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São Paulo
2017
BEATRIZ SEQUEIRA DE CARVALHO
Versão Corrigida
São Paulo
2017
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Nome: CARVALHO, Beatriz Sequeira de
Aprovado em:
Banca Examinadora:
Instituição: _____________________________________________________________
Julgamento: ____________________________________________________________
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Instituição: _____________________________________________________________
Julgamento: ____________________________________________________________
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Instituição: _____________________________________________________________
Julgamento: ____________________________________________________________
Assinatura: _____________________________________________________________
Para minha mãe, Fátima (in memorian).
Exemplo de mãe, de mulher, de profissional
e, acima de tudo, de ser humano.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, não só por ter
acreditado no potencial deste projeto, mas por todo o carinho, dedicação e orientação
rigorosa em cada etapa da pesquisa, transformando todo esse processo em uma
experiência inestimável. Com seu vasto conhecimento, mas sem nunca esquecer do bom
humor, cada uma de nossas conversas ajudou no meu desenvolvimento não só
profissional e acadêmico, mas também pessoal, com lições para toda a vida.
Ao meu pai, Carlos, por todo apoio e amor incondicional desde meu nascimento até
agora. Acadêmico que é, ainda contribuiu com vários conselhos sobre esse universo,
com conversas que abriram meu olhar para o mundo e me ajudaram a crescer.
À minha tia Deo, por ser a admiração em forma de mulher. Obrigada por todo o apoio,
palavras de carinho e abraços nos momentos que mais precisei.
À Ester, por me mostrar, mesmo que não perceba, que é preciso buscar ser uma pessoa
melhor todos os dias. Além de me ensinar a ter paciência. MUITA paciência.
Aos meus queridos avós, Zilka (in memorian), Efigênia (in memorian), Zoroastro e
Jader (in memorian) por todo amor, cuidado e histórias, que transformaram cada um dos
nossos momentos em memórias deliciosas.
À Dona Helena, Seu Hamilton (in memorian) e Heloísa, por abriem as portas de sua
casa e me encherem de amor, me fazendo sentir parte dessa linda família.
Às minhas tias Marize e Vânia, não só pelas palavras encorajadoras ao longo dos anos,
mas por terem se tornado verdadeiros exemplos para mim.
À Yara e Uli, meus “pais postiços”, e à Dona Vilma (in memorian), vulgo “Omi”, por
me ensinar a forma correta de falar “Spiegelman”.
À Adriana, Oscar e Eliana, por terem entrado na família e tornado tudo mais divertido.
À todos os meus tios e tias, primos e primas, meu mais profundo agradecimento. Seria
impossível listá-los sem esgotar todo o espaço, mas tenham certeza do lugar especial
que vocês têm na minha vida.
Aos professores doutores que ministraram as disciplinas que cursei na ECA, Mayra
Rodrigues Gomes, Sandra Reimão, Maria Cristina Palma Mungioli, Celso Frederico e
Alice Mitika, não só por todo o conhecimento que passaram, mas por me fazerem ter
certeza que aqui era meu lugar.
Ao Prof. Dr. Ian Gordon, por acreditar em meu potencial, por todas as dicas e conselhos
e pelas palavras de encorajamento nos último dois anos.
Um agradecimento mais do que especial àqueles que são meu suporte, meu alicerce,
minha rocha, meus queridos amigos Beatriz Tolezano, Lenora Bruhn, Isabelle Pignot,
Bruno Gaspari, Gabriela Tremonte, Jaca Almeida, Daniela Marino, Maria Sant’anna,
Natália Marreti, Roberta Campi, Gabriela Favarini, Mariana Almeida, Gean Gonçalves,
Camilla Carandino, Guilherme Gurgel, Pricila Graziano e Luiza Dequech. Tenham
certeza que sem o amor e o suporte de vocês eu não teria chegado até aqui.
This study aims to seek a greater understanding of comics as a cultural product and to
understand how, over the years, it has undergone a process of legitimation that has
removed it from the stigma of mere mass article, with no cultural value, for a culturally
valued object. We sought at first to understand where prejudice against mass culture and
consequently against comics arises, and how such prejudice can be understood from a
relation of power established by the use of the concept of "culture ". For this, the initial
methodological approach was based on the Cultural Studies, especially from the
reformulation of the concept of culture proposed by Raymond Williams, in addition to
the premises of other culture scholars, focusing mainly on the concepts of ideology, by
John B. Thompson, and of distinction, by Pierre Bourdieu. Within a phenomenological
approach, the Depth Hermeneutics proposed by John B. Thompson was selected. The
technique of data collection used is indirect documentation, constituted by bibliographic
research (texts, academic or not, related to the object and methodology adopted) and
documentary research (the set of selected comics). A time line was drawn, in the North
American context, which sought to demonstrate that the process of cultural legitimacy
began in the 1960s with the European intellectual movement and the North American
underground movement, followed by the publication of Art Spiegelman’s Maus and the
arrival of graphic novels in the market. In addition, we tried to elucidate how comics
constitute a specific and autonomous field of cultural production that has little to do
with the field of literature or the plastic arts. To this end, we turned to Pierre Bourdieu’s
field concept. As main results, it was identified that the comic books came to be valued
as a legitimate cultural product and instances that previously despised them, began to
recognize its value and importance in the world cultural spectrum. With these results, it
aims to contribute to the crystallization of the understanding of comics as a legitimate
cultural production field, making the debate about it grow and diversify more and more.
Figura 1 – A análise quadro a quadro de Steve Canyon feita por Umberto Eco também
modificou os parâmetros das pesquisas em quadrinhos..................................................80
Figura 2 – Trabalho de S. Clay Wilson para a Zap Comix..............................................84
Figura 3 – Extrato de The Fabulous Furry Freak Brothers, de Gilbert Shelton……….86
Figura 4 – Mr. Natural, um dos grandes personagens do underground..........................88
Figura 5 – Capa original de Breakdowns, autobiografia de Spiegelman.........................95
Figura 6 – Trabalho de Spiegelman na capa da revista The East Village Other,
considerada um dos primeiros semanários underground e que ajudou a definir o que
hoje é conhecido como anos 60......................................................................................96
Figura 7 – Extrato de Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary, de Justin Green……98
Figura 8 – Capa da edição #7 da Arcade, que trouxe trabalhos de Robert Crumb, Harvey
Kurtzman, Spain Rodriguez, S. Clay Wilson, entre outros quadrinistas do
underground....................................................................................................................99
Figura 9 – A primeira versão de Maus, de 1972, publicada na revista Raw.................100
Figura 10 – A primeira cena de Maus e nosso primeiro contato com Vladek..............102
Figura 11 – Um pequeno exemplo do por que o tema, o estilo, a técnica e a coragem
fizeram de Maus uma obra sem precedentes.................................................................105
Figura 12 – Capa de Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, de Will
Eisner.............................................................................................................................111
Figuras 13 e 14 – Capas das duas edições de Maus, lançadas separadamente e depois
compiladas.....................................................................................................................113
Figura 15 – Capa do capítulo II de Watchmen. Publicada originalmente em doze edições
mensais, foi posteriormente compilada e classificada como graphic novel..................113
Figura 16 e 17 – Habib, de Craig Thompson e Asterios Polip, de David Mazzucchelli:
obras mais longas que já chegaram às mãos do público finalizadas.............................114
Figura 18 – Extrato do segundo volume de Terapia, disponibilizado na internet. O
primeiro volume ganhou versão impressa pela editora Novo Século...........................127
Figura 19 e 20 – Epiléptico, de David B. e Black Hole, de Charles Burns, histórias que
se privilegiaram e que talvez não fossem possíveis sem o novo suporte......................128
Figura 21 – Como a imagem e o texto funcionam em Alice no país das
maravilhas.....................................................................................................................156
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................12
Hipótese..........................................................................................................................15
Objetivo geral ..............................................................................................................15
Objetivos Específicos ....................................................................................................16
Metodologia e fundamentação teórica........................................................................16
A estrutura do trabalho................................................................................................22
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................160
REFERÊNCIAS.........................................................................................................167
12
INTRODUÇÃO
Sou, digamos, uma leitora recente de quadrinhos. Apesar de desde pequena ter
contato com as histórias em quadrinhos, meus interesses se estendiam à Turma da
Mônica, Mafalda e uma ou outra revista da Disney que minha mãe trazia para casa
quando ia comprar suas palavras-cruzadas. E era só. Meu entendimento do que eram as
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histórias em quadrinhos se resumia a isso. Ainda que meus pais jamais tenham proibido
a leitura delas, nem mesmo quando eu e meus dois irmãos saímos da infância, tampouco
nenhum de nós três tomou os quadrinhos como um hobby. Isso, entretanto, não impediu
que Artur, Henrique e eu nos interessássemos pelos outros produtos derivados das
grandes histórias de super-heróis. Éramos, os três, loucos pelo desenho dos X-Men da
década de 1990 e eu, particularmente, apaixonada pelos dois filmes do Batman de Tim
Burton (1989; 1992), por mais que o Pinguim do Denny DeVitto me desse - e ainda dê
– calafrios e que ainda considero como os melhores filmes baseados no Homem-
Morcego - mesmo que praticamente todo mundo que conheço prefira a Trilogia o
Cavaleiro das Trevas dirigida por Christopher Nolan (2005; 2008; 2012). Fazer o quê?
coordenado por ela, do qual fiz parte, o foco era a etnografia. Intitulado Jovens
Urbanos: ações estético-culturais e novas práticas políticas, a proposta era a de fazer
uma análise das novas práticas políticas juvenis do Brasil que estivessem desvinculadas
da política tradicional, focando em manifestações estético-culturais que se constituem
como lugares de ações políticas. Apesar de ter feito parte do grupo e aprendido muito
durante dois anos e meio, na hora de escolher o tema da monografia me vi presa em um
dilema. E não porquê eu não gostava do que fazia na iniciação científica, mas porquê no
terceiro ano, um pouco antes dos alunos escolherem o tema dos seus trabalhos finais, li
uma obra que acabaria mudando para sempre - sem exageros – a minha vida: Maus.
Por isso, assim como aconteceu com Mel Gibson, esses incidentes aumentaram
ainda mais minha vontade de estudar as histórias em quadrinhos para entender, afinal, o
porquê do choque das pessoas quando aquelas se tornam um objeto de pesquisa. Para
mim, não fazia sentido dizer que uma obra como Maus, ou qualquer outra que passei a
ler desde então, podia ser considerada menos interessante ou relevante do que qualquer
outro objeto escolhido por meus colegas. Além disso, como alguém podia dizer que
quadrinhos são literatura se, para mim, uma coisa não tinha nada a ver com a outra? Foi
então que minha monografia, concluída em 2011 e intitulada A “Art” de Spiegelman: as
histórias em quadrinhos como gênero literário e a estética mausiana (CARVALHO,
2011), que focaria apenas em Maus e em Art Spiegelman, ganhou um pequeno capítulo
que buscava entender o que se tinha contra os quadrinhos e a cultura de massa. E foi a
partir desse pequeno capítulo, e de toda a discussão que ele gerou na minha cabeça, que
eu cheguei até aqui.
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Hipótese
Objetivo Geral
Objetivos específicos
primeira parte deste estudo, fazer uma análise cultural a partir das noções de ideologia e
dominação, este se constitui em um bom caminho a ser seguido.
Raymond Williams é o teórico dos Estudos Culturais que melhor tratou a ideia
de que uma cultura dita “superior” rejeita a cultura de massa graças a uma visão elitista
que despreza a massa em si. Isso, porque Williams (1979; 1992; 2003; 2011)
compreendeu que, ainda no século XVIII, a cultura passou a significar algo em si
mesma, um valor que se possui ou, mais especificamente, um valor que apenas alguns
têm ou que podem aspirar a ter. Quando se espiritualiza, portanto, automaticamente se
exclui, pois essa “verdadeira cultura” se confunde com a educação a que apenas alguns
têm acesso: os homens superiores. Raymond Williams, deste modo, junta-se ao
movimento de desconstrução dessa ideia de cultura, levando a cabo assim a
reconstrução do conceito.
É só a partir de todas essas premissas que, acredito, seja possível entender como
as histórias em quadrinhos passaram por um processo de legitimação cultural. Se antes
elas sofriam com o desprestígio, que pode ser melhor compreendido por meio dos
questionamentos levantados a partir da contextualização dos conceitos dos autores
apresentados, parece agora que elas dissolveram as barreiras entre “alta” e “baixa”
cultura e passaram a figurar no hall dos grandes objetos culturais. Isso, porque os dois
movimentos que se estabelecem na década de 1960, somados à publicação e
reconhecimento de Maus e à invasão das graphic novels no mercado permitiu que os
quadrinhos deixassem de lado o estigma que por décadas carregaram de ser apenas um
entretenimento barato e sem nenhum valor cultural. Entretanto, esse processo de
legitimação cultural ainda não chegou ao fim. A solidificação desse processo só se dará
quando a noção de que história em quadrinhos constitui um campo de produção cultural
específico, que pouco tem a ver com o da literatura ou das artes plásticas, como
22
A estrutura do trabalho
A palavra “cultura” talvez seja uma dessas palavras na qual o seu verdadeiro
significado permaneça uma incógnita. Se puxarmos pela memória, lembraremos de
vários momentos em que as conversas com os amigos, ou mesmo na sala de aula,
levantaram a questão: “Mas, afinal, o que é cultura?”. E a resposta a essa pergunta
sempre parece sem solução. Entretanto, sempre que essa pergunta surge, ela está ligada
a algum questionamento referente ao que pode ou não ser considerado como “cultura de
verdade”, ou seja, aquilo que é digno de ser considerado ou não como um objeto
cultural. Muitos são os exemplos: enquanto a música clássica, o filme cult do grande
diretor europeu e a literatura são considerados como “cultura de verdade”, o funk, a
franquia de filmes blockbuster e - por muito tempo – as histórias em quadrinhos, são
considerados como inferiores, como não dignos de serem chamados pelo nome de
“cultura”.
Por isso, apesar dos inúmeros desenhistas que levaram à frente um pensamento
mais amplo, criando histórias que retratam, por meio do humor e da crítica social, cada
época, cada momento da vida do ser humano da maneira mais direta possível,
marcando, definitivamente, os acontecimentos do século XX (LUYTEN, 1987), os
quadrinhos sofreram muito no que diz respeito ao desprestígio por parte de intelectuais
e educadores. A condição de “subproduto da cultura” que segue os quadrinhos se dá
exatamente por sua estrutura industrial de grande escala, que envolve interesses
econômicos que poderiam, segundo críticos, comprometer seu relacionamento mais
dinâmico com a cultura.
Nesse contexto, nosso questionamento não será mais aquele discutido na roda de
amigos ou na sala de aula que tentava entender “mas, afinal, o que é cultura?”; agora,
para tentar explicar o porquê dos quadrinhos terem sido por tantas décadas considerados
como um subproduto da cultura, nosso foco será o de tentar responder à seguinte
pergunta: “mas, afinal, quem definiu o que é e o que não é cultura?”.
humanas, também tem sua origem no trabalho e na agricultura, colheita e cultivo. Para
Eagleton (2011), a palavra “cultura” representa uma dessas raras ideias que são
essenciais tanto para a esquerda política quanto para a direita, o que faz com que sua
história social seja extraordinariamente confusa e ambivalente. Assim, indo no sentido
oposto ao da maioria, afirma Eagleton que a definição de cultura é menos uma questão
de desconstruir a oposição entre cultura e natureza e mais uma questão de se reconhecer
que o termo “cultura” é, por si só, uma desconstrução. Entretanto, ainda segundo
Eagleton (2011), há outro sentido no qual a palavra cultura está voltada para duas
direções opostas, sugerindo uma divisão entre nós mesmos: entre aquela parte de nós
que se cultiva e refina, e aquilo que dentro de nós constitui a matéria-prima para esse
refinamento (EAGLETON, 2011, p. 15).
Segundo Williams (2011), entre o final do século XVIII e até a metade do século
XIX, palavras que hoje são importantes na língua inglesa surgiram pela primeira vez e,
mesmo aquelas que já haviam sido utilizadas anteriormente, ganharam novos
significados também importantes. Tais palavras estão ligadas entre si, na medida em
que há um padrão geral de mudança em todas elas, e este padrão fornece um caminho
que torna possível analisar mudanças mais amplas na vida e no pensamento. Estas
palavras, segundo Williams (2011), são: indústria, democracia, classe, arte e cultura.
As mudanças ocorridas com essas palavras em língua inglesa, naquele período, são
indicativos de uma mudança geral também nas instituições sociais, políticas e
econômicas, os objetivos dessas instituições, as relações com elas e os objetivos de
nossas próprias atividades.
depois, por analogia, um processo de treinamento humano. Esse último uso, de cultura
de “algo”, passou por uma transformação no século XIX e caiu em desuso, dando
espaço para uma cultura “como tal”, uma coisa em si mesma. Nesse sentido, são quatro
as características desse novo significado: 1) “um estado geral ou hábito da mente” –
ligado com a ideia de perfeição humana; 2) “uma situação de desenvolvimento
intelectual em uma sociedade comum a todos”; 3) “o corpo geral de artes”; 4) “todo um
modo de vida, material, intelectual e espiritual” - ou seja, “cultura” em seu sentido
antropológico (WILLIAMS, 2011, p. 18).
Uma das fontes primárias da ideia de cultura encontra-se, dessa forma, nos
escritos de Wordsworth (WILLIAMS, 2011). Baseando-se na teoria social de Burke,
Wordsworth entendia a cultura como o “espírito personificado de um povo”, como uma
espécie de padrão de excelência, em que o conhecimento do povo é algo superior ao
verdadeiro curso dos eventos e do funcionamento do mercado. No decorrer do século
esse padrão de excelência passou a ser disponível, como uma espécie de tribunal de
recursos em que os reais valores eram definidos a partir de sua oposição com o que
considerava padrões artificiais.
Houve uma consequência positiva da ideia de arte e cultura feita pelos idealistas
românticos: entendê-las como uma realidade superior oferecia as bases para a crítica ao
industrialismo. Entretanto, também houve, segundo Williams (2011) a consequência
negativa: à medida que a oposição se desenvolvia, tendeu-se a isolar a arte,
especializando a faculdade imaginativa nesse único tipo de atividade, enfraquecendo
assim sua função dinâmica e tendendo a ligar diretamente a noção de “cultura” à de
“arte”.
fantasia. De tal modo, a cultura passou a designar, assim como reforçado por Williams
(2011) a erudição e as artes, atividades restritas a uma pequena porção da humanidade
(EAGLETON, 2011, p. 29). A cultura, a partir desse momento, passa a significar um
corpo de trabalhos artísticos e intelectuais de valor reconhecido, juntamente com as
instituições responsáveis por produzir, difundir e regular esses trabalhos.
A partir dessa significação, passou a haver a distinção entre o que era produzido
com fins estritamente culturais – a fim de cumprir a exigência do entendimento de que
cultura seria apenas o cultivo da mente, ou seja, como artes e como o trabalho
intelectual – e o que era produzido apenas com fins mercadológicos. Um exemplo disso,
afirma Williams (1992), é a noção da cultura letrada como sinal de privilégio. Isso,
porque com a invenção da escrita, de acordo com Williams (1992), surge junto com ela
uma assimetria fundamental entre o uso desse novo meio e a participação. Essa
assimetria se agrava à medida que a escrita vai ganhando cada vez mais importância, ao
mesmo tempo em que a capacidade de leitura cresce a passos muito lentos. As relações
entre a cultura oral e esse novo e importante setor dentro dela se tornam cada vez mais
complexas, fazendo com que surja assim uma diferença qualitativa entre a área oral, que
todos compartilham - ao mesmo tempo em que a maioria está confinada a ela - e a área
letrada, que cresce cada vez mais em importância cultural e que é, ao contrário,
privilégio de uma minoria dominante.
É nesse contexto que a maioria da população passa a ter acesso aos meios
culturais; e é a partir daí que os problemas começam. Segundo Russel Nye (1982), uma
cultura que estivesse ao alcance de todos, assim como suas artes derivadas, não poderia
existir em um contexto sociocultural anterior ao século XVIII. É claro que é possível
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supor que um grande número de pessoas antes desse período encontrava prazer em
vários meios de diversão, mas foi apenas com a emergência e ascensão da sociedade de
massa no século XVIII, ou seja, a inclusão da maioria da população na sociedade, que
uma cultura com caráter popular passou a existir. Em outras palavras, foi apenas com o
aparecimento de uma civilização da classe média no mundo ocidental, seguido
diretamente pela queda na importância da elite e na diminuição da população das
classes mais baixas, que o cenário cultural se modificou radicalmente. O período, dessa
forma, viu estabelecer na sociedade uma tradição artística “tripla”: a arte popular (folk
art, a arte folclórica de cada povo), a arte “alta” e a nova arte “pop”, a última uma nova
arte voltada para a massa que ascendia socialmente. Nessa nova conjuntura, a elite não
mais podia legislar tão imperiosamente frente à nova e poderosa classe média.
Segundo Nye (1987), quando essa revolução acabou com os padrões culturais da
classe dominante, o espraiamento da educação e da alfabetização pelas demais classes
acabou criando uma nova audiência que representava os gostos da população em geral,
que passou a deter os meios de produção e transmissão culturais, antes dispostos apenas
nas mãos de uma pequena elite privilegiada. Essa nova sociedade que se formava, mais
democrática, tinha mais tempo livre e mais recursos e precisava, em consequência, de
uma cultura – que não fosse a folclórica ou a de elite – que pudesse preencher esse
tempo e fazer uso desse dinheiro.
No final das contas, a cerne do problema não é essa nova cultura de massa, e sim
a possibilidade de acesso das massas aos demais “níveis” de cultura: é um problema
político e social, de escolaridade, de possibilidade de escolha. O problema se encontra,
portanto, na cultura como ferramenta de distinção e como ideologia de dominação de
uma classe sobre a outra. Para tentar entender, portanto, como a definição de uma
cultura entendida como “superior” por uma classe minoritária e dominante funciona
como instrumento de dominação, nos debruçaremos sobre as noções de “distinção” de
Pierre Bourdieu (2007) e de “ideologia” de John B. Thompson (1995).
Segundo Bourdieu (2007), a ideia de uma percepção artística que se impõe como
legítima, ou seja, a disposição estética como uma capacidade de ver as obras legítimas –
aquilo que popularmente chamamos de um “olho bom” para identificar objetos culturais
legítimos - tanto as vistas como “culturais” como as que ainda estão em vias de
consagração (as chamadas “artes médias”), é uma invenção histórica, reproduzida pela
educação, que surge a partir do aparecimento de um campo de produção artístico
autônomo, capaz de determinar suas próprias regras, seja na produção ou no consumo
de seus produtos.
O gosto funciona, portanto, como um dos pretextos para as lutas que se dão no
campo tanto da classe dominante quanto no campo da produção cultural, e isso ocorre
por dois motivos: primeiramente porque o julgamento do gosto é a ferramenta perfeita
para que se chegue ao discernimento, que define o homem; em segundo lugar, porque a
definição do que é indefinível revela o “filistinismo”, a ignorância cultural,
transformando o gosto no mais certeiro indício do que representa a verdadeira nobreza
cultural (BOURDIEU, 2007, p. 17).
Destarte, essa noção de “nobreza cultural”, como colocado por Bourdieu (2007)
é definida a partir do gosto de um grupo, transformando-se em ferramenta de distinção
social ou, em outras palavras, em ferramenta de dominação. Assim, a nobreza cultural
define e aprecia a dita cultura legítima - ou a “alta cultura”, em oposição à “baixa
cultura, como a cultura de massa -, que se constitui, então, como uma forma simbólica
que se estabelece como “ideologia”, assim como na visão de John B. Thompson (1995)
Tendo em vista tais modos e suas estratégias, o que nos interessa, para fins dessa
pesquisa, é o modo chamado por Thompson (1995) de “legitimação”. Relações de
dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas
como legítimas, ou seja, como justas e dignas de apoio, como é o caso dos defensores
de uma “alta cultura”. A representação das relações de dominação como legítimas pode
ser entendida como uma exigência de legitimação baseada em certos princípios e
expressa em certas formas simbólicas e que pode, dependendo das circunstâncias, ser
mais ou menos efetiva.
As formas simbólicas, desse modo, são ideológicas apenas quando servem para
estabelecer e sustentar relações sistematicamente assimétricas de poder e é esse
princípio, que está a serviço de grupos e pessoas em posições dominantes, que
circunscreve o fenômeno da ideologia, concedendo-lhe sua especificidade e
distinguindo-o da circulação de formas simbólicas em geral. Ideologia, dentro da
concepção proposta por Thompson (1995), é por natureza hegemônica, pois reproduz,
por meio das relações de dominação, a ordem social que favorece esses grupos
dominantes. Portanto, a concepção de uma cultura verdadeira e legítima, em sua
acepção culta, chamada de “alta cultura”, funciona como uma forma simbólica
ideológica utilizada pelas classes dominantes para se distinguirem das demais classes e
legitimarem a sua própria forma de apreciação cultural, ignorando e menosprezando as
demais.
A concepção dos marxistas e seu combate contra a cultura de massa podem ser
explicados pelas decepções destes com as massas. Isso, porque segundo Lazersfeld e
Merton (1971), existem três fatores relacionados que são a base da preocupação do
homem com os meios de comunicação de massa. Em primeiro lugar, muitos temem a
onipresença e poder potencial desses meios; em segundo lugar, a preocupação com os
atuais efeitos desses meios de comunicação em seu público extenso e, principalmente,
que o avanço desses meios e seus efeitos possam levar ao fim das faculdades críticas e a
um conformismo inadvertido; por último, o temor de que esses instrumentos
tecnicamente desenvolvidos da comunicação de massa constituam uma grande abertura
para a deterioração dos gostos estéticos, constituindo-se deliberadamente em canais de
suprimento para gostos vulgarizados.
Para aqueles que fizeram parte do movimento reformista, esses novos meios de
comunicação fraudaram os frutos das vitórias por eles alcançados. O ataque à cultura de
massa, portanto, encontra uma de suas origens na suposta traição que se cometeu contra
a instrução e a nova liberdade conseguida. Entretanto, para Edgar Morin (2011), a
crítica de direita talvez tenha sido a mais condenatória e, em consequência, a que mais
males tenha causado à imagem da cultura de massa. Tal crítica, segundo o autor, tem
suas raízes num viés elitista e aristocrático.
Isso, porque, segundo Morin (2011), o acesso à cultura e aos objetos culturais,
fossem quais fossem, ficavam retidos pelas fronteiras de classes. Desse modo, mesmo
quando o camponês ou operário tiveram o primeiro acesso à cultura a partir da
alfabetização, ainda assim permaneceram à margem dos demais. O teatro, por exemplo,
continuou a ser um privilégio de consumo burguês (MORIN, 2011, p. 30). O cinema,
então, foi a primeira das culturas de massa a reunir em seus circuitos espectadores de
todas as classes sociais, sejam elas urbanas ou camponesas. Nesse sentido, entende-se
que as fronteiras culturais são abolidas com a chegada da cultura de massa. Mais ainda:
as estratificações são reconstruídas no interior dessa nova cultura. Pode-se dizer, é claro,
que o cinema de “arte” e o cinema “popular”, ou dos ditos “blockbusters” diferenciam o
público cinematográfico, mas essa diferenciação não é a mesma que a das classes
sociais. Para Morin, portanto, “[...] a cultura industrial é o único grande terreno de
comunicação entre as classes sociais” (MORIN, 2011, p. 31).
A análise cultural dos Estados Unidos no século XX era dominada por uma
única perspectiva: a tendência a comparar o gosto das diferentes audiências umas com
as outras. A concepção de uma cultura elevada, a chamada “alta cultura”, relacionada a
uma minoria que representava uma elite cultural, era vista com alto prestígio e
legitimidade, enquanto denegriam-se as escolhas culturais da maioria do público. A
crítica à cultura de massa, dessa forma, baseou-se em uma gama de forças que criou
relações entre arte e política (BEATY, 2005, p. 48), levando ao triunfo de uma
abordagem altamente conservadora e elitista no estudo da cultura da mídia que enxerga
os receptores como simples massificados.
1
Supreme cultural commentators.
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usos e efeitos das mídias de massa. Não obstante, apesar de seu alcance e proeminência
na história norte-americana, o ponto de vista crítico da cultura de massa esteve
associado com uma forma europeia particular de distinguir classes e pertencimento
social por meio da cultura. A perspectiva pessimista adotada pelos intelectuais da época
seguia, segundo Beaty (2005), a adoração a uma ideia de alta cultura, ou “arte genuína 2”
(BEATY, 2005, p. 58), que poderiam mostrar como é o mundo ao mostrar como ele não
é.
2
“Genuine art”
42
Na crítica adorniana, a indústria cultural vai mais além ao forçar a união dos
domínios da arte superior e da arte inferior, que por muitos anos permaneceu separada.
Essa união, no caso, só causaria prejuízo para ambos os lados: “a arte superior se vê
frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de
sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era
inerente enquanto o controle social não era total” (ADORNO, 1971a, p. 288).
Para o pensador, a ideia de que o mundo quer e gosta de ser enganado é hoje
mais verdadeira do que nunca. Se os próprios defensores da indústria cultural, diz ele,
objetam à ideia de que ela pretende ser arte, isso constitui-se como ideologia ao querer
eximir-se da responsabilidade em relação à base de seu negócio. As ideias que ela
coloca em ordem são, sempre, as do status quo, aceitas sem objeção ou análise e, por
isso,
felicidade que ela enganosamente propicia. Ela impede, assim, que os indivíduos sejam
autônomos, independentes e capazes de julgar e de tomar decisões por conta própria.
Entretanto, Robert Witkin (2003) nos lembra que Adorno nunca deixou de
reconhecer que havia artistas talentosos e habilidosos trabalhando dentro do sistema da
indústria cultural. O problema, para ele, não era esse, mas aos interesses que serviam
esses artistas e os usos que eram feitos de seus trabalhos. O maior problema de Adorno,
portanto, é que, em sua visão, a cultura deveria ser uma ferramenta de mudança e
autodesenvolvimento do indivíduo. Ao contrário, a indústria cultural, o que o pensador
chamava de “pseudo-cultura”, como produto do mercado capitalista, servia apenas para
manter as pessoas na linha, em uma escravidão conformada, neutralizados (WITKIN,
2003, p. 30).
A crítica de José Ortega y Gasset (2013) no livro A rebelião das massas talvez
seja uma das mais severas. Logo nas primeiras páginas desta que é considerada sua obra
prima, Ortega y Gasset (2013) aponta que o problema central da nossa sociedade é a
ascensão ao poder do “homem de massa”. Para ele, a massa não respeita mais os valores
da elite portadora de cultura e busca desbancar tais valores e impor os seus próprios. A
massa, na visão do autor, avançou para o primeiro plano da vida social e passou a gozar
dos lugares, instrumentos e prazeres que antes eram reservados a poucos. O autor chega
a ponto de constatar que os lugares não são destinados à multidão, pois esses não
conseguem acomodá-la em seu espaço, causando o transbordamento do mesmo. Esse
novo fenômeno de ascensão das massas está “[...] suplantando as minorias” (ORTEGA
Y GASSET, 2013, p. 43). Para Ortega y Gasset, a vulgaridade tomou conta da
sociedade, e é a massa que proclama o direito à vulgaridade e tenta impô-la a todo
custo. Na ideia de estandartização, ainda assinala que a massa esmaga tudo aquilo que é
diferente, individual, excelente, seleto e qualificado. Quem não pensar e agir como todo
45
o mundo, pode até mesmo ser eliminado. “E claro que esse ‘todo o mundo’ não é ‘todo
o mundo’. ‘Todo o mundo’ era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias
discrepantes, especiais. Agora todo o mundo é só massa” (ORTEGA Y GASSET, 2013,
p. 44, grifo do autor).
A crença desses e de tantos outros autores no mito que a cultura irá declinar se a
massa ascender revelou que a cultura de massa acabou se tornando o receptáculo de um
problema cultural sério no período pós-Segunda Guerra: a briga entre a conservação da
elite e ascensão das massas (SELDES apud BEATY, 2005, p. 73).
pensado, e sim por sua posição no conjunto das relações sociais, sendo definidos,
pensando em termos de divisão social do trabalho, como uma classe social de
indivíduos que se dedica exclusivamente ao trabalho intelectual. Embora assumam
posições diferentes dependendo da sociedade em que estão inseridos, os intelectuais
sempre gozaram de posição privilegiada no interior da divisão social.
Seja qual for a sociedade da qual fazem parte, os intelectuais sempre possuíram
remuneração maior do que as classes exploradas. Assim sendo, constituem-se como
uma classe social que ocupa um papel específico no processo de reprodução da
sociedade e os privilégios oriundos desta relação. Apesar dessas semelhanças, sua
constituição e forma de ação dependem das relações sociais e modo de produção da
sociedade da qual fazem parte, revelando que também existem diferenças entre os
grupos de intelectuais de acordo com o contexto do qual fazem parte. Outro ponto em
comum entre os intelectuais é que em qualquer sociedade, além de se dedicarem
exclusivamente ao trabalho intelectual, são parte das classes privilegiadas, atuando
como uma “classe auxiliar” da classe dominante (VIANA, 2006).
Tendo como função a produção e/ou reprodução de saberes que são de interesse
da classe dominante, os intelectuais, “[...] por sua função social e os interesses e valores
derivados dela, são agentes da conservação, e não da transformação” (VIANA, 2006).
Assim, a suposta “liberdade” e “autonomia” usufruídas pelos intelectuais na verdade são
uma farsa. Seus interesses particulares estão sempre ligados aos da classe dominante, da
mesma forma que seus privilégios dependem da manutenção do status social. No
entanto, produzir e reproduzir o discurso da autonomia faz parte de seus interesses, pois
assim garantem sua conexão com o poder e ganham legitimidade sem que se faça
perceber sua subserviência em relação à classe dominante (VIANA, 2006).
Esse estilo distintivo de vida é possível graças ao que Thompson (1995) vai
chamar de “processos de valorização”, uma das consequências da contextualização das
formas simbólicas. Estas são frequentemente submetidas a complexos processos de
valorização, avaliação e conflito. Os dois processos de valorização que possuem maior
importância são, segundo Thompson: 1)“valorização simbólica”: processo no qual é
atribuído às formas simbólicas um determinado valor simbólico pelos indivíduos que as
produzem e recebem. O valor simbólico é aquele que os objetos possuem a partir do
momento em que são estimados pelos indivíduos que o produzem e recebem, ou seja,
objetos que são por estes aprovados e apreciados, ou condenados e desprezados. 2)
51
Para Eagleton (2011), assim como outras formas concretas de poder, a alta
cultura é simplesmente uma forma de persuasão moral. Ela é uma das formas pelas
quais uma ordem governante molda para si uma determinada identidade, com o intuito
de intimidar tanto quanto de inspirar. Entretanto, a fronteira entre “alta” e “baixa”
cultura foi corroída por mídias como o cinema e as histórias em quadrinhos, que
conseguiram acumular uma bela coleção de obras-primas, ao mesmo tempo em que
agradam praticamente a todos. Na realidade, não é o conteúdo da alta cultura que
deveria ser problematizado, e sim sua função. O que é questionável é que ela tem sido
usada como um “emblema espiritual” (EAGLETON, 2011, p. 81) de um grupo
privilegiado e hegemônico.
54
Esse emblema espiritual, assim, definiu as obras que poderiam ser consideradas
“boas” e desprezou as que considerava “ruins”. O que acabou sempre importando,
portanto, não são as obras em si, mas como elas são interpretadas pelo coletivo, coisa
que os próprios autores das obras não poderiam ter previsto no momento de sua
produção. Afirma Eagleton que Shakespeare em si não é uma “alta cultura”, o que é
erudito, na verdade, são os usos sociais que são feitos da sua obra. Da mesma forma, o
conteúdo dessa obra tão pouco importa, mas, sim, o que ela significa hoje. No caso, a
defesa de certa “civilidade” contra as novas formas de barbarismo trazidas pelas
culturas modernas (EAGLETON, 1981, p. 81)
Toda essa atenção dada aos males da cultura de massa, dentre tantos outros
exemplos que poderíamos citar, era tamanha na época que Henry Rebassiere, em um
artigo publicado em 1956, escreveu que as preocupações dos intelectuais com o
entretenimento de massa haviam se tornado, elas mesmas, uma nova forma de cultura
de massa (apud BEATY, 2005, p. 73). Beaty (2005, p.73) ainda lembra o que apontou
H. Stuart Hughes em 1961: a ideia de uma cultura de massa, por si só, depende do
elitismo cultural, porque foram as elites culturais que primeiro perceberam e
transformaram a cultura de massa em um problema. Para Hughes, a cultura de massa
não corrompe os gostos dos receptores; os intelectuais é que constantemente leram de
maneira equivocada os gostos do público e erroneamente os condenaram como
portadores de uma arte vulgar.
Seguindo essa linha, para uma abrangente literatura sobre percepção e cognição,
o organismo humano não ouve, vê ou toca simplesmente o que está a sua disposição; ao
contrário, percebe o que quer perceber (RILEY JR.; RILEY, 1971, p. 125). Sendo
assim, suas percepções estão ajustadas às necessidades, valores, experiências e emoções
passadas por cada indivíduo. Mais uma vez, pensar no receptor da era da comunicação
de massas como inegavelmente alienado é uma afirmação muito perigosa. Por isso, essa
crítica parcial e execratória feita à cultura de massa começa a parecer esvaziada de
sentido.
Nessa crítica à cultura de massa, tudo parece opô-la à cultura dos eruditos.
Enquanto a segunda preza prela qualidade, a primeira preza pela quantidade; enquanto a
primeira busca elevação estética, a segunda pensa apenas na mercadoria; enquanto uma
tem como base a espiritualidade, a outra apoia-se no materialismo (MORIN, 2011, p.
08). Contudo, afirma Edgar Morin (2011, p. 09), antes de alegar com certeza que essa
concepção dos cultos em relação à cultura de massa é válida, é preciso nos
perguntarmos se os valores dessa “alta cultura” não são eles mesmos dogmáticos e
mitificados demais. Dito isso, entendemos que tudo o que é inovador, assim como o
foram o cinema, a fotografia e as histórias em quadrinhos em seu surgimento, se opõem
às normas dominantes da cultura hegemônica de um período.
56
Assim sendo, mesmo que uma cultura seja hegemônica (WILLIAMS, 1979) e
ideológica (THOMPSON, 1995), ela não é única e muito menos eterna; é apenas a
cultura vigente da época. Por conta disso, surgem as culturas que Williams (1979) vai
chamar de “residuais” e “emergentes”. As culturas chamadas “residuais” se dão na
medida em que qualquer cultura inclui elementos provenientes de seu passado, mas seu
papel no processo cultural contemporâneo é variável. Por definição, o residual foi
formado no passado, mas ainda é ativo no processo cultural, não só como parte do
passado, mas como elemento efetivo do presente. Assim, certos significados e valores
que não podem se expressar em termos de cultura dominante, mesmo assim ainda são
vividos e praticados por meio do resíduo de uma instituição ou formação social e
cultural anterior. Já o “emergente” é entendido como os novos significados, valores,
práticas e relações que são continuamente criados. O emergente é alternativo ou oposto
à cultura dominante e, por isso, assim como no caso do residual, deve ser entendido e
feito com um sentido pleno do dominante. A prática cultural emergente, portanto, é
inegável e, juntamente com a prática residual, constitui uma necessária e inevitável
complicação da dita “cultura dominante”.
de lutar contra a nova cultura que surge, a classe dominante se utiliza de estratégias de
legitimação e, com isso, a hegemonia, para a maioria das pessoas da sociedade, acaba
adquirindo um sentido de realidade (WILLIAMS, 1979), ou seja, a hegemonia não diz
respeito somente aos interesses de uma classe dominante, mas também é aceita como
uma realidade normal por aqueles que, na prática, são subordinados a ela (WILLIAMS,
2003, p. 160).
Isso quer dizer que uma obra pode adquirir certo grau de legitimação quando lhe
é atribuído um valor simbólico, por exemplo. Isso faz com que esse trabalho seja
reconhecido como legítimo não apenas por aqueles que possuem uma posição
privilegiada na hora de atribuir valor simbólico, mas também por aqueles que
reconhecem e respeitam a posição daqueles (THOMPSON, 1995, p. 204). A imposição
da legitimidade, assim, tem como principal característica e função impedir que algum
dia seja possível determinar se o dominante é visto como distinto ou nobre por ser
dominante, por sua própria existência privilegiada, ou se é somente por ser dominante
que ele detém essas qualidades sendo, inclusive, o único que tem o direito de defini-las
(BOURDIEU, 2007, p. 88).
Segundo Umberto Eco (2008), dentre essas várias críticas à cultura de massa, é
preciso destacar algumas: dirige-se a um público heterogêneo; difunde um tipo de
cultura homogênea, destruindo as características próprias dos diversos grupos; não
promove renovações na sensibilidade; está submetida à lei da oferta e da procura; o
pensamento acaba sendo resumido em fórmula; possui uma visão passiva e acrítica do
58
mundo; entorpece a consciência histórica; vicia nossa atitude; impõe símbolos e mitos,
reduzindo assim a individualidade; trabalha sobre opiniões comuns e desenvolve o
conformismo. A crítica mais dura, entretanto, se dá na fala daqueles que dizem que a
cultura de massa coloca à disposição os frutos da dita “cultura superior”, mas eles
aparecem esvaziados de ideologia e crítica. (ECO, 2008, p. 40/41)
Em Future Shock, Alvin Toffler (1971) comenta sobre as previsões para o futuro
de muitos escritores na chamada “Revolução Superindustrial” (TOFFLER, 1971, p.
263, tradução nossa3). Segundo o autor, esses escritores entraram em um consenso ao
preverem que nessa nova sociedade tecnológica, a humanidade se afastaria cada vez
mais do ideal democrático: a máxima escolha individual, fazendo com que toda a crença
na democracia e na possibilidade de decisão humana fosse relegada aos arquivos da
ignorância. Nessa visão sombria do futuro, as pessoas se tornariam consumidores sem
capacidade crítica, cercado por bens de consumo e escolas padronizados, reféns de uma
cultura de massa padronizada que os forçaria, em consequência, a viver um estilo de
vida também padronizado. Tais previsões apocalípticas acabaram por criar uma geração
de pessoas cheias de fobia e ódio em relação à tecnologia ao disseminarem uma “Teoria
do Desaparecimento da Escolha” (TOFFLER, 1971, p. 263, tradução nossa4): a ciência
e a tecnologia farão do futuro um lugar ainda mais estandartizado do que o presente e o
homem, progressivamente, perderia a sua liberdade de escolha.
Russel Nye (1987, p. 418) ainda lembra que para Toffler, a popularização da
cultura não era nem perigosa para as artes e nem mesmo degradante para o artista. Na
3
The Super-industrial Revolution
4
Theory of Vanishing Choice
60
verdade, a disseminação das artes para um público ainda mais amplo poderia influenciar
fortemente tanto o nível do gosto do público quanto a relevância da arte em relação às
necessidades do homem. Para Nye (1987), o espraiamento da arte não pode ser
desconsiderado ou considerado como absoluto. Assim, a crítica de que uma cultura de
massa ignorante iria enterrar a “boa” arte caiu por terra. Na verdade, pesquisas
começaram a indicar que a penetração da mídia de massa na sociedade foi acompanhada
de perto pelo aumento na participação do povo em todos os tipos de arte (NYE, 1987, p.
419). O século XX, a era dos meios de comunicação de massa, trouxe ao homem
comum mais oportunidades de enriquecimento cultural do que qualquer outra época.
Ironizando, White (1957) afirma que “esse raciocínio subentende que, não
fossem esses novos diabos, os meios de comunicação de massa, e o nível da nossa vida
artística seria realmente elevado.” (WHITE, 1957, p. 27) Se não fosse a comunicação de
massa, continua em tom satírico, os artistas não cairiam nas tentações hollywoodianas e
os autores de radionovelas não precisariam escrever coisas menores e poderiam se
tornar os próximos Dostoievskis. Ressalta que, no imaginário seletivo dos críticos,
outros tempos e países são sempre vistos como se arte e vida fossem perfeitos
sinônimos.
A crítica à crítica feita por White (1957) continua. Para ele, quando os carrascos
da comunicação de massa se fazem cegos perante à contribuição trazida por esse meio,
estão estimulando, eles mesmos, as banalidades que tanto desprezam. Tais críticos que
enxergam a comunicação de massa como uma maldição, prefeririam uma época em que
o rádio, a televisão ou o cinema não existiam e que os livros permanecessem como
61
propriedades de uma pequena elite, assim como os jornais fossem tão caros que
ficassem ao alcance de apenas alguns. Como não podem voltar no tempo e impedir a
difusão desses meios, querem tirar do homem “comum” tudo aquilo que não condiz
com seus padrões de alta cultura, ou seja, se esse homem “comum” não tem a
capacidade de usufruir plenamente de tudo o que a grande arte e literatura tem a
oferecer, os críticos voltam a sua indignação contra os meios de comunicação de massa
(WHITE, 1957, p. 32). Aí está, mais uma vez, como a alta cultura da elite, relegada a
poucos, busca controlar o gosto e determinar, a partir de seus próprios interesses e suas
próprias premissas, o que é bom e o que é ruim.
Seguindo a mesma linha de White está Marshall McLuhan (1957). Para esse
autor, um dos questionamentos à crítica da cultura de massa, em seus diferentes
formatos, pode vir exatamente dos suportes em que ela se acomoda. A colonização dos
Estados Unidos, país considerado como o berço da cultura de massa, teve início quando
a única cultura de fato acessível a grande parte da população era o livro impresso. Por
isso, segundo McLuhan (1957), até hoje associa-se cultura principalmente aos livros.
Ironicamente, foi nesse mesmo país que os novos meios de imagem e de som ganharam
seu maior estímulo.
5
Cocacolonization.
63
Para Morin (2011), a indústria cultural significa não tanto a racionalidade que
informa essa cultura, e mais um modelo particular em que os novos processos de
produção cultural se organizam. Assim, indústria cultural significa o conjunto de
mecanismos e operações por meios dos quais a criação cultural se transforma em
produção, demonstrando, dessa forma, um dos maiores mal-entendidos perpetrados pela
visão de Adorno e Horkheimer: de que algo não pode ser considerado arte se é também
indústria (MARTIN-BARBERO, 2015). Morin (2011), inclusive, coloca que a divisão
do trabalho e a mediação tecnológica não são incompatíveis com a criação artística, da
mesma forma que certa estandardização não significa necessariamente a total extinção
da tensão criativa.
Voltemos a Umberto Eco. Quando o autor trata dos três níveis da cultura, o high,
o middle e o low (ECO, 2008, p. 56), dá uma pista interessante sobre o consumo das
65
Morin (2011), entretanto, reassalta que o seu objetivo não é o de exaltar a cultura
de massa. Tal como ele, pensamos que colocar a cultura de massa em um altar, como se
dela viessem apenas coisas boas, como se as próprias histórias em quadrinhos, como
parte deste universo, só produzissem obras em alto grau de excelência, seria
equivocado. Como afirma Morin (2011), seu objetivo é o de diminuir a “cultura
cultivada”, noção que compartilhamos na medida em que entendemos que essa
preservação da cultura cultivada em detrimento da cultura de massa, desconsiderando-a
como cultura, é uma forma de manutenção da intelectualidade de alguns e uma maneira
de conservar a sua soberania cultural em relação a uma massa que ascende e agora tem
acesso aos bens culturais.
Em suma, o que queremos dizer é que não há problemas em ser fruto da cultura
de massa. Ser produto dessa “indústria cultural” não deveria diminuir o valor cultural de
uma obra. Jesus Martín-Barbero acaba resumindo bem o que queremos dizer: “quando
66
Bart Beaty (2012) nos lembra que a proliferação dos quadrinhos em larga escala
na primeira metade do século XX caminhou lado a lado com o desenvolvimento e
espraiamento dessas mesmas teorias sobre a cultura de massa que alegavam que as
massas seriam uma ameaça revolucionária à ordem social estabelecida no século XIX,
assim como uma ameaça totalitária no século XX. Antes de perder a força pela chegada
da televisão no meio do século, seguida pelos videogames e pela internet nas décadas
seguintes, os quadrinhos serviram como o perfeito exemplo de tudo o que estava errado
com a cultura de massa na contemporaneidade aos olhos dos críticos que clamavam pela
excelência estética, e aos dos pais que se preocupavam se os filhos estavam sujeitos a
uma influência negativa.
Para a elite, a simples menção de que poderia existir mais de uma linguagem
artística, e que essa linguagem não é exatamente a “arte” com que estão acostumados,
perturba demais a classe que um dia sonhou com uma cultura universal baseada em seus
67
Nesse sentido, Moacy Cirne (2000) nos lembra que quando falamos de cultura
de massa, nunca podemos generalizar, pois a generalização é causa de uma
desinformação que criará falsas leituras, questionamentos e perspectivas. Por sinal, frisa
o autor, a desinformação, seja ela em relação aos bens estéticos da indústria cultural ou
aos demais discursos artísticos e literários, serve apenas para gerar preconceitos e
desvios ideológicos. Portanto, “dizer que a indústria cultural provoca ‘atrofia da
imaginação’, como o fizeram Horkheimer e Adorno é simplesmente ignorar o que ela
produziu de mais significativo em nosso século” (CIRNE, 2000, p. 23). Ainda segundo
Cirne (2000), os quadrinhos são um campo fértil exatamente porque seu potencial
estético está no interior da indústria cultural/cultura de massa. Mesmo utilizando-se, na
maioria das vezes, de veículos demasiado massivos, as histórias em quadrinhos
carregam consigo a possibilidade de esclarecimento artístico. Ao mesmo tempo, em sua
estrutura sempre há espaço para o social, o poético e o político, bem como para o
filosófico e o religioso.
Se por muito tempo as histórias em quadrinhos eram vistas apenas como uma
“subliteratura” (CIRNE, 1970, p. 01), além de prejudiciais para o desenvolvimento
intelectual das crianças, com o passar dos anos, contudo, a fragilidade dessas conclusões
foi ficando evidente. Para Cirne (1970), a partir de uma nova base metodológica de
pesquisas culturais que começou a se desenvolver, além da estrutura de sua evolução
70
6
CASTRO, Ruy. Os quadrados contra os quadrinhos. Revista Vozes, Petrópolis, Ano 63, nº 7, jul. 1969
72
Assim sendo, os quadrinhos, por suas características tão próprias, por sua
estrutura tão particular, ajudaram a modificar a percepção que se tinham sobre o que é a
leitura e a forma de se construir o discurso. Como uma nova linguagem, não podiam e
não podem se prender a parâmetros estéticos consagrados (CIRNE, 2000, p. 26).
Especialmente nos anos 1960 e 1970 do século XX, os quadrinhos conseguiram
“sacudir a poeira” das velhas estéticas e das velhas leituras. “Além do mais, as normas
estéticas existem para serem questionadas, para serem transgredidas, para serem
73
Cirne (2000, p. 17), alerta para que, “por outro lado, não nos esqueçamos, apesar
da pujança criativa de inúmeros quadrinistas, de McCay a Moebius e Luiz Gê, [que] o
preconceito artístico e cultural contra as HQs ainda é inegável”. O próprio Scott
McCloud (2005), um dos grandes entusiastas da Nona Arte, afirmava que tinha
preconceito contra os quadrinhos. Seu preconceito, afirma o autor, se devia à visão
deturpada que se tinha dos quadrinhos, inclusive chegando ao ponto de desconsiderá-los
como produtos artisticamente valorizados e, em contrapartida, valorizando uma arte
considerada legítima, no caso a literatura. Em Desvendando os quadrinhos, ele expõe
que
Para Mila Bongco (2000), o grande sucesso popular dos quadrinhos, como uma
mídia de massa, acabou obscurecendo sua existência anterior como uma forma de
expressão. Ao se prestar atenção ao todo e ignorando exemplos isolados, os críticos se
debruçaram sobre os quadrinhos como um objeto de crítica social, negando assim
qualquer possibilidade de se atrelar ao meio qualidades estéticas. Entretanto, o fato dos
quadrinhos serem um objeto cultural verdadeiro pode ser provado pelo grande número
de publicações, nos últimos anos, que conseguem lidar com uma maior complexidade
75
estética e psicológica que antes eram impensáveis para o meio. Como consequência,
houve uma significativa mudança na crítica em relação aos quadrinhos como uma
contribuição cultural legítima. Isso, porque as grandes possibilidades estéticas trazidas
pela união de imagens e palavras nas histórias em quadrinhos têm sido cada vez mais
difundidas não só no próprio meio cultural, como exploradas pelas pesquisas realizadas
dentro da academia, legitimando assim os quadrinhos como uma das grandes formas de
arte desenvolvidas pela indústria do entretenimento no século XX (BAHIA, 2012, p.
341).
Segundo Jeet Heer e Kent Worcester (2004), s tiras, durante o século XX,
tinham muito mais prestígio do que as revistas em quadrinhos. Já nos anos 1920, o
formato ganhou certo grau de respeitabilidade ao apelar para o público nacional de
maneira geral e ao incorporar um grande número de personagens que evocavam os
indivíduos de classe média. Apesar de alguns leitores criticarem alguns trabalhos em
particular, o status cultural das tiras de jornais acabou se estabilizando com o tempo,
especialmente quando comparadas à revista em quadrinhos, cristalizada como um meio
de comunicação de massa já na década de 1930 (HEER; WORCESTER, 2004, p. xi).
Para Adam Gopnik (apud HEER; WORCESTER, 2004, p. xi), as tiras, por serem
veiculadas nos jornais, já faziam parte do cotidiano das pessoas, assim como os assuntos
sobre política e esporte, por exemplo, que circulavam no mesmo veículo, garantindo
assim seu espaço na hierarquia cultural. Já a revista em quadrinhos era algo que exigia o
deslocamento da casa até a banca de jornal e fugia ao controle parental, sendo assim
passível de causar danos. Mais além, aponta Bart Beaty (2012), não se tratava apenas de
um status cultural e artístico, e sim mercadológico e financeiro: os syndicates, grandes
distribuidoras de tiras em quadrinhos e variedade para os jornais, pagavam muito mais
do que as editoras das revistas em quadrinhos, tornando o espaço jornalístico um
destino desejado por muitos artistas.
Já a pop art foi o movimento que parecia ter finalmente dado aos quadrinhos o
prestígio que eles mereciam ao inseri-los nos grandes museus de arte do mundo. Mas
não foi bem assim. A pop art - apesar de ter surgido na Inglaterra na década de 1950 -
atingiu seu ápice na década de 1960, mas com uma diferença muito grande em relação
aos outros dois movimentos que trataremos a seguir: ao invés de contribuir para o
processo de legitimação das histórias em quadrinhos, pareceu ter feito exatamente o
contrário. Isso, porque para muitos fãs de quadrinhos, os trabalhos de Roy Lichtenstein
demonstram como os universos dos quadrinhos e das artes plásticas são percebidos e
valorizados. Exemplo disso são os valores que chegaram a ser cobrados por suas obras:
um dos quadros de Lichtenstein, que usa um fragmento de uma história em quadrinhos,
chegou a valer US$ 5.5 milhões. Mas, afinal, questiona Bart Beaty (2012), como uma
pintura que tem como base um único painel de uma história em quadrinhos pode valer
tanto, enquanto uma revista em quadrinhos inteira, com suas 52 páginas, custou
originalmente, à época, algo em torno de um centavo?
Por conta disso, segundo Beaty (2012) a acusação que os fãs de quadrinhos
possuem contra Lichtenstein é que o seu sucesso acabou diminuindo as chances de os
quadrinhos começarem a ser levados a sério como uma forma de arte legítima por seu
próprio direito, pois, ao reduzir os quadrinhos apenas a um material, uma fonte para a
produção principal, Lichtenstein estaria dificultando ainda mais o caminho. A pop art,
desse modo, usou gananciosamente os quadrinhos como se fossem um “objeto
encontrado”, uma ferramenta, um material de produção e, enquanto isso, os próprios
quadrinhos eram enxergados apenas como uma “arte-irmã inferior.” (SJÅSTAD, 2015,
p. 06). Não obstante, o universo das artes muito comumente enxerga os quadrinistas
como maus artistas ou artistas frustrados que, ao contrário de Lichtenstein, não
souberam explorar seu talento da melhor forma possível (SJÅSTAD, 2015, p. 06).
78
2.1 A década de 1960: como ela modificou o que se entendia por “quadrinhos”
7
did no more for comics than [Andy] Warhol did for soup. Disponível em:
<http://www.bostonmagazine.com/arts-entertainment/blog/2014/05/12/art-spiegelman-boston-what-
happened-to-comics/>Acesso em: 22 abr. 2016
79
Francis Lacassin, Peter Foldes, Luís Gasca, Umberto Eco, Edgar Morin, entre outros.
Em muitos lugares do mundo começam a circular os álbuns de luxo de histórias antigas,
como Flash Gordon e Tarzan, congressos sobre o tema começam a acontecer e “o
mundo todo arregala os olhos com mais de um século de atraso, compreendendo a
importância dos quadrinhos no mundo atual” (MOYA, 1977, p. 87).
A partir daí, “os intelectuais, professores, pais e mestres, mães, críticos de arte,
escritores e autores infantis, editores, museólogos, pedagogos, pintores, artistas
plásticos, todos agora com a bênção da alta cultura, passam a dizer que nunca foram
contra os quadrinhos, muito pelo contrário...” (MOYA, 1977, p. 87) Esses intelectuais
europeus, especialmente os franceses, italianos e alemães, passaram a disseminar um
conceito positivo sobre os quadrinhos, o que resultou no início dos estudos de
Comunicação de Massa. Tais estudiosos passaram a analisar o fenômeno dos
quadrinhos como um dos melhores meios de informação e de formação de conceitos –
visto seu papel na propaganda ideológica antinazista criada pelos norte-americanos.
(LUYEN, 1987) Para Sonia Luyten (1987), esta visão mais científica e imparcial foi
incorporada pelos Estados Unidos, tão logo foi possível uma reavaliação crítica e
construtiva do que se tinha produzido anteriormente.
Figura 1 – A análise quadro a quadro de Steve Canyon feita por Umberto Eco também
modificou os parâmetros das pesquisas em quadrinhos
Para Heer e Worcester (2004, p. xviii), o pensador italiano pode ser considerado
como um dos maiores exemplos de um intelectual que se posicionou contrariamente ao
elitismo cultural que rejeitava e negava a cultura pop. Seus ensaios e artigos desafiavam
os moralistas, cientistas e críticos culturais que temiam a cultura de massa ou que não
enxergavam nada significativo nela, ajudando, assim, a cimentar as bases dos estudos
culturais contemporâneos. Os escritos de críticos como Eco, reforçam Heer e Worcester
(2004), juntamente com os de outros pensadores como Leslie Fiedler e Marshall
McLuhan, logo floresceram como os grandes expoentes da literatura sobre os
quadrinhos.
81
Bongco (2000) também ressalta que, na época, grande parte dos estudos críticos sobre
quadrinhos foram produzidos por acadêmicos franceses, alemães e italianos, que
também produziram, naquele período, alguns dos trabalhos mais importantes sobre os
quadrinhos norte-americanos.
Por sinal, segundo Kim Munson (2016), um dos responsáveis por ajudar a
modificar a visão preconceituosa que as histórias em quadrinhos tinham nos Estados
Unidos foi exatamente um francês: Maurice Horn, pesquisador e entusiasta dos
quadrinhos, pode ser considerado, segundo Munson (2016) um dos agentes que
possibilitou levar a aceitação que os quadrinhos já recebiam na Europa para os Estados
Unidos. Quando Horn apareceu no mundo dos quadrinhos, na década de 1960, o cenário
era de um campo obscurecido pela censura em muitas partes do mundo, inclusive em
países da Europa e nos Estados Unidos. Como membro de grupos voltados às histórias
em quadrinhos na França, como o Club de Bande Dessinées e o Société civile d’études
et de recherché des littératures dessinnés, teve contato com grandes estudiosos
franceses dos quadrinhos, como Claude Moliterni e Pierre Couperie. Ao mudar-se para
os Estados Unidos, Horn tornou-se uma ponte entre este grupo de franceses e os
quadrinistas norte-americanos, envolvendo-se em inúmeras e essenciais exibições que
tinham como foco a arte dos quadrinhos, além de publicar livros sobre o tema entre as
décadas de 1970 e 1990. Assim, a sensibilidade de Horn e a sua crença de que os
8
In France, a cartoonist is one step below a movie director. In America, (a cartoonist) has only slightly
more status than a plumber.
83
quadrinhos mereciam atenção mais séria dos estudiosos ajudaram a cimentar uma nova
era de apreciação e aceitação dos quadrinhos nos Estados Unidos (MUNSON, 2016, p.
01).
Os quadrinhos, até os anos 1960, eram considerados uma “arte menor” (CIRNE,
2000, p. 203). A partir dessa década, graças a esses estudos mais sistematizados e
criteriosos sobre as histórias em quadrinhos que começaram a ser produzidos pelos
intelectuais europeus, a imagem do campo começou a mudar. O consumo, valorização e
estudo dos quadrinhos nesse período foi tão forte que até Picasso revelou certa vez que
“a grande mágoa da minha vida é nunca ter feito quadrinhos” (MOYA, 1977, p. 83).
Segundo Moya (1977), o que Picasso disse consegue resumir bem a importância dada
ao mundo dos quadrinhos por parte dos intelectuais europeus, o que refletiu em um alto
nível dos estudos destes intelectuais a respeito de tão importante meio de comunicação,
dando início ao processo de legitimação. Entretanto, esse não foi o único movimento
que permitiu a reavaliação e reconhecimento dos quadrinhos como produto cultural.
Em parte como uma reação ao Comics Code Authority (CCA) e à atitude passiva
dos produtores e consumidores dos quadrinhos mainstream, surgiram nos Estados
Unidos, na contracultura da década de 1960, quadrinhos que cada vez mais iam além
das possibilidades temáticas e narrativas limitadas pelo código: os quadrinhos
underground. Quando começaram a se tornar conhecidos, acabaram cultivando uma
imagem de foras da lei com a intenção declarada de ofender as “sensibilidades da
burguesia.” (BONGCO, 2000, p. 06). Ao desafiarem as visões higienizadas e valores da
classe média, ofereciam ao público paródias e sátiras da mídia e dos costumes sociais
como alternativa ao que se consumia na época; por não estarem subjugados ao código
ou à necessidade de alcançar um público amplo, os quadrinistas undergorund tinham a
84
aos vícios, nunca demonstravam seus desejos sexuais e nunca matavam o vilão. Para
alguns artistas, isso era inaceitável; esses seriam os artistas que dariam início ao
movimento underground dos quadrinhos.
Para Mark James Estren (2012), que vivenciou o movimento e que praticamente
escreveu in loco o livro A History of Underground Comics, é praticamente impossível
distinguir os quadrinhos underground apenas por sua aparência; afinal, uma das coisas
mais legais deles é que vinham em diferentes formatos e estilos, especialmente no que
diz respeito às técnicas de desenho: existiam desde artistas amadores até aqueles que
9
[…] a vibrant and tumultuous art form filled with vividly expressed delirium and drug-filled madness.
86
O sexo foi a mais imediata e aparente barreira trazida abaixo pela revolução
iniciada pelos comix (BELTING, 2012, p.08). Como era estritamente proibido pela
censura, o sexo nunca aparecia nas histórias de super-herói, fazendo com que o assunto
fosse tratado extensivamente pelos autores do undergorund. Muitos deles, e talvez
especialmente Robert Crumb, falaram sobre todos os aspectos possíveis e imagináveis
relacionados ao sexo. Afinal, os quadrinhos, como linguagem, permitiam a entrega dos
cenários e personagens mais loucos possíveis e impossíveis de serem reproduzidos em
qualquer outro meio.
Segundo Denis Kitchen (2004), que fez parte do movimento, a marca registrada
do underground continua sendo a completa liberdade artística. Entretanto, para o
89
10
The “revolution” in comic books is most easily seen in terms of the increasingly subject matter, the
wonderfully idiosyncratic writing and art styles and the physical formats. But behind the scenes another
revolution took plave, one that adressed creator equity issues, arguably an issue as importante as
intelectual freedom itself.
90
violentos que beiravam o mau gosto, muito talentos preciosos surgiram dentro do
underground, assim como obras icônicas e especialmente originais, levando a força
artística e cultural do movimento a se espalhar pela nação.
Assim, mesmo com pouco tempo de vida, os comix são considerados uma fase
crucial no desenvolvimento das histórias em quadrinhos como uma forma narrativa e
um meio de expressão artística. Este foi o primeiro grupo de produtores de quadrinhos
significativos, nos Estados Unidos, que tinha como alvo um público completamente
adulto. Inclusive, muitos dos artistas que hoje figuram na lista dos grandes quadrinistas
da história, e que perceberam o grande potencial narrativo dos quadrinhos com
temáticas mais profundas e sérias, vieram desse movimento; em outras palavras, a
experiência de focar na capacidade dos quadrinhos de exercer diferentes tipos de
influência sobre seus leitores permaneceu (BONGCO, 2000, p. 08).
Segundo Charles Hatfield (2005), as três principais características dos comix que o
movimento alternativo herdou e que se tornaram suas bases são: os comix foram o
primeiro movimento que deram nome e reconhecimento aos seus autores; apesar de
também trabalharem com o formato tradicional, os quadrinhos do underground
acabaram com a publicação periódica: eram produzidos esporadicamente, quando os
artistas bem entendiam, já que as vendas eram baseadas não em sua periodicidade, mas
na reputação de seus criadores (característica diretamente ligada à ideia de
reconhecimento do autor); e, por último, os comix introduziram uma forma de produção
que saía do formato da linha de produção colaborativa e deixava o autor criar sozinho e
sem pressa. Em suma, os quadrinhos underground deixaram o terreno fértil para os
artistas do alternativo ao transformar a autoria individual em um espaço seguro: agora, a
expressão individual era a regra (HATFIELD, 2005, p. 16).
Dado tudo isso, podemos considerar os anos 1960 como a década que
pavimentou o caminho para o início do processo de legitimação cultural dos quadrinhos
graças a dois importantes movimentos que, apesar de possuírem raízes e propostas
muito distintas, foram igualmente importantes: o intelectual europeu e o underground
norte-americano. O intelectual europeu, ao conscientemente buscar a valorização dos
quadrinhos como um produto cultural e artístico, permitiu que o campo recebesse novos
olhares e o reconhecimento que há tanto almejava, modificando a visão de muitos sobre
o meio e permitindo que o mesmo fizesse parte de discussões e adentrasse espaços
nunca antes pensados; o underground norte-americano, mesmo que não almejasse o
reconhecimento e valorização do meio da mesma maneira consciente, mudou o que se
entendia por história em quadrinhos ao buscar inspirações em temáticas políticas e
sociais, além de privilegiar estilos e formatos que nada tinham a ver com o que até então
era produzido, acarretando em obras que modificariam profundamente o meio e
inspirariam as gerações seguintes a buscar e valorizar sua própria criatividade.
Vergueiro (2009) resume muito bem o que os dois movimentos significaram:
a impressão e distribuição mais baratas dos quadrinhos, agora faziam parte de uma nova
“instituição” dos quadrinhos underground (DUNCAN, SMITH, 2009, p. 58).
Assim, os anos 1980 ficaram marcados pela aparição de novas produções que
passaram a privilegiar o público adulto, tanto no espaço alternativo quanto no
94
mainstream. Histórias mais densas, com temáticas mais profundas e menos “coloridas”
do que aquelas apresentadas ao público até então começaram a invadir o mercado de
quadrinhos norte-americano. Até mesmo personagens já conhecidos do grande público
leitor de quadrinho ganharam uma roupagem mais intrincada, assim como
personalidades mais problemáticas e complexas, a fim de manter o público jovem que
agora cresceu e que buscava algo além das antigas histórias. Algumas dessas obras,
inclusive, transformaram-se nas “obras primas” de muitos de seus autores. É neste
espaço no qual o quadrinista que ajudou a renovar o meio floresce: Art Spiegelman.
Dentro da casa de seus pais imigrantes, os quadrinhos eram sua única janela de
acesso à cultura americana, lendo, desde muito novo, Pato Donald de Carl Banks,
Luluzinha de Jonh Stanley, e a revista Mad de Harvey Kurtzman, talvez sua maior
influência. Percebeu, dessa maneira, que queria fazer parte desse grupo de artistas e,
desde então, a única coisa que mudou com o passar do tempo foi o tipo de quadrinhos
que queria fazer. No colegial, entre uma aula e outra, começou a fazer quadrinhos
estranhos, que não se encaixavam na arte comercial e, em 1965, levou alguns deles para
a revista recém-lançada East Village Other, já que, como nas primeiras edições os
quadrinhos não eram de alto nível, teve certeza de que seu trabalho se encaixaria
perfeitamente nessas condições (SPIEGELMAN, 2009).
96
Figura 6 – Trabalho de Spiegelman na capa da revista The East Village Other, considerada um
dos primeiros semanários underground e que ajudou a definir o que hoje é conhecido como anos
60.
“Por volta de 1967, minha virgindade e minha mente já tinham ido embora fazia
tempo[…]” (SPIEGELMAN, 2009) e, nos raros momentos de lucidez que ainda tinha,
desenhava folhetos impressos - que exaltavam o efeito do LSD em seu corpo e que
protestavam contra a guerra do Vietnã - e os distribuía em esquinas e parques; muitas
vezes não possuíam nenhuma mensagem reconhecível. No mesmo ano, antes mesmo
dos quadrinhos serem definidos como underground, conheceu Robert Crumb, que lhe
mostrou algumas páginas que havia acabado de fazer sob o efeito do LSD. De acordo
com Spiegelman (2009), o trabalho de Crumb era uma paródia dos cartuns populares da
época – flexíveis, complicados e intricados -, em um momento em que os quadrinhos
ainda tinham uma pretensão ao minimalismo (SPIEGELMAN, 2009).
97
Sua experiência com drogas psicotrópicas fez com que seus “quadrinhos
esquisitos” ficassem em segundo plano, e por isso decidiu passar essa responsabilidade
para as mãos habilidosas de Crumb, enquanto perseguia a “iluminação” sem nenhum
compromisso. (SPIEGELMAN, 2009) Nos anos seguintes, quando decidiu finalmente
colocar os pés no chão, tentou absorver tudo o que Crumb e outros quadrinistas
underground faziam, imitando-os descaradamente, o que resultou em trabalhos
constrangedores, com tentativas medíocres de repetir o humor transgressivo e a
literatura erótica desses artistas, assim como uma experiência grotesca que visava
quebrar tabus e que incluía necrofilia, parricídio e outras formas de violência.
Spiegelman conta que
Quando os anos 1970 substituíram os anos 1960, Spiegelman (2009) conta que
achou um caminho com a ajuda de encontros significativos. O ano de 1969 foi muito
agitado e incluiu um colapso e uma internação em um hospital psiquiátrico, sua
expulsão da faculdade, o suicídio de sua mãe no ano anterior e uma tentativa – por mais
que desastrosa – de viver em uma comunidade. Entretanto, foi o ano em que conheceu
Ken Jacobs, cineasta de vanguarda e professor de cinema na Universidade de
Binghamton, em Nova York, que se entusiasmou com um de seus trabalhos de história
da arte sobre Master Race, de Bernard Krigstein. Jacobs se tornou seu tutor e lhe
ensinou o valor da arte “sem balõezinhos de diálogo” (SPIEGELMAN, 2009). Ao se
mudar para São Francisco, em 1970, conheceu Bill Griffith, que se tornou seu melhor
amigo e futuro parceiro em projetos como Short Order Comix.
2009), Green usava a culpa psicossexual e católica de sua vida como principal assunto a
ser esmiuçado em suas obras. Foi assim que Spiegelman encontrou a sua própria psique
e descobriu que deveria, em vez de desenhar a violência mais chocante que podia
imaginar, identificar as atrocidades do mundo real ao qual seus pais haviam sobrevivido
e no qual ele havia sido criado.
Figura 7 – Extrato de Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary, de Justin Green
durado pouco tempo, contando com apenas sete edições entre 1975 e 1976, trouxe
trabalhos de grandes artistas do underground para uma geração de leitores que era
muito nova para ter apreciado o movimento em sua glória.
Figura 8 – Capa da edição #7 da Arcade, que trouxe trabalhos de Robert Crumb, Harvey
Kurtzman, Spain Rodriguez, S. Clay Wilson, entre outros quadrinistas do underground
Spiegelman foi sem dúvida influenciado e moldado pela cena underground, que
o levou à comunidade artística em que viveu e trabalhou a partir do final da década de
1970. A importante ruptura nos modelos técnicos e temáticos iniciados no underground
permitiu a Spiegelman experimentar visual e narrativamente, o que acarretou, segundo
Mike Kelly (2008, p. 335), no que talvez seja o evento mais significativo na história dos
comix: a publicação da primeira edição de Maus, em 1986, pela Pantheon Books . O
resultado de tal publicação, especialmente depois do Pulitzer concedido a Spiegelman,
teve um profundo impacto no universo editorial das histórias em quadrinhos,
assegurando o estabelecimento do movimento alternativo nos Estados Unidos.
Figura 10: A primeira cena de Maus e nosso primeiro contato com Vladek
Uma coleção dos primeiros seis capítulos da série foi colocada nas prateleiras
em 1986, dando ao livro a atenção não só do mundo dos quadrinhos alternativos e
underground, mas também do mainstream e do público leitor em geral. O segundo
volume, com o restante dos capítulos, foi lançado em 1991. Maus já foi rotulado como
várias coisas: da biografia à historiografia, passando por graphic novel, jornalismo em
quadrinhos e até como uma “etnografia pós-moderna” (BRANDT, 2014, p. 70).
Independentemente da classificação que receba, Maus acabou representando uma
reviravolta para o campo dos quadrinhos e importante instrumento no processo de
103
O título de um dos textos de Bart Beaty (2012) no livro Comics versus Art já
consegue sugerir, e até confirmar, a importância de Maus para o processo de
legitimação cultural das histórias em quadrinhos: Academe discovers the comic world:
the canonization of Art Spiegelman’s Maus (BEATY, 2012, p. 117) o que, traduzindo,
seria algo como “A academia descobre o universo dos quadrinhos: a canonização de
Maus, de Art Spiegelman”. Isso, porque segundo o autor, Maus pode ser considerada a
obra dos quadrinhos mais celebrada já publicada nos Estados Unidos, quiçá no mundo,
não só pelo conteúdo, mas pelos prêmios que recebeu. Inclusive, a tão discutida e
muitas vezes duramente criticada escolha do uso da antropomorfia nos personagens
serviu como uma ferramenta de marketing, colocando a obra em um patamar único
dentro das narrativas sobre o Holocausto, assim como a seriedade do tema colocou o
trabalho em um espaço nunca antes enxergado do campo dos quadrinhos (BEATY,
2012, p. 117).
Por conta de tudo isso, o sucesso de Maus foi uma surpresa para muitas pessoas.
Ficou claro, com a repercussão e atenção que recebeu, que os leitores norte-americanos
ficaram impressionado com o tema, o estilo, o formato e o tamanho (publicada
originalmente em duas partes e, depois, compilada em uma) da obra de Spiegelman. Na
verdade, a surpresa veio exatamente pelo fato de Maus ser uma história em quadrinhos:
até então, era inimaginável, seja para o público, para a crítica e até para alguns
quadrinistas, que “o trauma central do século XX” (PONTES, 2007) pudesse ser
104
contado em uma mídia como os quadrinhos e, mais ainda, que fosse realizado em tal
grau de excelência. O próprio Spiegelman confirma essa ideia ao dizer: “não fui
considerado um artista de quadrinhos porque fiz algo que ganhou um Pulitzer”
(SPIEGELMAN apud BEATY, 2012, p. 101, tradução nossa 11).
11
I’ve been designated not as comic book artist because I did something that got a Pulitzer.
105
Isso tudo ocorreu porque Maus, segundo Andrew Loman (2010), foi a obra que
mais ousadamente se afastou das percepções comuns que se tinha sobre os quadrinhos:
mesmo que alguns possam dizer que suas técnicas estéticas não sejam tão distantes das
de outros trabalhos, ainda assim o seu afastamento dos demais gêneros dos quadrinhos
da época foi muito mais completo do que as duas outras obras. Por conta disso, acabou
sendo considerado por muitos como a maior façanha dos quadrinhos até então
(LOMAN, 2010, p. 211).
Figura 11 – Um pequeno exemplo do por que o tema, o estilo, a técnica e a coragem fizeram de
Maus uma obra sem precedentes.
Aliás, Gordon (2010) afirma que uma maneira rápida e eficiente de saber o real
impacto de Maus é a de procurar sobre o livro em bancos de dados, como o Lexis. Por
exemplo, de 1986, ano da publicação, até 1999, o livro havia recebido 772 citações. Na
década seguinte, até 2007, foram 2.053 acessos. Aliás, um teste mais simples pode
demonstrar a força de Maus no espaço acadêmico: se digitarmos na página do “Google
Acadêmico”12 as palavras “Maus+Art+Spiegelman” teremos 6.850 resultados, mais do
que os resultados somados de duas das mais importantes publicações das últimas
décadas: Persepolis, de Marjane Satrapi (2.660 resultados) e Watchmen (3.660
resultados). Destarte, o livro cresce a cada dia em reputação, o que faz com que
qualquer menção às grandes obras dos quadrinhos não esteja completa se a obra de
Spiegelman não for citada como uma das mais importantes e pioneiras (GORDON,
2010, p. 185).
Por ter sido publicada na Raw anos antes de ser publicada para o consumo do
público em geral, Maus já era alvo de discussões entre os fãs dos quadrinhos muito
antes das críticas jornalísticas e ensaios acadêmicos. Entretanto, são exatamente nestes
espaços que podemos notar como a obra de Spiegelman foi impactante e como ajudou a
ressignificar, para o público e para a crítica, as potencialidades do campo para além da
perspectiva comum perpetrada durante anos. Um exemplo é a presença maciça de Maus
12
scholar.google.com.br/. Acesso em: 04 dez. 2016.
107
como temática de críticas e artigos nas páginas do The Comics Journal, importante
revista voltada à publicação de notícias, entrevistas e críticas sobre os quadrinhos e que,
além do mais, sempre defendeu a maior valorização cultural do meio. A revista Raw,
por exemplo, foi considerada por muitos que contribuíram para as páginas do The
Comics Journal como uma das publicações sobre a arte dos quadrinhos mais
importantes da era e que tinha como idealizador uma força criativa sem igual (BEATY,
2012, p. 118). O debate feito em cima dos méritos de Maus no The Comics Journal,
assim, foi crucial para o desenvolvimento da orientação estética da revista e,
consequentemente, modificou o olhar dos interessados.
Dale Luciano (apud BEATY, 2012) escreveu o terceiro trabalho sobre Maus
publicado no The Comics Journal. Transcrito abaixo, o comentário de Luciano deixa
claro que esta não é apenas uma avaliação da obra em particular, mas da natureza e
história do campo dos quadrinhos até aquele momento, além de uma declaração
escancarada das aspirações esperadas para o campo escrita pelo próprio editor da
revista:
Ao final do texto, Luciano ainda chega a considerar Maus como uma vingança
dos quadrinhos como um todo: para ele, depois da publicação da obra, ninguém mais
poderia dizer que um meio como os quadrinhos não pode ser usado, ou não tem o que é
necessário, para retratar a complexidade e delicadeza da emoção humana (BEATY,
2012, p. 119).
13
Art Spiegelman’s Maus is among the remarkable achievements in comics. It is a book that redefines
the hitherto boundaries of the comics medium; its creator’s realization of the possibilities implicit in the
graphic storytelling form is uncompromised. It is a work that will be recollected and argued about for
years, a watershed event against witch future advances in the medium will be measures.
108
Segundo Miles Orvell (1992), o que faz com que Maus seja tão significativo é o
fato de que ele adota um tema que até então ia contra a maré dos estilos das histórias em
quadrinhos, buscando uma narrativa que fique entre o político e o pessoal e que
estabeleça uma postura única diante do trauma que foi o Holocausto. Ao transferir os
quadrinhos para um campo com questões políticas e psicológicas sérias, Spiegelman
ofereceu um tipo de obra que ultrapassou as barreiras do público comum dos quadrinhos
norte-americanos, que normalmente tinha seu apetite pautado em histórias de super-
heróis e sua extravagante luta contra o crime. Por fazer parte de um movimento tão
satiricamente crítico da cultura contemporânea – especialmente a estadunidense – criou
um novo público leitor para as histórias em quadrinhos.
Além disso, lembra Andreas Huyssen (2000), apesar de se ter uma noção geral
de que, politicamente, o genocídio dos judeus deveria ser lembrado pelo maior número
de pessoas, o uso de um meio de massa nunca foi considerado como próprio ou correto.
Todavia, Maus fez com que nos aproximássemos da memória do Holocausto e suas
representações de uma maneira tão completamente diferente e delicada que uma
reavaliação sobre os quadrinhos e a cultura de massa foi possível; isso, porque
“Spiegelman entra em um embate com a inautenticidade de representação dentro do
gênero da cultura de massa ao mesmo tempo em que conta a história de maneira
autobiográfica e alcançando um poderoso efeito de autenticidade”. (HUYSSEN, 2000,
p. 81, tradução nossa 14)
14
Spiegelman confronts the inauthenticity of representation within a mass cultural genre while at the
same time telling an autobiographic story and achieving a powerful effect of authentication.
109
saibamos que ele não é o único responsável por essa nova visão dos quadrinhos, ele
pode sim ser considerado o mais importante para o período.
Existem algumas tantas lendas que contam a história do surgimento das graphic
novels no mercado quadrinístico estadunidense. Uma das mais difundidas e acreditadas
é a de que Will Eisner (1995) teria cunhado o termo e lançado a primeira obra do tipo ao
publicar Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, publicada originalmente
em 1978, sendo o próprio autor o divulgador de tal “verdade” ao contá-la e recontá-la
incontáveis vezes em entrevistas e eventos. Segundo Vergueiro (2009), na verdade
Eisner não havia criado nada de novo, nem mesmo inventado a expressão, pois não se
tratava da primeira vez que o termo era o utilizado para se referir a uma obra do tipo
produzida em formato de quadrinhos. Antes de Eisner, o escritor John Updike, por
exemplo, revelou em uma palestra, em 1960, que os romances poderiam tomar outras
formas além da tradicional, e acrescentou que acreditava que um grande romance
poderia ser escrito magistralmente em forma de história em quadrinhos (DUNCAN;
SMITH, 2009, p. 70).
Inclusive, defende Vergueiro (2009, p. 26), a aceitação desse tipo de trabalho estava
diretamente ligada ao apoio às ideias de Eisner por parte de seus fãs, ideias essas
baseadas na proposta de modificar os estereótipos em torno das histórias em quadrinhos.
Isso, porque o autor buscava um título para seus trabalhos que os diferenciasse do que,
até então, era publicado pela indústria norte-americana de quadrinhos. Por isso, no
prefácio à primeira edição, o autor afirmava que a ideia havia surgido já na década de
1930, quando Esiner teria entrado em contato com histórias em quadrinhos mais longas,
sem palavras e feitas em serigrafia. Ramos e Figueira (2011) lembram que o quadrinista
creditou à sua própria obra um status de arte, estampando na capa da publicação a frase
“um romance gráfico de Will Eisner” (ver figura 12). Essa terminologia, inclusive,
acabou por estabelecer um diálogo entre o que ele havia produzido e o campo literário.
Por isso, a repercussão da publicação pode ter contribuído para que a expressão fosse
posteriormente adotada pelas editoras do mainstream (RAMOS; FIGUEIRA, 2011).
Figura 12 – Capa de Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, de Will Eisner
Nesse sentido, vale lembrar que, por mais que os fatores que moldaram o
desenvolvimento das graphic novels em solo norte-americano sejam tão diversos,
controversos e múltiplos, uma coisa pode ser dita com certeza: sem a intervenção dos
quadrinistas do movimento underground da década de 1960, as graphic novels não
existiriam como as conhecemos hoje (BEATY; WEINER, 2012). É claro que não se
pode dizer que os artistas das tiras dos jornais ou das revistas em quadrinhos anteriores
à chegada do comix não tenham feito trabalhos magníficos. Entretanto, como vimos
anteriormente, o movimento underground não tinha suas temáticas voltadas para o
público infanto-juvenil, além de não privilegiar o lucro em suas publicações, e sim a
oportunidade de dar voz ativa e criativa aos seus artistas; criou-se, assim, um espaço de
expressão pessoal e política, um escape do mundo que os rodeava e um lugar onde
poderiam experimentar, na forma e no conteúdo, como em nenhum outro ambiente,
dando origem ao movimento alternativo.
A nova geração de quadrinistas que surgiu carregou com ela temas e estilos não
tradicionais, interessados em um grupo particular de consumidores e trazendo consigo
lojas especializadas, as comic book shops, que se espalharam pelo mundo. Espécie de
híbrido entre o underground e o mainstream acabaram, com o passar do tempo,
desenvolvendo seus próprios gêneros e tradições, entre elas a autobiografia, a história
ficcional, a cobertura jornalística, etc. (BEATY; WEINER, 2012, p. xvi), que acabaram
por ficar conhecidas como graphic novels. Aqui é importante lembrar que o que
dissemos na primeira sessão deste capítulo acabou se concretizando nas chamadas
graphic novels: os quadrinistas e entusiastas europeus forçaram a entrada de uma nova
visão dos quadrinhos nos Estados Unidos, enquanto o movimento underground mudou
a configuração do meio.
narrativa única, vendida como um livro. Essa reunião das histórias recebeu a
terminologia de graphic novel quando foi colocada no mercado (RAMOS; FIGUEIRA,
2011).
Figura 15: Capa do capítulo II de Watchmen. Publicada originalmente em doze edições mensais,
foi posteriormente compilada e classificada como graphic novel
Entretanto, hoje as graphic novels, na maioria das vezes, já são pensadas por
seus artistas e editores como uma única história em um único volume. Com isso, as
histórias serializadas e depois compiladas perderam força e aquelas lançadas em um
único volume se tornaram a norma. Obras hoje premiadas e reconhecidas, como Habib
de Craig Thompson, Asterios Polip de David Mazuchelli, entre tantas outras, já chegam
às mãos dos leitores como livros finalizados (BEATY; WEINER, 2012, p. xvi). Com
isso, graphic novel passou a designar apenas as histórias mais longas, lançadas em
formato de livro e que contam uma história com um arco fechado e com temáticas mais
sérias e densas. Aliás, para Douglas Wolk (20007) se utilizarmos essas especificações
para classificar um trabalho como uma graphic novel, Um contrato com Deus de Will
Eisner não se encaixaria nessa premissa, pois consiste menos em um romance, com uma
narrativa longa, e mais em uma coleção de quatro não-tão-longas histórias ligadas pela
temática
Figuras 16 e 17: Habib, de Craig Thompson e Asterios Polip, de David Mazzucchelli: obras
mais longas que já chegaram às mãos do público finalizadas
Assim, cria-se a ideia, seja para o público habitual de quadrinhos, seja para o
esporádico, que esse tipo de publicação se diferencia dos demais agregando, dessa
forma, valor positivo ao termo e, em consequência, ao produto (RAMOS; FIGUEIRA,
2011). Por conta disso, muitas das publicações que são denominadas de graphic novels
recebem em suas capas, contracapas, orelhas, etc, o termo como forma de evidenciar
que esse tipo de “conteúdo” será adquirido. Da mesma forma, a mídia e os críticos que
se voltam a esse tipo de publicação utilizam a expressão com finalidades adjetivas, ou
seja, adjetivam a obra como graphic novel a fim de exaltar seus aspectos positivos.
Além disso, uma outra tendência, ressaltam Ramos e Figueira (2011), é a de adjetivar as
graphic novels como “literárias”, já que a literatura, ao contrário dos quadrinhos, é um
campo enxergado, há séculos, como uma arte de prestígio e já há muito legitimada;
116
antes ignorados pelas altas instâncias, os quadrinistas agora dividem espaço com os
grandes escritores.
[...] os artigos da cultura popular não são feitos para ser guardados,
mas para ser atirados fora; um livro brochado de histórias em
quadrinhos é como uma fralda que não presta mais ou um saquinho
vazio de leite. Apesar de todo o seu competente acabamento, não pode
ser preservado em prateleiras empoeiradas, como os volumes
encadernados em couro de outros tempos; com efeito, o seu próprio
modo de existência desafia a concepção da biblioteca, particular ou
pública (FIEDLER, 1957, p. 626).
117
[...] um dos eufemismos que as pessoas têm usado para dizer que os
quadrinhos não são um prazer cheio de culpa. Gráfico: meio que
respeitável. Romances: desde o século XIX, muito respeitáveis. Então
as graphic novels são duplamente respeitáveis. Quando estava
crescendo você não poderia dizer que era um quadrinista porque era
como dizer: como vai você? Eu sou um caso de retardo no
desenvolvimento. E agora ser um “romancista gráfico” te dá um certo
prestígio (SPIEGELMAN, 2014, p. 25-26, tradução nossa)16.
15
<http://www.bostonmagazine.com/arts-entertainment/blog/2014/05/12/art-spiegelman-boston-
what-happened-to-comics/> Acesso em 21 nov. 2016
16
[...] one of the euphemisms that people have used to say that comics are not a guilty pleasure.
Graphics: sort of respectable. Novel: since the nineteenth century, very respectable. So graphic novels
are doubly respectable. When I was growing up you couldn’t say you were a cartoonist because it is like
saying, how do you do? I’m a case of arrested development. And now being a “graphic novelist” has a
certain caché.
17
[...] really grown-up. But we are what we are... Comics is comics. I don’t feel ashamed – so I don’t
need another couple of words to make me feel like I’m doing something worthwhile.”
118
público adulto, que se sente seduzido pelo formato do livro e pela qualidade do papel
em que essas histórias são vendidas, fez dos quadrinhos um objeto de desejo muito
maior, assim como um produto mercadológico mais rentável e que pode ser exposto e
comercializado nos “espaços sagrados” habitados apenas pelos grandes artistas.
Nesse sentido, é impossível não enxergar que existe uma relação direta entre o
desenvolvimento desse mercado nos Estados Unidos e o gradual aumento da
legitimação cultural dos quadrinhos. Para Bart Beaty (2012), não existem dúvidas de
que as lojas especializadas na venda de quadrinhos, as comic book shops, foram por
muito tempo estigmatizadas como um lugar para pessoas antissociais e tímidas e para os
colecionadores. Contudo, o desenvolvimento dessa rede de vendas que facilitou a
publicação e o acesso a trabalhos que começaram a fugir do usual abriu caminho para as
novas possibilidades de produção que seriam financeiramente arriscadas, ou mesmo
impossíveis, se permanecessem no sistema de distribuição das bancas de jornal.
Beaty (2012) vai mais além e afirma, com bastante veemência, que, apesar de
suas origens e base de consumidores já bem estabelecidas, os quadrinhos só iniciam sua
jornada em direção à legitimação cultural quando essa forma de distribuição se
desenvolve. Com a criação desse sistema de vendas ainda nos anos 1970, ele pontua,
ficou mais fácil enxergar os quadrinhos não como parte da cultura de massa impressa –
como acontecia quando eles dividiam o espaço da banca de jornal com as revistas e
jornais -, e sim como uma forma de arte distinta (BEATY, 2012, p. 43). Sendo as
graphic novels as grandes beneficiárias do processo, é possível destacar que, na medida
em que os quadrinhos passaram a ganhar respeitabilidade no universo das artes
consagradas, do qual nunca imaginou fazer parte, certa “hierarquia da qualidade” foi
criada para distinguir os quadrinhos: de um lado os kitsch e de outro a face sofisticada e
experimental dos quadrinhos (SJÅSTAD, 2015, p. 06).
amplamente alastrado. Entretanto, afirmam os autores, tal rótulo acaba por ofuscar quais
são as reais características da história.
Segundo Ramos e Figueira (2011), uma das coisas que reforça essa ideia é o fato
de muitas dessas obras tratarem de experiências pessoais ou autobiográficas, algo que é
relativamente novo no campo, o que, em tese, as configuraria como um novo gênero.
Beaty e Weiner (2012), inclusive, comentam a explosão das graphic novels no mercado
das livrarias, chamando-as de um “importante gênero” (BEATY; WEINER, 2012, p.
xvi). Entretanto, discordamos da ideia de que as graphic novels constituem um gênero.
Elas na verdade seriam um suporte editorial, do qual muitos gêneros poderiam fazer
parte. Tentaremos demonstrar, a seguir, porque consideramos as graphic novels como
um suporte editorial e não um gênero.
No livro Graphic Novels: everything you need to know, Gravett (2005) faz um
levantamento das graphic novels essenciais e que todos deveriam ler. O autor explica
que a escolha pelas obras consideradas por ele como indispensáveis, como uma espécie
de “lista básica” para se iniciar nesse universo, se deu a partir da ênfase na história da
obra, no seu conteúdo, por achar que essa é a prioridade das pessoas quando buscam
uma história publicada nesse formato. Para criar essa lista, utilizou alguns critérios: as
obras deveriam ter sido publicadas na língua inglesa, mesmo que possuam outra língua
de origem; terem sido publicadas recentemente e que estivessem ainda disponíveis para
compra e, portanto, fáceis de achar; que fossem histórias originais, entre outros critérios.
120
Entretanto, dois pontos levantados por Gravett (2005) como importantes para a
seleção que faz em seu livro chamam a atenção: o primeiro é de que escolheu apenas
histórias publicadas em formato de livro. O autor justifica esse critério ao dizer que,
apesar de graphic novels poderem existir em partes ainda não compiladas, e até mesmo
em manuscritos não publicados, sua ênfase é na disponibilidade das obras. Em suma,
para que ele considere uma obra como fundamental, ela já deve ter sido publicada em
formato de livro, desconsiderando, mesmo que as nomeie da mesma forma, as demais.
O segundo ponto que se destaca na descrição de Gravett é que ele privilegiou histórias
que tenham começo, meio e fim, no lugar de histórias serializadas que não tenham ou
talvez não venham a ter um final concreto, uma conclusão (GRAVETT, 2005, p. 08/09).
Esses dois critérios utilizados por Gravett (2005) para a seleção das obras que
considera fundamentais demonstram que as graphic novels são enxergadas como um
livro fechado, ou seja, como uma história acabada. Devemos ressaltar que não
entraremos nesse momento no mérito do livro como fetiche, como explicitado
anteriormente. O que queremos demonstrar é que ao considerar obras que tenham sido
publicadas apenas em formato de livro, Gravett reforça a nossa ideia de que graphic
novels, na verdade, constituem um suporte editorial, e não um gênero. O autor deixa
isso claro, mesmo sem intencionar, ao afirmar que o termo novel (“novela”), faz com
que o público espere um certo tipo de formato, com intenções sérias, pensado a partir
das premissas da literatura tradicional, como se graphic novel devesse significar o
equivalente a um trabalho de ficção extenso. Entretanto, ressalta Gravett (2005), muitas
delas não são consideradas ficcionais, e sim pertencem às categorias da não-ficcção:
história, biografia, reportagem, documentário ou educacional. Ou seja, as graphic
novels não se limitam a apenas um gênero, ao mesmo tempo em que não são exatamente
o que se espera de fato de um romance literário; são, sim, seu próprio formato.
(GRAVETT, 2005, p. 08). A concepção de gêneros do discurso de Mikhail Bakhtin
(1997) nos ajudará a entender melhor o porquê de considerarmos as graphic novels
como um suporte editorial e não como um gênero.
Segundo Bakhtin (1997), por mais variedades que contenham, todas as esferas
da atividade humana estão ligadas à utilização da língua. Maior exemplo disso é que o
caráter e os modos de utilização são tão variados quanto as próprias esferas desta
atividade. Nesse sentido, a forma como se utiliza a língua pode ser feita por meio de
enunciados concretos e únicos, sejam eles orais ou escritos, procedidos pelos integrantes
121
E é por isso que defendemos que graphic novels não constituem-se como um
gênero. Isso, porque, acreditamos, a única coisa que diferentes publicações que recebem
essa alcunha têm em comum é o formato em que são produzidas e posteriormente
impressas, ou seja, em formato de livro. Por exemplo: se levarmos em consideração os
postulados de Bakhtin (1997), as graphic novels não sofrem modificações de acordo
com o contexto histórico, refletindo as mudanças na vida social; o que se modifica são
os gêneros que nela se apresentam. Assim como coloca Bakhtin (1997), reforçado pelo
que foi proposto por Gravett (2005), as graphic novels podem conter uma infinidade de
gêneros diferentes. O fato de mais de uma obra ser designada como tal não faz de todas
as outras obras que recebem essa denominação como pertencentes ao mesmo gênero.
Seria o mesmo que dizer que uma revista em quadrinhos de super-heróis e outra de
terror fazem parte do gênero “revista em quadrinhos” simplesmente por terem sido
publicadas por meio do mesmo suporte editorial.
Para Seth, o que o formato de livro permite, como nenhum outro, é que a história
pode ser desenvolvida pelo autor, e em consequência lida pelo consumidor, sem
nenhuma pressa. Além disso, o formato permite uma série de ousadias em relação ao
estilo, como inserir uma fotografia no meio da narrativa, por exemplo. Para Seth, o livro
possibilitou o uso desse tipo de ferramenta, além de dar maior liberdade ao quadrinista
quanto ao tamanho da obra que pretende criar e a forma que ela será apresentada.
“Então, sim, é bastante excitante poder trabalhar com livros. [...] Começando nos anos
1980 e depois seguindo em frente eu acho que mais quadrinistas começaram a entender
que a situação não se resume a ‘eu preciso terminar essa história e preciso que alguém a
enfie em algum livro’” (SETH in CHUTE; JAGODA, 2014, p. 156, tradução nossa)18.
18
So, yes, it is axciting to be able to work with books. [...] But starting in the 1980s and then moving on I
think more cartoonists have started to understand the situation is not simply, “I need to finish this story
and have somebody stick it into a book.”
19
That’s why I’m not excited about that format,” because I want to see that book and feel it. That’s the
thing I’m waiting to get, that box form the printer.
20
That book in particular has a certain bulletproof quality. You just feel, like, this is going to be around
when the next ice age hits. This will be like the one book that survived because it’s [got] the two-inch-
125
thick cardboard on the cover. It is like you protective, and you want it to have, you know, a shell that can
allow it to preceed in the world.
21
[…]it wasn’t a conscious decision on my part. It is like I wanted to tell a longer story and it came out in
that format.
22
[…] books, they are a perfect metaphor for a person: they have a spine and they are bigger on the
inside than they are on the outside, just like we are. Plus they can also lie to you
126
Figuras 19 e 20: Epiléptico, de David B. e Black Hole, de Charles Burns, histórias que se
privilegiaram e que talvez não fossem possíveis sem o novo suporte.
Um exemplo disso está no termo usado por Ben Schwartz (2010) para se referir
às graphic novels, designando-as de lit comics, ou seja, “literary comics”, o que
significa, em tradução livre, “quadrinhos literários”. Mais especificamente, ele chama
de lit comics os quadrinhos do período coberto entre o ano 2000 até 2008,
especialmente com o lançamento, pela editora Pantheon, de Jimmy Corrigan, de Chris
Ware e David Boring, de Daniel Clowes. A partir desse momento, afirma o autor, os
“quadrinhos literários” expandiram nos quesitos distribuição, acesso, e interesse do
público. Para ele, Jimmy Corrigan, de Ware, foi fundamental para a inserção dos
quadrinhos e de seus artistas nos círculos literários. Os lit comics, segundo o autor,
foram profundamente formatados por Maus de Spiegelman e, por conta disso,
permitiram aos quadrinhos sair das margens e ganharem cada vez mais público. Os
quadrinhos mainstream, em contrapartida, foram irrelevantes para a expansão desse
novo tipo de quadrinhos, pois nos anos 2000 os lit comics representavam um luxo no
mercado, uma espécie de especialidade dentro da especialidade no mundo dos
quadrinhos (SCHWARTZ, 2010, p. 12). Após os anos 2000, encontraram um caminho
próprio a partir de um novo sistema de distribuição, estimulado principalmente pela
criação/renovação de editoras voltadas a esse tipo de história em quadrinhos, de que já
falamos anteriormente.
Por conta disso, acredita Schwartz (2010), os quadrinhos literários, como insiste
em chamá-los, fincaram raízes na cultura norte-americana. Para o autor, um exemplo
disso é a revista The New Yorker. Isso, porque a revista, que tradicionalmente publica
toda semana a lista de quadrinhos de super-herói mais vendidas, abraçou essa nova
estética do lit comics e convida, com frequência, seus artistas para ilustrar suas capas,
131
com os destaques Ware e Clowes, além de Spiegelman, Burns, entre outros, que
também publicam seus quadrinhos em algumas edições. O jornal The New York Times,
em consonância, publica textos de Marjane Satrapi, Allison Bechdel, Chris Ware e
Gilbert Hernandez.
Mais uma vez, entendemos a relevância das graphic novels e dos quadrinhos
alternativos para o processo de legitimação cultural dos quadrinhos. Mas, afinal, por que
chamá-los de “quadrinhos literários”? Podemos não concordar plenamente com as
questões envolvidas no termo graphic novel, como tentamos esclarecer anteriormente,
mas por que a insistência de Shwartz (2010) de chamar esses quadrinhos recentes de
“literários”, como se o termo pudesse, melhor do que “novela gráfica”, revelar a
importância e o valor destas obras e do movimento alternativo para o campo dos
quadrinhos? Por que ainda é preciso, por parte de alguns, adjetivar os quadrinhos com
termos provenientes de outras mídias para que eles sejam considerados de qualidade?
Até mesmo Will Eisner utiliza a ideia de que as graphic novels constituem-se como
literatura ao estabelecer que
23
aumento y asentamiento de este notable medio de lectura em el formato de comic books vienen
ocurriendo desde hace sesenta años. A raíz de la reconpilación de las tiras de prensa publicadas em los
periódicos, el material del comic book no tardó em evolucionar hacia historias largas, hasta llegar a las
novelas gráficas. Esta última variante há pesado mucho sobre el dibujante y el guionista, exigiéndoles
una mayor sofisticación literaria.
132
Entretanto, o campo dos quadrinhos nada tem a ver com o campo literário. Se,
como afirma Paulo Ramos (2009b), os quadrinhos configuram-se como um
“hipergênero”, que possui dentro dele vários gêneros que podem ser veiculados em
diferentes suportes editoriais e formatos, como revistas, jornais, livros e internet, então
entendemos os quadrinhos como uma linguagem específica que pode conter diferentes
temas e estilos. No fim das contas, portanto, os quadrinhos constituiriam um campo de
produção cultural próprio.
133
É por isso que durante toda a pesquisa, insistimos no termo “campo” para nos
referirmos às histórias em quadrinhos. Essa escolha não foi em vão. Para tentar
demonstrar que os quadrinhos passaram por um processo de legitimação cultural que os
135
Para Antonio Luiz Cagnin (2014), a imagem seria o elemento característico das
histórias em quadrinhos que as distingue de qualquer outra manifestação da imagem ou
das narrativas. Entretanto, para o mestre, ela não havia recebido, até então, o tratamento
adequado quando se fala de suas potencialidades. Enquanto muitos se preocupavam em
estudar seus aspectos históricos, pictóricos, de cultura de massa, de seus personagens,
autores, gênero e estilos, a imagem, o que faz de uma história em quadrinhos uma
história em quadrinhos, tinha sido até então completamente esquecida. Por conta disso,
o que Cagnin (2014) pretendia em sua dissertação, originalmente elaborada em 1974 –
que mais tarde se transformaria em um dos mais importantes livros já lançados no
Brasil sobre a linguagem dos quadrinhos -, era fazer uma análise de maneira a
determinar as funções do sistema narrativo e do sistema de signos linguísticos que
compõem o “sistema iconográfico dos quadrinhos”. Isso, porque “a maior
complexidade da imagem em relação à palavra e das imagens justapostas em sequências
deve levar a estudos mais objetivos e profundos, que por sua vez, esclarecerão certos
aspectos psicológicos e sociológicos sugeridos pela imagem” (CAGNIN, 2014, p. 15).
possa ser de fato considerada gráfica, ou seja, para que ela possa ser considerada uma
história em quadrinhos. Para o pesquisador, se uma história trouxer o texto como
elemento mais relevante, sem que haja a necessidade da imagem, então estaríamos
falando apenas de uma história ilustrada. A imagem, assim
Os quadrinhos podem, então, ser estudados sob todos os aspectos e formas. Para
o autor, eles podem ser lidos a partir de uma variedade de perspectivas, como a literária,
a histórica, a psicológica, a sociológica, entre outras; podem surgir em várias tipologias,
como a ficção científica, as sátiras e as aventuras; possuem, em sua constituição, a
imagem e o texto, o segundo podendo ser apresentado na forma de balão, legenda e
onomatopeia. Nesse sentido, as histórias em quadrinhos se diferenciariam dos demais
campos pela maneira como encontram formas de representação para reproduzir em suas
páginas o som e o movimento: as onomatopeias, o neologismo e a ação agindo como
verbo, que sugerem o movimento na história (CARVALHO, 2014, p. 10), o que faz dos
quadrinhos uma linguagem única.
nome de “arte sequencial” (CAGNIN, 2017, p. 29), uma vez que só apresentam o
código icônico sem se valerem de qualquer outro, representando os momentos mais
significativos da história por meio dos gestos e ações dos personagens para conceber o
movimento na sequência dos quadros. “Conclui-se, então, que o texto não é essencial à
história em quadrinhos, assim como o romance escrito não exige forçosamente que seja
ilustrado com imagens. Os gestos das figuras, as expressões do rosto revelam a ação
substituindo, com vantagem, balões e legendas” (CAGNIN, 2014, p. 35).
Para o semiólogo italiano Daniele Barbieri (1998), no livro Los lenguages del
cómic, os quadrinhos são uma linguagem. Entretanto, o pesquisador não entende o
termo “linguagens” como apenas os instrumentos que utilizamos para nos
comunicarmos, e sim que as linguagens também são ambientes em que vivemos e que
determinam fortemente o que queremos, mais além daquilo que apenas usamos para que
possamos nos comunicar. Esses ambientes, ademais, não constituem universos
separados, mas, isso sim, representam dentro deles inúmeros aspectos do ambiente geral
da comunicação e, por isso, estão interconectados e em intensa e recíproca interação.
A linguagem para Barbieri (1998), nessa perspectiva, não é usada apenas para
expressar, mas também para criar ideias. Para o autor, todas as ideias nascem de uma
linguagem e, por isso, não é apenas um instrumento para disseminar ideias, mas um
espaço em que nos encontramos e no qual formamos tais ideias; por conta disso, as
características da linguagem têm efeito sobre nossos pensamentos. Habitar uma
linguagem, dessa maneira, significa estar dentro dela, aproveitar todas as possibilidades
que ela contém, assim como observar seus limites. Além disso, dizer que uma
linguagem constituiu-se como um ambiente significa dizer que esta usufrui de certa
autonomia quando em relação a outras linguagens. Isso, porque quando nos
identificamos com uma linguagem e escolhemos fazer uso da mesma, tornamo-la a
ferramenta que constitui nosso universo e que determina nossos limites. Isso não quer
dizer que, escolhendo determinada linguagem, as outras automaticamente deixem de
existir. Quer dizer apenas que se escolhemos e temos preferência por uma, as outras não
são vistas com tanta proximidade (BARBIERI, 1998, p. 13).
É certo também, afirma Barbieri (1998), que podemos ficar em situações dúbias,
incertas dentro do espectro da comunicação. Pode-se pensar, inclusive, nessas
“linguagens-ambiente” como um ecossistema: cada um possuiria suas próprias regras e
138
características específicas: ao mesmo tempo em que muitas regras são comuns a muitos
dos outros ecossistemas e a todos os outros, existem também zonas intermediárias e de
fronteiras entre dois ou mais ecossistemas diferentes, zonas nas quais se pode agir de
acordo com a regra de todos os campos envolvidos. Barbieri (1998) ainda continua e diz
que, assim como os ecossistemas são parte da natureza, também as linguagens são parte
da comunicação em geral. Por isso, não devemos pensá-las sempre como áreas
separadas e independentes, mas sim que algumas são partes de outras, resultado da
fusão, do que sobrou de uma outra que se extinguiu e, parecendo-se com o que lhe deu
origem, ainda assim se diferenciam. Há outras linguagens que possuem características
em comum, talvez por serem herdeiras da mesma linguagem ancestral e por isso
mantêm certas semelhanças. Por fim, há linguagens que adaptaram para si atributos de
outras, de maneira que podem se utilizar de características que haviam sido constituídas
em outro ambiente que não no próprio (BARBIERI, 1998, p. 13).
Nesse contexto, o objetivo do livro Los linguajes del cómic é fazer a ligação e a
relação entre a linguagem dos quadrinhos com outras linguagens. Para isso, Barbieri
(1998) distingue quatro tipos de relação entre a linguagem dos quadrinhos e as outras
linguagens: a primeira é a inclusão, que quer dizer que uma linguagem faz parte de
outra - no caso dos quadrinhos, eles são uma linguagem que faz parte da linguagem
geral da narrativa, assim como o cinema, por exemplo, e todas as linguagens narrativas
possuem características em comum; em segundo lugar está a geração, ou seja, uma
linguagem é gerada pela outra - os quadrinhos são “filhos” de outras linguagens, como a
ilustração e a caricatura e, por isso, compartilham das características dessas linguagens,
mas ao mesmo tempo são diferentes delas em sua natureza; a terceira é a convergência,
que quer dizer que duas linguagem podem convergir em determinados aspectos, ou seja,
há um certo grau de “parentesco” entre algumas linguagens - os quadrinhos, no caso,
possuem graus de parentesco com certas linguagens das quais eles não descendem
diretamente, mas com as quais possuem antepassados em comum; a quarta, e última,
relação é a adequação, ou seja, uma linguagem que se adéqua a outra - acontece quando
os quadrinhos consideram mais fácil reproduzir em seu interior outra linguagem, a fim
de explorar suas possibilidades expressivas, do que tentar construir possibilidades
expressivas equivalentes. Os quadrinhos, de certa forma, citam outra linguagem não de
maneira literal, mas criando um conjunto de características que pareçam com as da
linguagem citada. (BARBIERI, 1998, 14/15)
139
Acima estão expostos, resumidamente, o que três dos grandes estudiosos dos
quadrinhos acreditam que possa definir o que é “história em quadrinhos”. Antonio Luiz
Cagnin, Daniele Barbieri e Thierry Groensteen podem ser de nacionalidades diferentes,
terem feito suas pesquisas por meio de abordagens e metodologias diversas, e até terem
escrito e publicados seus livros em épocas distintas, mas todos possuem uma coisa em
comum: todos eles enxergam os quadrinhos como um meio único, que difere, em
variados níveis, de qualquer outra “linguagem”, “ambiente” ou “sistema”. Os
quadrinhos podem até guardar semelhança com outros campos; podem, até mesmo, ser
142
constituídos por códigos provenientes de outros meios, mas isso não quer dizer que eles
conservem a natureza e a função destes depois de adquirirem sua forma final.
Já para David Pascal (apud MUNSON, 2016, p. 11/12) as tiras - mas que
podemos alongar aos quadrinhos em geral - são a junção de diálogo escrito e/ou
narrativa e a ilustração pictórica. Apesar da justaposição desses dois elementos não ser
nada de muito novo – era algo já utilizado pelos egípcios e chineses há milênios -, a
mistura dos dois elementos formando uma estética unida a fim de criar uma expressão
artística única é, sim, algo novo. Assim, mesmo que contenha os elementos da literatura
e das artes visuais, a história em quadrinhos é diferente, verdadeiramente uma forma de
arte e, por isso, deve ser estudada e julgada não a partir dos critérios dessas outras
formas, mas por seus próprios padrões, mesmo que estes ainda precisem de definição e
aperfeiçoamento.
Um último exemplo, se nos for permitido. A sarjeta, para Hillary Chute e Patrick
Jagoda (2014), seria basicamente o que define os quadrinhos como essa forma narrativa
única. Isso, porque os quadrinhos são um meio com uma sintaxe peculiar: entre os seus
elementos básicos estão os quadros, os balões de texto, as caixas de texto e, é claro, a
sarjeta, “[...] o espaço entre os quadros, divide e multiplica o tempo” e “está no cerne do
funcionamento dos quadrinhos [...] É um meio que constrói e organiza o tempo e o
143
Levando em consideração o que foi colocado por todos esses autores, além de
tantos outros, é de vital importância reconhecer o campo dos quadrinhos como
autônomo e próprio, com suas próprias regras e normas, para que o debate do que
constitui os quadrinhos seja possível. Isso porque, acreditamos, é só a partir do
momento em que reconhecemos o campo como único, com suas próprias leis e
peculiaridades, que este debate pode florescer cada dia mais, estabelecendo os
quadrinhos como um objeto culturalmente valorizado e legítimo. Para tal, recorreremos
ao conceito de “campo” de Pierre Bourdieu.
24
[…] the space in between panels, divides and proliferates time is at the heart of how comics works [...]
It is a medium that builds and organizes the space of the page by assembling a series of moments – thus
turning [...] time in space.
144
dessa influência. O campo é também um espaço de luta entre os agentes que dele fazem
parte e que procuram alcançar certas posições dentro do mesmo, posições essas que são
alcançadas por meio da disputa de capitais específicos - como o cultural, o social e o
econômico – que são mais ou menos valorizados, dependendo das características de
cada campo. Além disso, cada agente do campo possui os diferentes capitais em menor
ou maior grau, o que define as posições hierárquicas que ocupam.
Por conta dessa hierarquia que se estabelece nas relações entre os diferentes
tipos de capitais e aqueles que os detêm, os campos de produção cultural ocupam,
inevitavelmente, uma posição dominada diante do campo de poder, isto é, por maior
que seja a liberdade destes campos em relação à interferência externa, eles são
atravessados pelas questões que envolvem os “campos englobantes” (BOURDIEU,
1992, p. 246), como o político e o econômico. Assim, segundo Bourdieu (1992), o
status da relação de forças nessa luta depende da autonomia que o campo possui em
relação ao mundo externo, ou seja, em que medida suas normas específicas conseguem
impor-se em relação aos produtores dos bens culturais que detêm a posição dominante
no campo de produção cultural.
consideração que lhe outorga valor e legitimidade. O valor de uma obra, assim, é a ela
atribuído a partir da crença nela depositada pelos agentes do campo, na medida em que
o produtor do valor de uma obra é o próprio campo, e não o autor/criador/artista dessa
obra. Ou seja: quando o campo existe, são os agentes que delegam legitimidade a uma
obra.
Em outras palavras, o valor de uma obra, seja ela artística ou não, é definido
pelo campo e por seus agentes, visto que o que é considerado legítimo é resultado desse
jogo, ao mesmo tempo em que contribui para reproduzir a crença no jogo e em seus
resultados. Os campos, desse modo, possuem a função de “fazer crer” (PEREIRA,
2015, p. 350). Se os campos de produção cultural possuem capitais específicos, então o
poder simbólico de se fazer com que se acredite, como forma de dar reconhecimento e
consagração a algo, é um dos pontos chave que ligam os campos de produção cultural.
Assim sendo, não se deve levar em consideração apenas os produtores diretos de uma
obra, mas também o grupo de agentes e instituições que delegam o valor da obra por
meio da produção da crença no valor da arte como um todo, e no valor daquela obra em
particular (BOURDIEU, 1993, p. 259). Em suma, para Bourdieu
metodológicos do pensador francês, tem sua autonomia – mesmo que relativa - e cujas
práticas, muitas vezes, estão relacionadas ao jogo de poder.
Waldomiro Vergueiro (2014) nos lembra, por exemplo, que foi Antonio Luiz
Cagnin o primeiro a sistematizar o processo de reconhecimento dos quadrinhos como
uma forma de expressão, exatamente ao diferenciá-los de outras formas narrativas
149
destacando assim os elementos característicos que permitem ao leitor de uma obra criar
o sentido a partir da disposição da imagem e do texto. Enquanto isso, para Barbieri
(1998), fazer da linguagem dos quadrinhos a protagonista das obras que se produzem
com essa linguagem representa uma conquista importante para aqueles que dela fazem
uso, além da tomada de consciência da própria existência autônoma como linguagem,
dando aos quadrinhos a oportunidade de emancipar-se e, assim, tomar consciência de
suas próprias possibilidades. Já para Groensteen (2015), por mais que exista um gênero
narrativo mais amplo, e que dentro dele existam diversas espécies narrativas, como o
filme, a peça teatral e as histórias em quadrinhos, cada um propõe ao seu público um
modo de exposição da história e disposição de competências próprio, que possui suas
próprias especificidades e atrativos. Exemplo disso é que os quadrinhos, mesmo com
mais de um século de existência, mantiveram sua popularidade exatamente por seu
caráter único, que atrai seu próprio público.
Entretanto, existe uma outra questão que pode demonstrar como o campo
autônomo dos quadrinhos, na visão de Pierre Bourdieu, se constitui: essa questão
envolve os diferentes tipos de capital simbólico descritos pelo pensador francês.
Levando-se em consideração, como coloca Bourdieu (1992), que os diferentes
indivíduos ou instituições de cada campo utilizam seus diferentes graus de capital
simbólico para se estabelecer e criar hierarquias dentro do campo, Carvalho (2013),
explica que o capital simbólico no campo dos quadrinhos não funciona como um poder
abstrato. O autor quer dizer que o capital simbólico, dentro do campo dos quadrinhos
especificamente tem relação direta com o capital cultural em um primeiro momento, e
com o capital econômico de forma secundária.
Nesse contexto, “a história do campo dos quadrinhos é formada por aqueles que
alcançaram as posições superiores, e nela se firmaram como exemplos a serem
seguidos” (CARVALHO, 2013). Exemplo disso, podemos comentar, são as graphic
novels. Dentro de um meio que sempre buscou legitimação cultural, esse suporte, ao
impulsionar a valorização do campo, tornou-se privilegiado dentro do mesmo,
ocupando as posições dominantes visto o alto grau de capital cultural que possui. Além
dos suportes, os gêneros que constituem o campo das histórias em quadrinhos também
fazem parte desse jogo de poder: enquanto as autobiografias, por exemplo, possuem um
alto grau de capital cultural, o gênero dos super-heróis foi, por muito tempo, taxado e
visto apenas como um entretenimento barato e sem conteúdo.
gêneros, que era o que fazia dinheiro para as editoras: os quadrinhos de horror,
romance, ficção científica ou de crime, tinham, de certa forma, uma fórmula e códigos
próprios, o que poderia confundir o leitor. Além disso, o gênero dos super-heróis tomou
conta do mercado dos quadrinhos tão fortemente que, para muitos, “super-herói” passou
a ser sinônimo de “história em quadrinhos”.
que têm sobre o público. Por isso, determinadas propriedades podem ser relevantes para
determinar um gênero em alguns casos, mas não em outros.
Dado tudo isso, podemos dizer, com certa segurança, que as histórias em
quadrinhos não são um gênero da literatura, ou um braço do cinema, ou um filho
ilegítimo das artes plásticas. Mesmo que os quadrinhos possam conter ou ter herdado
características de outros campos, o produto final nada tem a ver com eles. E é por isso
que defendemos que é só a partir do entendimento de que existe um campo de produção
cultural dos quadrinhos que, acreditamos, os quadrinhos cristalizarão esse processo de
legitimação pelo qual vêm passando. Com essa cristalização, deslizes e confusões, como
chamar os quadrinhos de um “gênero”, ou necessitar de adjetivações como “literário” e
“cinematográfico” para considerar uma obra como boa seriam evitados. Apesar de falar
especificamente do campo literário, a análise estrutural da narrativa desenvolvida por
Tzvetan Todorov (2003) ajuda a entender a importância de se pensar em um campo dos
quadrinhos.
Para se fazer uma análise estrutural da narrativa é preciso, antes de tudo, opor
duas instâncias em relação à literatura, sendo elas o que Todorov (2003) chama de
atitude teórica e atitude descritiva. A análise estrutural, entretanto, será sempre de
153
Podemos extrair mais um exemplo dos escritos de Wolk (2007). O autor nos
conta sobre um relato feito por Gloria Emerson na revista The Nation. Ela conta que
nunca foi leitora de histórias em quadrinhos, mas resolveu dar uma chance a Persepolis,
de Marjane Satrapi. Ao ler a história, ficou tão impressionada com a qualidade da arte e
da narrativa que não conseguiu classificá-la como uma “história em quadrinhos”, mas
sim como uma “memória gráfica”. Wolk (2007) acha isso tão absurdo que lembra que
se alguém falasse que o filme Siriana é tão bom que não pode ser considerado um filme,
e sim uma “narrativa cinematográfica”, todos achariam estranho.
25
There’s a problem with the way a lot of people talk about comics: it’s very had to talk about them as
comics. One numbingly common mistake in the way culture critics adress them is invoque “the comik
book genre.” As cartoonists and their longtime admirers are getting a little tired of explaining, comics
are not a genre; they’re a medium. Westerns, Regency romances, film noir: those are genres – kinds of
storir with specific categories of subjects and conventions for their contents and presentation. (Stories
about superheroes are a genre, too) Prose fiction, sculpture, vídeo: those, like comics, are media –
forms of expression. That have few or no rules regarding their contents other than the very broad ones
imposed on them by their form.
155
usadas para falar sobre os quadrinhos. Consideramos isso mais como um insulto ao
meio do que como um elogio, pois usá-los como algo que tenta exaltar ou enaltecer
deixa implícito que os quadrinhos como uma forma ambicionam ser cinema ou
literatura (WOLK, 2007, p. 13).
Se quadrinhos não são literatura, tampouco são livros ilustrados, como por muito
tempo se disseminou. Como nos lembra Thomas Wartenberg (2012), as histórias em
quadrinhos têm como um de seus princípios básicos, na maioria dos casos, priorizar
igualmente o texto e a imagem, já que um não funciona, no geral, independentemente
do outro. Nesse sentido, o que faz da imagem uma “ilustração” nos livros ilustrados é
que ela é direta, ou seja, está necessariamente e diretamente relacionada com o que ela
156
ilustra. Em outras palavras, a ilustração seria o que o texto está informando em forma de
desenho, e não um complemento ao mesmo. A ilustração, dessa forma, é uma
representação fiel do que diz o texto a qual a ilustração ilustra, em uma relação
assimétrica entre texto e imagem, em que a imagem será subordinada ao texto. Há
também, é claro, livros ilustrados em que suas imagens estão menos subordinadas ao
texto do que outras, como no caso de Alice no País das Maravilhas, por exemplo. Nele,
a história é contada pelos dois signos, o texto e a imagem. Mesmo que a última ainda
seja uma ilustração da história escrita e dependente do texto que a precede, ainda assim
tem um papel mais fundamental na obra do que outros livros ilustrados.
Por sinal, uma das grandes discussões que perseguem os quadrinhos, nesse
momento em que eles passam por um processo de legitimação, é considerá-los ou não
como arte. Para SJÅSTAD (2015), o discurso sobre o mundo das artes, que para alguns
pode soar antiquado e obsoleto, ainda é uma parte integrante da recepção e aceitação
dos quadrinhos. É por isso que, segundo o autor, a questão que ronda esse universo, se
quadrinhos deveriam ou não deveriam possuir o status de arte, é tão comumente
discutida:
26
Although the boudaries between the various artistic mediums and worlds of art seem to be
blurring in a Postmodern, post-Punk era, it still looks as if comics are comics and fine art is fine
art. They carry on na interesting relationship, feeding each other with images and ideas.
Comics dialogue with the other worlds. The difference now seems to be that comics are looked
upon as part of the system of the arts, and not merely pulp ficiton.
159
seu valor é neutro. Existem muitos romances e novelas ruins, e zilhões de quadrinhos
ruins. Mas nas mãos de alguém que saiba usar seu meio, grandes coisas podem
acontecer. Bons quadrinhos deixam uma impressão que dura para sempre.”(tradução
nossa)27
No entanto, não consideramos um erro ou uma abominação que um quadrinho
faça uso de aspectos de outras mídias para construir sua história. Existem quadrinhos
que se utilizam de dispositivos cinematográficos, por exemplo, para contar uma história,
assim como outros se utilizam de termos e até passagens de obras da literatura para
desenvolver sua narrativa, assim como de elementos das artes plásticas. Entretanto, uma
história em quadrinhos não é boa porque usou recursos cinematográficos, artísticos ou
literários, é apenas uma boa obra de quadrinhos que se utilizou desses recursos.
O próprio Will Eisner, como já discutimos aqui, se referia aos quadrinhos como
uma “forma literária”. É claro que as histórias em quadrinhos possuem certa semelhança
com a literatura, afinal, muitas usam palavras, são impressas em livros e são narrativas;
entretanto, quadrinhos são tão literatura quanto a televisão ou o teatro. Em suma, o fato
de guardarem certa semelhança com qualquer outra mídia não os faz um exemplar dessa
mídia. Quadrinhos não são artes plásticas, não são literatura, não são cinema;
quadrinhos não são um gênero literário, um storyboard cinematográfico ou um livro
ilustrado. Como diria Paulo Ramos (2009a), “quadrinhos são quadrinhos”. Eles são
“eles mesmos”, sua própria mídia, pois contêm seus próprios mecanismos, inovações,
clichês, gêneros e armadilhas. O primeiro passo para apreciar os quadrinhos em sua
totalidade é exatamente reconhecer isso.
27
Like any other medium, it’s “value-neutral”. There’ve been lots of rotten novels and paintings, and
zillions of rotten comics. But in the hands of someone who knows how to use their medium, great things
can happen. Good comics make an impression that lasts forever. Disponível em:
http://www.indiebound.org/author-interviews/spiegelmanart. Acesso em 31 jan. 2016
160
CONSIDERAÇÕES FINAIS
no mundo contemporâneo. E isso vem ocorrendo não só pelo fato de que os quadrinhos
têm recebido maior atenção por parte da crítica ao surgirem, nas últimas décadas,
muitos artistas que têm estendido as noções do que significa uma história em
quadrinhos, voltando seus trabalhos para temas mais profundos e que, até alguns anos
atrás, não eram associados aos quadrinhos; mas também porque os quadrinhos
começaram, assim como o fez o cinema há cinco décadas, a se reconhecer como um
campo de produção cultural próprio, com suas próprias regras, armadilhas, tecnologias,
forma de produção e comercialização.
A fusão entre bons artistas e boas críticas iniciada ainda na década de 1960
dentro do campo funcionou como uma ferramenta para acabar com anos de uma visão
negativa e de marginalização cultural que por tanto tempo arrastou o nome dos
quadrinhos para a lama. À medida que a cultura moderna passa cada vez mais a ser
visual, as histórias em quadrinhos acabam se tornando uma forma narrativa cada vez
mais atraente e o potencial do meio, que antes parecia limitado pela barreira entre a alta
e a baixa culturas, recebendo apenas desdém e desprezo do público em geral, hoje é
limitado apenas pela criatividade do artista que se arrisca dentro dele (BONGCO, 2000,
p. xvi), afinal, “as mídias são tão ricas quanto os artistas que nela trabalham”
(SPIEGELMAN, apud BONGCO, 2000, p. xvi, tradução nossa 28). Nesse sentido, é de
capital importância ressaltar, como explanamos durante este estudo, que é só a partir da
valorização dos quadrinhos iniciada na década de 1960, ou seja, é só a partir da
reavaliação e enaltecimento do meio como um todo, alcançados com as conquistas do
movimento intelectual europeu e do movimento underground norte-americano,
seguidos pela publicação de Maus e a explosão da produção e consumo das graphic
novels, que os quadrinhos puderam superar o preconceito e se reinventar.
Entretanto, para alguns observadores é melhor não nos empolgarmos com esse
novo momento de aceitação e legitimação dos quadrinhos, sobretudo se levarmos em
consideração que a virada dos quadrinhos também se deu a partir da publicação da
“tríade” de 1986. Batman: o cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, Watchmen, de Alan
Moore e Dave Gibbons e, especialmente, Maus, de Art Spiegelman, foram essenciais
para a guinada que os quadrinhos deram no que diz respeito à valorização do campo.
Contudo, para Paul Gravett (2010), não podemos exagerar quanto às expectativas para o
28
All media are as rich as the artists working inside them.
162
meio baseando-nos apenas nessa revolução iniciada em 1986. Brian Doherty (2010)
compartilha da mesma visão ao afirmar que o entendimento de que um punhado de
obras seriam as responsáveis pela reavaliação do meio daria a entender que os
quadrinhos se conectam com uma audiência “respeitável” apenas ocasionalmente, como
num fenômeno único que nada diz sobre a aceitação do meio como um todo
(DOHERTY, 2010, p. 26).
Para Gravett (2010) e Doherty (2010) algumas obras específicas têm sim a
capacidade de serem consideradas obras de arte, mas isso não implica que o
reconhecimento destes trabalhos no mundo dos quadrinhos signifique necessariamente
uma elevação no status do meio como um todo. Bart Beaty (2012) sanciona esse
questionamento ao colocar que se de fato os quadrinhos estão prontos para aceitação do
público, essa aceitação se dá primariamente a partir do sucesso de obras e autores
específicos. Então fica a dúvida: será que foram os critérios de julgamento que
mudaram no período pós-moderno, ou foram os artistas dos quadrinhos que finalmente
passaram a criar obras que alcançam os critérios de grandeza exigidos? (BEATY, 2012,
p. 102)
que ocorreu entre as décadas de 1980 e 1990 com a publicação da “tríade”, e mais
fortemente com Maus, ajudou a renovar a apreciação dos quadrinhos como um todo,
dando início ao entendimento deles como um campo de produção importante. Dito isso,
à medida que cada vez mais trabalhos chegam a esse nível de aceitação, é possível dizer
que as regras do debate têm mudado tanto que os quadrinhos, antes considerados como
maléficos, se transformaram em um tema de discussão legítimo da cultura
contemporânea. Então, parece claro que esse crescimento no reconhecimento de
trabalhos em particular tem sim o efeito de elevar o status de todo o campo.
Afinal, é por conta desse reconhecimento que os quadrinhos vêm ganhando cada
vez mais adeptos ao dar ao leitor a possibilidade de consumir da mais tradicional
história de super-heróis ao mais intricado relato confessional de um quadrinista; os
quadrinhos deixaram de fazer parte de eventos culturais voltados para a literatura e
congressos acadêmicos da área de comunicação para criar seus próprios eventos e
congressos; surgiu uma grande quantidade de publicações especializadas em quadrinhos
nas últimas décadas, assim como aconteceu com as publicações voltadas ao cinema;
com essa nova visão sobre o meio, espaços que antes se recusavam a receber e a
enxergar a história em quadrinhos como um meio importante para a disseminação de
conhecimento e valores culturais, começam a rever seus conceitos.
Essa percepção que, de início, parece tão simples e óbvia, foi por muito tempo
ignorada quase por completo, e por isso a nossa insistência de reconhecê-los como um
campo de produção cultural próprio não é em vão. Entretanto, sabemos que delimitar o
campo não é fácil. São muitas as teorias que buscam definir o que são os quadrinhos,
aonde e quando foram inventados, quais suas aplicações nos espaços culturais e
educacionais. Os próprios nomes dados ao meio nos diferentes países, como comic
books, bande dessineé e fumetti, já complicam bastante o estabelecimento do que
significa ser um quadrinho. Mas talvez esse seja o melhor motivo para se reconhecer e
cristalizar o campo dos quadrinhos: é só com ele que todas essas questões encontrarão
um terreno ainda mais fértil para serem discutidas, fazendo com que o campo cresça
cada vez mais.
No final das contas, “estamos, sim, vivendo uma grande época para os
quadrinhos” (VERGUEIRO, 2009, p. 38). Para Vergueiro (2009), mesmo que a
indústria dos quadrinhos continue massificada e massificante – assim como qualquer
outra indústria, seja o cinema, a televisão, etc -, talvez essa seja uma época de grandes
possibilidades para o meio. As obras que permitem o avanço da linguagem não estão
mais engessadas no espaço do quadrinho alternativo; elas alçaram voo e chegaram até o
mainstream, reelaborando e aprimorando os gêneros mais tradicionais dos quadrinhos.
Não há como negar, então, a grande variedade de material disponível: dos trabalhos
mais originais e inovadores até os mais tradicionais; das histórias de super-heróis e de
ficção científica, passando pela autobiografia, pelos registros jornalísticos, ensaios,
conteúdo erótico, romances, entre muitos outros.
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