ADVERTÊNCIA
O FILÓSOFO CELERADO
SADE E A REVOLUÇÃO
As idéias e atos dos personagens de Sade (reveladores, em que sentido, das suas
próprias?) não compreendem os mistérios de Deus, da Natureza, do Mal, do Nada. Algo se
mantém constante (e o opõe aos iluministas): o sentimento de pureza original e queda do
espírito, de um tempo atual preenchido por uma crescente degradação não há progresso,
no mito sadista; daí a idéia de crime puro, que, no movimento destruição/criação traria de
volta a pureza original.
Já que a idéia de pureza é desvinculada de Deus, e ligada a destruição, apesar de
continuar sendo uma qualidade absoluta, ela fica perdida entre o desejo de continuar pura e
o de queda – especialmente sobre a imagem da virgem. A virgem é o maior objeto de
desejo, exaspera a virilidade, sob a forma de crueldade e destruição. Crueldade também da
própria virgem, que se faz inacessível ódio a virgindade, a este estado absurdo que
marca a derrota inicial dilema da virilidade: é impossível não desejar a pureza, é
impossível não desejar destruí-la.
Outro aspecto que parece importante, mas que foi pouco explorado por Klossowski
é a necessidade de repouso de quase todos os personagens de Sade, após cometerem suas
perversões... Fuga do remorso?
“Para a virilidade maldita, a crueldade é o meio de suplantar a experiência da perda
do objeto amado: ela cede à crueldade o objeto que lhe foge e nela encontra uma exaltação
que lhe foi recusada no amor” (130). Contrário do amor romântico.
O tempo e o tédio provocado pela perda do sentimento de eternidade – delectatio
morosa – o homem entregando sua alma à morte, devido ao tédio – entregando, no caso de
Sade, ao gozo. Retendo em sua mente as imagens que surgem no devaneio, mas sem poder
realizá-la Sade acaba tendo que negar a si mesmo. “Ao inverso da alma crédula, que se
define pela presença de Deus como sua própria afirmação, a alma de Sade, ao ocultar sua
exasperação inata sob uma consciência atéia, se define a primeira vista como sua própria
negação“ (135-136). Sade então recorre ao esquecimento – e assim à recriação incessante
das mesmas fantasias – para não perder a consciência completamente. Estas fantasias são
transformadas em atos pelos seus personagens, que, entretanto são incapazes de consumar
os fatos de uma vez por todas.
Há ainda outros modos de delectatio morosa: o deboche experimental aproxima
Sade de Sacher-Masoch:
Consistindo a felicidade não no gozo mas no desejo de romper os freios que se
opõem ao desejo, não é na presença. Mas na expectativa dos objetos ausentes que se gozará
desses objetos – isto é, que se gozará de sua presença real destruindo-os (crimes do
deboche) ou, se eles decepcionam e parecem se recusar à presença (em sua resistência ao
que se aspiraria a lhes fazer sofrer), serão maltratados para torná-los ao mesmo tempo
presentes e destruídos (137-138).
APÊNDICES:
I Crítica a idéia de vontade geral, que coloca a massa majoritária (após a reclusão do
individual) como representante da espécie humana. Colocaria-se aqueles que desta vontade
mais se afastassem como monstros, mas nesse movimento que exclui o erro, exclui-se
também a sensibilidade – excluindo-se, assim, qualquer forma de fraternidade.
II Psicanálise: ódio ao pai constitui o conflito dos homens. Sade seria o inverso: tem
ódio à mãe. O Édipo invertido, que se alia ao pai e volta toda sua agressividade à mãe. Os
delitos desta justifica, os crimes do pai abandonado, e ele mesmo cometer o mal seria sua
única forma de pagar sua dívida com o pai. “O ‘sadismo’ de Sade seria, pois, a expressão
de um fator de ódio primordial, que teria ‘escolhido’ a libido agressiva para melhor poder
exercer sua missão: a de castigar o poder materno sob todas as suas formas e de subverter-
lhe as instituições” (146).
Ódio aos valores femininos: fidelidade, piedade, gratidão... Estendidos a sua esposa
e a todas as mulheres, que, em sua obra, partem de uma posição tirânica mas devem ser
reduzidos ao simples objeto de prazer do homem.
A gratidão com a mãe (e com todos) deve ser deixada de lado, sobre a sombra do
egoísmo natural: dar a vida é também uma atividade que se fez para si mesma. Então,
porque agradecer?
A mulher idealizada por Sade é Juliette, aquela sem vínculos sociais – não mão e
não esposa – daí o louvor à sodomia e ao sexo não-reprodutivo. Por isso, também, a
identificação e cumplicidade com o pai, que é o sombrio destruidor de sua própria família.
“A sodomia e o incesto, Sade os exalta como os atributos da paternidade: o pai deve romper
os grilhões conjugais que o impedem de gozar fisicamente de seus filhos: nenhuma lei
natural se opõe a isso” (151).
A virgem inacessível corresponde, em muitos sentidos, à mãe (em seu aspecto de
pureza idealizado) – mas, sob uma forma descontínua (a correspondência não é completa,
coisa que muitos psicanalistas não vêem), a mãe não pode ser virgem. Mas, de qualquer
maneira, mantém-se o caráter maniqueísta: ódio à mãe, amor ao pai.