que partilham a cultura ilustrada,
ao mesmo tempo em que a disputam: o das classes privilegiadas e o da intelligentsia
criadora-crítica. A primeira, como já colocamos, diz respeito a uma classe privilegiada
que se apropria da fortuna cultural, na qual o elitismo burguês coloniza a instituição
cultural. Tal colonização só é possível assimilando o código, ao qual a apropriação se
torna um teste e um perigo social: se ser culto é pertencer à elite, as classes superiores
começam a se sentir ameaçadas pelas camadas populares em ascensão e que entendem a
cultura como elevação social, e assim buscam preservar seu elitismo “[...] levando-o às
últimas trincheiras do esnobismo e da moda” (MORIN, 1986, p. 83). A segunda é um
elitismo da intelligentsia, que se caracteriza como a classe, nas sociedades modernas,
que produz, sustenta e renova não só a cultura ilustrada, como também a religiosa, a
nacional, entre outras.

Em Os Intelectuais como Classe Social, Nildo Viana (2006) coloca que os


termos “intelectuais”, “intelectualidade” e “intelligentsia” representariam, no discurso
cotidiano, algo ligado à inteligência, alguém inteligente. O termo intelligentsia, apesar
de mais formalmente próximo a esse sentido, é, contudo, considerado como uma
referência negativa em relação aos intelectuais. Teoricamente falando, afirma o autor, os
intelectuais não se caracterizam por sua grande inteligência, como é comumente
47

pensado, e sim por sua posição no conjunto das relações sociais, sendo definidos,
pensando em termos de divisão social do trabalho, como uma classe social de
indivíduos que se dedica exclusivamente ao trabalho intelectual. Embora assumam
posições diferentes dependendo da sociedade em que estão inseridos, os intelectuais
sempre gozaram de posição privilegiada no interior da divisão social.

Seja qual for a sociedade da qual fazem parte, os intelectuais sempre possuíram
remuneração maior do que as classes exploradas. Assim sendo, constituem-se como
uma classe social que ocupa um papel específico no processo de reprodução da
sociedade e os privilégios oriundos desta relação. Apesar dessas semelhanças, sua
constituição e forma de ação dependem das relações sociais e modo de produção da
sociedade da qual fazem parte, revelando que também existem diferenças entre os
grupos de intelectuais de acordo com o contexto do qual fazem parte. Outro ponto em
comum entre os intelectuais é que em qualquer sociedade, além de se dedicarem
exclusivamente ao trabalho intelectual, são parte das classes privilegiadas, atuando
como uma “classe auxiliar” da classe dominante (VIANA, 2006).

Tendo como função a produção e/ou reprodução de saberes que são de interesse
da classe dominante, os intelectuais, “[...] por sua função social e os interesses e valores
derivados dela, são agentes da conservação, e não da transformação” (VIANA, 2006).
Assim, a suposta “liberdade” e “autonomia” usufruídas pelos intelectuais na verdade são
uma farsa. Seus interesses particulares estão sempre ligados aos da classe dominante, da
mesma forma que seus privilégios dependem da manutenção do status social. No
entanto, produzir e reproduzir o discurso da autonomia faz parte de seus interesses, pois
assim garantem sua conexão com o poder e ganham legitimidade sem que se faça
perceber sua subserviência em relação à classe dominante (VIANA, 2006).

Desse modo, de acordo com Morin (2011), essa intelligentsia “cultivada” é


formada por esses “cultos”, que entendem a cultura a partir de uma concepção
valorizante, diferenciada e aristocrática, atirando a cultura de massa nos “infernos
infraculturais” (MORIN, 2011, p. 07). Para a intelligentsia, toda a concepção de cultura
culta, de arte, é colocada de lado com a intervenção das técnicas industriais, da
determinação do mercado e da orientação para o consumo da cultura de massa. O
capitalismo acabaria, portanto, com a grande reserva cultural, o que faz da reação da
intelligentsia uma reação contra o imperialismo capitalista e a busca do lucro.
48

A cultura ilustrada funciona assim como uma espécie de “supercultura”


(MORIN, 1986, p. 81), o suprassumo do que a sociedade pode produzir, o que, por
consequência, faz dela um produto extremamente valorizado por aqueles que a possuem
e também por aqueles que não a têm. Essa extrema valorização é não só causa, como
consequência do grande elitismo da cultura ilustrada. É preciso um aprendizado longo e
qualidades sutis para que uma pessoa possa adquirir tais códigos, sendo eles reservados
para alguns poucos. Assim, quem detém esses códigos cultos opõe-se aos “bárbaros”,
que são proibidos de entrar nos templos culturais, e mantém a cultura hierarquizada,
preservando sua margem de superioridade. As classes privilegiadas e a intelligentsia
criam, desta forma, a hierarquia que separa seus produtos culturais daqueles consumidos
pela massa em ascensão. (MORIN, 1986)

Essa hierarquização, então, funciona como um exercício de poder das classes


privilegiadas sobre as demais. Esse poder é, segundo Thompson (1995), entendido
como a capacidade de agir com a pretensão de se atingir seus próprios interesses e
objetivos; consequentemente, a capacidade de agir para atingir os próprios objetivos e
interesses depende da posição do indivíduo dentro de um campo ou instituição.
Thompson encontra na teoria de Pierre Bourdieu as bases para se tentar compreender o
que está implicado no exercício de poder; aqui, os dois autores passam a conversar com
mais clareza.

Thompson (1995) se volta à teoria dos “campos de interação” de Bourdieu para


esclarecer melhor as características intrínsecas dos contextos sociais. Isso, porque como
visto anteriormente, só se é possível determinar se fenômenos advindos de formas
simbólicas – assim como a cultura cultivada – servem, ou não, para estabelecer e
sustentar relações de dominação se analisarmos como estes fenômenos são empregados,
transmitidos e compreendidos dentro de contextos sociais estruturados. Em outras
palavras, Thompson (1995), ao afirmar que um campo de interação ou uma instituição
social são “estruturados”, quer dizer que eles são caracterizados por assimetrias e
diferenças em termos de distribuição, acesso a recursos de vários tipos, poder,
oportunidades e chances de vida. Portanto, analisar a estrutura social de um campo ou
instituição – como o é a cultura em sua concepção valorativa- é tentar entender os
critérios, categorias e princípios implícitos a ela.
49

Segundo Thompson (1995, p. 195), para Bourdieu um campo de interação pode


ser conceituado como um espaço de posição e como um conjunto de trajetórias. O
campo é estruturado por um conjunto de instituições específicas, ao mesmo tempo em
que as instituições são estruturadas por assimetrias e diferenças sistemáticas que
constituem, em parte, a estrutura social do campo. Como consequência, indivíduos
particulares se encontram em determinadas posições dentro de um espaço social e
seguem, no decorrer de suas vidas, determinadas trajetórias. Tais posições e trajetórias
são determinadas, até certo ponto, pelo volume e distribuição de diversos tipos de
“capitais” (que podemos significar como “recursos”). Três tipos de capitais são,
segundo Thompson (1995, p. 195) os mais relevantes para a análise do poder: o “capital
econômico”, que inclui a propriedade, bens matérias e financeiros de toda sorte; o
“capital cultural”, que diz respeito ao conhecimento, habilidades e diferentes tipos de
qualificações educacionais e culturais; e o “capital simbólico”, que se refere aos méritos
acumulados, prestígio e reconhecimento associados com a pessoa ou com a posição que
ela ocupa. Desse modo, dentro de qualquer campo de interação, os indivíduos baseiam-
se nesses diferentes tipos de capital para alcançarem seus objetivos.

Aquele “poder”, enxergado a partir do nível de um campo ou instituição, é a


capacidade que permite apenas um número de indivíduos tomar decisões ou realizar
interesses (THOMPSON, 1995, p. 199). Esta capacidade dada de acordo com a posição
no campo é tão forte que sem ela o indivíduo não seria capaz de levar para frente sua
própria trajetória. Os indivíduos que mantêm certos graus de poder podem relacionar-se
socialmente uns com os outros. Quando as relações de poder são sistematicamente
assimétricas, esta situação é entendida como uma relação de dominação. Portanto,

Relações de poder são “sistematicamente assimétricas” quando


indivíduos ou grupos de indivíduos particulares possuem um poder de
maneira estável, de tal modo que exclua – ou se torne inacessível, em
grau significativo a – outros indivíduos ou grupos de indivíduos, não
importando a base sobre a qual esta exclusão é levada a efeito. Nesses
casos, podemos falar de indivíduos ou grupos “dominantes” e
“subordinados”, assim como daqueles indivíduos ou grupos que, em
virtude de seu acesso parcial a recursos, ocupam posição intermediária
em um campo. (THOMPSON, 1995, p. 199 e 200)
50

Essa divisão em classes lógicas, ou seja, entre dominantes e subordinados,


causado por essas relações sistematicamente assimétricas, organiza como enxergamos o
mundo social, consequência da incorporação da divisão em classes sociais. Desse modo,
segundo Bourdieu (2007) as oposições mais fundamentais da estrutura das condições –
rico ou pobre; alto ou baixo; etc. – impõem-se como os princípios fundamentais em
relação às práticas e à percepção das práticas. Assim, os estilos de vida definidores de
cada classe são o produto sistemático do habitus – uma matriz geradora de
comportamentos, visões de mundo e sistemas de classificação da realidade que é
apreendido e gerado na sociedade e incorporado pelos indivíduos - que se tornam
sistemas de sinais socialmente qualificados (o que é distinto, vulgar, etc) (BOURDIEU,
2007, p. 164). O habitus age como princípio unificador e gerador de todas as práticas; o
gosto, a propensão e a aptidão para a apropriação, material e/ou simbólica de uma classe
de objetos ou de práticas classificadoras e classificantes equivale à fórmula geradora
que está na origem do estilo de vida, entendido por Bourdieu (2007) como o conjunto
unitário de preferências distintivas que exprimem, dentro de cada um dos espaços
simbólicos, a mesma intenção (BOURDIEU, 2007, p. 165).

Nesse sentido, o gosto imposto pela crítica conservadora da alta cultura


funcionaria, portanto, como o operador da transformação das coisas em sinais
distintivos, fazendo com que as diferenças de ordem física tenham acesso à ordem
simbólica das distinções. As práticas que são objetivamente classificadas transmutam-se
em práticas classificadoras, em uma expressão simbólica da posição de classe,
encontrando-se na origem do sistema que define os traços distintivos, percebido, a partir
de então, como uma expressão de uma classe particular e suas condições de existência,
ou seja, como um estilo distintivo de vida (BOURDIEU, 2007, p. 166).

Esse estilo distintivo de vida é possível graças ao que Thompson (1995) vai
chamar de “processos de valorização”, uma das consequências da contextualização das
formas simbólicas. Estas são frequentemente submetidas a complexos processos de
valorização, avaliação e conflito. Os dois processos de valorização que possuem maior
importância são, segundo Thompson: 1)“valorização simbólica”: processo no qual é
atribuído às formas simbólicas um determinado valor simbólico pelos indivíduos que as
produzem e recebem. O valor simbólico é aquele que os objetos possuem a partir do
momento em que são estimados pelos indivíduos que o produzem e recebem, ou seja,
objetos que são por estes aprovados e apreciados, ou condenados e desprezados. 2)
51

“valorização econômica”: processo por meio do qual as formas simbólicas recebem


determinado valor econômico, ou seja, valor que permite a elas serem trocadas em um
mercado. Quando algo passa pelo processo de valorização econômica, passa a ser
mercadoria, tornando-se objeto que pode ser comprado ou vendido por um dado preço.
Essas formas simbólicas mercantilizadas são chamas por Thompson de “bens
simbólicos” (THOMPSON, 1995, p. 203).

Os dois tipos de valorização carregam consigo distintas formas de conflito.


Diferentes graus de valor simbólico podem ser atribuídos às formas simbólicas, de tal
maneira que um objeto que pode ser apreciado por uns, pode ser completamente
desprezado por outros. Thompson descreve esse fato como um “conflito de valorização
simbólica” (THOMPSON, 1995, p. 204). Esses conflitos têm espaço dentro de um
contexto social estruturado, caracterizado pelas já conhecidas assimetrias. Desse modo,
as valorizações simbólicas oferecidas por diferentes indivíduos que têm uma posição
diferenciada dentro de um contexto, raramente possuem um mesmo status. Assim,
algumas valorizações possuem mais peso do que outras, de acordo com a posição do
indivíduo que a determina; inclusive, se estes estiverem em uma melhor posição para
oferecer valorizações, podem impô-las.

Assim sendo, segundo Thompson (1995), os indivíduos que ocupam posições


dominantes dentro de um campo de interação são aqueles que são dotados (ou têm
acesso privilegiado a) de recursos ou capital de vários tipos. Os indivíduos em posição
dominante, ao produzir e apreciar as formas simbólicas empregam a estratégia de
distinção, na medida em que procuram distinguir-se dos indivíduos ou grupos que
ocupam posições subordinadas em relação a eles. Dessa forma, podem atribuir alto
valor simbólico a bens que sejam raros ou caros e que são, por isso, inacessíveis àqueles
que possuem menor capital econômico. Os indivíduos em posição dominante também
podem usar da estratégia do menosprezo para se distinguir, ou seja, considerando as
formas simbólicas produzidas por aqueles que estão abaixo deles como defeituosas ou
grosseiras. A condescendência também é uma estratégia de distinção, que tem como
característica o elogio das formas simbólicas com o intuito de rebaixar seus produtores e
sempre lembrá-los de sua posição subordinada, possibilitando assim aos indivíduos em
posição dominante reafirmar sua dominação sem declará-la abertamente (THOMPSON,
1995, p. 208).
52

Por conta disso, a apropriação das obras culturais supõe disposições e


competências que não são universalmente distribuídas, ou seja, que ficam nas mãos de
um grupo dominante e, por isso, são o objeto de uma apropriação, material ou
simbólica, exclusiva. As obras culturais, portanto, funcionam como capital cultural e,
por isso, acabam funcionando como instrumento de dominação; ao garantirem, segundo
Bourdieu (2007, p. 214), um ganho tanto de distinção quanto de legitimidade, revelam a
característica principal da cultura legítima em uma sociedade dividida em classes: em
uma sociedade em que a cultura é igualmente distribuída, o capital cultural não pode
funcionar como instrumento de dominação, pois não gera a distinção entre os membros
de seu grupo.

Para Bourdieu (2007), a apropriação material ou simbólica de uma obra, desta


forma, gera um ganho simbólico que é determinado pelo valor distintivo que esta obra
possui em questão de raridade de disposição e competência exigida para sua apreciação
e distribuição entre as classes, hierarquizando assim as obras culturais. De tal modo,
qualquer mudança na estrutura da distribuição de um bem ou de uma prática entre as
classes, ou seja, o aumento de detentores desses bens distribuídos nas diferentes classes
gera a queda no fator de raridade e no valor distintivo da obra, além de ameaçar a
distinção dos antigos detentores desses produtos. Sendo que o poder distintivo das
posses ou dos consumos culturais tem a tendência de diminuir na medida em que o
número daqueles em condições de se apropriar deles aumenta, os ganhos de distinção
chegariam ao fim se o campo de produção dos bens culturais, ainda assim regido pela
lógica da distinção, não produzisse, o tempo todo, novos bens e novas maneiras de se
apropriar desses bens (BOURDIEU, 2007, p. 215); daí o desespero das classes
dominantes em relação ao acesso das classes mais baixas aos mesmos bens culturais a
que antes somente elas tinham acesso.

Em suma, o preconceito da elite e da intelligentsia em relação à cultura de massa


é uma questão social. Por sinal, lembra-nos Agnes Heller (2004), a maioria dos
preconceitos é social. Isso, porque os sistemas de preconceito são criados a partir das
integrações sociais nas quais vivem os homens e, sobretudo, pelas classes sociais
presentes nessas integrações (HELLER, 2004, p. 50). Nesse sentido, afirma a autora, a
grande maioria dos preconceitos são produtos das classes dominantes. Isso ocorre
porque essas classes buscam constantemente a manutenção da coesão de uma estrutura
social que lhes beneficia e tentam, inclusive, mobilizar a seu favor os membros da
53

sociedade ou grupos que apresentam interesses diversos, até mesmo as classes e


camadas antagônicas (HELLER, 2004, p. 54).

Fazendo uso dos preconceitos, as classes dominantes apelam à particularidade


individual de cada sujeito que, por conta de seu comodismo, conformismo e
conservadorismo, e até mesmo de seus interesses imediatos, transforma-se em alvo de
fácil mobilização contra os interesses de sua própria integração. Nesse sentido, é
importante ressaltar que a classe burguesa produz muito mais preconceitos do que todas
as outras classes sociais (HELLER, 2004, p. 54). Isso ocorre não só pelo seu maior
acesso a instrumentos culturais e tecnológicos, mas também, de acordo com Heller
(2004) como parte de seus esforços ideológicos hegemônicos, isto é, a burguesia busca
especializar sua ideologia de dominação e seu poder de distinção.

Nesse sentido, a ideia de “cultura de verdade” perpetrada pelas classes


dominantes cria, segundo Morin (1986), uma oposição: o culto se opõe, ética e
socialmente falando, ao inculto. A partir dessa concepção valorizada da cultura, a
cultura dita “ilustrada” se opõe historicamente à chamada “cultura de massa”, sendo
sempre a primeira mais importante em detrimento da segunda (MORIN, 1986). Dessa
forma, a cultura se transformou em um mecanismo de dominação que molda os sujeitos
às necessidades de uma sociedade politicamente organizada, remodelando-os. Em
outras palavras, a cultura, no sentido mais estrito do termo, tem sido usada para
legitimar o poder, ou seja, usada como distinção (BOURDIEU, 2007) e como ideologia
(THOMPSON, 1995) .

Para Eagleton (2011), assim como outras formas concretas de poder, a alta
cultura é simplesmente uma forma de persuasão moral. Ela é uma das formas pelas
quais uma ordem governante molda para si uma determinada identidade, com o intuito
de intimidar tanto quanto de inspirar. Entretanto, a fronteira entre “alta” e “baixa”
cultura foi corroída por mídias como o cinema e as histórias em quadrinhos, que
conseguiram acumular uma bela coleção de obras-primas, ao mesmo tempo em que
agradam praticamente a todos. Na realidade, não é o conteúdo da alta cultura que
deveria ser problematizado, e sim sua função. O que é questionável é que ela tem sido
usada como um “emblema espiritual” (EAGLETON, 2011, p. 81) de um grupo
privilegiado e hegemônico.
54

Esse emblema espiritual, assim, definiu as obras que poderiam ser consideradas
“boas” e desprezou as que considerava “ruins”. O que acabou sempre importando,
portanto, não são as obras em si, mas como elas são interpretadas pelo coletivo, coisa
que os próprios autores das obras não poderiam ter previsto no momento de sua
produção. Afirma Eagleton que Shakespeare em si não é uma “alta cultura”, o que é
erudito, na verdade, são os usos sociais que são feitos da sua obra. Da mesma forma, o
conteúdo dessa obra tão pouco importa, mas, sim, o que ela significa hoje. No caso, a
defesa de certa “civilidade” contra as novas formas de barbarismo trazidas pelas
culturas modernas (EAGLETON, 1981, p. 81)

Toda essa atenção dada aos males da cultura de massa, dentre tantos outros
exemplos que poderíamos citar, era tamanha na época que Henry Rebassiere, em um
artigo publicado em 1956, escreveu que as preocupações dos intelectuais com o
entretenimento de massa haviam se tornado, elas mesmas, uma nova forma de cultura
de massa (apud BEATY, 2005, p. 73). Beaty (2005, p.73) ainda lembra o que apontou
H. Stuart Hughes em 1961: a ideia de uma cultura de massa, por si só, depende do
elitismo cultural, porque foram as elites culturais que primeiro perceberam e
transformaram a cultura de massa em um problema. Para Hughes, a cultura de massa
não corrompe os gostos dos receptores; os intelectuais é que constantemente leram de
maneira equivocada os gostos do público e erroneamente os condenaram como
portadores de uma arte vulgar.

Sabemos e entendemos que, como forma de socialização adulta, os meios de


comunicação de massa acabam se transformando na garantia de que certo conjunto de
valores básicos permaneça visível, transformando-se em fonte de consenso e avessos à
introdução de mudanças. Mais além, esses meios mantêm um consenso sociocultural
não pela instituição de preceitos, mas também pela omissão: informações que poderiam
trazer algum risco à estrutura sociocultural e à fé que o homem deposita nela são
ocultadas ou omitidas (BREED, 1971). Dessa forma, as funções dos meios de
comunicação de massa na estrutura sociocultural se voltam para o plano social: o
“poder” e a “classe”, como categorias estruturais, são protegidos e resguardados pela
atuação desses veículos, assim como padrões culturais; da mesma forma, valores como
capitalismo, religião, lar, justiça, nação, entre outros, também se transformam em itens
sagrados que necessitam de sua proteção. “Os media, portanto, abstêm-se de revelações
55

desnecessárias sobre as falhas estruturais na operação das instituições” (BREED, 1971,


p. 225).

Contudo, generalizar é um caminho perigoso. Fatores mediadores, como o


contexto social, político e econômico de determinado grupo ou nação tornam a
comunicação de massa um agente colaborador, mas não a causa exclusiva em um
processo de reforço das condições e ideais existentes (KLAPPER, 1971, p. 167).
Segundo Joseph Klapper (1971), os meios de comunicação de massa mais parecem
trabalhar em conformidade com os gostos já estabelecidos por outras vias do que
capazes de determinar os gostos. O indivíduo típico, na verdade, seleciona. Dentre todas
as variedades que o meio oferece, escolhe o produto que está de acordo com os seus
gostos já existentes. Quando contribuem como agentes para as mudanças de gosto,
dependem de outras variedades mediadoras, como a personalidade, as normas culturais
e os interesses de determinado grupo (KLAPPER, 1971, p. 168/169) .

Seguindo essa linha, para uma abrangente literatura sobre percepção e cognição,
o organismo humano não ouve, vê ou toca simplesmente o que está a sua disposição; ao
contrário, percebe o que quer perceber (RILEY JR.; RILEY, 1971, p. 125). Sendo
assim, suas percepções estão ajustadas às necessidades, valores, experiências e emoções
passadas por cada indivíduo. Mais uma vez, pensar no receptor da era da comunicação
de massas como inegavelmente alienado é uma afirmação muito perigosa. Por isso, essa
crítica parcial e execratória feita à cultura de massa começa a parecer esvaziada de
sentido.

Nessa crítica à cultura de massa, tudo parece opô-la à cultura dos eruditos.
Enquanto a segunda preza prela qualidade, a primeira preza pela quantidade; enquanto a
primeira busca elevação estética, a segunda pensa apenas na mercadoria; enquanto uma
tem como base a espiritualidade, a outra apoia-se no materialismo (MORIN, 2011, p.
08). Contudo, afirma Edgar Morin (2011, p. 09), antes de alegar com certeza que essa
concepção dos cultos em relação à cultura de massa é válida, é preciso nos
perguntarmos se os valores dessa “alta cultura” não são eles mesmos dogmáticos e
mitificados demais. Dito isso, entendemos que tudo o que é inovador, assim como o
foram o cinema, a fotografia e as histórias em quadrinhos em seu surgimento, se opõem
às normas dominantes da cultura hegemônica de um período.
56

A verdade é que qualquer hegemonia, apesar de ser definida sempre como


dominante, jamais será total ou exclusiva, já que formas de política e cultura
alternativas ou opostas podem surgir a qualquer momento na sociedade. Ampliando a
noção de hegemonia de Antonio Gramsci, tratando-a especialmente no campo cultural,
Raymond Williams (1979), em Marxismo e Literatura, entende que essas alternativas e
outras formas de oposição e luta são importantes para mostrar o que o processo
hegemônico procura controlar. Sendo tão significativas, essas ênfases políticas e
culturais são tão expressivas que a função hegemônica é controlá-las, transformá-las ou
incorporá-las. Neste processo, o hegemônico deve ser entendido para além de uma
simples transmissão da dominação; na verdade, o processo hegemônico deve estar
sempre alerta e receptivo para o que é alternativo e oposto à sua dominação. A
realidade do processo cultural, portanto, deve incluir sempre os esforços e as
contribuições dos que estão à margem dos termos da hegemonia vigente.

Assim sendo, mesmo que uma cultura seja hegemônica (WILLIAMS, 1979) e
ideológica (THOMPSON, 1995), ela não é única e muito menos eterna; é apenas a
cultura vigente da época. Por conta disso, surgem as culturas que Williams (1979) vai
chamar de “residuais” e “emergentes”. As culturas chamadas “residuais” se dão na
medida em que qualquer cultura inclui elementos provenientes de seu passado, mas seu
papel no processo cultural contemporâneo é variável. Por definição, o residual foi
formado no passado, mas ainda é ativo no processo cultural, não só como parte do
passado, mas como elemento efetivo do presente. Assim, certos significados e valores
que não podem se expressar em termos de cultura dominante, mesmo assim ainda são
vividos e praticados por meio do resíduo de uma instituição ou formação social e
cultural anterior. Já o “emergente” é entendido como os novos significados, valores,
práticas e relações que são continuamente criados. O emergente é alternativo ou oposto
à cultura dominante e, por isso, assim como no caso do residual, deve ser entendido e
feito com um sentido pleno do dominante. A prática cultural emergente, portanto, é
inegável e, juntamente com a prática residual, constitui uma necessária e inevitável
complicação da dita “cultura dominante”.

Dessa forma, podemos incluir a cultura de massa no espaço de uma prática


cultural emergente, considerando que a mesma funciona como uma alternativa à cultura
dita superior, ao mesmo tempo em que se opõe a essa cultura, sendo essa oposição
proclamada e defendida pelos próprios críticos da cultura de massa. Como uma forma
57

de lutar contra a nova cultura que surge, a classe dominante se utiliza de estratégias de
legitimação e, com isso, a hegemonia, para a maioria das pessoas da sociedade, acaba
adquirindo um sentido de realidade (WILLIAMS, 1979), ou seja, a hegemonia não diz
respeito somente aos interesses de uma classe dominante, mas também é aceita como
uma realidade normal por aqueles que, na prática, são subordinados a ela (WILLIAMS,
2003, p. 160).

Isso quer dizer que uma obra pode adquirir certo grau de legitimação quando lhe
é atribuído um valor simbólico, por exemplo. Isso faz com que esse trabalho seja
reconhecido como legítimo não apenas por aqueles que possuem uma posição
privilegiada na hora de atribuir valor simbólico, mas também por aqueles que
reconhecem e respeitam a posição daqueles (THOMPSON, 1995, p. 204). A imposição
da legitimidade, assim, tem como principal característica e função impedir que algum
dia seja possível determinar se o dominante é visto como distinto ou nobre por ser
dominante, por sua própria existência privilegiada, ou se é somente por ser dominante
que ele detém essas qualidades sendo, inclusive, o único que tem o direito de defini-las
(BOURDIEU, 2007, p. 88).

A legitimidade, desse modo, encontra um dos seus mais assertivos testemunhos


do que de fato é na propensão dos mais desprovidos em disfarçar sua ignorância ou
indiferença em relações às obras culturalmente valorizadas pela classe dominante,
prestando assim homenagem a elas ao escolher em seu patrimônio o que lhes parece
mais ajustado à definição do que é “legítimo” (BOURDIEU, 2007, p. 298). Por isso,
dizem o que as altas instâncias querem que digam (como, por exemplo, que o teatro é
melhor que o cinema, a literatura melhor que as histórias em quadrinhos, pois os
segundos são diversão fácil e frívola), para se sentirem integrados dentro de uma cultura
que os exclui. Por conta disso, reproduzem o discurso dominante, por mais à margem
que dele estejam. Talvez seja essa a razão pela qual a crítica à cultura de massa se
espraiou tão fortemente.

Segundo Umberto Eco (2008), dentre essas várias críticas à cultura de massa, é
preciso destacar algumas: dirige-se a um público heterogêneo; difunde um tipo de
cultura homogênea, destruindo as características próprias dos diversos grupos; não
promove renovações na sensibilidade; está submetida à lei da oferta e da procura; o
pensamento acaba sendo resumido em fórmula; possui uma visão passiva e acrítica do
58

mundo; entorpece a consciência histórica; vicia nossa atitude; impõe símbolos e mitos,
reduzindo assim a individualidade; trabalha sobre opiniões comuns e desenvolve o
conformismo. A crítica mais dura, entretanto, se dá na fala daqueles que dizem que a
cultura de massa coloca à disposição os frutos da dita “cultura superior”, mas eles
aparecem esvaziados de ideologia e crítica. (ECO, 2008, p. 40/41)

1.3 A metacrítica: os “integrados” da cultura de massa

Entretanto, há aqueles que defendem – ou pelo menos não desvalorizam – a


cultura de massa. Dentre os defensores da cultura de massa, diz Eco (2008, p. 43), suas
principais proposições são, entre outras: a cultura de massa não tomou o lugar da dita
“cultura superior”, e sim se difundiu em meio a sujeitos que antes não tinham acesso à
cultura; ela não é típica de um sistema capitalista, e sim nasce em uma sociedade mais
igualitária, em que todos os cidadãos participam dela com direitos iguais; uma
homogeneização do gosto contribuiria, ao contrário do que pensam os críticos, para
eliminar as diferenças de castas e unificar as sensibilidades nacionais.

Contudo, na presente análise, consideramos duas dessas proposições colocadas


por Eco (2008) como as mais pertinentes para se entender melhor – não
necessariamente defender, precisamos frisar – a importância da cultura de massa: 1)
oferece um grande leque de informações que podem ser consumidas sem sugerir
critérios de discriminação, sensibilizando o homem em relação ao universo do qual faz
parte; 2) não é conservadora, pelo contrário. Pelo simples fato de constituir um conjunto
de novas práticas, introduziu novos modos de se perceber e agir no mundo,
configurando-se como uma renovação estilística que repercute no campo das artes ditas
“superiores”, promovendo o seu desenvolvimento (ECO, 2008, p. 48).

Um exemplo dos “integrados” (ECO, 2008) é, segundo Martín-Barbero (2015),


o teórico Daniel Bell. Em O Fim da Ideologia, o autor coloca que a mudança não está
ocorrendo mais no âmbito da política, mas no da cultura, em que todo o processo de
socialização está se transformando ao se transformarem os estilos de vida. Agora, não é
mais a família e nem a escola, antes redutos de ideologia, que são o espaço primordial
da socialização, agora os novos mentores da nova conduta são os filmes, a televisão, a
59

publicidade e as histórias em quadrinhos, que começam transformando apenas o modo


de vestir e passam a metamorfosear aspectos morais muitos mais profundos. Edward
Shils (apud MARTÍN-BABERO, 2015, p. 66) vai mais além: para ele, o advento da
sociedade de massa não só permitiu a incorporação da maioria da população à
sociedade, como também revitalizou o indivíduo, que passou a ter sua individualidade
intensificada ao liberar suas capacidades morais e intelectuais, indo contra a ideia de
que a massa é passiva e conformista.

Em Future Shock, Alvin Toffler (1971) comenta sobre as previsões para o futuro
de muitos escritores na chamada “Revolução Superindustrial” (TOFFLER, 1971, p.
263, tradução nossa3). Segundo o autor, esses escritores entraram em um consenso ao
preverem que nessa nova sociedade tecnológica, a humanidade se afastaria cada vez
mais do ideal democrático: a máxima escolha individual, fazendo com que toda a crença
na democracia e na possibilidade de decisão humana fosse relegada aos arquivos da
ignorância. Nessa visão sombria do futuro, as pessoas se tornariam consumidores sem
capacidade crítica, cercado por bens de consumo e escolas padronizados, reféns de uma
cultura de massa padronizada que os forçaria, em consequência, a viver um estilo de
vida também padronizado. Tais previsões apocalípticas acabaram por criar uma geração
de pessoas cheias de fobia e ódio em relação à tecnologia ao disseminarem uma “Teoria
do Desaparecimento da Escolha” (TOFFLER, 1971, p. 263, tradução nossa4): a ciência
e a tecnologia farão do futuro um lugar ainda mais estandartizado do que o presente e o
homem, progressivamente, perderia a sua liberdade de escolha.

Contudo, Toffler (1971) coloca que se, ao invés de cegamente acreditarmos


nesse futuro tão obscuro e assustador, parássemos para olhar de perto o que está
acontecendo, faríamos uma grande descoberta: todas essas previsões são bastante falhas
ao basearem-se na mais pura ignorância sobre a natureza, o significado e as direções
dessa “Revolução Superindustrial”. Para o autor, o mais irônico de tudo é que as
pessoas do futuro talvez não sofram com a falta de escolha, mas se tornem vítimas de
um “peculiar dilema superindustrial”: o excesso dela (TOFFLER, 1971, 263).

Russel Nye (1987, p. 418) ainda lembra que para Toffler, a popularização da
cultura não era nem perigosa para as artes e nem mesmo degradante para o artista. Na

3
The Super-industrial Revolution
4
Theory of Vanishing Choice
60

verdade, a disseminação das artes para um público ainda mais amplo poderia influenciar
fortemente tanto o nível do gosto do público quanto a relevância da arte em relação às
necessidades do homem. Para Nye (1987), o espraiamento da arte não pode ser
desconsiderado ou considerado como absoluto. Assim, a crítica de que uma cultura de
massa ignorante iria enterrar a “boa” arte caiu por terra. Na verdade, pesquisas
começaram a indicar que a penetração da mídia de massa na sociedade foi acompanhada
de perto pelo aumento na participação do povo em todos os tipos de arte (NYE, 1987, p.
419). O século XX, a era dos meios de comunicação de massa, trouxe ao homem
comum mais oportunidades de enriquecimento cultural do que qualquer outra época.

David Manning White (1957), em A cultura de massa nos Estados Unidos: um


outro ponto de vista, propõe uma reflexão distinta da de Rosenberg (1957): essa ideia
de cultura de massa como alienadora e transformadora do gosto, no caso para pior, não
tem provas. Segundo o autor, não há, historicamente falando, nenhum país em que os
grandes pensamentos da humanidade, nem as obras de arte consideradas mais nobres,
foram aceitos por todos os estratos da população. É preciso notar, por exemplo, que no
caso de Shakespeare - assim como nos lembrou Eagleton (2011) anteriormente -, por
muitos considerado o maior escritor de todos os tempos, os “guardas dos altos padrões
literários” (BRODBECK; WHITE, 1957, p. 262) demoraram décadas para permitirem
que sua obra se elevasse a um alto grau de respeitabilidade.

Ironizando, White (1957) afirma que “esse raciocínio subentende que, não
fossem esses novos diabos, os meios de comunicação de massa, e o nível da nossa vida
artística seria realmente elevado.” (WHITE, 1957, p. 27) Se não fosse a comunicação de
massa, continua em tom satírico, os artistas não cairiam nas tentações hollywoodianas e
os autores de radionovelas não precisariam escrever coisas menores e poderiam se
tornar os próximos Dostoievskis. Ressalta que, no imaginário seletivo dos críticos,
outros tempos e países são sempre vistos como se arte e vida fossem perfeitos
sinônimos.

A crítica à crítica feita por White (1957) continua. Para ele, quando os carrascos
da comunicação de massa se fazem cegos perante à contribuição trazida por esse meio,
estão estimulando, eles mesmos, as banalidades que tanto desprezam. Tais críticos que
enxergam a comunicação de massa como uma maldição, prefeririam uma época em que
o rádio, a televisão ou o cinema não existiam e que os livros permanecessem como
61

propriedades de uma pequena elite, assim como os jornais fossem tão caros que
ficassem ao alcance de apenas alguns. Como não podem voltar no tempo e impedir a
difusão desses meios, querem tirar do homem “comum” tudo aquilo que não condiz
com seus padrões de alta cultura, ou seja, se esse homem “comum” não tem a
capacidade de usufruir plenamente de tudo o que a grande arte e literatura tem a
oferecer, os críticos voltam a sua indignação contra os meios de comunicação de massa
(WHITE, 1957, p. 32). Aí está, mais uma vez, como a alta cultura da elite, relegada a
poucos, busca controlar o gosto e determinar, a partir de seus próprios interesses e suas
próprias premissas, o que é bom e o que é ruim.

Entretanto, esquecem-se esses críticos que são os próprios meios de


comunicação que permitem ao homem “comum” o acesso a essa tão falada riqueza
cultural, coisa que nenhum outro período da história foi capaz de fazer. Afirma White
(1957) que se tudo o que esses meios oferecessem fosse uma mistura batida e
estereotipada da mesma coisa, a crítica se faria válida; contudo, a diversidade e a
qualidade do que é veiculado mostra que esse não é o caso.

Seguindo a mesma linha de White está Marshall McLuhan (1957). Para esse
autor, um dos questionamentos à crítica da cultura de massa, em seus diferentes
formatos, pode vir exatamente dos suportes em que ela se acomoda. A colonização dos
Estados Unidos, país considerado como o berço da cultura de massa, teve início quando
a única cultura de fato acessível a grande parte da população era o livro impresso. Por
isso, segundo McLuhan (1957), até hoje associa-se cultura principalmente aos livros.
Ironicamente, foi nesse mesmo país que os novos meios de imagem e de som ganharam
seu maior estímulo.

Nesse sentido, McLuhan (1957) faz o seguinte questionamento: será que é


exatamente porque fazem uma distinção muito grande entre o que é “cultura” e os, à
época, novos meios de comunicação de massa, que os norte-americanos não conseguem
enxergar esses meios como uma cultura séria? Ampliamos o questionamento de
McLuhan: sendo os Estados Unidos o país que se tornou referência mundial depois da
Segunda Guerra, fomos influenciados a tal ponto que mantemos a mesma opinião?
Afinal, depois da Segunda Guerra, os Estados Unidos se tornaram o criador e o árbitro
de praticamente tudo o que era entendido como cultura pop, já que suas empreitadas se
expandiram por novos mercados ao redor de todo o globo, em um processo que,
62

segundo Raymond Betts (2004), ficou conhecido como a “Cocacolonização” (BETTS,


2004, p. 03, tradução nossa5).

E Mcluhan continua, questionando se por causa dos quatro séculos de


colonização da cultura livresca, “[...] nós nos concentramos de tal maneira nos
conteúdos dos livros e dos novos meios que não podemos ver que a própria forma de
qualquer meio de comunicação é tão importante quanto qualquer coisa que ela
transmita” (MCLUHAN, 1957, p. 563). O autor insiste, dessa forma, para que façamos
um esforço para enxergar que as revoluções nos meios de comunicação abriram como
que “janelas mágicas”, e que todos deveriam nelas se aventurar.

Para Jesús Martín-Barbero (2015), a cultura de massa passa, então, a ser a


primeira possibilidade de comunicação entre os diferentes estratos da sociedade. E, se é
impossível que uma sociedade seja completamente unificada, então é importante que
haja a circulação cultural, que atingiu o seu apogeu na sociedade de massa. “Enquanto o
livro manteve e até reforçou por muito tempo a segregação cultural entre as classes, o
jornal começou a possibilitar o fluxo, e o cinema e o rádio intensificaram o encontro”
(MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 67). O pensamento de muitos destes autores trouxe
uma nova perspectiva em relação à sociedade de massas: ela não é o fim, mas o
princípio de uma nova cultura, possível graças aos meios massivos de comunicação.

Um dos eixos da cultura de massa, portanto, é o de atuar, como já demonstrado


por esses autores, como uma ferramenta de democratização da cultura, apesar de este
não ser seu eixo principal ou específico. Contudo, por mais que a cultura de massa
possa atuar como multiplicadora das obras da alta cultura e, assim, como um agente
integrador, ela não atenta contra os privilégios da alta cultura (MORIN, 2011, p. 44),
pois esta ainda detém o monopólio da atualidade e originalidade. Nesse sentido, um
dos maiores pontos de resistência da alta cultura é contra exatamente esta integração
permitida pela cultura de massa, criando e agarrando-se a valores míticos que podem ser
facilmente dissolvidos pelo grau de perfeição ao qual a reprodução atingiu. Entretanto,
ao contrário do que pensam os preservadores do místico, a reprodução, para Morin
(2011), na verdade supervalorizaria o original. Assim, esta mitificação pode ser
considerada como uma resistência à invasão da inevitável e conquistadora cultura de
massa:

5
Cocacolonization.
63

Os discos long playing e o rádio multiplicam Bach e Alban Berg. Os


livros de bolso multiplicam Malraux, Camus, Sartre. As reproduções
multiplicam Piero de la Francesca, Masaccio, Cézane ou Picasso. Em
outras palavras, a cultura cultivada se democratiza pelo livro barato, o
disco, a reprodução. (MORIN, 2011, P. 44)

No final das contas, essa orientação em direção ao consumo acaba com a


autonomia e a hierarquia estética conservadas com tanto empenho pela cultura
cultivada, pois, afinal, a cultura de massa insere-se profundamente na vida cotidiana e é
consumida no dia-a-dia; agora, os valores artísticos não são mais diferenciados de
acordo com sua dita “qualidade”, e sim misturam-se em um mesmo espaço,
transformando a televisão, o rádio, o cinema e as histórias em quadrinhos em universos
ecléticos e prontos para receber todos os públicos e gostos. Esses novos universos
advindos das culturas de massa não são mais governados e nem regulamentados, como
diria Morin (2011), por uma “[...] polícia do gosto, pela hierarquia do belo, pela
alfândega da crítica estética” (MORIN, 2011, p. 08). A crítica cultivada não possui mais
a capacidade de governar os produtos culturais, agora determinados por seu caráter
industrial e de consumação diária.

Contudo, essa defesa é, também, passível de crítica. Por isso, gostaríamos de


destacar que, ao longo desse capítulo, nosso intuito não foi o de fazer uma defesa
indiscriminada da cultura de massa, e sim uma crítica à ideia de uma cultura cultivada
que, a fim de manter sua hegemonia perante a massa que começava a ascender
socialmente, denegriu e até ridicularizou os produtos avindos dessa indústria e os
desconsiderou como uma forma verdadeira de cultura. Por isso, é preciso sempre
lembrar que, sendo a cultura de massa, na maioria das vezes, produzida por grupos de
poder econômico e tendo como perspectiva o lucro, ela fica inevitavelmente submetida
às lógicas do mercado e às leis da economia que regulam sua produção, disseminação e
consumo. A cultura de massa, portanto, é um fato industrial que sofre com os
condicionamentos característicos de qualquer outra atividade industrial. Eco (2008),
assim, resume muito bem a definição de cultura de massa nos dois lados da moeda:

O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicação dos produtos da


indústria seja boa em si, segundo um ideal homeostase do livre
mercado, e não deva submeter-se a uma crítica e a novas orientações.
O erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura de massa
seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje
64

se possa ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento


industrial. (ECO, 2008, p. 49)

A principal questão, portanto, não é se a cultura de massa é boa ou ruim, ou se


ela deveria existir ou não, mas se esses meios de massa – como no caso dos quadrinhos
-, são capazes de disseminar valores culturais para aqueles que a consomem,
independentemente de sua origem ou de sua forma de produção. Por isso, indo em
direção ao que Eco (2008) coloca, o ponto aqui é fazer uma análise crítica construtiva
do meio, ao contrário dos muitos que fizeram uma análise científica da cultura de massa
de forma execratória. Essa análise crítica pode, portanto,

[...] antes de mais nada, levar à correção da convicção implícita de que


uma cultura de massa seja a produção de um cibo cultural para as
massas (entendidas como categoria de subcidadãos), realizada por
uma elite de produtores. Pode repropor o tema de uma cultura de
massa como “cultura exercida ao nível de todos os cidadãos”. Embora
isso não signifique que cultura de massa seja cultura produzida pelas
massas; não há forma de criação “coletiva” que não seja medida por
personalidades mais dotadas, feitas intérpretes de uma sensibilidade
da comunidade onde vivem. Logo, não se exclui a presença de um
grupo culto de produtores e de uma massa de fruidores; só que a
relação, de paternalista, passa a dialética: uns interpretam as
exigências e as instâncias dos outros. (ECO, 2008, p. 54)

Para Morin (2011), a indústria cultural significa não tanto a racionalidade que
informa essa cultura, e mais um modelo particular em que os novos processos de
produção cultural se organizam. Assim, indústria cultural significa o conjunto de
mecanismos e operações por meios dos quais a criação cultural se transforma em
produção, demonstrando, dessa forma, um dos maiores mal-entendidos perpetrados pela
visão de Adorno e Horkheimer: de que algo não pode ser considerado arte se é também
indústria (MARTIN-BARBERO, 2015). Morin (2011), inclusive, coloca que a divisão
do trabalho e a mediação tecnológica não são incompatíveis com a criação artística, da
mesma forma que certa estandardização não significa necessariamente a total extinção
da tensão criativa.

Voltemos a Umberto Eco. Quando o autor trata dos três níveis da cultura, o high,
o middle e o low (ECO, 2008, p. 56), dá uma pista interessante sobre o consumo das
65

histórias em quadrinhos como cultura de massa: existem produtos que,


independentemente se produzidos em qualquer um dos níveis da cultura, são
consumíveis em nível diverso. Em outras palavras, pertencer a um nível ou a outro não
tem nada que ver com sua validade estética: um produto pode nascer no nível low e ser
consumido por um vasto público que possui origens diferentes. Isso, porque suas
características estruturais são tão originais e possuem tamanha capacidade de superar os
limites impostos pelos circuitos de produção e consumo do qual fazem parte que podem
ser julgados, por nós, como obras de arte dotadas de altíssima validade. Em suma, ter
nascido dentro da cultura de massa não deveria diminuir o valor cultural de uma obra.
Eco narra, dessa forma, que

A diferença de nível entre os vários produtos não constitui a priori


uma diferença de valor, mas uma diferença da relação fruitiva, na qual
cada um de nós alternadamente se coloca. Em outros termos: entre o
consumidor de poesia de Pound e o consumidor de um romance
policial, de direito, não existe diferença de classe ou de nível
intelectual. Cada um de nós pode ser um e outro, em diferentes
momentos de um mesmo dia, num caso, buscando uma excitação de
tipo altamente especializada, no outro, uma forma de entretenimento
capaz de veicular uma categoria de valores específica. (ECO, 2008, p.
58)

Morin (2011), entretanto, reassalta que o seu objetivo não é o de exaltar a cultura
de massa. Tal como ele, pensamos que colocar a cultura de massa em um altar, como se
dela viessem apenas coisas boas, como se as próprias histórias em quadrinhos, como
parte deste universo, só produzissem obras em alto grau de excelência, seria
equivocado. Como afirma Morin (2011), seu objetivo é o de diminuir a “cultura
cultivada”, noção que compartilhamos na medida em que entendemos que essa
preservação da cultura cultivada em detrimento da cultura de massa, desconsiderando-a
como cultura, é uma forma de manutenção da intelectualidade de alguns e uma maneira
de conservar a sua soberania cultural em relação a uma massa que ascende e agora tem
acesso aos bens culturais.

Em suma, o que queremos dizer é que não há problemas em ser fruto da cultura
de massa. Ser produto dessa “indústria cultural” não deveria diminuir o valor cultural de
uma obra. Jesus Martín-Barbero acaba resumindo bem o que queremos dizer: “quando
66

a crítica da crise ‘convoca’ à crise da crítica, é o momento de redefinir o campo mesmo


do debate” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 97). E é isso que faremos a seguir.

1.4 Como os quadrinhos se posicionam nessa configuração

Bart Beaty (2012) nos lembra que a proliferação dos quadrinhos em larga escala
na primeira metade do século XX caminhou lado a lado com o desenvolvimento e
espraiamento dessas mesmas teorias sobre a cultura de massa que alegavam que as
massas seriam uma ameaça revolucionária à ordem social estabelecida no século XIX,
assim como uma ameaça totalitária no século XX. Antes de perder a força pela chegada
da televisão no meio do século, seguida pelos videogames e pela internet nas décadas
seguintes, os quadrinhos serviram como o perfeito exemplo de tudo o que estava errado
com a cultura de massa na contemporaneidade aos olhos dos críticos que clamavam pela
excelência estética, e aos dos pais que se preocupavam se os filhos estavam sujeitos a
uma influência negativa.

Assim como nos demais produtos advindos da cultura de massa, o preconceito


contra as histórias em quadrinhos também tem, segundo Nildo Viana (s/d), origens e
consequências nas relações provenientes de uma visão racionalista e elitista:
racionalista, pois busca o controle das relações sociais, a natureza e a mente humana;
elitista, pois os setores mais intelectualizados da sociedade definem seus gostos e
valores como superiores e os demais como inferiores, estabelecendo a oposição entre
“alta” e “baixa” cultura. Partindo dessa mesma ideia, em O meio contra as duas pontas,
Leslie Fiedler (1957) se pergunta, tendo as histórias em quadrinhos como objeto de
pesquisa, o que teriam os respeitáveis contra a cultura de massa. Para o autor, a resposta
seria o problema de distinção de classes que existe em uma sociedade democrática. O
intelectual, dessa forma, reage com o mesmo ódio quando está diante de uma arte que
parece não caber em seu entendimento e de outra que parece se recusar a alcançar o seu
“nível”, como é o caso das histórias em quadrinhos.

Para a elite, a simples menção de que poderia existir mais de uma linguagem
artística, e que essa linguagem não é exatamente a “arte” com que estão acostumados,
perturba demais a classe que um dia sonhou com uma cultura universal baseada em seus
67

próprios valores e modelos (FIEDLER, 1957). E, é claro, as histórias em quadrinhos


também perturbaram a classe dominante quando do seu surgimento e posterior
espraiamento. Lowenthal (1971), ao citar Coulton Waugh, autor do livro The Comics,
publicado em 1947, reforça essa ideia:

Pois nos velhos tempos os artistas e escritores, bem como os artesãos,


não escreviam para atender ao povo, mas para agradar pequenos
grupos poderosos, os reis, senhores e chefes que atraíam para si o
talento da época e mantinham circunscrito aos limites dos seus
castelos e baronatos. Boa parte das belas-artes de hoje apenas
permanece viva através de tal conexão. Se tomarmos, no entanto a
civilização como um todo, esse antigo processo, sofre atualmente,
uma reversão. Há um movimento para fora. Quadros, entretenimento,
diversões, começam a ser vistos como uma legítima propriedade de
todos e as historietas em quadrinhos juntam-se a isso e refletem essa
democratização que se amplia. E, se os padrões populares são
atualmente mais baixos do que aqueles fixados por trabalhadores em
torno dos assentos dos poderosos, os artistas do povo terão a
satisfação de saber que estão identificados com um movimento vasto e
progressivo, que está dando aos homens comuns o seu direito de rir e
florescer sob o sol. (WAUGH apud LOWENTHAL, 1971, p. 300)

Dentro desse contexto, o não-valor ou baixo valor cultural relacionados às


histórias em quadrinhos podem ser explicados pela influência desses estudos críticos à
cultura de massa. Tais estudos, juntamente com a ideia de que as histórias em
quadrinhos eram voltadas e lidas apenas pelo público infantil, originou trabalhos que
afirmavam que elas teriam uma influência nefasta na formação de crianças e
adolescentes. Talvez o caso mais famoso que envolve essa controvérsia seja a guerra
travada contra os quadrinhos liderada pelo psiquiatra Fredric Wertham nas décadas de
1940 e 1950 nos Estados Unidos, especialmente com a publicação do livro Sedução dos
Inocentes.

Na crítica de Wertham, faltava aos quadrinhos a seriedade artística das grandes


obras: por sua onipresença derivada de sua produção em massa, por seu conteúdo sexual
e violento, seriam um dos principais fatores do definhamento da sociedade civil norte-
americana. Contudo, afirma Beaty (2012), o uso da retórica da cultura de massa por
Wertham, teoria tão básica da época, revela como os quadrinhos eram vistos não só
como infantis, mas como massificados. O ponto crucial é este: enquanto qualquer outra
68

criança cresceria e passaria a consumir produtos culturais mais maduros e apropriados


para sua idade, o homem das massas seria tão completamente alienado pela indústria
cultural que ficaria preso ao menor denominador comum da cultura e, assim,
permaneceria como uma ameaça ao desenvolvimento e amadurecimento da sociedade.

A sociedade norte-americana aderiu tão fortemente à missão perpetrada por


Wertham que os prejuízos foram muitos, desde a queda nas vendas até estragos no
espaço criativo do período pós-guerra (BAHIA, 2012, p. 342). Ao traçar o
estabelecimento do quadro intelectual dominante para entender a cultura desse período,
Beaty (2005) demonstra como os estudos de Wertham estavam diretamente ligados à
atmosfera anti-cultura de massas da época. Marcio Bahia (2012) ainda reforça essa ideia
ao lembrar que Amy Kiste Nyberg (apud BAHIA, 2012, p. 342), no livro Seal of
Aproval, afirma que Wertham compartilhava das preocupações e conhecia as teorias
sobre a cultura de massa difundidas pela Escola de Frankfurt na década de 1930.

A visão de Wertham se alinhava fortemente com os pressupostos de Adorno e de


outros críticos que seguiam a mesma tradição. Para Shearon Lowery e Melvin DeFleur,
dois dos maiores críticos das pesquisas feitas por Wertham sobre as histórias em
quadrinhos, seus estudos eram baseados na “Teoria da Bala Mágica”, que conjecturava
que todos os indivíduos eram controlados por seus instintos e que reagiriam da mesma
forma que todos os outros aos estímulos recebidos pela nova mídia de massa; a
mensagem da mídia, assim, entraria “como uma bala” na cabeça do espectador
(LOWERY; DEFLEUR apud BAHIA, 2012, p. 342). Entretanto, assim como ressalta
Nyberg (apud BAHIA, 2012, p. 342), hoje os estudos do Dr. Wertham perderam a força
principalmente por não conseguirem apresentar evidências quantitativas que
corroborassem suas proposições.

Também de acordo com Bahia (2012), no âmbito da opinião pública os


quadrinhos ainda sofriam com os ataques de uma sociedade que queria a todo custo
limpar o mundo das más influências que a cultura de massa tinha sobre a moral e os
bons costumes, assim como já havia acontecido com o cinema 20 anos antes. Dentro da
academia, o debate acabou monopolizado pelas pesquisas um tanto quanto controversas
de Wertham. Quando incorporadas às teorias críticas da cultura de massa, que
enxergavam a indústria cultural como o maior mal da sociedade e como um poderoso
instrumento de manipulação, pouco se avançou no que diz respeito a pesquisas que
69

vissem as histórias em quadrinhos com uma forma cultural emergente, influente e


importante (BAHIA, 2012, p. 343).

Entretanto, Fiedler (1957) observa que em nenhum dos livros críticos às


histórias em quadrinhos que examinou, ou mesmo nos protestos de legisladores, ou
pronunciamentos morais de pastores e mães de família, encontrou uma tentativa
verdadeira de se entender as histórias em quadrinhos, sua forma ou seus temas. O que
mais chama atenção do autor para o ataque dos críticos é sua unanimidade, ou seja,
qualquer estrato da sociedade, independentemente da posição ou cargo, faz um ataque
desconcertante à cultura de massa, mesmo que não tenham mais nada em comum além
disso. O sentimento que partilham? O de serem “íntegros”. Para Fiedler, “essas
investidas de cientistas e leigos são tão características da nossa época quanto as
diatribes puritanas feitas ao teatro da era elisabetana e os piedosos protestos contra a
leitura de romances no fim do século XVIII” (FIEDLER, 1957, p. 625).

Nesse sentido, Moacy Cirne (2000) nos lembra que quando falamos de cultura
de massa, nunca podemos generalizar, pois a generalização é causa de uma
desinformação que criará falsas leituras, questionamentos e perspectivas. Por sinal, frisa
o autor, a desinformação, seja ela em relação aos bens estéticos da indústria cultural ou
aos demais discursos artísticos e literários, serve apenas para gerar preconceitos e
desvios ideológicos. Portanto, “dizer que a indústria cultural provoca ‘atrofia da
imaginação’, como o fizeram Horkheimer e Adorno é simplesmente ignorar o que ela
produziu de mais significativo em nosso século” (CIRNE, 2000, p. 23). Ainda segundo
Cirne (2000), os quadrinhos são um campo fértil exatamente porque seu potencial
estético está no interior da indústria cultural/cultura de massa. Mesmo utilizando-se, na
maioria das vezes, de veículos demasiado massivos, as histórias em quadrinhos
carregam consigo a possibilidade de esclarecimento artístico. Ao mesmo tempo, em sua
estrutura sempre há espaço para o social, o poético e o político, bem como para o
filosófico e o religioso.

Se por muito tempo as histórias em quadrinhos eram vistas apenas como uma
“subliteratura” (CIRNE, 1970, p. 01), além de prejudiciais para o desenvolvimento
intelectual das crianças, com o passar dos anos, contudo, a fragilidade dessas conclusões
foi ficando evidente. Para Cirne (1970), a partir de uma nova base metodológica de
pesquisas culturais que começou a se desenvolver, além da estrutura de sua evolução
70

crítica, os quadrinhos passaram a ser problematizados a partir de sua relação com a


reprodutibilidade técnica e com o consumo em massa, criando novas posições estético-
informacionais.

Nesse sentido, no interior da mesma Escola da qual faziam parte Adorno e


Horkheimer, mas em cisão com boa parte de seus postulados, Walter Benjamin esboçou
algumas das chaves para se “pensar o não pensado” (MARTÍN-BARBERO, 2015,
p.72). Batendo de frente com o pensamento adorniano, e pensando a experiência e
técnica como formas de mediação entre as massas e a cultura, Benjamin foi pioneiro ao
enxergar a mediação fundamental que permite pensar historicamente as transformações
ocorridas nas condições de produção e sua clara relação com as mudanças no espaço
cultural. Pensar a experiência para Benjamin é, segundo Martín-Barbero (2015) um
modo de se alcançar o que eclode na história com as massas e a técnica: não se pode
pensar o que acontece culturalmente com as massas sem levar em consideração a
experiência delas. Pois, em contradição ao que ocorre com a cultura culta, cujo
entendimento está na obra em si, na cultura de massa o entendimento encontra-se na
percepção e no uso.

Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin (2012)


coloca que a obra de arte sempre foi reprodutível, pois tudo o que o homem produzia
podia ser copiado por outro indivíduo. Ao mesmo tempo, a reprodução técnica da arte
seria um processo novo que vem se desenvolvendo com o passar do tempo. A
xilogravura, por exemplo, permitiu que o desenho fosse pela primeira vez reproduzido,
antes mesmo que a imprensa fizesse o mesmo com o texto. Já a litografia permitiu que
as artes gráficas – assim como foi o caso das histórias em quadrinhos modernas -,
colocassem em massa as suas produções e sempre com novas criações. Dessa forma, as
artes gráficas puderam transformar-se em instrumento de ilustração da vida cotidiana.

Continuando, Benjamin (2012) afirma que mesmo na melhor das reproduções, a


autenticidade da obra de arte, que diz respeito ao aqui e agora, sua existência única, ou
seja, o lugar em que ela se encontra e desdobra na história, está ausente; a autenticidade
da obra é desvalorizada. Sem a autenticidade, perde-se a transmissão da tradição da
obra, perde-se a aura da obra de arte. Isso significa que quanto mais algo é reproduzido,
mais sua existência única se perde. Entretanto, a técnica de reprodução aproxima o
indivíduo da obra, atualizando o objeto reproduzido. Tudo isso gera uma agitação na
71

tradição causando uma renovação, relacionando-se diretamente com os movimentos de


massa. A perda da aura, dessa figura que constitui algo único, porém distante, ocasiona
a maior proximidade das coisas, algo tão buscado pelas massas na modernidade e que a
reprodutibilidade finalmente permitiu. Se essa aura, esse “valor único” da obra era
sempre voltado ao valor de culto, agora a arte buscada pelas massas não tem mais o
caráter de devoção. Com a reprodutibilidade técnica, ocorre a “refuncionalização” da
arte (BENJAMIN, 2012, p. 188).

Martín-Barbero (2015, p. 82) ao analisar a obra de Benjamin, destaca que a nova


sensibilidade das massas é a da aproximação, pois acabar com a aura de cada objeto é
aproximar humanamente as coisas. Continuando, salienta que é essa nova sensibilidade
das massas que se expressa e se materializa nas técnicas da cultura de massa, que
violam a sacralidade da aura, que tornou possível outra existência para as coisas e outra
maneira de acessá-las. “A morte da aura na obra de arte fala não tanto da arte quanto
dessa nova percepção que, rompendo o envoltório [...] põe os homens, qualquer homem,
o homem de massa, em posição de usá-las e gozá-las” (MARTÍN-BARBERO, 2012, p.
82). Antes dessa revolução, para a maioria dos homens as coisas, e não só a arte, sempre
se mantiveram longe, à distância, separadas deles por um modo de relação social
desigual. Agora, as massas conseguem se sentir próximas dessas mesmas coisas por
meio das novas técnicas de reprodução. Esse sentir, essa experiência, diz Martín-
Barbero (2015) tem em seu conteúdo as exigências igualitárias que se constituem na
energia presente na massa.

Nesse sentido, os quadrinhos, “nascidos no olho das técnicas de reprodução [...]


beneficiam-se de uma penetração que nenhuma das artes de galerias jamais
experimentou, pelo fato de que a pintura e a escultura são, originalmente, objetos não
reprodutíveis.” (CASTRO6 apud CIRNE, 1970, p. 02) De fato, diz Cirne (1970), as
histórias em quadrinhos surgiram como uma consequência das relações tecnológicas e
sociais que, via de regra, tornam possível o complexo editorial capitalista, que se deu
pela briga entre grupos jornalísticos rivais e que se configurou para o aumento das
vendagens dos jornais, criando assim uma lógica própria de consumo ao aproveitar os
novos meios de produção que haviam surgido.

6
CASTRO, Ruy. Os quadrados contra os quadrinhos. Revista Vozes, Petrópolis, Ano 63, nº 7, jul. 1969
72

A reprodutibilidade técnica, entre outras coisas, permitiu que os novos materiais


propiciassem novas possibilidades visuais. A arte, a partir daquele momento, se via
substituída por tecnologias pautadas pelas necessidades criativas e sociais. Esses novos
acontecimentos artísticos, baseados na fórmula “quantidade + qualidade = consciência
crítica” (CIRNE, 1970, p. 04) fez da massa a força motriz desse movimento. Os
quadrinhos, nesse contexto, “[...] ampliaram as perspectivas de invenção & consumo &
realidade.” (CIRNE, 1970, p. 04) A refuncionalização da arte, de que falava Benjamin
(2012), encontrou um de seus expoentes nas histórias em quadrinhos:

E se o cinema, ferramenta atuante da sociedade capitalista, tem como


principal função revolucionária contestar antigas concepções estéticas
[...], o mesmo diremos dos quadrinhos: a cultura popular situada no
próprio redemoinho da cultura elétrica do nosso tempo. (CIRNE,
1970, p. 05)

Para Martín-Barbero (2012, p. 83) Adorno, por exemplo, se empenhou muito em


continuar julgando as novas práticas e experiências culturais seguindo a premissa de
arte que o impedia de entender o enriquecimento perceptivo trazido por qualquer uma
das chamadas “culturas de massa”, seja o cinema, a fotografia, ou mesmo as histórias
em quadrinhos que, por sinal, definia da seguinte forma: “[...] aquelas séries de
imagenzinhas de aventura semicaricaturais, que frequentemente apresentam as mesmas
figuras de episódio a episódio durante anos a fio” (ADORNO, 1971b, p. 347). Toda
essa nova cultura advinda da cultura de massa e de sua reprodutibilidade técnica
permitiu-nos ver não exatamente coisas novas, mas uma outra maneira de ver as velhas
coisas, fazendo com que pudéssemos sair da prisão cotidiana de nossas casas e locais de
trabalho (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 83).

Assim sendo, os quadrinhos, por suas características tão próprias, por sua
estrutura tão particular, ajudaram a modificar a percepção que se tinham sobre o que é a
leitura e a forma de se construir o discurso. Como uma nova linguagem, não podiam e
não podem se prender a parâmetros estéticos consagrados (CIRNE, 2000, p. 26).
Especialmente nos anos 1960 e 1970 do século XX, os quadrinhos conseguiram
“sacudir a poeira” das velhas estéticas e das velhas leituras. “Além do mais, as normas
estéticas existem para serem questionadas, para serem transgredidas, para serem
73

violentadas, quando for o caso, naturalmente” (CIRNE, 2000, p. 27). As histórias em


quadrinhos transformaram-se em alimento de consumo de massa para cidadãos de todo
o mundo; esses produtos da cultura de massa, que nasceram sem o intuito de
transcendência - ou seja, sem que fossem perenes, tendo como principal característica a
efemeridade -, passaram por uma grande transformação durante todo o século XX.
(GASCA, 1977) A história em quadrinhos, para Dênis de Moraes (2000), resistiu aos
modismos, assim como aos preconceitos, ingressando no século XXI como uma forma
narrativa que engloba pluralidades estilísticas e ideológicas, mesmo sendo pautada pela
lógica consumista do mercado editorial. Os quadrinhos, dessa forma, constituem um
campo produtivo com moldes específicos que passa constantemente por processos de
renovação.

Cirne (2000, p. 17), alerta para que, “por outro lado, não nos esqueçamos, apesar
da pujança criativa de inúmeros quadrinistas, de McCay a Moebius e Luiz Gê, [que] o
preconceito artístico e cultural contra as HQs ainda é inegável”. O próprio Scott
McCloud (2005), um dos grandes entusiastas da Nona Arte, afirmava que tinha
preconceito contra os quadrinhos. Seu preconceito, afirma o autor, se devia à visão
deturpada que se tinha dos quadrinhos, inclusive chegando ao ponto de desconsiderá-los
como produtos artisticamente valorizados e, em contrapartida, valorizando uma arte
considerada legítima, no caso a literatura. Em Desvendando os quadrinhos, ele expõe
que

Quando criança, eu sabia exatamente o que era história em


quadrinhos. Quadrinhos eram revistas coloridas, cheias de arte
sofrível, aventuras idiotas e sujeitos de colante. Claro que eu só lia
livros de verdade. Me achava muito velho pra quadrinhos. [...] claro
que eu sabia que quadrinhos, em geral, eram material de consumo
infantil, com desenhos ruins, baratos e descartável... mas... não
precisava ser assim! O problema era que, pra maioria das pessoas, era
isso que “histórias em quadrinhos significava! Se as pessoas não
compreendiam os quadrinhos, era porque tinham uma definição
estreita demais sobre eles. Encontrando uma definição adequada, seria
possível invalidar os estereótipos e demonstrar que o potencial dos
quadrinhos é ilimitado e emocionante. (MCCLOUD, 2005, p. 02/03)

Mesmo quando falamos na técnica inovadora dos quadrinhos, eles permanecem


indignos de designarem algo de qualidade. Segundo McCloud (2005), “as figuras em
74

sequência finalmente estão sendo reconhecidas como uma excelente ferramenta de


comunicação, mas ninguém ainda se refere a elas como quadrinhos! ‘Diagramas’ soa
mais dignificante, eu suponho” (MCCLOUD, 2005, p.20). McCloud vai mais além e
afirma que

Alguns dos quadrinhos mais inspirados e inovadores do nosso século


nunca tiveram reconhecimento como história em quadrinhos. Durante
grande parte deste século, a expressão “história em quadrinhos” teve
conotações tão negativas que muitos profissionais preferem ser
conhecidos como “ilustradores”, “artistas comerciais” ou, na melhor
das hipóteses, “cartunistas”! E, assim, a baixa auto-estima tem se
perpetuado; e a perspectiva histórica capaz de contrapor essa imagem
negativa acaba sendo obscurecida por essa negatividade.
(MCCLOUD, 2005, p. 18)

No fundo, articula Cirne (2000), este é um preconceito mesquinho que, na


maioria das vezes, se perpetua pela mais simples e elementar desinformação. “Não
estamos mais nos anos 50, mas algumas pessoas se comportam como se ainda
estivéssemos nos anos 40” (CIRNE, 2000, p. 17). A crítica vazia de nada adianta; aliás,
só minimiza as certezas dos críticos. Afinal, como coloca Robert Warshow sobre os
quadrinhos lidos por seu filho:

Normalmente eu me recuso a ler as histórias, mas isso me coloca


imediatamente em posição desvantajosa. Como posso condenar
alguma coisa que não conheço? E, às vezes, quando leio uma história,
sou obrigado a conceder que essa história talvez tenha distinção
mínima, e então estou perdido. (WARSHOW, 1957, p. 240)

Para Mila Bongco (2000), o grande sucesso popular dos quadrinhos, como uma
mídia de massa, acabou obscurecendo sua existência anterior como uma forma de
expressão. Ao se prestar atenção ao todo e ignorando exemplos isolados, os críticos se
debruçaram sobre os quadrinhos como um objeto de crítica social, negando assim
qualquer possibilidade de se atrelar ao meio qualidades estéticas. Entretanto, o fato dos
quadrinhos serem um objeto cultural verdadeiro pode ser provado pelo grande número
de publicações, nos últimos anos, que conseguem lidar com uma maior complexidade
75

estética e psicológica que antes eram impensáveis para o meio. Como consequência,
houve uma significativa mudança na crítica em relação aos quadrinhos como uma
contribuição cultural legítima. Isso, porque as grandes possibilidades estéticas trazidas
pela união de imagens e palavras nas histórias em quadrinhos têm sido cada vez mais
difundidas não só no próprio meio cultural, como exploradas pelas pesquisas realizadas
dentro da academia, legitimando assim os quadrinhos como uma das grandes formas de
arte desenvolvidas pela indústria do entretenimento no século XX (BAHIA, 2012, p.
341).

Assim, apesar da queda nas vendas no início do século XXI, as histórias em


quadrinhos parecem, cada vez mais, rechaçar o desdém cultural normalmente atribuído
a elas, marcando sua presença como uma forma de arte expressiva no mundo
contemporâneo. Segundo Bongco (2000), os quadrinhos têm recebido maior atenção
não só por parte da crítica, mas também muitos artistas têm estendido as noções do que
significa uma história em quadrinhos, voltando seus trabalhos para temas mais
profundos e que, até algumas décadas atrás, não eram associados aos quadrinhos. Um
exemplo disso é que alguns clubes de leitura respeitados nos Estados Unidos, como o
Book-of-the-Month Club, passaram a colocar em suas listas histórias em quadrinhos
(BONGCO, 200, p. xvi).

Os quadrinhos, dessa maneira, transgrediram as barreiras entre “alta” e “baixa”


cultura e estão entrando no espaço cultural de cabeça erguida, sendo reconhecidos como
um objeto cultural legítimo e agregador de valor, algo impensável até alguns anos atrás.
O processo é longo e difícil, mas as histórias em quadrinhos vêm não só aumentando o
respeito e a admiração dos fãs de longa data, mas também dos críticos e instituições
culturais, além de receberem cada vez mais entusiastas em seu meio, entusiastas esses
que perceberam que, assim como o cinema e a literatura, as histórias em quadrinhos
também têm algo a dizer. Mas, como isso tudo começou? Se os quadrinhos, hoje,
deixaram de ser enxergados como algo inferior diante dos grandes campos culturais,
como a música e a pintura, quando essa nova perspectiva teve início? E, também, onde
ela vai parar? É o que tentaremos demonstrar a seguir.
76

2 DO UNDERGROUND AO PULITZER: O INÍCIO DA VALORIZAÇÃO


CULTURAL DOS QUADRINHOS

Parece-nos importante trazer à discussão o fato de que as histórias em


quadrinhos não sofreram totalmente com o desprestígio por parte dos críticos, havendo
nuances nas opiniões ao seu respeito ao longo do século XX. Isso porque, de um lado,
um formato parecia não atrair atenção negativa dos apocalípticos e, do outro, um
movimento artístico criou a ilusão de que agora os quadrinhos poderiam ser respeitados
ao levá-los para dentro dos grandes museus.

Segundo Jeet Heer e Kent Worcester (2004), s tiras, durante o século XX,
tinham muito mais prestígio do que as revistas em quadrinhos. Já nos anos 1920, o
formato ganhou certo grau de respeitabilidade ao apelar para o público nacional de
maneira geral e ao incorporar um grande número de personagens que evocavam os
indivíduos de classe média. Apesar de alguns leitores criticarem alguns trabalhos em
particular, o status cultural das tiras de jornais acabou se estabilizando com o tempo,
especialmente quando comparadas à revista em quadrinhos, cristalizada como um meio
de comunicação de massa já na década de 1930 (HEER; WORCESTER, 2004, p. xi).
Para Adam Gopnik (apud HEER; WORCESTER, 2004, p. xi), as tiras, por serem
veiculadas nos jornais, já faziam parte do cotidiano das pessoas, assim como os assuntos
sobre política e esporte, por exemplo, que circulavam no mesmo veículo, garantindo
assim seu espaço na hierarquia cultural. Já a revista em quadrinhos era algo que exigia o
deslocamento da casa até a banca de jornal e fugia ao controle parental, sendo assim
passível de causar danos. Mais além, aponta Bart Beaty (2012), não se tratava apenas de
um status cultural e artístico, e sim mercadológico e financeiro: os syndicates, grandes
distribuidoras de tiras em quadrinhos e variedade para os jornais, pagavam muito mais
do que as editoras das revistas em quadrinhos, tornando o espaço jornalístico um
destino desejado por muitos artistas.

Nesse sentido, o prestígio intelectual e cultural que os jornais da época detinham


e sua credibilidade junto à comunidade sancionaram as tiras de uma maneira que era
praticamente impossível às revistas em quadrinhos e seus autores. Além disso, as
críticas anticultura de massa disseminadas na época tinham como foco exclusivamente
as revistas, enquanto as tiras dos jornais diários, lidos por toda a família, eram vistas
77

como uma forma saudável de entretenimento para todas as idades e um aspecto


fundamental para o desenvolvimento do jornalismo impresso. Mesmo que alguns
criadores de tiras não tenham sido considerados como artistas relevantes, ainda assim
eram enxergados como atributos da cultura popular norte-americana. Esta, inclusive, era
uma distinção que os quadrinistas das tiras buscavam com todo afinco preservar
(BEATY, 2012, p. 26).

Já a pop art foi o movimento que parecia ter finalmente dado aos quadrinhos o
prestígio que eles mereciam ao inseri-los nos grandes museus de arte do mundo. Mas
não foi bem assim. A pop art - apesar de ter surgido na Inglaterra na década de 1950 -
atingiu seu ápice na década de 1960, mas com uma diferença muito grande em relação
aos outros dois movimentos que trataremos a seguir: ao invés de contribuir para o
processo de legitimação das histórias em quadrinhos, pareceu ter feito exatamente o
contrário. Isso, porque para muitos fãs de quadrinhos, os trabalhos de Roy Lichtenstein
demonstram como os universos dos quadrinhos e das artes plásticas são percebidos e
valorizados. Exemplo disso são os valores que chegaram a ser cobrados por suas obras:
um dos quadros de Lichtenstein, que usa um fragmento de uma história em quadrinhos,
chegou a valer US$ 5.5 milhões. Mas, afinal, questiona Bart Beaty (2012), como uma
pintura que tem como base um único painel de uma história em quadrinhos pode valer
tanto, enquanto uma revista em quadrinhos inteira, com suas 52 páginas, custou
originalmente, à época, algo em torno de um centavo?

Por conta disso, segundo Beaty (2012) a acusação que os fãs de quadrinhos
possuem contra Lichtenstein é que o seu sucesso acabou diminuindo as chances de os
quadrinhos começarem a ser levados a sério como uma forma de arte legítima por seu
próprio direito, pois, ao reduzir os quadrinhos apenas a um material, uma fonte para a
produção principal, Lichtenstein estaria dificultando ainda mais o caminho. A pop art,
desse modo, usou gananciosamente os quadrinhos como se fossem um “objeto
encontrado”, uma ferramenta, um material de produção e, enquanto isso, os próprios
quadrinhos eram enxergados apenas como uma “arte-irmã inferior.” (SJÅSTAD, 2015,
p. 06). Não obstante, o universo das artes muito comumente enxerga os quadrinistas
como maus artistas ou artistas frustrados que, ao contrário de Lichtenstein, não
souberam explorar seu talento da melhor forma possível (SJÅSTAD, 2015, p. 06).
78

Assim, ao contrário do que muito se pensa, Lichtenstein não é considerado pelos


fãs dos quadrinhos como alguém que honrou o meio, e sim como alguém que teria
diminuído ainda mais o valor de todo o campo ao reafirmar o já antigo preconceito com
os quadrinhos que persiste no mundo da alta arte (BEATY, 2012, p. 58). Para uma
geração inteira de quadrinistas, o fato de Lichtenstein ter ganhado milhões ao explorar o
trabalho de artistas das histórias em quadrinhos que ganhavam muito mal por seu ofício
praticamente anônimo é bastante irritante. O que Lichtenstein conseguiu, na concepção
de muitos fãs de quadrinhos, foi criar uma arte à custa da reputação dos criadores de
quadrinhos e da forma em si (BEATY, 2012, p. 59). Para Art Spiegelman, Lichtenstein
“fez tanto pelos quadrinhos quanto [Andy] Warhol fez pela sopa”.7

As tiras e a pop art, então, aparecem como um formato e um movimento do


século XX que parecem, num primeiro momento, ser representantes da legitimação das
histórias em quadrinhos no universo da cultura. Entretanto, não é bem assim. As tiras
dos jornais podem até possuir prestígio desde a década de 1920, mas não contribuíram,
isoladamente, para a legitimação do campo como um todo; a pop art, por outro lado,
podia até vislumbrar a valorização do campo, mas acabou seguindo o caminho oposto.

Nesse sentido, acreditamos que o pontapé inicial para o reconhecimento das


histórias em quadrinhos como um campo culturalmente valorizado teve início na década
de 1960 a partir de dois movimentos distintos, mas que se complementaram: o
reconhecimento de intelectuais e artistas europeus e o movimento underground nos
Estados Unidos.

2.1 A década de 1960: como ela modificou o que se entendia por “quadrinhos”

Na década de 1960, tem início na Europa, espalhando-se depois pelo mundo, a


“febre dos quadrinhos” (MOYA, 1977, p. 86). Livros, revistas, artigos, conferências
sobre o assunto começam mais e mais a aparecer, com nomes importantes do mundo
intelectual e das artes aderindo ao movimento, como Alan Renais, Pablo Picasso, Jean
Luc-Godard, Federico Fellini, Pierre Alechinky, Herbert Marcuse, Marshall McLuhan,

7
did no more for comics than [Andy] Warhol did for soup. Disponível em:
<http://www.bostonmagazine.com/arts-entertainment/blog/2014/05/12/art-spiegelman-boston-what-
happened-to-comics/>Acesso em: 22 abr. 2016
79

Francis Lacassin, Peter Foldes, Luís Gasca, Umberto Eco, Edgar Morin, entre outros.
Em muitos lugares do mundo começam a circular os álbuns de luxo de histórias antigas,
como Flash Gordon e Tarzan, congressos sobre o tema começam a acontecer e “o
mundo todo arregala os olhos com mais de um século de atraso, compreendendo a
importância dos quadrinhos no mundo atual” (MOYA, 1977, p. 87).

A partir daí, “os intelectuais, professores, pais e mestres, mães, críticos de arte,
escritores e autores infantis, editores, museólogos, pedagogos, pintores, artistas
plásticos, todos agora com a bênção da alta cultura, passam a dizer que nunca foram
contra os quadrinhos, muito pelo contrário...” (MOYA, 1977, p. 87) Esses intelectuais
europeus, especialmente os franceses, italianos e alemães, passaram a disseminar um
conceito positivo sobre os quadrinhos, o que resultou no início dos estudos de
Comunicação de Massa. Tais estudiosos passaram a analisar o fenômeno dos
quadrinhos como um dos melhores meios de informação e de formação de conceitos –
visto seu papel na propaganda ideológica antinazista criada pelos norte-americanos.
(LUYEN, 1987) Para Sonia Luyten (1987), esta visão mais científica e imparcial foi
incorporada pelos Estados Unidos, tão logo foi possível uma reavaliação crítica e
construtiva do que se tinha produzido anteriormente.

Destarte, falar de um movimento de valorização dos quadrinhos que se deu na


Europa, na década de 1960, é falar do pensador italiano Umberto Eco e da publicação
de Apocalípticos e Integrados. Nesse período, quanto maior era o preconceito, afirma
Cirne (2004), maior e mais rica eram as descobertas sobre as potencialidades criadoras
do meio. Umberto Eco, importante teórico já conhecido e reconhecido no meio das artes
plásticas, concretizaria nessa época uma série de estudos, acadêmicos ou não, revelando
um novo olhar sobre os quadrinhos. Um de seus mais importantes e conhecidos ensaios,
intitulado O Mito de Superman, e que está presente em Apocalípticos e Integrados,
representou uma ruptura fundamental na crítica dos quadrinhos, demarcando o terreno
entre as críticas esporádicas e amadoras e os estudos culturais contemporâneos (HEER;
WORCESTER, 2004, p. ix).
80

Figura 1 – A análise quadro a quadro de Steve Canyon feita por Umberto Eco também
modificou os parâmetros das pesquisas em quadrinhos

Fonte: Eco (2009, p. 133)

Para Heer e Worcester (2004, p. xviii), o pensador italiano pode ser considerado
como um dos maiores exemplos de um intelectual que se posicionou contrariamente ao
elitismo cultural que rejeitava e negava a cultura pop. Seus ensaios e artigos desafiavam
os moralistas, cientistas e críticos culturais que temiam a cultura de massa ou que não
enxergavam nada significativo nela, ajudando, assim, a cimentar as bases dos estudos
culturais contemporâneos. Os escritos de críticos como Eco, reforçam Heer e Worcester
(2004), juntamente com os de outros pensadores como Leslie Fiedler e Marshall
McLuhan, logo floresceram como os grandes expoentes da literatura sobre os
quadrinhos.
81

Apocalípticos e Integrados, livro tão importante para a presente pesquisa e para


tantas outras que têm os quadrinhos como objeto, tornou-se um marco, um signo desse
novo olhar sobre o campo das histórias em quadrinhos. Publicado originalmente em
1964, Eco inaugurou uma nova ênfase crítica, apoiada na estética e na semiótica das
histórias em quadrinhos (CIRNE, 2004), surgindo em um momento de grandes debates
políticos e sociais e diversos questionamentos artísticos e culturais, um período em que
a contracultura ganhava cada vez mais força.

Um exemplo da visibilidade dada ao campo na Europa é a publicação de temas


que só décadas mais tarde fariam sucesso em outros países, já que estes não acreditavam
que certas histórias pudessem ser contadas em formato de quadrinhos. Assim, anos
antes da disseminação de quadrinhos com temáticas mais sérias e densas nos Estados
Unidos, a Europa já realizava esse tipo de trabalho. Sem precisar recorrer a movimentos
socialmente marginalizados, como foi o caso do underground norte-americano – que
discutiremos a seguir -, os quadrinhos franceses se voltaram a temáticas sociais e
políticas já nas décadas de 1960 e 1970. Especialmente na França, Bélgica, Alemanha e
Itália, os quadrinhos voltados para o público adulto já eram publicados e tinham
bastante força (BONGCO, 2000. p. 13).

Outro ponto que merece atenção quando falamos do pioneirismo europeu na


valorização às histórias em quadrinhos está na presença do meio nos segmentos
jornalístico e acadêmico. Segundo Bongco (2000), na Alemanha, por exemplo, à época
e ainda hoje é bastante comum encontrar resenhas sobre obras quadrinísticas em jornais
e revistas considerados importantes, enquanto que na França quadrinhos têm sido
resenhados nas páginas de jornais de peso como o Le Monde, ao lado de sessões que há
muitos anos enfatizam grandes produtos/produtores culturais. Além disso, cadeiras
sobre o tema já eram lecionadas em universidades da Alemanha, Bélgica e Itália. Aliás,
ressalta Bongco (2000, p. 13), na Universidade de Sorbonne, a disciplina de quadrinhos
foi institucionalizada e introduzida pelo Instituto de Arte e de Arqueologia já em 1972,
como um matéria especial designada de L’Histoire et l’Esthetique de la bande dessineé,
e foi ministrada por uma das principais figuras nos estudos dos quadrinhos, Francis
Lacassin. Lacassin também funda com outros grandes nomes, o Club des Bandes
Dessinées, em 1962, em Paris, que seria substituído pelo Centre d´Etudes de
Litteratures d´Expression Graphique, essencial para o desenvolvimento e crescimento
dos estudos acadêmicos sobre quadrinhos naquele momento (BONGCO, 2000, p. 14).
82

Bongco (2000) também ressalta que, na época, grande parte dos estudos críticos sobre
quadrinhos foram produzidos por acadêmicos franceses, alemães e italianos, que
também produziram, naquele período, alguns dos trabalhos mais importantes sobre os
quadrinhos norte-americanos.

Para reforçar esse pioneirismo e proeminência de alguns países Europeus não só


no reconhecimento dos quadrinhos como produto cultural legítimo, mas também nas
pesquisas acadêmicas sobre o tema, Bongco (2000) cita Art Spiegelman, que afirmou
certa vez que “na França, um quadrinista está apenas um passo atrás de um diretor de
cinema. Nos Estados Unidos, (um quadrinista) tem apenas um pouco mais de status que
um encanador” (SPIEGELMAN apud BONGCO, 2000, p. 14, tradução nossa8). Aliás, a
própria esposa de Spiegelman, a francesa Françoise Mouly, que criou com o marido a
aclamada revista Raw e que permanece no cargo de editora de arte da tradicional revista
The New Yorker há mais de 20 anos, conta que esse preconceito contra os quadrinhos
que ela experienciou ao chegar aos Estados Unidos foi algo completamente novo para
ela, já que na França, seu país de origem, tal preconceito não existia (in CHUTE;
JAGODA, 2014, p. 187).

Por sinal, segundo Kim Munson (2016), um dos responsáveis por ajudar a
modificar a visão preconceituosa que as histórias em quadrinhos tinham nos Estados
Unidos foi exatamente um francês: Maurice Horn, pesquisador e entusiasta dos
quadrinhos, pode ser considerado, segundo Munson (2016) um dos agentes que
possibilitou levar a aceitação que os quadrinhos já recebiam na Europa para os Estados
Unidos. Quando Horn apareceu no mundo dos quadrinhos, na década de 1960, o cenário
era de um campo obscurecido pela censura em muitas partes do mundo, inclusive em
países da Europa e nos Estados Unidos. Como membro de grupos voltados às histórias
em quadrinhos na França, como o Club de Bande Dessinées e o Société civile d’études
et de recherché des littératures dessinnés, teve contato com grandes estudiosos
franceses dos quadrinhos, como Claude Moliterni e Pierre Couperie. Ao mudar-se para
os Estados Unidos, Horn tornou-se uma ponte entre este grupo de franceses e os
quadrinistas norte-americanos, envolvendo-se em inúmeras e essenciais exibições que
tinham como foco a arte dos quadrinhos, além de publicar livros sobre o tema entre as
décadas de 1970 e 1990. Assim, a sensibilidade de Horn e a sua crença de que os

8
In France, a cartoonist is one step below a movie director. In America, (a cartoonist) has only slightly
more status than a plumber.
83

quadrinhos mereciam atenção mais séria dos estudiosos ajudaram a cimentar uma nova
era de apreciação e aceitação dos quadrinhos nos Estados Unidos (MUNSON, 2016, p.
01).

Os quadrinhos, até os anos 1960, eram considerados uma “arte menor” (CIRNE,
2000, p. 203). A partir dessa década, graças a esses estudos mais sistematizados e
criteriosos sobre as histórias em quadrinhos que começaram a ser produzidos pelos
intelectuais europeus, a imagem do campo começou a mudar. O consumo, valorização e
estudo dos quadrinhos nesse período foi tão forte que até Picasso revelou certa vez que
“a grande mágoa da minha vida é nunca ter feito quadrinhos” (MOYA, 1977, p. 83).
Segundo Moya (1977), o que Picasso disse consegue resumir bem a importância dada
ao mundo dos quadrinhos por parte dos intelectuais europeus, o que refletiu em um alto
nível dos estudos destes intelectuais a respeito de tão importante meio de comunicação,
dando início ao processo de legitimação. Entretanto, esse não foi o único movimento
que permitiu a reavaliação e reconhecimento dos quadrinhos como produto cultural.

Do outro lado do oceano, outro movimento ajudou a iniciar o processo de


valorização cultural dos quadrinhos. Mas, diferentemente da Europa, o que aconteceu
nos Estados Unidos não foi uma intervenção iniciada e defendida por intelectuais e
artistas que apoiavam a causa da legitimação do campo, e sim uma revolução no
formato, na temática, na produção e na maneira de consumir quadrinhos. Indo contra a
corrente do que se conhecia como “história em quadrinhos”, o movimento underground
norte-americano revolucionou o campo quanto aos temas e estilos, o que acarretou na
mudança do olhar voltado ao meio no que diz respeito a suas potencialidades.

Em parte como uma reação ao Comics Code Authority (CCA) e à atitude passiva
dos produtores e consumidores dos quadrinhos mainstream, surgiram nos Estados
Unidos, na contracultura da década de 1960, quadrinhos que cada vez mais iam além
das possibilidades temáticas e narrativas limitadas pelo código: os quadrinhos
underground. Quando começaram a se tornar conhecidos, acabaram cultivando uma
imagem de foras da lei com a intenção declarada de ofender as “sensibilidades da
burguesia.” (BONGCO, 2000, p. 06). Ao desafiarem as visões higienizadas e valores da
classe média, ofereciam ao público paródias e sátiras da mídia e dos costumes sociais
como alternativa ao que se consumia na época; por não estarem subjugados ao código
ou à necessidade de alcançar um público amplo, os quadrinistas undergorund tinham a
84

vantagem de uma liberdade artística quase irrestrita. Os “comix”, como ficaram


conhecidos os quadrinhos desse movimento, se tornaram a principal válvula de escape
para os artistas inovadores e rebeldes que agiam contra as regras do CCA, expandindo
os limites daquilo que se entendia por quadrinhos.

Figura 2 – Trabalho de S. Clay Wilson para a Zap Comix

Fonte: Wilson (1978)

O surgimento dos quadrinhos undergorund norte-americanos, na década de


1960, é consequência de uma era de profundas mudanças sociais, e o conteúdo desses
quadrinhos é o reflexo dessas mudanças: seus artistas puderam, a partir dali, explorar
temáticas voltadas ao sexo, às drogas e à contracultura em geral de uma maneira que
nunca antes foi possível, permitindo assim aos artistas e ao público leitor experimentar
um novo universo. Assim, em um período em que a indústria dos quadrinhos se via
presa entre as disputas das editoras e a forte censura imposta pelo CCA, que para muitos
artistas significou a morte de suas integridades artísticas (BELTING, 2012), os super-
heróis monopolizavam o mercado. Devido ao constante medo da imoralidade, a
indústria dos quadrinhos se tornou uma fábrica de super-heróis que nunca sucumbiam
85

aos vícios, nunca demonstravam seus desejos sexuais e nunca matavam o vilão. Para
alguns artistas, isso era inaceitável; esses seriam os artistas que dariam início ao
movimento underground dos quadrinhos.

No começo, o movimento era composto apenas por um pequeno grupo de


artistas de São Francisco, que deram o pontapé inicial para a criação dos quadrinhos
underground. Entretanto, em pouco tempo o número de adeptos cresceu e artistas,
escritores e músicos se juntaram e criaram uma rede informal de empreendedores
artísticos. Enquanto, em Nova York, a lógica baseava-se nos quadrinhos coloridos e
“corretos”, em São Francisco, especialmente em uma área da cidade chamada de
Haight-Ashbury (SKINN, 2004, p. 11), os atores do movimento que surgia faziam o
possível para se desvencilharem completamente de qualquer coisa que minimamente
lembrasse o mainstream, investindo em um universo subversivo, artístico, sexual,
regado a drogas e à política, acabando por significar “[...] uma vibrante e tumultuada
forma de arte cheia de delírios expressos vividamente e uma loucura regada à droga.”
(LONGHI, 2012, p. 04, tradução nossa 9). Para aquela primeira geração, que
acompanhou o nascimento do movimento, as palavras “underground comix”
representavam um escape, uma resposta, uma alternativa (SKINN, 2004, p. 10).

O termo comix foi escolhido para designar os quadrinhos produzidos dentro do


movimento como uma forma de diferenciá-los dos quadrinhos que eram produzidos
pelos mainstream. Mesmo sabendo que, foneticamente, o som de comix e comics seria o
mesmo, era preciso uma nomenclatura que os separasse, da maneira mais clara possível,
do tipo de trabalho que eles não queriam fazer. Segundo o artista Jaxon, parte do
movimento, o “X” em comix sugeria a classificação indicativa do quadrinho, que os
americanos classificavam como X-Rated, ou seja, como voltado apenas para o público
adulto (SKINN, 2004, p. 13). O uso da letra ao final da grafia servia para indicar aos
leitores, logo de cara, que aqueles quadrinhos eram especiais, diferentes dos usuais.

Para Mark James Estren (2012), que vivenciou o movimento e que praticamente
escreveu in loco o livro A History of Underground Comics, é praticamente impossível
distinguir os quadrinhos underground apenas por sua aparência; afinal, uma das coisas
mais legais deles é que vinham em diferentes formatos e estilos, especialmente no que
diz respeito às técnicas de desenho: existiam desde artistas amadores até aqueles que

9
[…] a vibrant and tumultuous art form filled with vividly expressed delirium and drug-filled madness.
86

desenvolviam imagens extremamente complexas, que se aproximavam ao que muitos


considerariam como “arte”, mas sem esquecer que, muitas vezes, um mesmo artista
dava exemplo das duas coisas. Foi por conta dessa variedade de estilos, inclusive, que
sugeriram que o movimento fosse definido apenas como comix (ESTREN, 2012, p. 17).

Figura 3 – Extrato de The Fabulous Furry Freak Brothers, de Gilbert Shelton

Fonte: Shelton (1971)

Estren (2012) diferencia os underground dos mainstream bem detalhadamente:


os quadrinhos do underground eram produzidos às dezenas de milhares, ou menos, e
não às centenas de milhares; seus artistas eram, em sua maioria, jovens e politicamente
conscientes e suas formas de expressão eram normalmente contemporâneas e satíricas;
cada artista era responsável por sua própria contribuição para um livro, diferente da
produção em cadeia do mainstream; não havia a pressão do prazo que atrapalhava a
87

criatividade do artista; aqueles quadrinhos – e aqui Estren (2012) é bastante enfático –


simplesmente não estavam sob o julgo e nem sua produção era determinada pelo CCA
e, por conta disso, não tinham como público alvo toda a família; os artistas do
movimento realmente se importavam com o que desenhavam e como desenhavam;
independentemente do assunto tratado, os artistas não tinham nenhum compromisso
com questões visuais ou verbais que pudessem ofender, e por isso nas suas capas
sempre constava a frase “apenas para adultos” (ESTREN, 2012, p. 20).

Aos pensadores anti-establishment - de mulheres, negros e gays e toda sorte de


grupos minoritários, até aqueles que simplesmente não queriam fazer parte do American
way of life – foi dada completa e livre voz (BUNCHE, 2016). Quanto mais cresciam e
mais radicais se tornavam, mais os artistas do underground norte-americano publicavam
materiais que refletiam o mundo real, suas sensibilidades e experiências. E, enquanto a
mídia estava mais preocupada com a violência retratada, a liberdade criativa
experienciada por esses artistas era sem precedentes, um momento em que o ambiente
era extremamente fértil e que permitiu que uma nova geração de talentos e ideias
pudesse florescer.

Robert Crumb se tornou a mais reconhecida figura do underground. Seu estilo


único e distintivo fez com que ele ficasse conhecido para além do movimento e do
público de quadrinhos em geral. Enquanto os quadrinhos mainstream tinham os seus
super-heróis cheio de questões morais e a crença na verdade, na justiça, e no jeito
americano, os produzidos no underground tinham como ícones personagens como Mr.
Natural, de Crumb, e sua visão bastante ambígua do universo. Crumb também criou, em
1968, a revista que acabou se tornando o maior símbolo do underground, a Zap Comix.
Apesar de não ter sido a primeira, e nem a única publicação do movimento, é
considerada como aquela que marcaria o início do underground comix, além de difundi-
lo como nenhuma outra ao publicar os trabalhos não só de Crumb, mas dos maiores
quadrinistas da contracultura, como Gilbert Shelton, Rick Griffin, Spain Rodriguez, S.
Clay Wilson, entre tantos outros.
88

Figura 4 – Mr. Natural, um dos grandes personagens do underground

Fonte: Crumb (1971)

O sexo foi a mais imediata e aparente barreira trazida abaixo pela revolução
iniciada pelos comix (BELTING, 2012, p.08). Como era estritamente proibido pela
censura, o sexo nunca aparecia nas histórias de super-herói, fazendo com que o assunto
fosse tratado extensivamente pelos autores do undergorund. Muitos deles, e talvez
especialmente Robert Crumb, falaram sobre todos os aspectos possíveis e imagináveis
relacionados ao sexo. Afinal, os quadrinhos, como linguagem, permitiam a entrega dos
cenários e personagens mais loucos possíveis e impossíveis de serem reproduzidos em
qualquer outro meio.

Segundo Denis Kitchen (2004), que fez parte do movimento, a marca registrada
do underground continua sendo a completa liberdade artística. Entretanto, para o
89

quadrinista, o maior legado deixado pelo movimento está em outra liberdade: a


liberdade de direitos conquistada pelo artista. Kitchen (2004, p. 08) conta que quando
começou sua carreira nos quadrinhos, as tiras, consideradas a irmã mais velha dos
demais formatos, ainda eram enxergadas como uma forma de arte muito jovem, ou seja,
os artistas do movimento underground fizeram parte da geração de quadrinistas que
tinham noção da história de sua profissão, convivendo com seus antecessores no mesmo
tempo. Inclusive, antes do surgimento e da proliferação de livros que falam dos
quadrinhos, que hoje são tão comuns, estes artistas apreciavam e reconheciam os
trabalhos daqueles que vieram antes deles sem precisar de alguém que lhes contasse
suas histórias. Da mesma forma, ele lembra, também sabiam e conheciam o lado mais
obscuro da profissão: compreendiam que os direitos autorais nos quadrinhos eram,
desde sempre e quase sem exceção, propriedade das editoras ou syndicates. Desde o
princípio, Kitchen (2004) afirma que todos os quadrinistas da contracultura entendiam
que a antiga economia que regia o meio era inaceitável e precisava ser modificada. Ao
final de seu depoimento, reforça qual foi a verdadeira revolução do underground:

A “revolução” nos quadrinhos é normalmente enxergada em termos


de melhoria no âmbito dos temas cada vez mais literários, a escrita
maravilhosamente idiossincrática e estilos artísticos e formatos físicos.
Mas nos bastidores, uma outra revolução aconteceu, uma que dizia
respeito as questões de equidade do criador, sem dúvida uma questão
tão importante quanto a própria liberdade intelectual. KITCHEN,
2004, p. 09, tradução nossa 10)

O underground acabou representando, para seus artistas, um movimento que


tinha como objetivo o fortalecimento e autonomia da produção de quadrinhos e uma
forma de utilizá-lo como meio privilegiado para manifestação artística e social
(VERGUEIRO, 2009, p. 20). Seus integrantes eram em sua maioria parte do espaço
universitário e que se recusavam a se vender para a máquina editorial dominante, assim
como buscavam burlar as regras estabelecidas pelo CCA em todo o território norte-
americano. Para Bongco (2000), se desconsiderarmos muitos dos trabalhos obscenos e

10
The “revolution” in comic books is most easily seen in terms of the increasingly subject matter, the
wonderfully idiosyncratic writing and art styles and the physical formats. But behind the scenes another
revolution took plave, one that adressed creator equity issues, arguably an issue as importante as
intelectual freedom itself.
90

violentos que beiravam o mau gosto, muito talentos preciosos surgiram dentro do
underground, assim como obras icônicas e especialmente originais, levando a força
artística e cultural do movimento a se espalhar pela nação.

Além disso, os comix ultrapassaram as fronteiras norte-americanas: mesmo que


tenha sido um movimento que durou pouco tempo, tendo seu apogeu entre o final da
década de 1960 até mais ou menos a metade da década de 1970, a influência das obras e
autores dos comix, segundo Waldomiro Vergueiro (2009), foi muito além de São
Francisco, atingindo países da Europa e da América Latina. No continente europeu,
serviram de inspiração para revistas de vanguarda; nos países latino-americanos,
acabaram por se tornar uma das facetas das vozes político-partidárias e o estilo
preferido dos artistas que buscavam enfrentar os governos totalitários que tomaram o
poder no continente nas décadas de 1960 e 1970 (VERGUEIRO, 2009, p. 20).

Assim, mesmo com pouco tempo de vida, os comix são considerados uma fase
crucial no desenvolvimento das histórias em quadrinhos como uma forma narrativa e
um meio de expressão artística. Este foi o primeiro grupo de produtores de quadrinhos
significativos, nos Estados Unidos, que tinha como alvo um público completamente
adulto. Inclusive, muitos dos artistas que hoje figuram na lista dos grandes quadrinistas
da história, e que perceberam o grande potencial narrativo dos quadrinhos com
temáticas mais profundas e sérias, vieram desse movimento; em outras palavras, a
experiência de focar na capacidade dos quadrinhos de exercer diferentes tipos de
influência sobre seus leitores permaneceu (BONGCO, 2000, p. 08).

Para Bongco (2000), muitos dos produtores e críticos da indústria, inclusive,


concordam que as raízes dessa nova onda de quadrinhos mais realistas e densos que
emergiu nos Estados Unidos nos últimos anos têm suas origens no underground. Os
quadrinhos underground, dessa forma, revitalizaram o meio e demonstraram as
potencialidades do mesmo, “[...] podendo-se afirmar que ajudaram na formulação de um
estilo de produção de quadrinhos” (VERGUEIRO, 2009, p. 20), trazendo uma nova
perspectiva sobre o que significam as histórias em quadrinhos.

O underground facilitou o processo de legitimação ao ter se tornado, nos anos


seguintes, a base para o nascimento do movimento alternativo, que com todas essas
características tornou-se o representante dos quadrinhos como um produto cultural hoje
reconhecido não só pelos já fãs de quadrinhos, mas também pelo público em geral.
91

Segundo Charles Hatfield (2005), as três principais características dos comix que o
movimento alternativo herdou e que se tornaram suas bases são: os comix foram o
primeiro movimento que deram nome e reconhecimento aos seus autores; apesar de
também trabalharem com o formato tradicional, os quadrinhos do underground
acabaram com a publicação periódica: eram produzidos esporadicamente, quando os
artistas bem entendiam, já que as vendas eram baseadas não em sua periodicidade, mas
na reputação de seus criadores (característica diretamente ligada à ideia de
reconhecimento do autor); e, por último, os comix introduziram uma forma de produção
que saía do formato da linha de produção colaborativa e deixava o autor criar sozinho e
sem pressa. Em suma, os quadrinhos underground deixaram o terreno fértil para os
artistas do alternativo ao transformar a autoria individual em um espaço seguro: agora, a
expressão individual era a regra (HATFIELD, 2005, p. 16).

Dado tudo isso, podemos considerar os anos 1960 como a década que
pavimentou o caminho para o início do processo de legitimação cultural dos quadrinhos
graças a dois importantes movimentos que, apesar de possuírem raízes e propostas
muito distintas, foram igualmente importantes: o intelectual europeu e o underground
norte-americano. O intelectual europeu, ao conscientemente buscar a valorização dos
quadrinhos como um produto cultural e artístico, permitiu que o campo recebesse novos
olhares e o reconhecimento que há tanto almejava, modificando a visão de muitos sobre
o meio e permitindo que o mesmo fizesse parte de discussões e adentrasse espaços
nunca antes pensados; o underground norte-americano, mesmo que não almejasse o
reconhecimento e valorização do meio da mesma maneira consciente, mudou o que se
entendia por história em quadrinhos ao buscar inspirações em temáticas políticas e
sociais, além de privilegiar estilos e formatos que nada tinham a ver com o que até então
era produzido, acarretando em obras que modificariam profundamente o meio e
inspirariam as gerações seguintes a buscar e valorizar sua própria criatividade.
Vergueiro (2009) resume muito bem o que os dois movimentos significaram:

Com o reconhecimento do potencial artístico dos quadrinhos por parte


dos intelectuais europeus e com a eclosão do movimento de
quadrinhos underground estavam assentadas as bases para uma outra
etapa na legitimação cultural das histórias em quadrinhos no mundo
inteiro. Pode-se dizer que estava se agilizando o ritmo em que elas
deixavam de ser vistas como uma linguagem exclusivamente
direcionada para o público de menor idade e passavam a ser encaradas
92

como manifestações voltadas a públicos diversos, com diferentes


níveis de qualidade e representação do mundo. (VERGUEIRO, 2009,
p. 21)

O marco inicial para a superação da disputa entre a “alta” e a “baixa” cultura,


que impediu durante décadas a valorização dos quadrinhos como um produto cultural
legítimo, está no movimento intelectual europeu e no underground norte-americano.
Mas esse foi só o começo. Um quadrinista em especial, mesmo que à época não
soubesse o estardalhaço que iria gerar, ajudou a continuar a luta pela legitimação
cultural dos quadrinhos. Art Spiegelman, com suas raízes no underground e inspiração
no que de melhor a Europa trouxe, modificou a visão de muitos sobre o universo dos
quadrinhos ao publicar uma obra revolucionária: Maus.

2.2 O papel de Maus na revitalização do meio

Já na metade da década de 1970, a cena dos quadrinhos underground nos


Estados Unidos começou a perder força, especialmente com a derrocada das chamadas
head shops, lojas que vendiam todo tipo de parafernália ligada às drogas ilegais,
especialmente a maconha e a cocaína. Com isso, os comix perderam seu principal
espaço de venda e distribuição de conteúdo. Segundo Mike Kelly (2008), com a
incerteza da comunidade em relação ao que era considerado obsceno ou não, dada a
decisão da Suprema Corte – que reiterou, em 1973, que a obscenidade não poderia, e
nem deveria, ser protegida pela primeira emenda e, por isso, a grande maioria dos
quadrinhos seria considerada obscena (DUNCAN; SMITH, 2009, p. 57) -, ficou cada
vez mais difícil encontrar novos espaços de venda que estivessem dispostos a
comercializar este tipo de conteúdo e, para piorar, até imprimir esses quadrinhos tornou-
se, legalmente falando, uma tarefa perigosa. Outra motivação para a queda no interesse
pelos quadrinhos underground foi que a própria audiência buscava por conteúdo
cultural mais sutil. Com o fim da Guerra do Vietnã, a subcultura jovem norte-americana
era mais estimulada pelo movimento contrário à guerra; os quadrinistas que, em sua
juventude, haviam começado o movimento, agora tinham que lidar com as
responsabilidades da vida adulta. Até mesmo os hippies, que criaram cooperativas para
93

a impressão e distribuição mais baratas dos quadrinhos, agora faziam parte de uma nova
“instituição” dos quadrinhos underground (DUNCAN, SMITH, 2009, p. 58).

Esse baque do sistema de produção e distribuição dos comix acabou coincidindo


com uma insatisfação cada vez maior por parte de alguns artistas. Ao mesmo tempo em
que a unidade formada pelo “Verão do Amor” – ocorrido em 1967, nos Estados Unidos,
e que contou com manifestações de pessoas que defendiam valores e estilos de vida
alternativos, além de contrárias à Guerra do Vietnã -, começava a esmaecer, a cena
underground também começou a se diluir e a criar grupos separados que focavam em
seus próprios interesses: gênero, raça, sexualidade e classe (KELLY, 2008, p. 316).
Com isso, cada vez mais iam diminuindo os artistas que ainda enfocavam no sexo e no
uso de drogas como temática, enquanto um grupo crescente de artistas com outros tipos
de inspiração passava a reivindicar espaço com um padrão mais alto, buscando um novo
direcionamento para os comix. Com isso, os quadrinhos alternativos, com suas raízes no
movimento underground (HATFIELD, 2005, ix), passaram a ganhar destaque no
universo dos quadrinhos estadunidenses.

Os quadrinhos alternativos são normalmente criados por um único quadrinista e


a história envolve uma visão muito pessoal do artista. Muitos são autobiográficos e o
foco fica mais no autor do que nos personagens. O quadrinista normalmente publica seu
próprio trabalho e o mesmo consiste em resistir aos gêneros do mainstream ou satiriza-
los, ao mesmo tempo em que busca valorizar suas raízes no underground. A variedade
de histórias em quadrinhos que começou a surgir dentro desse novo movimento
encontrou uma nova audiência, diferente daquela que havia apoiado o underground,
inclusive pela mudança na distribuição e venda desses novos quadrinhos alternativos,
que passaram a ser comercializados no mesmo espaço que os mainstream, em um novo
tipo de estabelecimento, as comic book shops (DUNCAN; SMITH, 2009, p. 67). Não
obstante, o próprio mainstream foi afetado por todas essas mudanças, buscando
inovações nos formatos e especialmente nos vieses criativos da indústria. As grandes
editoras, especialmente a Marvel e a DC, resolveram fugir de suas já conhecidas
fórmulas e correr atrás de elementos narrativos e gráficos que seguiam o caminho
oposto do que até então haviam produzido.

Assim, os anos 1980 ficaram marcados pela aparição de novas produções que
passaram a privilegiar o público adulto, tanto no espaço alternativo quanto no
94

mainstream. Histórias mais densas, com temáticas mais profundas e menos “coloridas”
do que aquelas apresentadas ao público até então começaram a invadir o mercado de
quadrinhos norte-americano. Até mesmo personagens já conhecidos do grande público
leitor de quadrinho ganharam uma roupagem mais intrincada, assim como
personalidades mais problemáticas e complexas, a fim de manter o público jovem que
agora cresceu e que buscava algo além das antigas histórias. Algumas dessas obras,
inclusive, transformaram-se nas “obras primas” de muitos de seus autores. É neste
espaço no qual o quadrinista que ajudou a renovar o meio floresce: Art Spiegelman.

Art Spiegelman nasceu em 1948, em Estocolmo, na Suécia. Seus pais,


sobreviventes dos campos de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra
Mundial, imigraram para os Estados Unidos com o filho ainda pequeno. Considerado
um dos mais importantes quadrinistas da vanguarda norte-americana, recebeu em 1992
o Prêmio Pulitzer - o mais importante do mercado editorial norte-americano –, em uma
categoria especial, por sua visão singular diante da tragédia vivida por seus pais durante
o Holocausto. Em sua autobiografia, intitulada Breakdowns: retrato do artista quando
jovem, Spiegelman (2009) nos conta um pouco de sua história e nos ajuda a entender
como Maus, obra que acreditamos ter papel fundamental na revitalização do meio, se
tornou uma realidade. Inclusive, o confuso primeiro subtítulo dessa autobiografia –
lançada originalmente em 1978 - Breakdowns: de Maus até hoje.Uma antologia de
histórias de Art Spiegelman, é uma referência à tira de três páginas que idealizou em
1972 (trabalho mais antigo da seleção de Breakdowns), que inspiraria o trabalho que
nasceria anos depois e que o tornaria reconhecido ao redor do mundo.
95

Figura 5 – Capa original de Breakdowns, autobiografia de Spiegelman

Fonte: Spiegelman (2009)

Dentro da casa de seus pais imigrantes, os quadrinhos eram sua única janela de
acesso à cultura americana, lendo, desde muito novo, Pato Donald de Carl Banks,
Luluzinha de Jonh Stanley, e a revista Mad de Harvey Kurtzman, talvez sua maior
influência. Percebeu, dessa maneira, que queria fazer parte desse grupo de artistas e,
desde então, a única coisa que mudou com o passar do tempo foi o tipo de quadrinhos
que queria fazer. No colegial, entre uma aula e outra, começou a fazer quadrinhos
estranhos, que não se encaixavam na arte comercial e, em 1965, levou alguns deles para
a revista recém-lançada East Village Other, já que, como nas primeiras edições os
quadrinhos não eram de alto nível, teve certeza de que seu trabalho se encaixaria
perfeitamente nessas condições (SPIEGELMAN, 2009).
96

Figura 6 – Trabalho de Spiegelman na capa da revista The East Village Other, considerada um
dos primeiros semanários underground e que ajudou a definir o que hoje é conhecido como anos
60.

Fonte: Spiegelman (2009)

“Por volta de 1967, minha virgindade e minha mente já tinham ido embora fazia
tempo[…]” (SPIEGELMAN, 2009) e, nos raros momentos de lucidez que ainda tinha,
desenhava folhetos impressos - que exaltavam o efeito do LSD em seu corpo e que
protestavam contra a guerra do Vietnã - e os distribuía em esquinas e parques; muitas
vezes não possuíam nenhuma mensagem reconhecível. No mesmo ano, antes mesmo
dos quadrinhos serem definidos como underground, conheceu Robert Crumb, que lhe
mostrou algumas páginas que havia acabado de fazer sob o efeito do LSD. De acordo
com Spiegelman (2009), o trabalho de Crumb era uma paródia dos cartuns populares da
época – flexíveis, complicados e intricados -, em um momento em que os quadrinhos
ainda tinham uma pretensão ao minimalismo (SPIEGELMAN, 2009).
97

Sua experiência com drogas psicotrópicas fez com que seus “quadrinhos
esquisitos” ficassem em segundo plano, e por isso decidiu passar essa responsabilidade
para as mãos habilidosas de Crumb, enquanto perseguia a “iluminação” sem nenhum
compromisso. (SPIEGELMAN, 2009) Nos anos seguintes, quando decidiu finalmente
colocar os pés no chão, tentou absorver tudo o que Crumb e outros quadrinistas
underground faziam, imitando-os descaradamente, o que resultou em trabalhos
constrangedores, com tentativas medíocres de repetir o humor transgressivo e a
literatura erótica desses artistas, assim como uma experiência grotesca que visava
quebrar tabus e que incluía necrofilia, parricídio e outras formas de violência.
Spiegelman conta que

Uma dessas tirinhas culminava quando um personagem meu, o


Víbora, trepava com o pescoço da cabeça cortada de um menininho.
Eu queria desenhar as imagens mais perturbadoras que podia
imaginar, e, no fim, elas ao menos perturbaram Dana, a esposa de
Crumb, o suficiente para que ela proibisse minhas visitas à casa deles.
Eu era um membro jovem e ousado de uma cena estimulante, mas,
rapaz, eu estava perdido. (SPIEGELMAN, 2009)

Quando os anos 1970 substituíram os anos 1960, Spiegelman (2009) conta que
achou um caminho com a ajuda de encontros significativos. O ano de 1969 foi muito
agitado e incluiu um colapso e uma internação em um hospital psiquiátrico, sua
expulsão da faculdade, o suicídio de sua mãe no ano anterior e uma tentativa – por mais
que desastrosa – de viver em uma comunidade. Entretanto, foi o ano em que conheceu
Ken Jacobs, cineasta de vanguarda e professor de cinema na Universidade de
Binghamton, em Nova York, que se entusiasmou com um de seus trabalhos de história
da arte sobre Master Race, de Bernard Krigstein. Jacobs se tornou seu tutor e lhe
ensinou o valor da arte “sem balõezinhos de diálogo” (SPIEGELMAN, 2009). Ao se
mudar para São Francisco, em 1970, conheceu Bill Griffith, que se tornou seu melhor
amigo e futuro parceiro em projetos como Short Order Comix.

Em 1971, conheceu Justin Green, que à época desenhava a obra-prima que


inauguraria um novo gênero nos quadrinhos: a autobiografia confessional, com Binky
Brown Meets the Holy Virgin Mary. Diferentemente de Robert Crumb, que traduzia
suas obsessões pessoais em uma linguagem “cartunesca universal” (SPIEGELMAN,
98

2009), Green usava a culpa psicossexual e católica de sua vida como principal assunto a
ser esmiuçado em suas obras. Foi assim que Spiegelman encontrou a sua própria psique
e descobriu que deveria, em vez de desenhar a violência mais chocante que podia
imaginar, identificar as atrocidades do mundo real ao qual seus pais haviam sobrevivido
e no qual ele havia sido criado.

Figura 7 – Extrato de Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary, de Justin Green

Fonte: Green (1972)

Por conta disso, seus interesses começaram a divergir da cena dominante do


underground, ainda voltada ao sexo, às drogas e às histórias transgressivas do gênero e
voltaram-se para o descobrimento do que era preciso para que os quadrinhos
“narrativos” se tornassem quadrinhos (SPIEGELMAN, 2009). Spiegelman, assim,
ajudou a formatar o que viriam a ser os quadrinhos alternativos. Inclusive, uma das
revistas que fez a transição entre os quadrinhos underground e os alternativos foi a
revista Arcade, criada por Spiegelman em parceria com Bill Griffith. Apesar de ter
99

durado pouco tempo, contando com apenas sete edições entre 1975 e 1976, trouxe
trabalhos de grandes artistas do underground para uma geração de leitores que era
muito nova para ter apreciado o movimento em sua glória.

Figura 8 – Capa da edição #7 da Arcade, que trouxe trabalhos de Robert Crumb, Harvey
Kurtzman, Spain Rodriguez, S. Clay Wilson, entre outros quadrinistas do underground

Fonte: Spiegelman; Grffith (1976)

Segundo Duncan e Smith (2009, p. 67), apesar do fracasso da publicação,


inclusive com Spiegelman afirmando que nunca mais trabalharia na produção de outra
revista, ao conhecer sua futura esposa, Françoise Mouly, resolveu fazer uma coletânea
de quadrinhos que deu origem a outra publicação, a Raw. Lançada em 1981, mostrava o
trabalho dos quadrinistas independentes e fez sucesso muito rápido, com leitores e até
mesmo artistas querendo contribuir e insistentemente perguntando quando a próxima
edição seria lançada. A publicação contava não só com os já reconhecidos quadrinistas
do underground, como também artistas alternativos que estavam começando. Contudo,
100

a contribuição mais significativa desse importante marco na história das histórias em


quadrinhos foi do próprio Spiegelman, que publicaria a primeira – e pequena – versão
de Maus, desenhada de maneira mais sóbria do que seus primeiros trabalhos, mas mais
radical no conteúdo.

Figura 9 – A primeira versão de Maus, de 1972, publicada na revista Raw

Fonte: Spiegelman (2009)

Entretanto, um ano em particular se destaca: 1986 foi o ano, como nenhum


outro, que trouxe obras que marcariam e modificariam o que se compreendia por
quadrinhos até então, com trabalhos mais politizados e recheados de crítica política e
social. Dentre estas obras, está a “tríade” de 1986: Batman: o cavaleiro das trevas, de
Frank Miller; Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, e Maus, de Art Spiegelman.
101

As duas primeiras, ambas lançadas pela DC Comics, uma editora do mainstream, se


tornaram dois dos maiores clássicos de todos os tempos ao desconstruírem o conceito
do super-herói, trazendo-os para uma “Era de Trevas”, era essa mais realista e muito
mais sombria. Entretanto, foi Maus – agora sim o livro - de Art Spiegelman, que mais
radicalmente transformaria o meio.

Spiegelman foi sem dúvida influenciado e moldado pela cena underground, que
o levou à comunidade artística em que viveu e trabalhou a partir do final da década de
1970. A importante ruptura nos modelos técnicos e temáticos iniciados no underground
permitiu a Spiegelman experimentar visual e narrativamente, o que acarretou, segundo
Mike Kelly (2008, p. 335), no que talvez seja o evento mais significativo na história dos
comix: a publicação da primeira edição de Maus, em 1986, pela Pantheon Books . O
resultado de tal publicação, especialmente depois do Pulitzer concedido a Spiegelman,
teve um profundo impacto no universo editorial das histórias em quadrinhos,
assegurando o estabelecimento do movimento alternativo nos Estados Unidos.

Art Spiegelman (2005) desenvolveu e serializou Maus entre 1980 e 1991 e a


história parte das entrevistas que Spiegelman conduziu com o pai em 1978, no bairro de
Rego Park, em Nova York. Maus: a história de um sobrevivente, a história completa,
tem suas raízes na tira de três páginas de 1972 e que o motivou a desenterrar a biografia
de seu pai, Vladek, um judeu nascido na Polônia que narra a traumática experiência que
viveu nos campos de concentração nazistas e como sobreviveu ao Holocausto. A
história se divide em duas linhas temporais: o passado, que refaz toda a trajetória de
Vladek e sua esposa, Anja, desde a juventude tranquila até o aprisionamento nos
campos e posterior libertação com o fim da Segunda Guerra Mundial, e o tempo
presente, ou seja, quando Spiegelman inicia a entrevista com o pai a fim de recolher
material para seu projeto. Este tempo presente, inclusive, gira em torno do delicado e
conturbado relacionamento entre pai e filho, além do “fantasma” da mãe de Art, que
cometera suicídio há pouco tempo e que assombrava a vida de ambos.

O que mais chama a atenção na obra, entretanto, é a forma como o quadrinista


retrata os principais atores do Holocausto: os judeus são retratados como ratos, os
nazistas como gatos, os poloneses como porcos e os americanos como cachorros, todos
de forma antropomórfica. Inclusive, uma análise da obra e do uso da antropomorfia nos
102

personagens de Maus pode ser encontrada em outro trabalho da autora (CARVALHO,


2015).

Figura 10: A primeira cena de Maus e nosso primeiro contato com Vladek

Fonte: Spiegelman (2005, p. 05)

Uma coleção dos primeiros seis capítulos da série foi colocada nas prateleiras
em 1986, dando ao livro a atenção não só do mundo dos quadrinhos alternativos e
underground, mas também do mainstream e do público leitor em geral. O segundo
volume, com o restante dos capítulos, foi lançado em 1991. Maus já foi rotulado como
várias coisas: da biografia à historiografia, passando por graphic novel, jornalismo em
quadrinhos e até como uma “etnografia pós-moderna” (BRANDT, 2014, p. 70).
Independentemente da classificação que receba, Maus acabou representando uma
reviravolta para o campo dos quadrinhos e importante instrumento no processo de
103

legitimação cultural do mesmo ao se tornar uma das primeiras histórias em quadrinhos a


receber significativa atenção positiva da mídia, academia e público em geral em nível
mundial.

O título de um dos textos de Bart Beaty (2012) no livro Comics versus Art já
consegue sugerir, e até confirmar, a importância de Maus para o processo de
legitimação cultural das histórias em quadrinhos: Academe discovers the comic world:
the canonization of Art Spiegelman’s Maus (BEATY, 2012, p. 117) o que, traduzindo,
seria algo como “A academia descobre o universo dos quadrinhos: a canonização de
Maus, de Art Spiegelman”. Isso, porque segundo o autor, Maus pode ser considerada a
obra dos quadrinhos mais celebrada já publicada nos Estados Unidos, quiçá no mundo,
não só pelo conteúdo, mas pelos prêmios que recebeu. Inclusive, a tão discutida e
muitas vezes duramente criticada escolha do uso da antropomorfia nos personagens
serviu como uma ferramenta de marketing, colocando a obra em um patamar único
dentro das narrativas sobre o Holocausto, assim como a seriedade do tema colocou o
trabalho em um espaço nunca antes enxergado do campo dos quadrinhos (BEATY,
2012, p. 117).

Maus pode ser considerado como um dos quadrinhos responsáveis, em grande


parte, pela nova onda de interesse pelos quadrinhos, nos Estados Unidos, na segunda
metade da década de 1990 (BONGCO, 200, p. 11). Isso, porque a obra causou um
imenso burburinho já no ano seguinte de sua publicação, quando foi nomeada para o
prêmio de biografia no National Book Critics Circle, em 1987. Contudo, foi em 1992
que a obra de Spiegelman chamou mais atenção: Maus ganhou o Pulizter Prize Special
Awards and Citations, prêmio especial do Pulitzer – concedido desde 1917 e
considerado um dos mais importantes prêmios do circuito jornalístico-literário norte-
americano - que foi outorgado pela primeira vez a um quadrinista.

Por conta de tudo isso, o sucesso de Maus foi uma surpresa para muitas pessoas.
Ficou claro, com a repercussão e atenção que recebeu, que os leitores norte-americanos
ficaram impressionado com o tema, o estilo, o formato e o tamanho (publicada
originalmente em duas partes e, depois, compilada em uma) da obra de Spiegelman. Na
verdade, a surpresa veio exatamente pelo fato de Maus ser uma história em quadrinhos:
até então, era inimaginável, seja para o público, para a crítica e até para alguns
quadrinistas, que “o trauma central do século XX” (PONTES, 2007) pudesse ser
104

contado em uma mídia como os quadrinhos e, mais ainda, que fosse realizado em tal
grau de excelência. O próprio Spiegelman confirma essa ideia ao dizer: “não fui
considerado um artista de quadrinhos porque fiz algo que ganhou um Pulitzer”
(SPIEGELMAN apud BEATY, 2012, p. 101, tradução nossa 11).

Apesar da inovação temática e estilística de Spiegelman à época, ele não pode


ser considerado o único artista a mostrar novas possibilidades para as histórias em
quadrinhos. Existem muitas outras tentativas de sucesso nos quadrinhos que
desfragmentaram as velhas fórmulas e maximizaram a riqueza e temática do meio.
Aliás, como é sempre importante ressaltar, muitos desses trabalhos inovadores se deram
na Europa, especialmente na Bélgica, França, Itália e Alemanha, países em que a
tradição de histórias em quadrinhos bem roteirizadas e habilidosamente desenhadas para
adultos ocorre, como vimos na sessão anterior, desde a década de 1960. Nos Estados
Unidos, onde os quadrinhos tinham como seu principal alvo o público infanto-juvenil,
grandes mudanças ocorreram no campo nas últimas três décadas, como evidenciado por
obras de quadrinistas como Will Eisner e Harvey Pekar sem esquecer, é claro, de Alan
Moore e Frank Miller e suas obras Watchmen e Batman – o cavaleiro das trevas que,
também lançados em 1986, causaram uma mudança de percepção e relacionamento do
público com os quadrinhos, não só em relação à temática, mas também em relação aos
eventos nos âmbitos da produção e distribuição.

Entretanto, para a maioria do público – e aí estão inclusos os já fãs-leitores de


quadrinhos e o público não-leitor de quadrinhos – o fenômeno mais importante de
reavaliação das histórias em quadrinhos foi mesmo a publicação de Maus e a resposta
do público e da crítica em relação à obra (GORDON, 2010, p. 179). Ian Gordon (2010)
lembra que Joseph Witek “profetizou”, ainda em 1989, que Maus já havia mudado a
percepção cultural em relação ao que os quadrinhos podem ser e o que seus autores
podem realizar ao levar a sério a mídia da arte sequencial. Dessa forma, enquanto
Watchmen e Batman: O cavaleiro das trevas reinventaram o que se entendia por
quadrinhos de super-heróis para os já fãs do meio, Maus reinventou o meio para os não
leitores. Aliás, o próprio título do texto de Gordon já reflete como o autor percebe a
obra e sua importância: Making Comics Respectable: How Maus Helped Redefine a

11
I’ve been designated not as comic book artist because I did something that got a Pulitzer.
105

Medium, ou, em tradução literal, “Tornando os quadrinhos respeitáveis: como Maus


ajudou a redefinir um meio”.

Isso tudo ocorreu porque Maus, segundo Andrew Loman (2010), foi a obra que
mais ousadamente se afastou das percepções comuns que se tinha sobre os quadrinhos:
mesmo que alguns possam dizer que suas técnicas estéticas não sejam tão distantes das
de outros trabalhos, ainda assim o seu afastamento dos demais gêneros dos quadrinhos
da época foi muito mais completo do que as duas outras obras. Por conta disso, acabou
sendo considerado por muitos como a maior façanha dos quadrinhos até então
(LOMAN, 2010, p. 211).

Figura 11 – Um pequeno exemplo do por que o tema, o estilo, a técnica e a coragem fizeram de
Maus uma obra sem precedentes.

Fonte: Spiegelman (2005, p. 63)

A consequência de tudo isso é que Spiegelman e sua obra passaram a figurar em


importantes publicações de diferentes extratos culturais. Antologias como a Postmodern
106

American Fiction: A Norton Anthology e a The Norton Anthology of American


Literature, ambas da W.W. Norton e consideradas importantes no circuito norte-
americano, trouxeram a história de Vladek para suas páginas. Fazer parte dessas
antologias, lembra Loman (2010), significa dizer que o trabalho é ótimo e que atingiu
um alto status. Outra coisa que demonstra como Maus modificou a percepção de muitos
foi que textos acadêmicos sobre a obra começaram a aparecer em 1992, apenas um ano
após a publicação do seu segundo volume, algo sem precedentes. A atenção recebida
por Maus mostra a sua força: em contraste com as demais obras consideradas
importantes e relevantes na época, estas nem sequer chegaram perto do número de
textos escritos em relação a obra de Spiegelman. Um exemplo disso é que a MLA
Bibliography contou 60 textos publicados sobre a obra entre 2006 e 2008. Mesmo
quadrinhos que receberam consideração da crítica e da academia depois de Maus, como
Persepolis, jamais alcançaram o que Maus alcançou (LOMAN, 2010, p. 217).

Aliás, Gordon (2010) afirma que uma maneira rápida e eficiente de saber o real
impacto de Maus é a de procurar sobre o livro em bancos de dados, como o Lexis. Por
exemplo, de 1986, ano da publicação, até 1999, o livro havia recebido 772 citações. Na
década seguinte, até 2007, foram 2.053 acessos. Aliás, um teste mais simples pode
demonstrar a força de Maus no espaço acadêmico: se digitarmos na página do “Google
Acadêmico”12 as palavras “Maus+Art+Spiegelman” teremos 6.850 resultados, mais do
que os resultados somados de duas das mais importantes publicações das últimas
décadas: Persepolis, de Marjane Satrapi (2.660 resultados) e Watchmen (3.660
resultados). Destarte, o livro cresce a cada dia em reputação, o que faz com que
qualquer menção às grandes obras dos quadrinhos não esteja completa se a obra de
Spiegelman não for citada como uma das mais importantes e pioneiras (GORDON,
2010, p. 185).

Por ter sido publicada na Raw anos antes de ser publicada para o consumo do
público em geral, Maus já era alvo de discussões entre os fãs dos quadrinhos muito
antes das críticas jornalísticas e ensaios acadêmicos. Entretanto, são exatamente nestes
espaços que podemos notar como a obra de Spiegelman foi impactante e como ajudou a
ressignificar, para o público e para a crítica, as potencialidades do campo para além da
perspectiva comum perpetrada durante anos. Um exemplo é a presença maciça de Maus

12
scholar.google.com.br/. Acesso em: 04 dez. 2016.
107

como temática de críticas e artigos nas páginas do The Comics Journal, importante
revista voltada à publicação de notícias, entrevistas e críticas sobre os quadrinhos e que,
além do mais, sempre defendeu a maior valorização cultural do meio. A revista Raw,
por exemplo, foi considerada por muitos que contribuíram para as páginas do The
Comics Journal como uma das publicações sobre a arte dos quadrinhos mais
importantes da era e que tinha como idealizador uma força criativa sem igual (BEATY,
2012, p. 118). O debate feito em cima dos méritos de Maus no The Comics Journal,
assim, foi crucial para o desenvolvimento da orientação estética da revista e,
consequentemente, modificou o olhar dos interessados.

Dale Luciano (apud BEATY, 2012) escreveu o terceiro trabalho sobre Maus
publicado no The Comics Journal. Transcrito abaixo, o comentário de Luciano deixa
claro que esta não é apenas uma avaliação da obra em particular, mas da natureza e
história do campo dos quadrinhos até aquele momento, além de uma declaração
escancarada das aspirações esperadas para o campo escrita pelo próprio editor da
revista:

Maus, de Art Spiegelman, encontra-se entre as mais notáveis


conquistas em quadrinhos. É um livro que redefine o cerne dos limites
dos quadrinhos como um meio; a realização de seu criador das
possibilidades implícitas na narrativa gráfica é sem igual. É um
trabalho que será lembrado e discutido por anos, um evento sem
precedentes que pode determinar como os avanços do meio serão
medidos (LUCIANO apud BEATY, 2012, p. 119, tradução nossa 13).

Ao final do texto, Luciano ainda chega a considerar Maus como uma vingança
dos quadrinhos como um todo: para ele, depois da publicação da obra, ninguém mais
poderia dizer que um meio como os quadrinhos não pode ser usado, ou não tem o que é
necessário, para retratar a complexidade e delicadeza da emoção humana (BEATY,
2012, p. 119).

13
Art Spiegelman’s Maus is among the remarkable achievements in comics. It is a book that redefines
the hitherto boundaries of the comics medium; its creator’s realization of the possibilities implicit in the
graphic storytelling form is uncompromised. It is a work that will be recollected and argued about for
years, a watershed event against witch future advances in the medium will be measures.
108

Segundo Miles Orvell (1992), o que faz com que Maus seja tão significativo é o
fato de que ele adota um tema que até então ia contra a maré dos estilos das histórias em
quadrinhos, buscando uma narrativa que fique entre o político e o pessoal e que
estabeleça uma postura única diante do trauma que foi o Holocausto. Ao transferir os
quadrinhos para um campo com questões políticas e psicológicas sérias, Spiegelman
ofereceu um tipo de obra que ultrapassou as barreiras do público comum dos quadrinhos
norte-americanos, que normalmente tinha seu apetite pautado em histórias de super-
heróis e sua extravagante luta contra o crime. Por fazer parte de um movimento tão
satiricamente crítico da cultura contemporânea – especialmente a estadunidense – criou
um novo público leitor para as histórias em quadrinhos.

Além disso, lembra Andreas Huyssen (2000), apesar de se ter uma noção geral
de que, politicamente, o genocídio dos judeus deveria ser lembrado pelo maior número
de pessoas, o uso de um meio de massa nunca foi considerado como próprio ou correto.
Todavia, Maus fez com que nos aproximássemos da memória do Holocausto e suas
representações de uma maneira tão completamente diferente e delicada que uma
reavaliação sobre os quadrinhos e a cultura de massa foi possível; isso, porque
“Spiegelman entra em um embate com a inautenticidade de representação dentro do
gênero da cultura de massa ao mesmo tempo em que conta a história de maneira
autobiográfica e alcançando um poderoso efeito de autenticidade”. (HUYSSEN, 2000,
p. 81, tradução nossa 14)

Maus é, assim, a história em quadrinhos que conseguiu modificar mais


profundamente a aceitação do público e da crítica em relação ao valor cultural do meio
ao receber um prêmio considerado como legítimo dentro do campo da produção
cultural, abrindo assim as portas para uma nova era dos quadrinhos. Após a publicação
dos dois volumes de Maus, a mídia norte-americana e mundial ficou impressionada com
o fato de que os quadrinhos tinham tanto potencial para a sofisticação intelectual e
artística. Por conta disso, segundo Andrew Loman (2010), durante os anos 1990
Spiegelman acabou se tornando uma espécie de embaixador do meio, escrevendo sobre
o mesmo em revistas de prestígio, como a The New Yorker. Por isso, mesmo que

14
Spiegelman confronts the inauthenticity of representation within a mass cultural genre while at the
same time telling an autobiographic story and achieving a powerful effect of authentication.
109

saibamos que ele não é o único responsável por essa nova visão dos quadrinhos, ele
pode sim ser considerado o mais importante para o período.

Após a publicação e prêmio Pulitzer de Maus, juntamente com a invasão do


mangá em solo estadunidense e o aumento nas publicações das graphic novels, as
portas do mercado norte-americano de quadrinhos se abriram para um novo universo e
compreenderam o potencial de um meio que não precisava mais estar vinculado aos
gêneros tradicionais – super-heróis, policial, de aventuras, etc – para fazer sucesso.
Assim, novas expectativas para o campo foram desenvolvidas e novas premissas foram
cristalizadas. Mais além, Maus derrubou os preconceitos existentes de que as histórias
em quadrinhos não poderiam retratar períodos históricos problemáticos, como foi o caso
da Segunda Guerra Mundial (VERGUEIRO, 2009, p. 30). O reconhecimento obtido por
Spiegelman trouxe olhares de um público diferente daquele das histórias em
quadrinhos, de um público mais geral. É possível afirmar, inclusive, que os produtos da
Nona Arte passaram a ter um novo tipo de recepção, tendo em vista que “[...] o cabedal
social das histórias em quadrinhos foi objeto de forte valorização [...]” (VERGUEIRO,
2009, p. 30-31). E aí está incluída a classificação que Maus recebeu e pelo qual é
reconhecida até hoje: a de graphic novel.

2.3 A chegada das graphic novels ao mercado

Depois do Pulitzer de Maus, de Art Spiegelman, os quadrinhos alternativos


passaram a ser vistos como o grande símbolo das mudanças pelas quais as histórias em
quadrinhos estavam passando. O campo, então, ganhou um grau de respeitabilidade
jamais imaginado. Com suas histórias mais longas, temáticas diferenciadas e público
diverso, os quadrinhos alternativos acabaram criando um novo mercado: passaram a
figurar nas prateleiras não só das lojas especializadas em quadrinhos, as comic book
shops, mas também nas livrarias, ganhando um espaço reservado só para elas; editoras
foram criadas exclusivamente para sua publicação e muitas outras se adaptaram para
poderem usufruir desse mercado crescente; críticos, publicações e sites especializados
surgiram. Entretanto, talvez a maior mudança causada pela invasão desses quadrinhos
alternativos no mercado seja o fato de eles terem tomado para si, e em consequência
110

cristalizado na mente do público em geral, um termo que passaria a designar, nas


décadas seguintes, o que significa ser um “quadrinho de qualidade”. O termo? Graphic
novel.

Existem algumas tantas lendas que contam a história do surgimento das graphic
novels no mercado quadrinístico estadunidense. Uma das mais difundidas e acreditadas
é a de que Will Eisner (1995) teria cunhado o termo e lançado a primeira obra do tipo ao
publicar Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, publicada originalmente
em 1978, sendo o próprio autor o divulgador de tal “verdade” ao contá-la e recontá-la
incontáveis vezes em entrevistas e eventos. Segundo Vergueiro (2009), na verdade
Eisner não havia criado nada de novo, nem mesmo inventado a expressão, pois não se
tratava da primeira vez que o termo era o utilizado para se referir a uma obra do tipo
produzida em formato de quadrinhos. Antes de Eisner, o escritor John Updike, por
exemplo, revelou em uma palestra, em 1960, que os romances poderiam tomar outras
formas além da tradicional, e acrescentou que acreditava que um grande romance
poderia ser escrito magistralmente em forma de história em quadrinhos (DUNCAN;
SMITH, 2009, p. 70).

O termo graphic novel já era utilizado em outros países europeus, especialmente


para designar os álbuns encadernados de histórias em quadrinhos que, à época, eram
publicados no velho continente e que traziam em seu conteúdo histórias completas de
personagens consagrados, como Tintin. Segundo Vergueiro (2009), foi com a
publicação desses álbuns que Richard Kyle, crítico norte-americano e uma das vozes da
comunidade das histórias em quadrinhos que crescia, cunhou, em 1964 o termo graphic
story, que seria posteriormente substituído por graphic novel. Isso, porque segundo
Kyle, trabalhos diferentes do mainstream já estavam sendo produzidos na Europa e o
crítico desejava que o mesmo fosse feito nos Estados Unidos, almejando um futuro com
mais prestígio para o campo e inspirando, assim, os autores norte-americanos a
adotarem o mesmo nível de sofisticação de seus colegas europeus (VERGUEIRO, 2009,
p. 25).

Contudo, tendo conhecimento da real origem do termo ou não, é inegável a


importância de Will Eisner para a divulgação e popularização do termo em todo o
mundo, pois sua importância, proeminência e influência no mundo dos quadrinhos foi
de inestimável valor para a abertura e aumento do mercado para esse tipo de produção.
111

Inclusive, defende Vergueiro (2009, p. 26), a aceitação desse tipo de trabalho estava
diretamente ligada ao apoio às ideias de Eisner por parte de seus fãs, ideias essas
baseadas na proposta de modificar os estereótipos em torno das histórias em quadrinhos.
Isso, porque o autor buscava um título para seus trabalhos que os diferenciasse do que,
até então, era publicado pela indústria norte-americana de quadrinhos. Por isso, no
prefácio à primeira edição, o autor afirmava que a ideia havia surgido já na década de
1930, quando Esiner teria entrado em contato com histórias em quadrinhos mais longas,
sem palavras e feitas em serigrafia. Ramos e Figueira (2011) lembram que o quadrinista
creditou à sua própria obra um status de arte, estampando na capa da publicação a frase
“um romance gráfico de Will Eisner” (ver figura 12). Essa terminologia, inclusive,
acabou por estabelecer um diálogo entre o que ele havia produzido e o campo literário.
Por isso, a repercussão da publicação pode ter contribuído para que a expressão fosse
posteriormente adotada pelas editoras do mainstream (RAMOS; FIGUEIRA, 2011).

Figura 12 – Capa de Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, de Will Eisner

Fonte: Eisner (1995)


112

Nesse sentido, vale lembrar que, por mais que os fatores que moldaram o
desenvolvimento das graphic novels em solo norte-americano sejam tão diversos,
controversos e múltiplos, uma coisa pode ser dita com certeza: sem a intervenção dos
quadrinistas do movimento underground da década de 1960, as graphic novels não
existiriam como as conhecemos hoje (BEATY; WEINER, 2012). É claro que não se
pode dizer que os artistas das tiras dos jornais ou das revistas em quadrinhos anteriores
à chegada do comix não tenham feito trabalhos magníficos. Entretanto, como vimos
anteriormente, o movimento underground não tinha suas temáticas voltadas para o
público infanto-juvenil, além de não privilegiar o lucro em suas publicações, e sim a
oportunidade de dar voz ativa e criativa aos seus artistas; criou-se, assim, um espaço de
expressão pessoal e política, um escape do mundo que os rodeava e um lugar onde
poderiam experimentar, na forma e no conteúdo, como em nenhum outro ambiente,
dando origem ao movimento alternativo.

A nova geração de quadrinistas que surgiu carregou com ela temas e estilos não
tradicionais, interessados em um grupo particular de consumidores e trazendo consigo
lojas especializadas, as comic book shops, que se espalharam pelo mundo. Espécie de
híbrido entre o underground e o mainstream acabaram, com o passar do tempo,
desenvolvendo seus próprios gêneros e tradições, entre elas a autobiografia, a história
ficcional, a cobertura jornalística, etc. (BEATY; WEINER, 2012, p. xvi), que acabaram
por ficar conhecidas como graphic novels. Aqui é importante lembrar que o que
dissemos na primeira sessão deste capítulo acabou se concretizando nas chamadas
graphic novels: os quadrinistas e entusiastas europeus forçaram a entrada de uma nova
visão dos quadrinhos nos Estados Unidos, enquanto o movimento underground mudou
a configuração do meio.

Entretanto, o que reconhecemos hoje como graphic novel se desenvolveu, em


território norte-americano, nas décadas de 1980 e 1990 a partir da compilação de
histórias serializadas. A grande maioria das obras consagradas da época, como Maus e
Watchmen, foram lançadas primeiramente em partes para depois serem organizadas em
um livro, lançando assim as bases para o que hoje conhecemos como graphic novels.
Maus, por exemplo, teve sua primeira parte, intitulada Meu pai sangra história, lançada
em 1986, e sua segunda parte, E aqui meus problemas começaram, em 1991. Já
Watchmen teve seus 12 capítulos publicados mensalmente em formato de revista e
vendidos na banca de jornal, para depois serem compilados e transformados em uma
113

narrativa única, vendida como um livro. Essa reunião das histórias recebeu a
terminologia de graphic novel quando foi colocada no mercado (RAMOS; FIGUEIRA,
2011).

Figuras 13 e 14 – Capas das duas edições de Maus, lançadas separadamente e depois


compiladas

Fonte: Spiegelman (1986; 1991)

Figura 15: Capa do capítulo II de Watchmen. Publicada originalmente em doze edições mensais,
foi posteriormente compilada e classificada como graphic novel

Fonte: Moore;Gibbons (2004)


114

Entretanto, hoje as graphic novels, na maioria das vezes, já são pensadas por
seus artistas e editores como uma única história em um único volume. Com isso, as
histórias serializadas e depois compiladas perderam força e aquelas lançadas em um
único volume se tornaram a norma. Obras hoje premiadas e reconhecidas, como Habib
de Craig Thompson, Asterios Polip de David Mazuchelli, entre tantas outras, já chegam
às mãos dos leitores como livros finalizados (BEATY; WEINER, 2012, p. xvi). Com
isso, graphic novel passou a designar apenas as histórias mais longas, lançadas em
formato de livro e que contam uma história com um arco fechado e com temáticas mais
sérias e densas. Aliás, para Douglas Wolk (20007) se utilizarmos essas especificações
para classificar um trabalho como uma graphic novel, Um contrato com Deus de Will
Eisner não se encaixaria nessa premissa, pois consiste menos em um romance, com uma
narrativa longa, e mais em uma coleção de quatro não-tão-longas histórias ligadas pela
temática

Figuras 16 e 17: Habib, de Craig Thompson e Asterios Polip, de David Mazzucchelli: obras
mais longas que já chegaram às mãos do público finalizadas

Fonte: Thompson (2012); Mazzucchelli (2011)


115

Por designarem, então, apenas as obras em quadrinhos que são destinadas ao


público adulto, e não mais ao infantil; por apresentarem qualidade editorial superior, e
não mais impressas em papel barato; por serem editadas em formato de livro, e não de
revista; e por serem vendidas nas livrarias e lojas especializadas, e não mais nas bancas
de jornal, as graphic novels passaram a ser vistas pelo público em geral como a antítese
de tudo o que era considerado ruim nas histórias em quadrinhos, transformando-se
assim no suporte privilegiado no entendimento dos quadrinhos como um produto
cultural valorizado, e não mais apenas como entretenimento de massa. O termo, assim,
“[...] parece ter sido uma resposta própria da indústria do país a esse molde de criação
de histórias em quadrinhos” (RAMOS; FIGUEIRA, 2011), tornando-se um conceito
valorativo que delega status às histórias em quadrinhos em detrimento dos demais
formatos, estes, agora, desconsiderados como trabalhos de qualidade. Ramos e Figueira
(2011), dessa forma, resumem bem como se dá a distinção de um formato em relação ao
outro dentro do campo:

Vale observar que, ao atribuir um “status” à nova produção de


quadrinhos, mais adulta e madura, trabalha-se com o pressuposto de
que o que foi criado na área até então não teria qualidade suficiente
para tal. Embora possivelmente fosse não intencional, tal discurso
tornou-se comum sempre que o tema vinha à tona e ajudava a criar
uma espécie de hierarquia entre as publicações em quadrinhos: as
pretensamente artísticas ou literárias e as demais (RAMOS;
FIGUEIRA, 2011).

Assim, cria-se a ideia, seja para o público habitual de quadrinhos, seja para o
esporádico, que esse tipo de publicação se diferencia dos demais agregando, dessa
forma, valor positivo ao termo e, em consequência, ao produto (RAMOS; FIGUEIRA,
2011). Por conta disso, muitas das publicações que são denominadas de graphic novels
recebem em suas capas, contracapas, orelhas, etc, o termo como forma de evidenciar
que esse tipo de “conteúdo” será adquirido. Da mesma forma, a mídia e os críticos que
se voltam a esse tipo de publicação utilizam a expressão com finalidades adjetivas, ou
seja, adjetivam a obra como graphic novel a fim de exaltar seus aspectos positivos.
Além disso, uma outra tendência, ressaltam Ramos e Figueira (2011), é a de adjetivar as
graphic novels como “literárias”, já que a literatura, ao contrário dos quadrinhos, é um
campo enxergado, há séculos, como uma arte de prestígio e já há muito legitimada;
116

antes ignorados pelas altas instâncias, os quadrinistas agora dividem espaço com os
grandes escritores.

Todas essas questões implicadas no uso do termo graphic novel


instantaneamente nos levam a pensar nele como designando algo sério e importante, ao
contrário dos demais formatos. E isso, nos alerta Wolk (2007), deixa aberta a porta para
qualquer um que queria colocar um “terno e uma gravata” na sua historinha (WOLK,
2007, p. 63). Inclusive, essa é uma das estratégias de grandes editoras, como a Marvel e
a DC, que resolveram pegar histórias antigas de super-heróis mais longas, editá-las em
capa dura e em papel especial e vendê-las a preços elevados nas livrarias quando,
originalmente, eram vendidas por centavos nas bancas, enquanto ainda eram chamadas
de “histórias em quadrinhos”, e não de “graphic novels”.

Em resenha do livro A Novela Gráfica, de Santiago García, Ediliane Boff (2012)


nos traz certa luz no que diz respeito às nossas ressalvas em relação ao termo graphic
novel. Nela, a pesquisadora afirma, logo no início, que é bastante comum, quando se
fala em leitura, certo fetichismo em relação a um de seus muitos suportes: o livro. Ícone
máximo da literatura, o livro seria o suporte principal desta forma narrativa de grande
prestígio e objeto de uma “verdadeira leitura”. Isso dito, Boff (2012) exemplifica que as
chamadas “novelas gráficas” (as graphic novels) acabaram inclusas no fetiche do livro:
com elas, os quadrinhos tornaram-se mais legitimados, o que cai como uma luva para
um público leitor que não quer ser associado à leitura dos outros tipos de quadrinhos, ou
seja, os massificados e voltados para o público infanto-juvenil. Esse apelo que o livro
tem também está ligado ao seu caráter duradouro, resistente, feito para ser armazenado
na estante e admirado por anos a fio. A revista, ao contrário, é normalmente mais
efêmera, produzida e consumida sem o intuito de ser guardada para a posteridade
(MARTINS, 2001). Fiedler (1957) ainda reforça essa ideia ao ironizar com o fato de
que

[...] os artigos da cultura popular não são feitos para ser guardados,
mas para ser atirados fora; um livro brochado de histórias em
quadrinhos é como uma fralda que não presta mais ou um saquinho
vazio de leite. Apesar de todo o seu competente acabamento, não pode
ser preservado em prateleiras empoeiradas, como os volumes
encadernados em couro de outros tempos; com efeito, o seu próprio
modo de existência desafia a concepção da biblioteca, particular ou
pública (FIEDLER, 1957, p. 626).
117

Assim, Boff (2012) compreende que a supervalorização das graphic novels é


cada vez maior, já que esse título dado a essas histórias enobreceria um meio que por
muito tempo foi considerado ruim. Com essa nova nomenclatura, os quadrinhos podem,
finalmente, ganhar prestígio e fazer parte de espaços como museus, galerias e outras
mídias em geral, locais que sempre os excluíram. Graças às graphic novels, os
quadrinhos magicamente podem ser colocados ao lado dos grandes e legitimados
campos de produção cultural, como a literatura e as artes plásticas. O termo, assim,
funciona como uma forma de substituição “gentrificada dos quadrinhos”. (BEATY,
2012, p. 34) O próprio Art Spiegelman, considerado por muitos como o pai da graphic
novel moderna – ao que o quadrinista rebate, exigindo um teste de DNA15 -, desgosta do
termo. Em suas palavras, o termo existe como

[...] um dos eufemismos que as pessoas têm usado para dizer que os
quadrinhos não são um prazer cheio de culpa. Gráfico: meio que
respeitável. Romances: desde o século XIX, muito respeitáveis. Então
as graphic novels são duplamente respeitáveis. Quando estava
crescendo você não poderia dizer que era um quadrinista porque era
como dizer: como vai você? Eu sou um caso de retardo no
desenvolvimento. E agora ser um “romancista gráfico” te dá um certo
prestígio (SPIEGELMAN, 2014, p. 25-26, tradução nossa)16.

Joe Sacco, quadrinista consagrado e autor de obras com Palestina, também já se


pronunciou sobre o assunto e também questiona o termo graphic novel. Para ele, o
mesmo soa como uma tentativa de fazer com que os quadrinhos pareçam ter “[...]
realmente crescido. Mas nós somos o que somos... Quadrinhos são quadrinhos. Não me
sinto envergonhado – então não preciso de outro par de palavras para me fazer sentir
como se estivesse fazendo algo que valha a pena” (SACCO apud WILLIAMS; LYONS,
17
2010, p. xv, tradução nossa ). Continuando nessa linha, Williams e Lyons (2010)
colocam que o conceito das graphic novels, ao servir principalmente para atrair o

15
<http://www.bostonmagazine.com/arts-entertainment/blog/2014/05/12/art-spiegelman-boston-
what-happened-to-comics/> Acesso em 21 nov. 2016
16
[...] one of the euphemisms that people have used to say that comics are not a guilty pleasure.
Graphics: sort of respectable. Novel: since the nineteenth century, very respectable. So graphic novels
are doubly respectable. When I was growing up you couldn’t say you were a cartoonist because it is like
saying, how do you do? I’m a case of arrested development. And now being a “graphic novelist” has a
certain caché.
17
[...] really grown-up. But we are what we are... Comics is comics. I don’t feel ashamed – so I don’t
need another couple of words to make me feel like I’m doing something worthwhile.”
118

público adulto, que se sente seduzido pelo formato do livro e pela qualidade do papel
em que essas histórias são vendidas, fez dos quadrinhos um objeto de desejo muito
maior, assim como um produto mercadológico mais rentável e que pode ser exposto e
comercializado nos “espaços sagrados” habitados apenas pelos grandes artistas.

Nesse sentido, é impossível não enxergar que existe uma relação direta entre o
desenvolvimento desse mercado nos Estados Unidos e o gradual aumento da
legitimação cultural dos quadrinhos. Para Bart Beaty (2012), não existem dúvidas de
que as lojas especializadas na venda de quadrinhos, as comic book shops, foram por
muito tempo estigmatizadas como um lugar para pessoas antissociais e tímidas e para os
colecionadores. Contudo, o desenvolvimento dessa rede de vendas que facilitou a
publicação e o acesso a trabalhos que começaram a fugir do usual abriu caminho para as
novas possibilidades de produção que seriam financeiramente arriscadas, ou mesmo
impossíveis, se permanecessem no sistema de distribuição das bancas de jornal.

Beaty (2012) vai mais além e afirma, com bastante veemência, que, apesar de
suas origens e base de consumidores já bem estabelecidas, os quadrinhos só iniciam sua
jornada em direção à legitimação cultural quando essa forma de distribuição se
desenvolve. Com a criação desse sistema de vendas ainda nos anos 1970, ele pontua,
ficou mais fácil enxergar os quadrinhos não como parte da cultura de massa impressa –
como acontecia quando eles dividiam o espaço da banca de jornal com as revistas e
jornais -, e sim como uma forma de arte distinta (BEATY, 2012, p. 43). Sendo as
graphic novels as grandes beneficiárias do processo, é possível destacar que, na medida
em que os quadrinhos passaram a ganhar respeitabilidade no universo das artes
consagradas, do qual nunca imaginou fazer parte, certa “hierarquia da qualidade” foi
criada para distinguir os quadrinhos: de um lado os kitsch e de outro a face sofisticada e
experimental dos quadrinhos (SJÅSTAD, 2015, p. 06).

O meio editorial, assim, acaba atribuindo às graphic novels uma característica de


distinção, de um produto superior e diferenciado dos demais suportes de histórias em
quadrinhos, atribuindo valor ao produto em si, e não ao tema ou à qualidade da história.
Nessa linha, Ramos e Figueira (2011) afirmam entender que o termo graphic novel seja
um recuso editorial utilizado para se referir a certas produções, especialmente as norte-
americanas, que narram histórias mais longas, muitas vezes biográficas e
autobiográficas, funcionando como um rótulo que é aceito comercialmente e, por isso,
119

amplamente alastrado. Entretanto, afirmam os autores, tal rótulo acaba por ofuscar quais
são as reais características da história.

Para Ramos e Figueira (2011), o uso de graphic novel pelas editoras, ao


disseminá-lo em capas, contracapas, textos informativos, entre outros, como forma de
divulgação da obra, tem ajudado na divulgação do termo, ao mesmo tempo em que,
segundo os autores, “[...] constrói uma aparente zona nebulosa sobre do que realmente
se trata: uma forma moderna de como produzir quadrinhos, um gênero destes ou ainda
algo mais?” (RAMOS; FIGUEIRA, 2011). Por isso, para Ramos e Figueira (2011), “há
mais fatores que influenciam na forma de recepção de uma obra do que o próprio
conteúdo em si” (RAMOS; FIGUEIRA, 2011). O uso do termo graphic novel tão
indiscriminadamente, sem a explicação do que significa, acabou gerando a ideia de que
essa forma de publicação se trata de um gênero, ou seja, como se graphic novels fossem
um gênero à parte que nada tem a ver com as histórias em quadrinhos como até então as
conhecíamos.

Segundo Ramos e Figueira (2011), uma das coisas que reforça essa ideia é o fato
de muitas dessas obras tratarem de experiências pessoais ou autobiográficas, algo que é
relativamente novo no campo, o que, em tese, as configuraria como um novo gênero.
Beaty e Weiner (2012), inclusive, comentam a explosão das graphic novels no mercado
das livrarias, chamando-as de um “importante gênero” (BEATY; WEINER, 2012, p.
xvi). Entretanto, discordamos da ideia de que as graphic novels constituem um gênero.
Elas na verdade seriam um suporte editorial, do qual muitos gêneros poderiam fazer
parte. Tentaremos demonstrar, a seguir, porque consideramos as graphic novels como
um suporte editorial e não um gênero.

No livro Graphic Novels: everything you need to know, Gravett (2005) faz um
levantamento das graphic novels essenciais e que todos deveriam ler. O autor explica
que a escolha pelas obras consideradas por ele como indispensáveis, como uma espécie
de “lista básica” para se iniciar nesse universo, se deu a partir da ênfase na história da
obra, no seu conteúdo, por achar que essa é a prioridade das pessoas quando buscam
uma história publicada nesse formato. Para criar essa lista, utilizou alguns critérios: as
obras deveriam ter sido publicadas na língua inglesa, mesmo que possuam outra língua
de origem; terem sido publicadas recentemente e que estivessem ainda disponíveis para
compra e, portanto, fáceis de achar; que fossem histórias originais, entre outros critérios.
120

Entretanto, dois pontos levantados por Gravett (2005) como importantes para a
seleção que faz em seu livro chamam a atenção: o primeiro é de que escolheu apenas
histórias publicadas em formato de livro. O autor justifica esse critério ao dizer que,
apesar de graphic novels poderem existir em partes ainda não compiladas, e até mesmo
em manuscritos não publicados, sua ênfase é na disponibilidade das obras. Em suma,
para que ele considere uma obra como fundamental, ela já deve ter sido publicada em
formato de livro, desconsiderando, mesmo que as nomeie da mesma forma, as demais.
O segundo ponto que se destaca na descrição de Gravett é que ele privilegiou histórias
que tenham começo, meio e fim, no lugar de histórias serializadas que não tenham ou
talvez não venham a ter um final concreto, uma conclusão (GRAVETT, 2005, p. 08/09).

Esses dois critérios utilizados por Gravett (2005) para a seleção das obras que
considera fundamentais demonstram que as graphic novels são enxergadas como um
livro fechado, ou seja, como uma história acabada. Devemos ressaltar que não
entraremos nesse momento no mérito do livro como fetiche, como explicitado
anteriormente. O que queremos demonstrar é que ao considerar obras que tenham sido
publicadas apenas em formato de livro, Gravett reforça a nossa ideia de que graphic
novels, na verdade, constituem um suporte editorial, e não um gênero. O autor deixa
isso claro, mesmo sem intencionar, ao afirmar que o termo novel (“novela”), faz com
que o público espere um certo tipo de formato, com intenções sérias, pensado a partir
das premissas da literatura tradicional, como se graphic novel devesse significar o
equivalente a um trabalho de ficção extenso. Entretanto, ressalta Gravett (2005), muitas
delas não são consideradas ficcionais, e sim pertencem às categorias da não-ficcção:
história, biografia, reportagem, documentário ou educacional. Ou seja, as graphic
novels não se limitam a apenas um gênero, ao mesmo tempo em que não são exatamente
o que se espera de fato de um romance literário; são, sim, seu próprio formato.
(GRAVETT, 2005, p. 08). A concepção de gêneros do discurso de Mikhail Bakhtin
(1997) nos ajudará a entender melhor o porquê de considerarmos as graphic novels
como um suporte editorial e não como um gênero.

Segundo Bakhtin (1997), por mais variedades que contenham, todas as esferas
da atividade humana estão ligadas à utilização da língua. Maior exemplo disso é que o
caráter e os modos de utilização são tão variados quanto as próprias esferas desta
atividade. Nesse sentido, a forma como se utiliza a língua pode ser feita por meio de
enunciados concretos e únicos, sejam eles orais ou escritos, procedidos pelos integrantes
121

de determinada esfera da atividade humana. O enunciado, definido por Bakhtin como a


unidade da comunicação verbal, é o que reflete as condições específicas e as finalidades
de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e estilo verbal, mas
também por sua construção composicional. Esses três elementos elencados por Bakhtin
(1997) – o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional –, todos
caracterizados por determinadas especificidades de uma esfera da comunicação, se
fundem para formatar o enunciado. Qualquer enunciado, afirma o autor, é individual.
Entretanto, cada esfera de utilização da língua desenvolve seus “tipos relativamente
estáveis” de enunciados, que são então definidos por Bakhtin como os “gêneros do
discurso” (BAKHTIN, 1997, p. 277).

Levando-se em consideração todos esses pressupostos, Bakhtin (1997) ressalta


que a variedade dos gêneros do discurso é infinita, visto que a variedade da atividade
humana também o é. Desse modo, cada uma das esferas da atividade humana possui um
repertório de gêneros do discurso que modifica-se e amplia-se na medida em que essa
própria esfera se desenvolve e se complexifica. Os gêneros do discurso, sejam orais ou
escritos, são em sua essência extremamente heterogêneos e é por isso que é tão
complicado definir o caráter genérico de um enunciado. Por conta da grande
heterogeneidade de gêneros do discurso, o autor estabelece uma classificação para
dividi-los em dois tipos: os gêneros primários e os gêneros secundários.

Os gêneros primários são aqueles caracterizados como os mais simples, isto é, as


situações comunicacionais mais espontâneas, informais e cotidianas. Já os gêneros
secundários são mais complexos ao se estabelecerem, normalmente, por meio da escrita
em situações comunicacionais mais complexas e sofisticadas, como o romance e o
teatro, por exemplo. Entretanto, Bakhtin (1997) ressalta que tanto os gêneros primários
quanto os secundários são constituídos por fenômenos da mesma natureza, no caso os
enunciados verbais. O que os diferencia, portanto, é o seu nível de complexidade. Nas
palavras de Bakhtin,

Os gênero secundários do discurso – o romance, o teatro, discurso


científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstâncias de
uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais
evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica.
Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários
absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as
122

espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação


verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes
dos gêneros secundários, transformam-se dentro deles e adquirem uma
característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade
dos enunciados alheios – por exemplo, inseridas no romance, a réplica
do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu
significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do romance, só se
integram à realidade existente através do romance considerado como
um todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida
literário-artística e não da vida cotidiana. (BAKHTIN, 1997, p. 281)

Segundo Bakhtin (1997), os gêneros sofrem modificações dependendo do


contexto histórico em que se encontram, ou seja, cada situação social origina um gênero
que possui características específicas de tal momento histórico, aos quais correspondem
determinado estilo. O estilo está, segundo o autor, diretamente ligado ao enunciado e às
formas típicas dos gêneros do discurso. O enunciado, em qualquer esfera da
comunicação verbal, é individual e, por isso, pode refletir a individualidade de quem o
produz; o enunciado possui, portanto, um estilo individual. Entretanto, nem todos os
gêneros estão aptos a refletir a individualidade. Por isso, a variedade de gêneros do
discurso pode revelar, ao mesmo tempo, a variedade das características da
personalidade individual, ao passo que o estilo individual pode relacionar-se de modos
diferentes com a língua comum. Além disso, “[...] o estilo linguístico ou funcional nada
mais é senão o estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da
comunicação humana.” (BAKHTIN, 1997, p. 283)

Assim, cada esfera da atividade humana conhece, levando em consideração suas


especificidades e estilos correspondentes, seus próprios gêneros. Dependendo da função
– seja ela científica, técnica ou cotidiana – e das condições específicas de cada uma das
esferas da comunicação verbal, determinado gênero é criado. Considerando que existe
uma infinidade de situações comunicativas possíveis graças à utilização da língua, então
os gêneros também se constituem como infinitos. Bakhtin, desse modo, faz uma relação
direta entre a formação de novos gêneros e o aparecimento de novas esferas da atividade
humana que contem em si finalidades discursivas específicas: quando ocorrem
mudanças históricas dos estilos da língua, ao mesmo tempo ocorrem mudanças nos
gêneros do discurso. Em suma, os gêneros do discurso refletem toda e qualquer
mudança na vida social (BAKHTIN, 1997, p. 285).
123

Nos parece que, na definição de Bakhtin (1997), o campo dos quadrinhos se


constituiria como um gênero do discurso secundário, ao passo que os diferentes gêneros
contidos em uma obra – aventura, super-heróis, autobiografia, etc., - seriam os gêneros
primários. Uma outra forma de se enxergar essa premissa seria a partir da noção
utilizada por Paulo Ramos (2009b) – que será melhor explicitado no decorrer da
pesquisa – que, baseando-se na ideia de “hipergênero” de Dominique Maingueneau,
estabelece os quadrinhos como um “hipergênero” que contém dentro de si uma
variedade de gêneros.

E é por isso que defendemos que graphic novels não constituem-se como um
gênero. Isso, porque, acreditamos, a única coisa que diferentes publicações que recebem
essa alcunha têm em comum é o formato em que são produzidas e posteriormente
impressas, ou seja, em formato de livro. Por exemplo: se levarmos em consideração os
postulados de Bakhtin (1997), as graphic novels não sofrem modificações de acordo
com o contexto histórico, refletindo as mudanças na vida social; o que se modifica são
os gêneros que nela se apresentam. Assim como coloca Bakhtin (1997), reforçado pelo
que foi proposto por Gravett (2005), as graphic novels podem conter uma infinidade de
gêneros diferentes. O fato de mais de uma obra ser designada como tal não faz de todas
as outras obras que recebem essa denominação como pertencentes ao mesmo gênero.
Seria o mesmo que dizer que uma revista em quadrinhos de super-heróis e outra de
terror fazem parte do gênero “revista em quadrinhos” simplesmente por terem sido
publicadas por meio do mesmo suporte editorial.

Adotaremos uma outra perspectiva para tentar demonstrar o porquê de as


graphic novels constituírem um suporte editorial. Para tal, utilizaremos os relatos de
quatro dos grandes “romancistas gráficos” da atualidade: Charles Burns, Daniel Clowes,
Seth e Chris Ware, todos reconhecidos no campo dos quadrinhos e fora deles, com
obras aclamadas pelo público e pela crítica. No painel Graphic Novel Forms Today,
realizado dentro da conferência Comics: Philosophy and Practice, que aconteceu em
2012 na Universidade de Chicago, os quatro foram chamados para falar sobre seus
trabalhos. Hilary Chute, moderadora da conversa, pergunta aos quadrinistas o que eles
acham do formato livro – este o formato utilizado na edição de suas obras, chamadas de
graphic novels. Os quatro artistas responderam à pergunta.
124

Para Seth, o que o formato de livro permite, como nenhum outro, é que a história
pode ser desenvolvida pelo autor, e em consequência lida pelo consumidor, sem
nenhuma pressa. Além disso, o formato permite uma série de ousadias em relação ao
estilo, como inserir uma fotografia no meio da narrativa, por exemplo. Para Seth, o livro
possibilitou o uso desse tipo de ferramenta, além de dar maior liberdade ao quadrinista
quanto ao tamanho da obra que pretende criar e a forma que ela será apresentada.
“Então, sim, é bastante excitante poder trabalhar com livros. [...] Começando nos anos
1980 e depois seguindo em frente eu acho que mais quadrinistas começaram a entender
que a situação não se resume a ‘eu preciso terminar essa história e preciso que alguém a
enfie em algum livro’” (SETH in CHUTE; JAGODA, 2014, p. 156, tradução nossa)18.

Daniel Clowes, quando perguntado do porquê de não enveredar pelo universo


dos web comics, respondeu que seu processo criativo se assemelha muito ao de uma
escultura: quando começa, não pensa como vai funcionar ou como vai ficar o
quadrinho, mas que depois de um tempo o que ele quer fazer começa a cristalizar em
sua mente. Quando isso acontece, já começa a imaginar o objeto final como algo
palpável, o que o web comic não permite. “Por isso que não sou atraído pelo formato,
porque quero ver o livro e senti-lo. Isso é o que espero, a caixa da gráfica.” (CLOWES
in CHUTE; JAGODA, 2014, p. 153, tradução nossa)19 Além disso, Clowes afirma que
tinha aquela sensação de que nunca seria possível fazer quadrinhos em um tamanho
diferente. Agora, com o livro, é possível. Nesse sentido, quando perguntado sobre
Wilson, um de seus livros, Clowes respondeu:

Aquele livro em particular tem um certo sentimento de ser à prova de


balas. Você meio que sente que ele ainda estará por aí quando chegar
a próxima era do gelo. Esse será como o único livro que sobrou
porque recebeu uns 5 centímetros de capa dura. É como se você se
sentisse protegido, e você quer que ele tenha, sabe, uma concha que o
permita permanecer no mundo (CLOWES in CHUTE; JAGODA,
2014, p. 154, tradução nossa)20.

18
So, yes, it is axciting to be able to work with books. [...] But starting in the 1980s and then moving on I
think more cartoonists have started to understand the situation is not simply, “I need to finish this story
and have somebody stick it into a book.”
19
That’s why I’m not excited about that format,” because I want to see that book and feel it. That’s the
thing I’m waiting to get, that box form the printer.
20
That book in particular has a certain bulletproof quality. You just feel, like, this is going to be around
when the next ice age hits. This will be like the one book that survived because it’s [got] the two-inch-
125

Charles Burns, autor de Black Hole, ao ser questionado sobre a possibilidade de


algo se perder quando a obra é publicada em formato de livro, responde que esse não foi
o seu caso. Para ele, a obra foi lançada em uma época em que um número grande de
graphic novels foi publicado e, por isso, o termo já havia sido absorvido e entendido
pelo público em geral. Mas, segundo Burns, lançar sua obra como uma graphic novel
“[...] não foi uma decisão consciente da minha parte. É como se eu quisesse contar uma
história mais longa e aí saiu naquele formato (BURNS in CHUTE; JAGODA, 2014, p.
155, tradução nossa)21. Já para Chris Ware, “[...], os livros são a metáfora perfeita para
uma pessoa: eles têm uma espinha dorsal e são maiores por dentro do que são por fora,
assim como nós somos. Além disso eles também podem mentir pra você” (WARE in
CHUTE; JAGODA, 2014, p. 155, tradução nossa)22.

As falas desses quadrinistas demonstram, de certa forma, que os próprios autores


consideram as graphic novels como um suporte editorial. Nenhum deles, em nenhuma
das falas, afirma ter inventado um novo gênero ou nada parecido, nem mesmo que eles
são os novos representantes de um gênero que há pouco havia sido inventado. Relatam
apenas que realizam as suas histórias de uma vez só, e não serializadas, que a edição em
formato de livro, e não de revista, permite a eles possibilidades criativas que outros
suportes não permitem. Para eles, é preferível demorar anos realizando um trabalho que
será lançado em apenas um volume do que lançar a mesma história publicada em partes.
Na fala desses artistas, o livro é quase um fetiche; um desejo alcançado; um sonho
realizado. Afinal, ir à estante e pegar um livro seu, com seu nome escrito, deve ser de
fato uma sensação incrível.

Assim, cremos, as graphic novels não constituem um gênero, mas sim um


suporte editorial, e o seu formato é semelhante ao do livro. As graphic novels, na
verdade, criaram e ajudaram a popularizar alguns gêneros, como a biografia, a
autobiografia, o jornalismo em quadrinhos, entre outros, que, até a explosão desse novo
tipo de suporte, não haviam sido possíveis porque os demais formatos limitavam o
processo criativo. Entretanto, se pararmos para pensar, nada impede um autor de lançar
uma autobiografia em vários volumes ou a cobertura de um conflito em formato de

thick cardboard on the cover. It is like you protective, and you want it to have, you know, a shell that can
allow it to preceed in the world.
21
[…]it wasn’t a conscious decision on my part. It is like I wanted to tell a longer story and it came out in
that format.
22
[…] books, they are a perfect metaphor for a person: they have a spine and they are bigger on the
inside than they are on the outside, just like we are. Plus they can also lie to you
126

jornalismo em quadrinhos ser publicada mensalmente. Sabemos, é claro, que o processo


criativo desses gêneros que se desenvolveram graças a popularização das graphic novels
demanda muito tempo, mas nem por isso estão necessariamente presos ao formato,
assim como outros gêneros mais tradicionais do campo das histórias em quadrinhos,
como os quadrinhos de super-heróis, os policiais, de aventura, etc, não estão limitados
ao suporte da revista, ou mesmo as tiras não estão limitadas aos jornais.

Um exemplo disso é a história Terapia, de Mario Cau, Rob Gordon e Marina


Kurcis (2017). Lançada originalmente como um webcomic, fez tanto sucesso entre o
público leitor que acabou ganhando uma versão impressa em 2013, conseguida graças
ao financiamento coletivo. A obra, que narra a história de um garoto que, apesar da vida
normal, não consegue alcançar a felicidade e, por isso, recorre à terapia para explorar
suas inseguranças, transitou com facilidade entre o suporte digital e o impresso, não
perdendo a qualidade e nem mesmo as características do gênero que o constitui. O que
queremos dizer é que, no final das contas, os gêneros podem, sim, transitar entre os
diferentes suportes editoriais, o que não quer dizer que um suporte editorial constitua
um gênero.
127

Figura 18 – Extrato do segundo volume de Terapia, disponibilizado na internet. O primeiro


volume ganhou versão impressa pela editora Novo Século.

Fonte: Cau, Gordon e Kurcis (2017, p. 162)

Para Ramos e Figueira (2011), inclusive, as graphic novels funcionariam como


uma espécie de “etiqueta” que definiria o conteúdo da obra:

Seguindo essa linha de raciocínio, evidencia-se uma separação entre o


conteúdo e as características de composição e estilo do formato onde a
história circula. O molde editorial pode ser por meio de uma revista ou
de um livro, sendo este chamado álbum, graphic novel ou mesmo
livro. Se o suporte for virtual, muda-se o modo de leitura, mas não
necessariamente o gênero. Vê-se, então, que a graphic novel funciona
como uma espécie de etiqueta sobre aspectos do conteúdo, mais
maduro e direcionado a um leitor adulto e supostamente apreciador de
livros. Esse rótulo, muitas vezes traduzido como romance gráfico,
funciona como uma capa, que ofusca as reais características do gênero
apresentado. (RAMOS; FIGUEIRA, 2011)

Entretanto, nossa discussão aqui não se resume só a uma crítica às graphic


novels. É preciso, é claro, valorizar o que elas trouxeram ao meio. O conjunto de obras
128

lançadas nas últimas décadas, consequência do início do processo de valorização das


histórias em quadrinhos, ainda na década de 1960, passando por Maus, de Art
Spiegelman, demonstra o avanço qualitativo do meio, inclusive no mercado
mainstream. As graphic novels deram espaço para que os artistas explorassem novas
temáticas e propostas que antes seriam inimagináveis. Tal foi a mudança que surgiram
trabalhos que anteriormente jamais poderiam ter sido pensados em formato de
quadrinhos, acabando com a ideia de que os quadrinhos são um campo com uma
linguagem limitada, trazendo ao público desde as (auto)biografias até a cobertura de
guerras e conflitos. Com suas raízes no underground, e impulsionados pela nova visão
positiva trazida da Europa, os quadrinhos alternativos atingiram um grau de qualidade
altíssimo. Até mesmo os gêneros mais tradicionais, como os super-heróis, ganharam
uma nova faceta, revitalizando suas histórias e desenhos. Nesse sentido, apesar das
ressalvas quanto à hiper valorização do termo é possível dizer que as graphic novels
vieram a

[...] influir positivamente no ambiente dos quadrinhos no mundo


inteiro, predispondo leitores e críticos não só a uma nova forma de
publicação de histórias em quadrinhos, mas, também, a uma nova
formulação artística para o gênero. Tratava-se de uma nova maneira
de viabilizar e disseminar os quadrinhos [..] (VERGUEIRO, 2009, p.
26).

Figuras 19 e 20: Epiléptico, de David B. e Black Hole, de Charles Burns, histórias que se
privilegiaram e que talvez não fossem possíveis sem o novo suporte.

Fonte: B. (2007); Burns (2008)


129

Inclusive, lembra Vergueiro (2007), não há dúvidas de que as histórias em


quadrinhos, nas últimas décadas, tiveram que passar por muitas transformações para que
se adaptassem à nova realidade do mundo ocidental. Com o desenvolvimento de outras
tecnologias da informação e da comunicação, surgiu uma grande concorrência entre os
meios de comunicação de massa que se desenvolveram no século XX, especialmente
com a televisão; nessa briga, as histórias em quadrinhos quase sempre saíram
perdedoras. Entretanto, essa concorrência forçou a indústria produtora dos quadrinhos a
buscar alternativas que pudessem fazer frente a essa nova concorrência, o que levou à
diversificação de seus produtos e, consequentemente, de seu público (VERGUEIRO,
2007, p. 01). Com o novo entendimento do papel dos quadrinhos na sociedade,
inclusive pela diminuição do preconceito relacionado ao meio e a visão de que eram
voltados apenas para o público infanto-juvenil, o campo passou por grandes e
necessárias transformações, e as graphics novels são parte fundamental desse processo.

Assim, por mais que discordemos da valorização deste suporte em detrimento


dos demais, como se só ele fosse digno de ser aceito social e culturalmente, é inegável a
importância dele para o processo de legitimação cultural dos quadrinhos. Após a
invasão do mangá no mercado ocidental e o alcance de Maus, de Art Spiegelman, a
produção das graphic novels se intensificou, o que levou as editoras a disponibilizar
obras criadas especialmente para o novo formato, surgindo assim quadrinhos que, mais
tarde, se mostrariam de capital importância na revitalização do meio. Vergueiro resume
bem essa situação ao afirmar que

A nova denominação ajudou a abrir as portas de outros espaços de


comercialização e exposição para as produções quadrinísticas,
elevando-as a um novo patamar no espectro das criações artísticas no
último quarto do século 20 e início do século 21. Mais que isso: como
formato de produção, as graphic novels tornaram possível quebrar a
barreira entre os quadrinhos industrializados e os alternativos, criando
condições para um mercado diferenciado, em que a qualidade
artística, o aprofundamento psicológico, a ousadia do design e a
complexidade temática passaram a ter seu valor melhor equacionado.
Pode-se dizer que, a partir delas, as histórias em quadrinhos e
firmaram como 9a arte ou como Arte Sequencial (VERGUEIRO,
2009, p. 27-28).
130

Assim, mesmo pensando-as criticamente, as graphic novels permitiram um novo


olhar sobre as histórias em quadrinhos, mas a o processo de valorização não pode se ater
apenas a elas. Entender os quadrinhos como um produto cultural valorizado e legítimo
não pode ser limitado apenas por um suporte editorial; esse processo deve abarcar todo
o meio. Um dos problemas que levantamos, inclusive, é que não é só o uso da expressão
que cria a distinção valorativa das graphic novels, mas também a relação de seu
conteúdo com elementos literários ou artísticos, ou seja, a adjetivação das obras como
“artísticas” ou “literárias”, considerando que os campos das artes plásticas e da
literatura são campos legitimados, legitimando assim, em consequência, esse formato
em detrimento dos outros suportes.

Um exemplo disso está no termo usado por Ben Schwartz (2010) para se referir
às graphic novels, designando-as de lit comics, ou seja, “literary comics”, o que
significa, em tradução livre, “quadrinhos literários”. Mais especificamente, ele chama
de lit comics os quadrinhos do período coberto entre o ano 2000 até 2008,
especialmente com o lançamento, pela editora Pantheon, de Jimmy Corrigan, de Chris
Ware e David Boring, de Daniel Clowes. A partir desse momento, afirma o autor, os
“quadrinhos literários” expandiram nos quesitos distribuição, acesso, e interesse do
público. Para ele, Jimmy Corrigan, de Ware, foi fundamental para a inserção dos
quadrinhos e de seus artistas nos círculos literários. Os lit comics, segundo o autor,
foram profundamente formatados por Maus de Spiegelman e, por conta disso,
permitiram aos quadrinhos sair das margens e ganharem cada vez mais público. Os
quadrinhos mainstream, em contrapartida, foram irrelevantes para a expansão desse
novo tipo de quadrinhos, pois nos anos 2000 os lit comics representavam um luxo no
mercado, uma espécie de especialidade dentro da especialidade no mundo dos
quadrinhos (SCHWARTZ, 2010, p. 12). Após os anos 2000, encontraram um caminho
próprio a partir de um novo sistema de distribuição, estimulado principalmente pela
criação/renovação de editoras voltadas a esse tipo de história em quadrinhos, de que já
falamos anteriormente.

Por conta disso, acredita Schwartz (2010), os quadrinhos literários, como insiste
em chamá-los, fincaram raízes na cultura norte-americana. Para o autor, um exemplo
disso é a revista The New Yorker. Isso, porque a revista, que tradicionalmente publica
toda semana a lista de quadrinhos de super-herói mais vendidas, abraçou essa nova
estética do lit comics e convida, com frequência, seus artistas para ilustrar suas capas,
131

com os destaques Ware e Clowes, além de Spiegelman, Burns, entre outros, que
também publicam seus quadrinhos em algumas edições. O jornal The New York Times,
em consonância, publica textos de Marjane Satrapi, Allison Bechdel, Chris Ware e
Gilbert Hernandez.

Mais uma vez, entendemos a relevância das graphic novels e dos quadrinhos
alternativos para o processo de legitimação cultural dos quadrinhos. Mas, afinal, por que
chamá-los de “quadrinhos literários”? Podemos não concordar plenamente com as
questões envolvidas no termo graphic novel, como tentamos esclarecer anteriormente,
mas por que a insistência de Shwartz (2010) de chamar esses quadrinhos recentes de
“literários”, como se o termo pudesse, melhor do que “novela gráfica”, revelar a
importância e o valor destas obras e do movimento alternativo para o campo dos
quadrinhos? Por que ainda é preciso, por parte de alguns, adjetivar os quadrinhos com
termos provenientes de outras mídias para que eles sejam considerados de qualidade?
Até mesmo Will Eisner utiliza a ideia de que as graphic novels constituem-se como
literatura ao estabelecer que

O aumento e estabelecimento desse notável meio de leitura que são as


histórias em quadrinhos vêm ocorrendo ao longo de sessenta anos.
Das compilações das tiras publicadas nos jornais, o material das
histórias em quadrinhos não demorou em evoluir para histórias
maiores, até chegar às graphic novels. Esta última variante pesou
muito sobre os desenhistas e roteiristas, exigindo deles uma maior
sofisticação literária (EISNER, 2009, p. 03, tradução nossa23).

O problema, como tentamos demonstrar, é que a associação direta das histórias


em quadrinhos como um produto culturalmente valorizado está profundamente ligada
aos quadrinhos alternativos, que está completamente atrelado ao suporte graphic novel,
que está ligado ao formato do livro e este último, em consequência, relaciona-se com
um outro campo: a literatura. Se há algumas décadas as histórias em quadrinhos eram
consideradas como uma “subliteratura” - como nos lembra Moacy Cirne (1970, p. 01) -,

23
aumento y asentamiento de este notable medio de lectura em el formato de comic books vienen
ocurriendo desde hace sesenta años. A raíz de la reconpilación de las tiras de prensa publicadas em los
periódicos, el material del comic book no tardó em evolucionar hacia historias largas, hasta llegar a las
novelas gráficas. Esta última variante há pesado mucho sobre el dibujante y el guionista, exigiéndoles
una mayor sofisticación literaria.
132

abaixo do nível de excelência da leitura de qualidade, hoje a palavra “literatura” é usada


como adjetivo para designar obras de quadrinhos entendidas por alguns críticos e
publicações como tendo um “alto grau de excelência”. Um quadrinho não pode ser bom
sendo apenas um quadrinho; para ser bom, ele precisa carregar consigo alguma
característica, alguma nota, um leve rastro que seja de um campo que já seja legítimo,
que já seja reconhecido. Afinal, reconhecer os quadrinhos por si só seria um erro;
reconhecer uma obra em quadrinhos como “literária”, “artística” e algumas vezes até
como “cinematográfica”, isso sim é dizer que a coisa é boa.

Entretanto, o campo dos quadrinhos nada tem a ver com o campo literário. Se,
como afirma Paulo Ramos (2009b), os quadrinhos configuram-se como um
“hipergênero”, que possui dentro dele vários gêneros que podem ser veiculados em
diferentes suportes editoriais e formatos, como revistas, jornais, livros e internet, então
entendemos os quadrinhos como uma linguagem específica que pode conter diferentes
temas e estilos. No fim das contas, portanto, os quadrinhos constituiriam um campo de
produção cultural próprio.
133

3 RECONHECENDO O CAMPO DOS QUADRINHOS: A CONSOLIDAÇÃO


DO PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO CULTURAL

Esse processo de legitimação que busca a afirmação de um produto como


culturalmente valorizado e que vem tomando forma e se desenvolvendo nos últimos
anos não é uma exclusividade do campo dos quadrinhos; outros produtos nascidos
dentro da cultura de massa também passaram por esse mesmo processo e conseguiram,
anos antes dos quadrinhos, consolidar seu espaço. O cinema talvez constitua o melhor
exemplo.

Segundo Russel Nye (1987), já nos primeiros anos de sua popularização, a


indústria cinematográfica sabia e se vendia como um entretenimento de massa voltado
para uma audiência específica, não pretendendo nada além disso. Seus agentes
entendiam, desde o início, que um filme era um empreendimento comercial, e não arte.
Por isso, mesmo que fosse desejável que bons filmes fossem produzidos, era mais
essencial ainda fazer filmes que fossem rentáveis. Os pioneiros desse novo meio sabiam
que eles tinham que agradar o maior número de pessoas possível dando a elas o que elas
queriam ver. Afinal, Hollywood era um negócio e nenhuma de suas figuras de
autoridade pretendia o contrário. Nye (1987) afirma que a indústria entendeu, já na
década de 1920, que o melhor que podiam fazer era tentar refletir o mais diretamente
possível os interesses, valores, desejos e ilusões de seus consumidores.

Entretanto, mesmo trabalhando com todas essas restrições e normas impostas


pelo mercado, foram muitos os diretores e roteiristas que exploraram novas ideias e
técnicas com muita imaginação e habilidade, seguidos assim pelos atores e produtores.
O ponto decisivo parece ser que o cinema entendeu que essas limitações não
significavam que o que era produzido não valia a pena ser feito, que seria esteticamente
feio ou pessoalmente insatisfatório. Significava apenas que seu idealizador precisava
desenvolver sua obra fazendo uso de habilidades especializadas que dessem conta dessa
forma de produção que, no final das contas, visa o lucro. Afinal, como nos lembra
Russel Nye (1987), agradar uma grande audiência, como o faz qualquer artista parte da
cultura de massa, envolve tanta habilidade quanto o artista que trabalha para uma
audiência menor e “sofisticada”.
134

É claro que houve os críticos, assim como em todas as outras produções da


cultura de massa, que consideraram o cinema como uma “escola para criminosos”, ou
uma “forma de entretenimento ordinária para pessoas ordinárias” (NYE, 1987, p. 373).
No entanto, o reconhecimento do cinema como uma forma de arte influente,
independentemente de sua produção originalmente massiva, inevitavelmente ocorreu.
Como consequência, o cinema recebeu o prestígio de uma forma de arte não menos
importante que as mais antigas e tradicionais, ao mesmo tempo em que sua essência de
arte popular de verdade, criada para as massas e muitas vezes por elas, como um objeto
cultural autenticamente democrático, foi mantida. O cinema, assim, feito para o
consumo e para o lucro, tornou-se a chamada “Sétima Arte” e muitas de suas produções
ganharam o status de “obras de arte” e “cult”, firmando-se como uma das maiores
influências culturais do mundo ocidental e objeto de verdadeira veneração.

Entretanto, essa valorização do cinema só se deu porque seus agentes


entenderam que seu produto e seu público são específicos, que possuem suas próprias
normas e peculiaridades. Exemplo disso é que a atuação no cinema, que no início se
aproximava da atuação teatral, se distanciou desta e criou seu próprio estilo. Os
roteiristas, seguindo a mesma linha, entenderam que um roteiro de um filme deveria ser
pensado levando-se em consideração as peculiaridades que envolviam o novo meio,
como o uso da câmera e as técnicas de corte, montagem, edição, etc., afastando-se,
também, das premissas dos roteiros teatrais (NYE, 1987, p. 382). Quando os atores,
roteiristas, diretores e produtores compreenderam que o cinema não é teatro filmado,
assim como não é apenas uma sequência de imagens e fotografias em movimento, e
passaram a produzir de acordo com suas regras e fazendo uso das técnicas que lhe são
típicas e essenciais, o cinema pôde se reinventar e continuar se reinventando. Em outras
palavras, é com o reconhecimento do campo cinematográfico que o mesmo pôde se
firmar e se afirmar. Com isso, ao mesmo tempo em que continuam desenvolvendo
produtos que agradam ao público mais geral, também produzem obras que conversam
com um público mais crítico e exigente. Como consequência de sua especialização e
autonomização, permitem que em um mesmo espaço seja passado o maior dos
blockbusters e o mais complexo dos filmes de arte europeu.

É por isso que durante toda a pesquisa, insistimos no termo “campo” para nos
referirmos às histórias em quadrinhos. Essa escolha não foi em vão. Para tentar
demonstrar que os quadrinhos passaram por um processo de legitimação cultural que os
135

tirou do estigma de “subcultura”, era preciso entendê-los e referir-nos a eles como um


meio próprio, ou seja, como uma mídia específica que alcançou essa valorização em
relação às outras mídias por configurar-se como o seu próprio meio, lutando por sua
autonomia e valor frente aos críticos que os desconsideravam como um produto cultural
relevante, assim como o fez o cinema. Para que possamos demonstrar que existe um
campo específico, iniciaremos com algumas teorias que definem o que compõe os
quadrinhos.

3.1 Do que são feitos os quadrinhos

Para Antonio Luiz Cagnin (2014), a imagem seria o elemento característico das
histórias em quadrinhos que as distingue de qualquer outra manifestação da imagem ou
das narrativas. Entretanto, para o mestre, ela não havia recebido, até então, o tratamento
adequado quando se fala de suas potencialidades. Enquanto muitos se preocupavam em
estudar seus aspectos históricos, pictóricos, de cultura de massa, de seus personagens,
autores, gênero e estilos, a imagem, o que faz de uma história em quadrinhos uma
história em quadrinhos, tinha sido até então completamente esquecida. Por conta disso,
o que Cagnin (2014) pretendia em sua dissertação, originalmente elaborada em 1974 –
que mais tarde se transformaria em um dos mais importantes livros já lançados no
Brasil sobre a linguagem dos quadrinhos -, era fazer uma análise de maneira a
determinar as funções do sistema narrativo e do sistema de signos linguísticos que
compõem o “sistema iconográfico dos quadrinhos”. Isso, porque “a maior
complexidade da imagem em relação à palavra e das imagens justapostas em sequências
deve levar a estudos mais objetivos e profundos, que por sua vez, esclarecerão certos
aspectos psicológicos e sociológicos sugeridos pela imagem” (CAGNIN, 2014, p. 15).

Na apresentação à edição de 2014 de Os Quadrinhos, André Campos de


Carvalho afirma que o grande objetivo de Cagnin no livro era o de fazer a interpretação
semiótica dos signos que constituem os quadrinhos como uma forma híbrida que une
imagem e texto, sendo que um elemento sempre acaba contaminando o outro
(CARVALHO, 2014, p. 10). Entretanto, para Cagnin (2014) o código icônico, a
imagem, deve possuir predominância sobre o código linguístico para que uma narrativa
136

possa ser de fato considerada gráfica, ou seja, para que ela possa ser considerada uma
história em quadrinhos. Para o pesquisador, se uma história trouxer o texto como
elemento mais relevante, sem que haja a necessidade da imagem, então estaríamos
falando apenas de uma história ilustrada. A imagem, assim

[...] não é aquilo que representa; não tem a transparência da palavra


nem a opacidade do objeto; o meio do caminho do real e do
imaginário, do documento e da ficção, ela fascina e também
amedronta. Com a palavra, ou antes dela, a imagem acompanhou o
homem em todas as suas necessidades, para se comunicar, para
ensinar, para criticar os erros, para elevar, para destruir (CAGNIN,
2015, p. 14).

O problema é que, por muito tempo, existiu a sobrevalorização do texto em


detrimento da imagem, na medida em que o primeiro assumia a ideia de uma narrativa,
ao invés de ficar onde era o seu lugar, o de apenas acompanhar a imagem. Entretanto, as
imagens, e especialmente os desenhos, ao longo do tempo, tomaram para si a tarefa de
narrar. Assim, de acordo com Cagnin (2014, p. 30) as histórias em quadrinhos são a
manifestação principal desse código e o que basicamente define sua essência.

Os quadrinhos podem, então, ser estudados sob todos os aspectos e formas. Para
o autor, eles podem ser lidos a partir de uma variedade de perspectivas, como a literária,
a histórica, a psicológica, a sociológica, entre outras; podem surgir em várias tipologias,
como a ficção científica, as sátiras e as aventuras; possuem, em sua constituição, a
imagem e o texto, o segundo podendo ser apresentado na forma de balão, legenda e
onomatopeia. Nesse sentido, as histórias em quadrinhos se diferenciariam dos demais
campos pela maneira como encontram formas de representação para reproduzir em suas
páginas o som e o movimento: as onomatopeias, o neologismo e a ação agindo como
verbo, que sugerem o movimento na história (CARVALHO, 2014, p. 10), o que faz dos
quadrinhos uma linguagem única.

Além de tudo isso, existem casos em que uma história em quadrinhos


simplesmente não contem texto, a não ser pelo título; são as histórias mudas, conhecidas
como sans parole (CAGNIN, 2014, p. 34). Para Cagnin, inclusive, estas últimas seriam
a verdadeira história em quadrinhos, ou seja, as histórias que garantem aos quadrinhos o
137

nome de “arte sequencial” (CAGNIN, 2017, p. 29), uma vez que só apresentam o
código icônico sem se valerem de qualquer outro, representando os momentos mais
significativos da história por meio dos gestos e ações dos personagens para conceber o
movimento na sequência dos quadros. “Conclui-se, então, que o texto não é essencial à
história em quadrinhos, assim como o romance escrito não exige forçosamente que seja
ilustrado com imagens. Os gestos das figuras, as expressões do rosto revelam a ação
substituindo, com vantagem, balões e legendas” (CAGNIN, 2014, p. 35).

Para o semiólogo italiano Daniele Barbieri (1998), no livro Los lenguages del
cómic, os quadrinhos são uma linguagem. Entretanto, o pesquisador não entende o
termo “linguagens” como apenas os instrumentos que utilizamos para nos
comunicarmos, e sim que as linguagens também são ambientes em que vivemos e que
determinam fortemente o que queremos, mais além daquilo que apenas usamos para que
possamos nos comunicar. Esses ambientes, ademais, não constituem universos
separados, mas, isso sim, representam dentro deles inúmeros aspectos do ambiente geral
da comunicação e, por isso, estão interconectados e em intensa e recíproca interação.

A linguagem para Barbieri (1998), nessa perspectiva, não é usada apenas para
expressar, mas também para criar ideias. Para o autor, todas as ideias nascem de uma
linguagem e, por isso, não é apenas um instrumento para disseminar ideias, mas um
espaço em que nos encontramos e no qual formamos tais ideias; por conta disso, as
características da linguagem têm efeito sobre nossos pensamentos. Habitar uma
linguagem, dessa maneira, significa estar dentro dela, aproveitar todas as possibilidades
que ela contém, assim como observar seus limites. Além disso, dizer que uma
linguagem constituiu-se como um ambiente significa dizer que esta usufrui de certa
autonomia quando em relação a outras linguagens. Isso, porque quando nos
identificamos com uma linguagem e escolhemos fazer uso da mesma, tornamo-la a
ferramenta que constitui nosso universo e que determina nossos limites. Isso não quer
dizer que, escolhendo determinada linguagem, as outras automaticamente deixem de
existir. Quer dizer apenas que se escolhemos e temos preferência por uma, as outras não
são vistas com tanta proximidade (BARBIERI, 1998, p. 13).

É certo também, afirma Barbieri (1998), que podemos ficar em situações dúbias,
incertas dentro do espectro da comunicação. Pode-se pensar, inclusive, nessas
“linguagens-ambiente” como um ecossistema: cada um possuiria suas próprias regras e
138

características específicas: ao mesmo tempo em que muitas regras são comuns a muitos
dos outros ecossistemas e a todos os outros, existem também zonas intermediárias e de
fronteiras entre dois ou mais ecossistemas diferentes, zonas nas quais se pode agir de
acordo com a regra de todos os campos envolvidos. Barbieri (1998) ainda continua e diz
que, assim como os ecossistemas são parte da natureza, também as linguagens são parte
da comunicação em geral. Por isso, não devemos pensá-las sempre como áreas
separadas e independentes, mas sim que algumas são partes de outras, resultado da
fusão, do que sobrou de uma outra que se extinguiu e, parecendo-se com o que lhe deu
origem, ainda assim se diferenciam. Há outras linguagens que possuem características
em comum, talvez por serem herdeiras da mesma linguagem ancestral e por isso
mantêm certas semelhanças. Por fim, há linguagens que adaptaram para si atributos de
outras, de maneira que podem se utilizar de características que haviam sido constituídas
em outro ambiente que não no próprio (BARBIERI, 1998, p. 13).

Nesse contexto, o objetivo do livro Los linguajes del cómic é fazer a ligação e a
relação entre a linguagem dos quadrinhos com outras linguagens. Para isso, Barbieri
(1998) distingue quatro tipos de relação entre a linguagem dos quadrinhos e as outras
linguagens: a primeira é a inclusão, que quer dizer que uma linguagem faz parte de
outra - no caso dos quadrinhos, eles são uma linguagem que faz parte da linguagem
geral da narrativa, assim como o cinema, por exemplo, e todas as linguagens narrativas
possuem características em comum; em segundo lugar está a geração, ou seja, uma
linguagem é gerada pela outra - os quadrinhos são “filhos” de outras linguagens, como a
ilustração e a caricatura e, por isso, compartilham das características dessas linguagens,
mas ao mesmo tempo são diferentes delas em sua natureza; a terceira é a convergência,
que quer dizer que duas linguagem podem convergir em determinados aspectos, ou seja,
há um certo grau de “parentesco” entre algumas linguagens - os quadrinhos, no caso,
possuem graus de parentesco com certas linguagens das quais eles não descendem
diretamente, mas com as quais possuem antepassados em comum; a quarta, e última,
relação é a adequação, ou seja, uma linguagem que se adéqua a outra - acontece quando
os quadrinhos consideram mais fácil reproduzir em seu interior outra linguagem, a fim
de explorar suas possibilidades expressivas, do que tentar construir possibilidades
expressivas equivalentes. Os quadrinhos, de certa forma, citam outra linguagem não de
maneira literal, mas criando um conjunto de características que pareçam com as da
linguagem citada. (BARBIERI, 1998, 14/15)
139

Barbieri (1998), então, busca descobrir quais as linguagens que envolvem a


linguagem dos quadrinhos. Para tal, não trata apenas dos quadrinhos, mas também como
eles compartilham com outras linguagens as relações por ele expostas. Explorar essa
linguagem por meio de sua comparação e relação com as demais é um modo de
introduzir o discurso da comunicação, utilizando os quadrinhos para falar do discurso
geral da comunicação. Entretanto, o autor ressalta que, no final das contas, apesar de
falar da relação com outras linguagens, o verdadeiro objeto do livro são as
características que compõe os quadrinhos como linguagem. Para o pesquisador,
procurar semelhanças e ligações entre as outras linguagens e as histórias em quadrinhos
permitiria criar diferentes pontos de vista sobre suas características.

Em O sistema dos quadrinhos, o pesquisador belga Thierry Groensteen (2015)


entende a história em quadrinhos como linguagem, ou seja, sua abordagem não é
histórica, sociológica ou econômica, mas sim enxergando os quadrinhos como um “[...]
conjunto original de mecanismos produtores de sentido” (GROENSTEEN, 2015, p. 10).
Por isso, os quadrinhos são entendidos pelo autor como um “sistema” e a razão para
isso é, segundo Groensteen (2015), porque eles são uma combinação especialmente
original de uma ou mais matérias da expressão e de um conjunto de códigos. Para o
autor, então, a questão não é favorecer um dos códigos, mas o de encontrar um caminho
no interior do sistema que permita entendê-lo como um todo e mostrar, assim, sua
coerência. “Em resumo, nos quadrinhos, os códigos são construídos no interior de uma
imagem de forma específica, que mantém a associação da imagem a uma cadeia
narrativa onde as ligações se espalham pelo espaço, em co-presença” (GROENSTEEN,
2015, p. 15).

Para Groensteen (2015), as análises feitas por pesquisadores que o antecederam


lhe mostraram que duas ideias gerais difundidas sobre os quadrinhos deveriam ser
deixadas de lado: a primeira, de que as histórias em quadrinhos devem ter suas unidades
constitutivas decompostas para serem melhor entendidas: para ele, não é abordando-as
em detalhes que esse conhecimento será atingido, e sim ao abordá-las do alto, ao nível
de suas articulações maiores; a segunda é a de que as histórias em quadrinhos seriam,
em sua essência, um misto de texto e imagem. Entretanto, para Groensteen (2015) a
imagem tem a primazia e, por isso, encontrou a necessidade, em sua pesquisa, de
estabelecer uma precedência teórica que designou como “códigos visuais”.
140

Para o autor, a tradição logocêntrica, ao colocar o verbo em uma posição


dominante em relação à imagem, trouxe duas consequências: a língua acabou sendo
tomada como modelo de toda linguagem e a literatura em livro acabou considerada,
quase que em todo o mundo, como o modelo de todas as formas narrativas. Esta última,
acredita o autor, pode vir a tornar-se teoricamente insustentável. Isso, porque o fato de a
literatura ter surgido séculos antes do cinema e dos quadrinhos, não significa dizer que
ela detenha o monopólio ou o privilégio da forma narrativa. Para Groensteen (2015),
desse modo, é preciso tomar cuidado para não confundir gênero narrativo com
literatura, visto que estamos em um momento em que existe uma variedade de mídias
que se utilizam, em maior ou menor grau, de estruturas narrativas. Aqueles, portanto,
que atribuíram nos quadrinhos o mesmo valor ao texto que à imagem são aqueles que
entendem que a escrita é o veículo privilegiado do gênero narrativo. Entretanto,
Groensteen (2015) entende que a multiplicidade de tipos de narrativa torna essa
suposição automaticamente obsoleta (GROENSTEEN, 2015, p. 17).

A insistência de Groensteen (2015) de que a imagem seja reconhecida em


posição dominante no sistema dos quadrinhos não é por ela ser mais importante do que
a escrita, e sim porque a maior parte da produção de sentido de uma história em
quadrinhos se dá por meio da imagem. Por isso, acredita que é por meio da “artrologia”
e da “espaçotopia”, como ele define, que a imagem sequencial torna-se plenamente
narrativa sem precisar, necessariamente, do texto. Ademais, uma característica peculiar,
ligada exatamente a essa primazia da imagem, difere os quadrinhos dos demais
“sistemas”: suas imagens são, ao contrário de outras narrativas que têm a imagem como
um de seus suportes, imóveis e silenciosas, não possuindo, logo, o mesmo poder de
ilusão do cinema, por exemplo. Além disso, sua sequência não produz uma
continuidade que imita o real, dando ao leitor uma narrativa repleta de intervalos que
funcionam como lacunas de sentido. Entretanto, para qualquer leitor de quadrinhos o
caráter fragmentado e descontínuo desses intervalos não mais existe a partir do
momento em que ele está imerso na história.

Contudo, Groensteen defende que é necessário entender e reconhecer que o


único alicerce ontológico dos quadrinhos é a “[...] conexão de uma pluralidade de
imagens solidárias” (GROENSTEEN, 2015, p. 27). Isso quer dizer que o fundamento
básico dos quadrinhos, seu princípio mais central, é o que o autor chama de
“solidariedade icônica”: imagens que fazem parte de uma sequência, mesmo estando
141

apartadas, ao mesmo tempo em que são plásticas e semanticamente sobredeterminadas


pelo fato de coexistirem. Assim, falar de quadrinhos é falar que suas imagens são
diversas e de alguma forma correlacionadas. No entanto, Groensteen (2015) lembra que
as histórias em quadrinhos não se constituem ou se utilizam de métodos ou técnicas
particulares, criados por eles. Ao mesmo tempo, ressalta que quando em sua forma
final, mesmo que com a aparência mais simples possível, são os avatares específicos de
um sistema no qual suas composições e interações constituem uma totalidade inédita,
complexa e única. E é por isso, explica o autor, que ele escolheu como o símbolo de sua
reflexão a ideia de “sistema”, pois ele

[...] define um ideal. Esse sistema dos quadrinhos será um quadro


conceitual onde todas as realizações da “nona arte” podem encontrar
seu lugar e serem pensadas em comparação, ao mesmo tempo nas suas
diferenças e nas semelhanças comuns ao mesmo meio nesse sentido, a
noção de sistema, “conjunto de coisas que se inter-relacionam”
(Littré) promove o conceito fundamental de solidariedade
(GROENSTEEN, 2015, p. 31).

Essa mobilização do código visual, que funciona muitas vezes em


simultaneidade com o código discursivo, é o que faz dos quadrinhos uma linguagem
única e inconfundível; ao usar códigos que a princípio não lhe pertencem, acabam
aplicando-os de uma maneira tão específica que é impossível negar sua eficácia e
especificidade em relação aos demais sistemas. Por isso, buscar a cerne do que são os
quadrinhos é ter a plena certeza de não encontrar uma só resposta, mas uma profusão
delas (GROENSTEEN, 2015, p. 22).

Acima estão expostos, resumidamente, o que três dos grandes estudiosos dos
quadrinhos acreditam que possa definir o que é “história em quadrinhos”. Antonio Luiz
Cagnin, Daniele Barbieri e Thierry Groensteen podem ser de nacionalidades diferentes,
terem feito suas pesquisas por meio de abordagens e metodologias diversas, e até terem
escrito e publicados seus livros em épocas distintas, mas todos possuem uma coisa em
comum: todos eles enxergam os quadrinhos como um meio único, que difere, em
variados níveis, de qualquer outra “linguagem”, “ambiente” ou “sistema”. Os
quadrinhos podem até guardar semelhança com outros campos; podem, até mesmo, ser
142

constituídos por códigos provenientes de outros meios, mas isso não quer dizer que eles
conservem a natureza e a função destes depois de adquirirem sua forma final.

Estes autores já buscaram definir o que constitui os quadrinhos com maestria.


Entretanto, sabemos que, assim como todo e qualquer estudo, estes também são
passíveis de crítica e suscitam debates. Exemplo disso é que para Neil Cohn (2012),
enquanto a linguagem é um comportamento humano, os quadrinhos não o são. Para o
autor, os quadrinhos são um objeto social resultado de dois comportamentos humanos: a
escrita e o desenho. Desse modo, quadrinhos não seriam uma linguagem, como
defendido por Barbieri (1998) e Groensteen (2015), e sim são escritos em uma
linguagem visual, da mesma forma que os romances da literatura são escritos
exclusivamente em forma de texto. Enquanto isso, para Sonia Luyten (1987), as
histórias em quadrinhos são estruturadas por dois códigos de signos gráficos: a
linguagem escrita e a imagem. O fato de terem surgido dessas duas artes aparentemente
distintas, afirma a pesquisadora, não os diminui, muito pelo contrário, pois essa mistura
que deu início a uma nova forma de manifestação cultural é a perfeita representação de
nossa época, em que não existem fronteiras entre os meios artísticos.

Já para David Pascal (apud MUNSON, 2016, p. 11/12) as tiras - mas que
podemos alongar aos quadrinhos em geral - são a junção de diálogo escrito e/ou
narrativa e a ilustração pictórica. Apesar da justaposição desses dois elementos não ser
nada de muito novo – era algo já utilizado pelos egípcios e chineses há milênios -, a
mistura dos dois elementos formando uma estética unida a fim de criar uma expressão
artística única é, sim, algo novo. Assim, mesmo que contenha os elementos da literatura
e das artes visuais, a história em quadrinhos é diferente, verdadeiramente uma forma de
arte e, por isso, deve ser estudada e julgada não a partir dos critérios dessas outras
formas, mas por seus próprios padrões, mesmo que estes ainda precisem de definição e
aperfeiçoamento.

Um último exemplo, se nos for permitido. A sarjeta, para Hillary Chute e Patrick
Jagoda (2014), seria basicamente o que define os quadrinhos como essa forma narrativa
única. Isso, porque os quadrinhos são um meio com uma sintaxe peculiar: entre os seus
elementos básicos estão os quadros, os balões de texto, as caixas de texto e, é claro, a
sarjeta, “[...] o espaço entre os quadros, divide e multiplica o tempo” e “está no cerne do
funcionamento dos quadrinhos [...] É um meio que constrói e organiza o tempo e o
143

espaço da página ao fazer uma montagem de uma série de momentos – transformando


assim [...] tempo em espaço” (CHUTE; JAGODA, 2014, p. 05, tradução nossa)24. A
sarjeta, de certa forma, funciona como uma espaço sem regras, que cabe ao leitor
preencher (ou não) com significado. Por isso os quadrinhos exigem tamanho
envolvimento do leitor, pois é ele, de uma forma ou de outra, que vai gerar o significado
da história. Desse modo, é possível afirmar que os quadrinhos não funcionam como
nenhuma outra mídia: pois a história não se apresenta diretamente e a direção e sentido
a serem tomados dependem do leitor. Os quadrinhos sugerem o movimento e os leitores
é que determinam a movimentação; a leitura dos quadrinhos, portanto, depende dos
diferentes processos de percepção experenciados por cada indivíduo ao olhar o que as
imagens na página propõem; quadrinhos são uma sucessão de vários quadros, ao mesmo
tempo em que são uma composição única (CHUTE; JAGODA, 2014, p. 06), e a sarjeta
tem papel fundamental nesse processo.

Levando em consideração o que foi colocado por todos esses autores, além de
tantos outros, é de vital importância reconhecer o campo dos quadrinhos como
autônomo e próprio, com suas próprias regras e normas, para que o debate do que
constitui os quadrinhos seja possível. Isso porque, acreditamos, é só a partir do
momento em que reconhecemos o campo como único, com suas próprias leis e
peculiaridades, que este debate pode florescer cada dia mais, estabelecendo os
quadrinhos como um objeto culturalmente valorizado e legítimo. Para tal, recorreremos
ao conceito de “campo” de Pierre Bourdieu.

3.2 O campo dos quadrinhos: ele existe e é legítimo

Um campo, segundo Pierre Bourdieu (1992), seria um microcosmo social que


detém certa autonomia, que possui suas próprias leis e normas e que se relaciona e
recebe influência do espaço social mais amplo, ou seja, o macrocosmo. Entretanto,
apesar de possuir suas próprias regras e normas, nenhum campo consegue escapar da
imposição do macrocosmo e, por isso, sua autonomia será maior ou menor dependendo

24
[…] the space in between panels, divides and proliferates time is at the heart of how comics works [...]
It is a medium that builds and organizes the space of the page by assembling a series of moments – thus
turning [...] time in space.
144

dessa influência. O campo é também um espaço de luta entre os agentes que dele fazem
parte e que procuram alcançar certas posições dentro do mesmo, posições essas que são
alcançadas por meio da disputa de capitais específicos - como o cultural, o social e o
econômico – que são mais ou menos valorizados, dependendo das características de
cada campo. Além disso, cada agente do campo possui os diferentes capitais em menor
ou maior grau, o que define as posições hierárquicas que ocupam.

Todos os campos estão submetidos a um campo maior, o campo do poder, no


qual ocupam uma posição dominada. Este campo de poder é, segundo Bourdieu (1992,
p. 244), o espaço em que se dão as relações de força entre os agentes ou instituições que
possuem o capital necessário, seja ele qual for, para ocupar posições dominantes nos
diferentes campos, especialmente o capital econômico e o capital cultural. Este espaço
de luta entre os que detêm o poder, ou seja, entre os detentores das espécies de capital,
busca a transformação ou a conservação do valor de cada uma dessas variedades de
capital.

Segundo Elaine Pereira (2015), se o campo também é um espaço de confronto,


de tomada de posição e de poder, é porque todo e qualquer campo é ao mesmo tempo
um campo de forças e um campo de lutas que visa conservar ou transformar esse
mesmo campo perpetuamente. Formados por seus agentes, podendo ser eles pessoas ou
instituições, os campos criam os espaços e estabelecem a existência desses agentes pelas
relações que instituem, ou seja, é o lugar que estes ocupam na estrutura que indica suas
tomadas de posição, assim como também nele são estabelecidas as diferentes relações e
onde as diversas posturas assumidas pelos agentes se dão. Dentro dos campos também
acontecem disputas pelo controle e legitimação dos bens que neles são produzidos
(PEREIRA, 2015, p. 341).

Sendo o campo um microcosmo social que possui normas próprias e que se


constitui como um palco de lutas e relações de poder, cada campo também possui seus
capitais correspondentes, estes sendo movimentados, valorizados e legitimados dentro
desse espaço. Por isso, afirma Pereira (2015), se um campo possui certa característica
ou finalidade, determinado capital terá maior ou menor valor. Assim como o capital,
cada campo também possui seu habitus específico, definido como um “sistema de
disposições duráveis”. O habitus também pode ser entendido como as estruturas
estruturadas que funcionam também como estruturas estruturantes. Em outras palavras,
145

as estruturas são estruturantes, pois são responsáveis pela construção de práticas e


representação realizadas por seus agentes; e, em contrapartida, são estruturas
estruturadas na medida em que são influenciadas, recriadas e arquitetadas por esses
mesmos agentes (PEREIRA, 2015, p. 344).

Por conta dessa hierarquia que se estabelece nas relações entre os diferentes
tipos de capitais e aqueles que os detêm, os campos de produção cultural ocupam,
inevitavelmente, uma posição dominada diante do campo de poder, isto é, por maior
que seja a liberdade destes campos em relação à interferência externa, eles são
atravessados pelas questões que envolvem os “campos englobantes” (BOURDIEU,
1992, p. 246), como o político e o econômico. Assim, segundo Bourdieu (1992), o
status da relação de forças nessa luta depende da autonomia que o campo possui em
relação ao mundo externo, ou seja, em que medida suas normas específicas conseguem
impor-se em relação aos produtores dos bens culturais que detêm a posição dominante
no campo de produção cultural.

Essas lutas e os objetos disputados pelos agentes definem se os mesmos serão


considerados como “pretendentes” – aqueles que estão entrando no campo agora e que
buscam uma posição no mesmo – ou “dominantes” – os já estabelecidos, que lutam para
manter-se na posição que alcançaram. Apesar de cada campo possuir lutas de acordo
com sua especificidade, elas estão presentes em todos. Assim, essas relações de força
entre esses agentes, sejam indivíduos ou instituições, são as responsáveis pelas tomadas
de posição, ou seja, são elas que determinam as posturas e posições dentro do campo.
Com isso, os que possuem o monopólio de certo capital legitimado têm maiores
possibilidades de serem ouvidos quanto a suas opiniões, assumindo assim estratégias de
conservação, ao passo que os que possuem menor capital e prestígio tendem a assumir
estratégias de subversão. É nessas diferenças de posição, inclusive, que as regras desse
jogo são aceitas (PEREIRA, 2015, p. 348).

Dentro de um campo de produção cultural, existe a luta entre aqueles que


defendem uma “arte pura” e aqueles que estão do lado da “arte comercial”, o que faz
com que os primeiros rechacem os segundos como verdadeiros artistas, gerando assim o
que Bourdieu (1992) chama de “conflitos de definição”: cada uma dessas posições
procura estabelecer e impor limites ao campo que sejam favoráveis aos seus próprios
interesses, o que definiria a possibilidade de vinculação verdadeira ao campo. Por isso,
146

quando os que defendem um posicionamento purista da produção do seu campo e quem


a ele pode pertencer estabelecem aqueles que não podem ser considerados como
“verdadeiramente” artistas e, em consequência, recusam a estes suas existências
enquanto artistas, buscam na verdade impor dentro do campo o seu ponto de vista como
o único legítimo, como a lei fundamental e como o único viável para definir o campo
(BOURDIEU, 1992, p. 253).

Essa visão do artista puro que se impõe sobre a do artista “ordinário” é


exatamente o ponto que constitui o campo como tal e o que define a entrada ou não
nele, isto é, ninguém pode entrar e fazer parte dele se não estiver dotado de um ponto de
vista que esteja de acordo, ou que pelo menos coincida, com o ponto de vista do agente
fundador e definidor do campo. As rivalidades, dessa forma, se estabelecem a partir da
busca pelo monopólio da legitimidade da produção do campo específico; o monopólio
de dizer com autoridade quem pode ou quem não pode ser considerado como um artista.
Em outras palavras, o monopólio do “poder de consagração dos produtores ou dos
produtos” (BOURDIEU, 1992, p. 253), a luta entre os dois opostos do campo de
produção cultural, se dá pelo exercício do monopólio da imposição do que é ou não
legítimo. Assim, segundo Bourdieu:

As lutas pelo monopólio da definição do modo de produção cultural


legítimo contribuem para reproduzir continuamente a crença no jogo,
o interesse pelo jogo e pelas apostas, a illusio, da qual são também o
produto. Cada campo produz sua forma específica de illusio, no
sentido de investimento no jogo que tira os agentes da indiferença e os
inclina e dispõe a operar as distinções pertinentes do ponto de vista da
lógica do campo, a distinguir o que é importante [...] Mas é
igualmente verdade que certa forma de adesão ao jogo, de crença no
jogo e no valor das apostas, que fazem com que o jogo valha a pena
ser jogado, está no princípio do funcionamento do jogo, e que a
colusão dos agentes na illusio está no fundamento da concorrência que
os opõe e que constitui o próprio jogo. Em suma, o illusio é a
condição do funcionamento de um jogo no que ela é também, pelo
menos parcialmente, produto (BOURDIEU, 1992, p. 258).

Entretanto, existe um limite para as estratégias de subversão, pois estas podem


significar uma ameaça aos agentes e ao campo. Essa “cumplicidade objetiva”
(PEREIRA, 2015, p. 349) também estabelece, por exemplo, o status que uma obra passa
a ter graças ao reconhecimento que recebe dentro de seu campo de produção,
147

consideração que lhe outorga valor e legitimidade. O valor de uma obra, assim, é a ela
atribuído a partir da crença nela depositada pelos agentes do campo, na medida em que
o produtor do valor de uma obra é o próprio campo, e não o autor/criador/artista dessa
obra. Ou seja: quando o campo existe, são os agentes que delegam legitimidade a uma
obra.

Em outras palavras, o valor de uma obra, seja ela artística ou não, é definido
pelo campo e por seus agentes, visto que o que é considerado legítimo é resultado desse
jogo, ao mesmo tempo em que contribui para reproduzir a crença no jogo e em seus
resultados. Os campos, desse modo, possuem a função de “fazer crer” (PEREIRA,
2015, p. 350). Se os campos de produção cultural possuem capitais específicos, então o
poder simbólico de se fazer com que se acredite, como forma de dar reconhecimento e
consagração a algo, é um dos pontos chave que ligam os campos de produção cultural.
Assim sendo, não se deve levar em consideração apenas os produtores diretos de uma
obra, mas também o grupo de agentes e instituições que delegam o valor da obra por
meio da produção da crença no valor da arte como um todo, e no valor daquela obra em
particular (BOURDIEU, 1993, p. 259). Em suma, para Bourdieu

O produto do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de


produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de
arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista.
Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico
dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente
instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição,
tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a
produção do valor da obra, ou, o que dá no mesmo, na crença do valor
da obra (BOURDIEU, 1992, p. 259).

Dadas todas essas considerações e questões que definem um campo de produção


cultural sob a ótica de Pierre Bourdieu, podemos nos voltar agora para entender o
porquê dos quadrinhos constituírem um campo específico, com suas próprias lutas,
disputas, tomadas de posições e determinações do que é ou não é legítimo a partir da
decisões tomadas pelos agentes que ocupam esse campo e que possuem determinado
capital cultural. André Pereira de Carvalho (2013) defende as histórias em quadrinhos
como um campo específico que, assim como ocorre com os pressupostos teórico-
148

metodológicos do pensador francês, tem sua autonomia – mesmo que relativa - e cujas
práticas, muitas vezes, estão relacionadas ao jogo de poder.

Assim, Carvalho (2013) retoma a noção de que a existência de um campo só é


possível quando seus elementos constituem-se por regras próprias e autônomas em
relação aos demais campos, ou seja, este campo, antes de se tornar autônomo, estava
ligado a outro campo mais geral. Desse modo, o autor nos lembra que os quadrinhos
passaram por esse exato processo: antes de se tornarem um campo autônomo, os
quadrinhos eram comercializados por meio de jornais e revistas vendidos nas bancas de
jornais, os eventos dos quais faziam parte eram literários, ganhando um pequeno espaço
dentro deles, além de fazerem parte de grupos de trabalho acadêmicos na área de
comunicação. Nesse sentido, a configuração dos quadrinhos como um campo autônomo
se consolidou quando eles passaram a ter seus próprios eventos, crítica especializada,
produção e comercialização próprios (como editoras, selos e lojas especializadas), além
de produção, grupos de trabalho e eventos acadêmicos voltados especificamente para os
quadrinhos. Em suma, os quadrinhos estabelecem-se um campo autônomo quando
passam a ser os protagonistas de suas produções, e não meros coadjuvantes nas dos
demais campos (CARVALHO, 2013).

Como nos lembra Bourdieu (1992), entretanto, a autonomia do campo nunca é


total, e sim relativa, considerando que qualquer campo pode sofrer influência dos
demais campos e também do macrocosmo, o campo de poder que engloba todos os
outros. No caso dos quadrinhos, afirma Carvalho (2013), a influência pode vir tanto dos
campos mais próximos, como o do cinema, da literatura, e dos jogos eletrônicos, quanto
da sociedade capitalista como um todo. Todavia, por mais que o campo dos quadrinhos
não possua autonomia o suficiente para rechaçar as normas impostas pela sociedade na
qual está inserido, ele pode estabelecer suas próprias regras. Neste ponto, encontramos
mais claramente a convergência entre a ideia de um campo dos quadrinhos, que
estabelece as próprias regras e possui suas próprias características e peculiaridades, e os
pressupostos de Antonio Luiz Cagnin (2014), Daniele Barbieri (1998) e Thierry
Groensteen (2015) expostos anteriormente.

Waldomiro Vergueiro (2014) nos lembra, por exemplo, que foi Antonio Luiz
Cagnin o primeiro a sistematizar o processo de reconhecimento dos quadrinhos como
uma forma de expressão, exatamente ao diferenciá-los de outras formas narrativas
149

destacando assim os elementos característicos que permitem ao leitor de uma obra criar
o sentido a partir da disposição da imagem e do texto. Enquanto isso, para Barbieri
(1998), fazer da linguagem dos quadrinhos a protagonista das obras que se produzem
com essa linguagem representa uma conquista importante para aqueles que dela fazem
uso, além da tomada de consciência da própria existência autônoma como linguagem,
dando aos quadrinhos a oportunidade de emancipar-se e, assim, tomar consciência de
suas próprias possibilidades. Já para Groensteen (2015), por mais que exista um gênero
narrativo mais amplo, e que dentro dele existam diversas espécies narrativas, como o
filme, a peça teatral e as histórias em quadrinhos, cada um propõe ao seu público um
modo de exposição da história e disposição de competências próprio, que possui suas
próprias especificidades e atrativos. Exemplo disso é que os quadrinhos, mesmo com
mais de um século de existência, mantiveram sua popularidade exatamente por seu
caráter único, que atrai seu próprio público.

Entretanto, existe uma outra questão que pode demonstrar como o campo
autônomo dos quadrinhos, na visão de Pierre Bourdieu, se constitui: essa questão
envolve os diferentes tipos de capital simbólico descritos pelo pensador francês.
Levando-se em consideração, como coloca Bourdieu (1992), que os diferentes
indivíduos ou instituições de cada campo utilizam seus diferentes graus de capital
simbólico para se estabelecer e criar hierarquias dentro do campo, Carvalho (2013),
explica que o capital simbólico no campo dos quadrinhos não funciona como um poder
abstrato. O autor quer dizer que o capital simbólico, dentro do campo dos quadrinhos
especificamente tem relação direta com o capital cultural em um primeiro momento, e
com o capital econômico de forma secundária.

O capital cultural no campo dos quadrinhos, explica Carvalho (2013), refere-se


não à qualidade artística das obras, e sim à valorização da produção artística no campo -
assim como coloca Bourdieu (1992) quando afirma que o valor não está na obra em si, e
sim que é o campo que produz o valor da obra. São os artistas reconhecidos dentro do
campo que detêm um alto capital cultural, inclusive pelo reconhecimento de sua obra.
Isso não quer dizer, ressalta o autor, que um alto capital cultural seja sinônimo de
qualidade artística – coisa que seria indefinível -, e sim que a obra é reconhecida dentro
daquele universo porque ela é legitimada pelos agentes que dele fazem parte
(CARVALHO, 2013). O capital econômico, por mais que em menor grau, também
desempenha função importante no campo dos quadrinhos. Normalmente considerado,
150

dentro da teoria de Bourdieu (1992), oposto ao capital cultural, o capital econômico


também delega status a um artista ou obra, já que as suas vendas significam a aceitação
por parte do público em geral, o que influencia no reconhecimento do artista.

Dado esse jogo de reconhecimento e legitimação de que fala Bourdieu (1992),


jogo esse em que certos indivíduos e instituições ganham maior visibilidade, respeito e
importância dentro do campo do que outros, a maioria não consegue alcançar o status
que gostaria pelo fato do campo possuir espaço e configuração limitados. Essa distinção
é criada entre aqueles que já estão nas posições dominantes e os que aspiram a tais
condições. Entretanto, é importante lembrar, a posição que cada um ocupa nada tem a
ver com a qualidade de seu trabalho, e sim com o grau dos diferentes capitais que
possuem, levando assim à hierarquização do campo. Carvalho (2013) ainda lembra que
as posições ocupadas por cada um não são dadas naturalmente, e sim construídas social
e historicamente e, por isso, por mais que alguns agentes ajam de acordo com o que
deve ser feito para alcançar determinada posição, as forças que regem o campo é que
irão beneficiar ou retardar o avanço.

Nesse contexto, “a história do campo dos quadrinhos é formada por aqueles que
alcançaram as posições superiores, e nela se firmaram como exemplos a serem
seguidos” (CARVALHO, 2013). Exemplo disso, podemos comentar, são as graphic
novels. Dentro de um meio que sempre buscou legitimação cultural, esse suporte, ao
impulsionar a valorização do campo, tornou-se privilegiado dentro do mesmo,
ocupando as posições dominantes visto o alto grau de capital cultural que possui. Além
dos suportes, os gêneros que constituem o campo das histórias em quadrinhos também
fazem parte desse jogo de poder: enquanto as autobiografias, por exemplo, possuem um
alto grau de capital cultural, o gênero dos super-heróis foi, por muito tempo, taxado e
visto apenas como um entretenimento barato e sem conteúdo.

Por sinal, a discussão sobre “gênero”, quando se fala em quadrinhos, também já


criou muita controvérsia. Por muito tempo, foi difundida a ideia de que quadrinhos
representavam um gênero literário; nos últimos anos, as graphic novels receberam a
alcunha de gênero, ao invés de serem vistas, como tentamos demonstrar, como um
suporte editorial que pode ser usado para contar histórias de diferentes gêneros.
Segundo Wolk (2007), existe um motivo para essa confusão. Até 20 anos atrás, o modo
como quase todo mundo experienciava o meio estava ligado intimamente a uma série de
151

gêneros, que era o que fazia dinheiro para as editoras: os quadrinhos de horror,
romance, ficção científica ou de crime, tinham, de certa forma, uma fórmula e códigos
próprios, o que poderia confundir o leitor. Além disso, o gênero dos super-heróis tomou
conta do mercado dos quadrinhos tão fortemente que, para muitos, “super-herói” passou
a ser sinônimo de “história em quadrinhos”.

Partindo das premissas de Maingueneau, Paulo Ramos (2009b) define esse


campo dos quadrinhos como um “hipergênero”, ou seja, as histórias em quadrinhos são
um hipergênero que abrigam, dentro de si, uma gama de diferentes gêneros autônomos,
mas que são unidos por alguns elementos em comum (RAMOS, 2009b, p. 357). Se as
histórias em quadrinhos são um hipergênero, quer dizer que elas carregam consigo
características específicas que podem aparecer como elementos em comum em uma
variedade de gêneros autônomos que constituem o hipergênero, como, por exemplo, o
uso de uma linguagem própria com determinados recursos (como o uso de balões e
onomatopeias); predominação do tipo textual narrativo; pode ter personagens, sejam
fixos ou não; a narrativa pode estar em um ou mais quadrinhos e pode variar de acordo
com o gênero abordado, entre outras.

Esses elementos, afirma Ramos (2009b), revelam ao leitor, de antemão, o que o


espera, ou seja, “[...] antecipam informações genéricas ao leitor e ajudam no processo de
identificação e leitura dos diferentes gêneros que compartilham tais características”
(RAMOS, 2009b, p. 362). Partindo dessa ideia, Ramos afirma que as histórias em
quadrinhos são um grande rótulo, que une características variadas comuns e que abriga
uma variedade de gêneros utilizados “[...] para compor um texto tendencialmente
narrativo dentro de um contexto sociolinguístico interacional” (RAMOS, 2011).

Outro acontecimento que demonstra como os quadrinhos são um campo de


produção específico e não um gênero, é que uma mesma obra pode pertencer a dois
gêneros ao mesmo tempo, da mesma maneira que um gênero não se limita a apenas um
campo. Segundo Catharine Abell (2012), não é possível estabelecer com clareza a
característica que define ou não uma obra como pertencente a um determinado gênero.
Na verdade, afirma a autora, uma variedade de diferentes tipos de características
determina o gênero a qual certa obra pertence. O gênero, assim, seria estabelecido não
apenas pelo conteúdo da obra, mas também por sua estrutura, e até mesmo pelos efeitos
152

que têm sobre o público. Por isso, determinadas propriedades podem ser relevantes para
determinar um gênero em alguns casos, mas não em outros.

Dessa forma, uma alternativa para se explicar o que determina o pertencimento


de uma obra a determinado gênero, propõe Abell (2012), seria entender que uma única
obra pode pertencer a mais de um gênero. Por exemplo: uma história em quadrinhos
pode ser considerada um romance e ao mesmo tempo uma aventura, pertencendo a
ambos os gêneros ao mesmo tempo, mas sem deixar de ser uma história em quadrinhos.
Essa constatação, inclusive, permite perceber que alguns gêneros incorporam obras que
pertencem a uma variedade de mídias: o romance e a aventura citados acima não são
gêneros exclusivos dos quadrinhos, podendo fazer parte e funcionar dentro de outros
campos, como o cinema, a televisão e a literatura. Além do mais, para se estabelecer
adequadamente os gêneros, defende Abell (2012), é preciso também distinguir as
categorias de gênero de outras variedades de categorias em que as obras podem ser
classificadas, como o contexto histórico e o estilo. Um contexto histórico, assim, não é
exclusivo de um campo em particular, ou seja, diferentes campos podem produzir suas
próprias obras tendo o mesmo contexto histórico como pano de fundo, o que não
significa que estes trabalhos provêm do mesmo campo.

Dado tudo isso, podemos dizer, com certa segurança, que as histórias em
quadrinhos não são um gênero da literatura, ou um braço do cinema, ou um filho
ilegítimo das artes plásticas. Mesmo que os quadrinhos possam conter ou ter herdado
características de outros campos, o produto final nada tem a ver com eles. E é por isso
que defendemos que é só a partir do entendimento de que existe um campo de produção
cultural dos quadrinhos que, acreditamos, os quadrinhos cristalizarão esse processo de
legitimação pelo qual vêm passando. Com essa cristalização, deslizes e confusões, como
chamar os quadrinhos de um “gênero”, ou necessitar de adjetivações como “literário” e
“cinematográfico” para considerar uma obra como boa seriam evitados. Apesar de falar
especificamente do campo literário, a análise estrutural da narrativa desenvolvida por
Tzvetan Todorov (2003) ajuda a entender a importância de se pensar em um campo dos
quadrinhos.

Para se fazer uma análise estrutural da narrativa é preciso, antes de tudo, opor
duas instâncias em relação à literatura, sendo elas o que Todorov (2003) chama de
atitude teórica e atitude descritiva. A análise estrutural, entretanto, será sempre de
153

caráter teórico, considerando que a finalidade do estudo nunca será descritiva em


relação a uma obra. Esta, segundo o autor, seria a “manifestação de uma estrutura
abstrata, da qual ela é apenas umas das realizações possíveis” (TODOROV, 2003, p.
80). Portanto, o principal objetivo da análise estrutural é o de entender a estrutura dessa
narrativa. O que Todorov (2003) pretendeu ao iniciar um estudo sobre a análise
estrutural da narrativa foi sugerir que houvesse uma teoria da estrutura do discurso
literário, procurando entender seu funcionamento. Para tal, haveria a necessidade de
pesquisa empírica a fim de determinar o que uma obra tem em comum com algumas
(em relação a gêneros, escolas literárias, época, entre outros) e com todas as outras (o
que seria, então, uma teoria da literatura).

Todavia, afirma Todorov (2003), mesmo que buscar o entendimento de uma


obra literária por meio das premissas acima elencadas não signifique negar a relação da
literatura com outros campos de conhecimento, como a sociologia e a filosofia, é
preciso antes estabelecer uma “ordem hierárquica”, ou seja, “a literatura deve ser
compreendida na sua especificidade, como literatura, antes de se procurar estabelecer
sua relação com algo diferente dela mesma” (TODOROV, 2003, p. 81).

Nesse sentido, a ideia de Todorov (2003) de que os diferentes espaços de


conhecimento devem ser entendidos em sua individualidade, em si mesmos antes de
comparados a outros espaços se encaixa perfeitamente na noção de que as histórias em
quadrinhos necessitam que seu campo seja afirmado como autônomo. Isso, porque por
mais que um estudo que compare dois campos seja possível, e por vezes até mesmo
necessário – comparando entre eles, por exemplo, gêneros (romance, policial, etc) e até
mesmo períodos (o que foi produzido, na literatura e nos quadrinhos, no período da
contracultura da década de 1960; ou a adaptação de quadrinhos para o cinema e como
essa adaptação se comporta dentro do novo formato e da nova linguagem) -, é preciso,
antes de tudo, entender os quadrinhos em sua especificidade e entre obras do mesmo
tipo antes de tentar entendê-las dentro de um campo do qual não fazem parte. Com essa
percepção, os erros e deslizes cometidos seriam evitados. Douglas Wolk (2007) resume
bem esse sentimento ao dizer que

Existe um problema com a forma como muitas pessoas falam sobre os


quadrinhos: é muito difícil falar deles como quadrinhos. Um erro
muito comum dos críticos da cultura é se direcionar aos quadrinhos
154

chamando-os de “o gênero dos quadrinhos”. Assim como os


quadrinistas e seus admiradores de longa data estão cansados de
explicar, quadrinhos não são um gênero; eles são uma mídia.
Faroestes, romances da realeza, noir: estes são gêneros – tipos de
histórias com categorias de assuntos específicos e convenções em seu
conteúdo e apresentação. (Histórias sobre super-heróis são um gênero
também). Prosa ficcional, escultura, vídeo: assim como os quadrinhos,
são mídias – formas de expressão que têm algumas ou nenhuma regra
em relação ao seu conteúdo, ao contrário das muitas regras impostas a
eles por sua forma (WOLK, 2007, p. 11, tradução nossa)25.

Podemos extrair mais um exemplo dos escritos de Wolk (2007). O autor nos
conta sobre um relato feito por Gloria Emerson na revista The Nation. Ela conta que
nunca foi leitora de histórias em quadrinhos, mas resolveu dar uma chance a Persepolis,
de Marjane Satrapi. Ao ler a história, ficou tão impressionada com a qualidade da arte e
da narrativa que não conseguiu classificá-la como uma “história em quadrinhos”, mas
sim como uma “memória gráfica”. Wolk (2007) acha isso tão absurdo que lembra que
se alguém falasse que o filme Siriana é tão bom que não pode ser considerado um filme,
e sim uma “narrativa cinematográfica”, todos achariam estranho.

Com esse exemplo, Wolk (2007) demonstra como a confusão gênero/mídia é


uma questão de ignorância, ao passo que a ideia de que se algo é bom e profundo
simplesmente não pode ser considerado como um quadrinho é apenas um caso de
esnobismo e soberba. Entretanto, lembra o autor, o maior erro linguístico usado para se
referir aos quadrinhos é tratá-los como se fossem particularmente estranhos ou produtos
de uma falha, exemplos de uma outra mídia combinada. Os que são considerados por
muitos como “bons quadrinhos” são muitas vezes descritos como sendo
“cinematográficos”, quando têm aspectos familiares à linguagem cinematográfica, ou
“literários”, quando têm características de romances literários. Como afirmamos nas
sessões anteriores, as diferentes mídias acabaram se transformando em adjetivos quando

25
There’s a problem with the way a lot of people talk about comics: it’s very had to talk about them as
comics. One numbingly common mistake in the way culture critics adress them is invoque “the comik
book genre.” As cartoonists and their longtime admirers are getting a little tired of explaining, comics
are not a genre; they’re a medium. Westerns, Regency romances, film noir: those are genres – kinds of
storir with specific categories of subjects and conventions for their contents and presentation. (Stories
about superheroes are a genre, too) Prose fiction, sculpture, vídeo: those, like comics, are media –
forms of expression. That have few or no rules regarding their contents other than the very broad ones
imposed on them by their form.
155

usadas para falar sobre os quadrinhos. Consideramos isso mais como um insulto ao
meio do que como um elogio, pois usá-los como algo que tenta exaltar ou enaltecer
deixa implícito que os quadrinhos como uma forma ambicionam ser cinema ou
literatura (WOLK, 2007, p. 13).

Para Robert Petersen (2011), os quadrinhos permanecem no “limbo” entre arte e


literatura, o que faz com que o campo se debata quanto ao estabelecimento de uma
terminologia e teoria próprias e distintas que possam melhor definir seu funcionamento.
Uma das estratégias utilizadas para estabelecer e solidificar o campo foi o de denomina-
lo pelo termo “narrativa gráfica”. “Narrativa gráfica”, segundo Petersen (2011), pode
ser usado para designar vários processos correspondestes às artes sequenciais, como os
quadrinhos. Entretanto, este termo não designa (ou não deveria designar) os filmes e as
animações, pois os processos artísticos e as qualidades das narrativas gráficas são
diferentes. Em comparação com os desenhos animados, por exemplo, apesar de
possuírem algumas semelhanças visuais, as narrativas gráficas usam códigos visuais
diferentes para contar a história, assim como são distintas a forma em que o público
experimenta ambas as formas narrativas.

Entretanto, para Petersen (2011), o ritmo de leitura da história se assemelha mais


ao ritmo de leitura de um livro de literatura. Isso, porque em ambos os casos, o ritmo é
ditado pelo próprio leitor, diferente dos desenhos animados ou dos filmes, que têm seu
ritmo ditado pelo suporte que os transmite. As semelhanças entre a leitura de uma
história em quadrinhos e de um livro de literatura, entretanto, acabam aí. Se elas se
assemelham quanto ao ritmo, isso não as faz, de maneira alguma, iguais. E ressaltamos
isso não apenas pelas diferenças na forma de produção e composição dos dois tipos de
linguagem, mas também quanto ao seu consumo e recepção: enquanto o livro literário é
lido na sequência proposta pelo autor, o leitor de quadrinhos nem sempre lê uma
história em quadrinhos de maneira linear (PETERSEN, 2011, p. xiv).

Se quadrinhos não são literatura, tampouco são livros ilustrados, como por muito
tempo se disseminou. Como nos lembra Thomas Wartenberg (2012), as histórias em
quadrinhos têm como um de seus princípios básicos, na maioria dos casos, priorizar
igualmente o texto e a imagem, já que um não funciona, no geral, independentemente
do outro. Nesse sentido, o que faz da imagem uma “ilustração” nos livros ilustrados é
que ela é direta, ou seja, está necessariamente e diretamente relacionada com o que ela
156

ilustra. Em outras palavras, a ilustração seria o que o texto está informando em forma de
desenho, e não um complemento ao mesmo. A ilustração, dessa forma, é uma
representação fiel do que diz o texto a qual a ilustração ilustra, em uma relação
assimétrica entre texto e imagem, em que a imagem será subordinada ao texto. Há
também, é claro, livros ilustrados em que suas imagens estão menos subordinadas ao
texto do que outras, como no caso de Alice no País das Maravilhas, por exemplo. Nele,
a história é contada pelos dois signos, o texto e a imagem. Mesmo que a última ainda
seja uma ilustração da história escrita e dependente do texto que a precede, ainda assim
tem um papel mais fundamental na obra do que outros livros ilustrados.

Figura 21 – Como a imagem e o texto funcionam em Alice no país das maravilhas

Fonte: Carroll (2009)

Dadas as questões acima, podemos notar que, diferentemente delas, os


quadrinhos não são ilustração de uma história já escrita, pois as imagens nos quadrinhos
não são livres da obrigatoriedade que governa as ilustrações (WARTENBERG, 2012).
Sendo uma das constituições básicas do campo os quadros, então os quadrinhos são
157

histórias constituídas de um ou mais quadros em que a imagem e o texto - na maioria


das vezes - contribuem igualmente para a narrativa. Assim, por mais que de fato existam
histórias em que alguns quadros, páginas inteiras e até mesmo toda a história não
contenham texto - as sans parole de que fala Cagnin (2014) -, quando os dois estão
juntos em uma história, nenhum tem mais importância do que o outro; caso contrário,
não é uma história em quadrinhos.

Outro erro comum é o de considerar os quadrinhos como o “filho ilegítimo” das


artes plásticas. Entretanto, muitas são as distinções entre os campos para que os
quadrinhos cheguem a receber esse título. Em primeiro lugar, porque o campo das
grandes artes e o campo dos quadrinhos fazem parte de sistemas econômicos distintos,
pelo simples fato de serem vendidos e consumidos de maneiras completamente
diferentes (SJÅSTAD, 2015). Mesmo se levarmos em consideração, por exemplo, que a
produção em massa dos quadrinhos não necessariamente signifique que seu público
alvo sejam as massas, a técnica de produção dos quadrinhos é uma das características
que os definem: se produzidos por meio de outra técnica, seriam definidos de forma
diferente, e por isso é importante apontar que o processo de impressão é uma condição
necessária, dadas as devidas exceções, para definir o que é uma história em quadrinhos.
A forma de produção, inclusive, determina a formalidade técnica, como são feitos,
como devem ser lidos e por meio de qual suporte (jornais, revistas ou livros, como no
caso das graphic novels), formalidade técnica essa que pouco se assemelha com a das
artes plásticas.

Por sinal, uma das grandes discussões que perseguem os quadrinhos, nesse
momento em que eles passam por um processo de legitimação, é considerá-los ou não
como arte. Para SJÅSTAD (2015), o discurso sobre o mundo das artes, que para alguns
pode soar antiquado e obsoleto, ainda é uma parte integrante da recepção e aceitação
dos quadrinhos. É por isso que, segundo o autor, a questão que ronda esse universo, se
quadrinhos deveriam ou não deveriam possuir o status de arte, é tão comumente
discutida:

Embora as barreiras entre os vários meios artísticos e mundos da arte


pareçam estar se confundindo em uma era pós-moderna e pós-punk,
ainda parece que os quadrinhos são quadrinhos e arte culta é arte
culta. Eles desenvolveram uma relação interessante, alimentando um
158

ao outro com imagens e ideias. Os quadrinhos nunca poderão ser o


mesmo que a literatura ou que as artes; eles representam seu próprio
mundo e estão em constante diálogo com os demais. A diferença
agora parece ser que os quadrinhos agora são enxergados como parte
de um sistema das artes, e não apenas pulp fiction. (SJÅSTAD, 2015,
p. 16, tradução nossa)26

Entretanto, os quadrinhos podem não ser exatamente “arte”, como se pensam as


artes plásticas, mas muitos o consideram como uma “forma de arte”. Isso acontece
quando, a partir da década de 1980, as histórias em quadrinhos passaram a ser
denominadas de “9ª arte”. (VERGUEIRO, 2009, p. 29). Os quadrinhos, então, passaram
a fazer parte do conjunto formado pelas demais artes consideradas mais tradicionais, no
caso a música, a dança, a pintura, a escultura, a literatura e o teatro. Mais tarde, o
cinema e a fotografia (respectivamente, as “7ª e 8ª artes”) passaram a integrar o grupo,
seguidos pelos quadrinhos. Exemplo dessa nova forma de se enxergar os quadrinhos
está na introdução ao livro The Art of Comics: a Philosophical Approach, de Aaron
Meskin e Roy Cook (2012). Nele, os autores acreditam que quadrinhos sejam uma
forma de arte, o que não quer dizer, entretanto, que todas os quadrinhos sejam “obras de
arte”. Um exemplo, eles pontuam, é o cinema: apesar de considerado por muitos como
uma forma de arte, nem todos os filmes podem ser considerados obras de artes – e isso
vale também para a fotografia, a pintura, etc. E o mesmo vale para os quadrinhos:
mesmo considerando algumas publicações como obras de arte, nem todas o são. Desse
modo, assim como o cinema, a literatura, as artes plásticas e a fotografia, as histórias em
quadrinhos representam uma categoria significante de arte (MESKIN; COOK, 2012),
ou seja, tanto críticos quanto o público em geral deveriam apreciar, avaliar e interpretar
os quadrinhos como “quadrinhos” e ponto.
Podemos ter problemas com a designação de algo bom, em qualquer campo,
como “obra de arte”, mas a simples noção de que qualquer mídia pode produzir tanto
obras boas quanto ruins, demonstra como cada um deles constitui seu próprio campo,
assim como os quadrinhos que, segundo Art Spiegelman, “como qualquer outro meio,

26
Although the boudaries between the various artistic mediums and worlds of art seem to be
blurring in a Postmodern, post-Punk era, it still looks as if comics are comics and fine art is fine
art. They carry on na interesting relationship, feeding each other with images and ideas.
Comics dialogue with the other worlds. The difference now seems to be that comics are looked
upon as part of the system of the arts, and not merely pulp ficiton.
159

seu valor é neutro. Existem muitos romances e novelas ruins, e zilhões de quadrinhos
ruins. Mas nas mãos de alguém que saiba usar seu meio, grandes coisas podem
acontecer. Bons quadrinhos deixam uma impressão que dura para sempre.”(tradução
nossa)27
No entanto, não consideramos um erro ou uma abominação que um quadrinho
faça uso de aspectos de outras mídias para construir sua história. Existem quadrinhos
que se utilizam de dispositivos cinematográficos, por exemplo, para contar uma história,
assim como outros se utilizam de termos e até passagens de obras da literatura para
desenvolver sua narrativa, assim como de elementos das artes plásticas. Entretanto, uma
história em quadrinhos não é boa porque usou recursos cinematográficos, artísticos ou
literários, é apenas uma boa obra de quadrinhos que se utilizou desses recursos.
O próprio Will Eisner, como já discutimos aqui, se referia aos quadrinhos como
uma “forma literária”. É claro que as histórias em quadrinhos possuem certa semelhança
com a literatura, afinal, muitas usam palavras, são impressas em livros e são narrativas;
entretanto, quadrinhos são tão literatura quanto a televisão ou o teatro. Em suma, o fato
de guardarem certa semelhança com qualquer outra mídia não os faz um exemplar dessa
mídia. Quadrinhos não são artes plásticas, não são literatura, não são cinema;
quadrinhos não são um gênero literário, um storyboard cinematográfico ou um livro
ilustrado. Como diria Paulo Ramos (2009a), “quadrinhos são quadrinhos”. Eles são
“eles mesmos”, sua própria mídia, pois contêm seus próprios mecanismos, inovações,
clichês, gêneros e armadilhas. O primeiro passo para apreciar os quadrinhos em sua
totalidade é exatamente reconhecer isso.

27
Like any other medium, it’s “value-neutral”. There’ve been lots of rotten novels and paintings, and
zillions of rotten comics. But in the hands of someone who knows how to use their medium, great things
can happen. Good comics make an impression that lasts forever. Disponível em:
http://www.indiebound.org/author-interviews/spiegelmanart. Acesso em 31 jan. 2016
160

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A palavra “cultura”, como pudemos notar, é ao mesmo tempo ampla demais e


restrita demais. Enquanto seu significado antropológico abrange basicamente tudo –
desde como nos vestimos até as comidas que comemos -, o sentido estético da palavra
que se firmou a partir do século XIX inclui a música clássica, mas não a ficção
científica (EAGLETON, 2011, p. 51), ou seja, aquilo que pertence à cultura de massa. A
desconsideração dessas produções como “cultura” está no fato de que elas deixam de
ser culturais porque não são consideradas práticas significativas. Isso, porque se a
cultura, no sentido mais estrito do termo, acabou se configurando como um fato
aristocrático, de acesso limitado a apenas um grupo privilegiado (WILLIAMS, 2011) e,
como consequência, usada para legitimar o poder e como instrumento de dominação –
ou seja, usada como ideologia, nos termos de Thompson (1995) e como ferramenta de
distinção, sob a ótica de Bourdieu (2007) –, as produções de uma indústria que não
atende às exigências de uma pequena elite dominante, que enxerga que o seu modo de
vida e suas percepções são as únicas verdadeiras e, por isso, universais, devem ser
ignoradas e desdenhadas. Como produto da cultura de massa, as histórias em
quadrinhos também foram, por décadas, ignoradas como um produto cultural
importante.

Entretanto, as atitudes em relação aos quadrinhos têm se modificado ao longo


de um grande processo, acreditamos, histórico. As temáticas e formatos mais
tradicionais ainda constituem um mercado forte, enquanto gêneros que surgiram nas
últimas décadas, como as coberturas jornalísticas, os biografias e os romances geraram e
continuam a gerar novos interesses na mídia, inclusive levando a reconsiderações sobre
esses mesmo formatos mais tradicionais das histórias em quadrinhos. Visto que, como
buscamos demonstrar durante a pesquisa, as barreiras levantadas por aqueles que
defendiam que produtos advindos de certos modos de produção não poderiam ser
chamados de “cultura” parecem estar se dissolvendo, dando aos quadrinhos todas as
possibilidades e ferramentas para que seus artistas mostrem todo o potencial do meio.

Apesar da queda nas vendas no final do século XX e início do século XXI, as


histórias em quadrinhos parecem, cada vez mais, modificar o desdém cultural
normalmente atribuído a elas e marcar sua presença como uma forma de arte expressiva
161

no mundo contemporâneo. E isso vem ocorrendo não só pelo fato de que os quadrinhos
têm recebido maior atenção por parte da crítica ao surgirem, nas últimas décadas,
muitos artistas que têm estendido as noções do que significa uma história em
quadrinhos, voltando seus trabalhos para temas mais profundos e que, até alguns anos
atrás, não eram associados aos quadrinhos; mas também porque os quadrinhos
começaram, assim como o fez o cinema há cinco décadas, a se reconhecer como um
campo de produção cultural próprio, com suas próprias regras, armadilhas, tecnologias,
forma de produção e comercialização.

A fusão entre bons artistas e boas críticas iniciada ainda na década de 1960
dentro do campo funcionou como uma ferramenta para acabar com anos de uma visão
negativa e de marginalização cultural que por tanto tempo arrastou o nome dos
quadrinhos para a lama. À medida que a cultura moderna passa cada vez mais a ser
visual, as histórias em quadrinhos acabam se tornando uma forma narrativa cada vez
mais atraente e o potencial do meio, que antes parecia limitado pela barreira entre a alta
e a baixa culturas, recebendo apenas desdém e desprezo do público em geral, hoje é
limitado apenas pela criatividade do artista que se arrisca dentro dele (BONGCO, 2000,
p. xvi), afinal, “as mídias são tão ricas quanto os artistas que nela trabalham”
(SPIEGELMAN, apud BONGCO, 2000, p. xvi, tradução nossa 28). Nesse sentido, é de
capital importância ressaltar, como explanamos durante este estudo, que é só a partir da
valorização dos quadrinhos iniciada na década de 1960, ou seja, é só a partir da
reavaliação e enaltecimento do meio como um todo, alcançados com as conquistas do
movimento intelectual europeu e do movimento underground norte-americano,
seguidos pela publicação de Maus e a explosão da produção e consumo das graphic
novels, que os quadrinhos puderam superar o preconceito e se reinventar.

Entretanto, para alguns observadores é melhor não nos empolgarmos com esse
novo momento de aceitação e legitimação dos quadrinhos, sobretudo se levarmos em
consideração que a virada dos quadrinhos também se deu a partir da publicação da
“tríade” de 1986. Batman: o cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, Watchmen, de Alan
Moore e Dave Gibbons e, especialmente, Maus, de Art Spiegelman, foram essenciais
para a guinada que os quadrinhos deram no que diz respeito à valorização do campo.
Contudo, para Paul Gravett (2010), não podemos exagerar quanto às expectativas para o

28
All media are as rich as the artists working inside them.
162

meio baseando-nos apenas nessa revolução iniciada em 1986. Brian Doherty (2010)
compartilha da mesma visão ao afirmar que o entendimento de que um punhado de
obras seriam as responsáveis pela reavaliação do meio daria a entender que os
quadrinhos se conectam com uma audiência “respeitável” apenas ocasionalmente, como
num fenômeno único que nada diz sobre a aceitação do meio como um todo
(DOHERTY, 2010, p. 26).

Para Gravett (2010) e Doherty (2010) algumas obras específicas têm sim a
capacidade de serem consideradas obras de arte, mas isso não implica que o
reconhecimento destes trabalhos no mundo dos quadrinhos signifique necessariamente
uma elevação no status do meio como um todo. Bart Beaty (2012) sanciona esse
questionamento ao colocar que se de fato os quadrinhos estão prontos para aceitação do
público, essa aceitação se dá primariamente a partir do sucesso de obras e autores
específicos. Então fica a dúvida: será que foram os critérios de julgamento que
mudaram no período pós-moderno, ou foram os artistas dos quadrinhos que finalmente
passaram a criar obras que alcançam os critérios de grandeza exigidos? (BEATY, 2012,
p. 102)

Concordamos em parte com essas premissas. Afinal, como expusemos na


pesquisa, parece que, para certos artistas, especialmente aqueles que publicam graphic
novels, atingir a consagração, em maior ou menor escala, significa ir no sentido oposto
aos dos quadrinhos mainstream, o que demonstra que apenas uma parcela do que é
produzido, um punhado de “obras-primas”, são bem-vindas dentro do espaço da cultura
legítima, e não o campo como um todo. Entretanto, assim como também tentamos
demonstrar durante este estudo, tudo isso faz parte de um processo e, como em qualquer
outra instância, processos envolvem “fases”. Então, os movimentos da década de 1960,
assim como a publicação de Maus e a explosão dos quadrinhos alternativos e seu
formato de graphic novel são as fases que permitiram que o processo de legitimação
cultural dos quadrinhos fosse possível.

Todas essas fases, incluindo esse “punhado” de quadrinhos altamente elogiados


das últimas três décadas, ao demonstrarem que o campo pode transcender as limitações
de suas formas e temas, permitiram a abertura de um caminho que, mesmo que ainda
não completamente concretizado, levaria os quadrinhos a virarem a página e se
prepararem para a aceitação plena. Assim, o crescimento da valorização dos quadrinhos
163

que ocorreu entre as décadas de 1980 e 1990 com a publicação da “tríade”, e mais
fortemente com Maus, ajudou a renovar a apreciação dos quadrinhos como um todo,
dando início ao entendimento deles como um campo de produção importante. Dito isso,
à medida que cada vez mais trabalhos chegam a esse nível de aceitação, é possível dizer
que as regras do debate têm mudado tanto que os quadrinhos, antes considerados como
maléficos, se transformaram em um tema de discussão legítimo da cultura
contemporânea. Então, parece claro que esse crescimento no reconhecimento de
trabalhos em particular tem sim o efeito de elevar o status de todo o campo.

Afinal, é por conta desse reconhecimento que os quadrinhos vêm ganhando cada
vez mais adeptos ao dar ao leitor a possibilidade de consumir da mais tradicional
história de super-heróis ao mais intricado relato confessional de um quadrinista; os
quadrinhos deixaram de fazer parte de eventos culturais voltados para a literatura e
congressos acadêmicos da área de comunicação para criar seus próprios eventos e
congressos; surgiu uma grande quantidade de publicações especializadas em quadrinhos
nas últimas décadas, assim como aconteceu com as publicações voltadas ao cinema;
com essa nova visão sobre o meio, espaços que antes se recusavam a receber e a
enxergar a história em quadrinhos como um meio importante para a disseminação de
conhecimento e valores culturais, começam a rever seus conceitos.

Assim, os quadrinhos passaram a ser considerados como um poderoso e


sofisticado meio, tão importante quanto qualquer outro. A aceitação e o entendimento
dos quadrinhos como um campo de produção cultural legítimo acabou por transformar
esse “processo” em algo cíclico: a valorização do objeto valorizou o campo, o que
consequentemente valorizou o objeto. E é por isso que ao longo de toda a pesquisa
buscamos mostrar como as relações que os quadrinhos mantinham/mantêm com o
social, o econômico e o político os classificaram, qualificaram e determinaram
culturalmente ao longo de todo o século XX: essa relação complexa que os quadrinhos
mantêm com a sociedade já determina sua constituição como um campo de produção
cultural específico. Dessa forma, por mais que a noção dos quadrinhos como um campo
pareça ainda não ter se solidificado por completo, se continuarmos a persistir nesse
reconhecimento isso se tornará uma realidade. Isso, porque discutir os quadrinhos em
sua especificidade se torna muito mais fácil e efetivo; ao não termos de compará-los
com algo que nada tem a ver com ele, o campo se estabeleceria não só cultural, mas
academicamente.
164

Essa percepção que, de início, parece tão simples e óbvia, foi por muito tempo
ignorada quase por completo, e por isso a nossa insistência de reconhecê-los como um
campo de produção cultural próprio não é em vão. Entretanto, sabemos que delimitar o
campo não é fácil. São muitas as teorias que buscam definir o que são os quadrinhos,
aonde e quando foram inventados, quais suas aplicações nos espaços culturais e
educacionais. Os próprios nomes dados ao meio nos diferentes países, como comic
books, bande dessineé e fumetti, já complicam bastante o estabelecimento do que
significa ser um quadrinho. Mas talvez esse seja o melhor motivo para se reconhecer e
cristalizar o campo dos quadrinhos: é só com ele que todas essas questões encontrarão
um terreno ainda mais fértil para serem discutidas, fazendo com que o campo cresça
cada vez mais.

Nesse sentido, segundo Vergueiro (2009), quase ao mesmo tempo em que


passaram a ser reconhecidas como a “Nona Arte”, as histórias em quadrinhos passaram
também a ser chamadas de “arte sequencial”. Entretanto, para o autor esta seria uma
denominação insatisfatória para o campo, visto que esta terminologia pode se referir a
outros tipos de produção que não só as histórias em quadrinhos. Por isso, Vergueiro
(2009) prefere o termo “Arte Gráfica Sequencial”. Essa definição, acreditamos, não
significa exatamente dizer o que é ou o que não é, ou o que pode ou não pode ser
considerado história em quadrinhos, e sim uma maneira de definir um espaço de
produção que possa levantar esse debate entre obras de uma forma de arte específica,
desconsiderando, num primeiro momento, qualquer coisa que não faça parte desse
espectro.

A questão agora é observar e analisar os trabalhos quadrinísticos a partir de seus


próprios termos, comparando-os com seus próprios pares, parte de seu próprio espaço e
com suas próprias características, padrões e critérios, sua estética e sua conformação
única, ao contrário de confrontá-los e estudá-los a partir de qualquer outra forma de
produção cultural. Mais além, falar que existe um campo de produção cultural
específico das histórias em quadrinhos e que ele é legítimo e culturalmente valorizado
significa não precisar, no futuro, ficar justificando a escolha dos quadrinhos não só
como diversão, mas também como objeto de estudo. Pensarmos neles como um campo
consolidado, um campo que produz coisas boas e ruins, como qualquer outro, é pensá-
los também como um espaço de debate legítimo, e não apenas uma “fantasia” de fãs
165

apaixonados. Pensar as histórias em quadrinhos como um campo é deixar o “processo”


de lado e transformar o “culturalmente legítimo” em realidade.

Contudo, é sempre preciso - e até de fundamental importância -, ressaltar que


não são só esses quadrinhos que transcenderam as limitações do meio que precisam ser
considerados nesse processo. Os quadrinhos avaliados como mais populares e baratos,
continuam sendo publicados e consumidos em grandes quantidades, influindo na
cultura, na língua e costumes de seu grande número de leitores, moldando seus gostos e
inclinações. Portanto, afirma Luis Gasca (1977), da mesma forma em que se exaltam os
achados estéticos de obras consideradas clássicas para as histórias em quadrinhos,
também é de vital importância, “imprescindível” (GASCA, 1977, p. 10) para a nova
visão dada para essa cultura, não se ater apenas a esses clássicos e analisar e dar vazão a
estes “humildes” e populares personagens que não possuíam, e talvez nem passem a
possuir, o caráter de transcendência.

No final das contas, “estamos, sim, vivendo uma grande época para os
quadrinhos” (VERGUEIRO, 2009, p. 38). Para Vergueiro (2009), mesmo que a
indústria dos quadrinhos continue massificada e massificante – assim como qualquer
outra indústria, seja o cinema, a televisão, etc -, talvez essa seja uma época de grandes
possibilidades para o meio. As obras que permitem o avanço da linguagem não estão
mais engessadas no espaço do quadrinho alternativo; elas alçaram voo e chegaram até o
mainstream, reelaborando e aprimorando os gêneros mais tradicionais dos quadrinhos.
Não há como negar, então, a grande variedade de material disponível: dos trabalhos
mais originais e inovadores até os mais tradicionais; das histórias de super-heróis e de
ficção científica, passando pela autobiografia, pelos registros jornalísticos, ensaios,
conteúdo erótico, romances, entre muitos outros.

Depois de todo esse processo, artistas, leitores e críticos vêm desenvolvendo


uma maior confiança na capacidade dos quadrinhos como um produto culturalmente
legítimo e de real valor por expressarem uma ampla gama de ideias e emoções. Por sua
presença e onipresença no meio social desde o início do século XX, os quadrinhos
contribuíram para modelar a imaginação da sociedade da qual fazem parte e, como um
produto voltado para o consumo de massa, também satisfazem os gostos e desejos
populares, o que inclui, é claro, as necessidades comerciais. Se o reconhecimento dos
quadrinhos como forma de expressão cultural valorizada pelo público em geral passou
166

muito tempo em um estágio inicial, sem nenhum aprofundamento, as coisas mudaram


nas últimas décadas.

Por isso, o otimismo em relação à legitimação do campo é válido e, diríamos


mais, uma realidade. Mesmo que levemos em consideração que ainda existem instâncias
culturais que não os reconhecem como produtos de grande valor, outras tantas abrem
suas portas aos quadrinhos e reconhecem seu valor e importância no espectro cultural
mundial. Se atingir o status de um grande produto cultural parece significar levantar e
dizer algo interessante, então os quadrinhos já chegaram lá; afinal, algo interessante a
dizer é o que não falta às histórias em quadrinhos.
167

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