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BISCIOTECA!.

UNIVERSAL
. \
o
esíenca
/
arole Talo-Hugon é professo-
~sofia na Universidade de
Nice - Sophia Antipolis, e directo-
ra do Centre de Recherches en
Histoire des Idées. ntstóma
Os seus campos de pesquisa são a
estética, por um lado, e a questão
e teORIaS
da afectividade, por outro, nomea-
damente as teorias das paixões da
época clássica.
Além dos numerosos artigos nestes
dois domínios, publicou recente-
mente Descartes ou les passions
rêvéespar la raison (Vrin, 2002),
bem como Les Passions (Armand
Colin, 2004) e, sobre estética, além
do presente volume, Avij;non
2005: le conflit deshéritages(Actes
Sud, 2006). Estas duas direcções de
pesquisa cruzam-se nos seus traba-
lhos actuais ; assim, publicou só-
\
bre este tema Goút et dégoút.L'art
peut-il tout montrer? O. Chambon,
2003) e acaba de terminar Morale
de l'art, a publicar pelas Presses
Universitaires de France.
•• .•.•• •••• _ ··T~ __'·_·_

CAROLE TALON-HUGON

esíênca ~

mstóma
/

e teomas

~,EDIÇÕES

texto.GRafIa
~_ÉT_I_C_A __

Título Original: L'esthétique


É em torno da ideia de conhecimento articulado com as
Autor: Carole Talon-Hugon
Tradução: António Maia da Rocha necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que
Revisão: Gabinete Editorial Texto & Grafia se projecta a colecção "Biblioteca Universal".
Grafismo: Cristina Leal Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de
Paginação: Vitor Pedro
autores e temas - dos quais se destacarão as áreas das Ciências
© Presses Universitaires de France, 2008 Sociais e Humanas -, pretende-se que a colecção esteja aberta
a todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica,
Todos os direitos reservados para
científica ou artística.
Edições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.? 55, 2.° Esq.


1000-217 Lisboa'
Telefone: 21 797 70 66
Fax: 21 797 81 03
E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt
www.texto-grafia.pt

Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda. --...,
1." edição\Janeiro de 2009

ISBN: 978-989-95884-3-1
Depósito Legal n,v 28692U08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.
~_ÉT_I_C_A __

Título Original: L'esthétique


É em torno da ideia de conhecimento articulado com as
Autor: Carole Talon-Hugon
Tradução: António Maia da Rocha necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que
Revisão: Gabinete Editorial Texto & Grafia se projecta a colecção "Biblioteca Universal".
Grafismo: Cristina Leal Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de
Paginação: Vitor Pedro
autores e temas - dos quais se destacarão as áreas das Ciências
© Presses Universitaires de France, 2008 Sociais e Humanas -, pretende-se que a colecção esteja aberta
a todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica,
Todos os direitos reservados para
científica ou artística.
Edições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.? 55, 2.° Esq.


1000-217 Lisboa'
Telefone: 21 797 70 66
Fax: 21 797 81 03
E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt
www.texto-grafia.pt

Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda. --...,
1." edição\Janeiro de 2009

ISBN: 978-989-95884-3-1
Depósito Legal n,v 28692U08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.
INTRODUÇÃO

O objecto desta obra é a estética como disciplina


filosófica. Mas, assim entendida, o que é a esté-
tica? A pergunta é aparentemente simples, mas,
na realidade, tremendamente difícil.
O Dietionnaire Historiqae et Critique de la Philosophie de
A. Lalande (1980) define-a como «a ciência que tem por objecto
o juízo da apreciação que se aplica à distinção do belo e do
feio», mas o Voeabulaire de l'Esthétique (1990) descreve-a como
«a filosofia e (a) ciência da arte»; mais consensuais, Histori-
sehes Worterbueh der Philosophie (1971), Enciclopaedia Filosofiea
(1967) e Aeademie Ameriean Eneyclopaedia (1993) definem-na
como o ramo da filosofia que trata das artes e da beleza. Se con-
siderarmos as definições que dela nos dão os filósofos, também
encontramos desacordos. Assim, ~~rten defin!u-a ç_0Elo
«~iência do mundo sensível <!?_ c~hecime~~ de _ulll....2.bjecto»
(Méditations, '1735), enquanto Hegel faz dela a «filosofia da
arte» (Cours d'Esthétique, 1818-1830). A~st_a confusão junta-se
o seQ.tido veiculado pela origem do termo: «estética» vem da
palavra grega aistbêsis que designa simultaneamente a faculdade
e o acto de sentir (a sensação e a percepção), e esta etimologia
Rarece designar a estética como o estudo dos factos de sensibi- lJ
Fdade no sentido lato (os aisthêta) por oposição aos factos de
(
.
inteligência (os noêta). A estética será crítica do gosto, teoria do " ~
belo, ciência do sentir, filosofia da arte? ,J
Desta cacofonia de definições, sobressaem dois pontos. A,
\

I. ,
_est~j:!caé_J:.lm~reflexão sobre um campo de objectos domi-
nado pelos termos «belo», «sensível» e «arte». Cada um destes
(I
c.-
...
'c

termos encerra e implica outros e estas séries cruzam-se em

7
INTRODUÇÃO

O objecto desta obra é a estética como disciplina


filosófica. Mas, assim entendida, o que é a esté-
tica? A pergunta é aparentemente simples, mas,
na realidade, tremendamente difícil.
O Dietionnaire Historiqae et Critique de la Philosophie de
A. Lalande (1980) define-a como «a ciência que tem por objecto
o juízo da apreciação que se aplica à distinção do belo e do
feio», mas o Voeabulaire de l'Esthétique (1990) descreve-a como
«a filosofia e (a) ciência da arte»; mais consensuais, Histori-
sehes Worterbueh der Philosophie (1971), Enciclopaedia Filosofiea
(1967) e Aeademie Ameriean Eneyclopaedia (1993) definem-na
como o ramo da filosofia que trata das artes e da beleza. Se con-
siderarmos as definições que dela nos dão os filósofos, também
encontramos desacordos. Assim, ~~rten defin!u-a ç_0Elo
«~iência do mundo sensível <!?_ c~hecime~~ de _ulll....2.bjecto»
(Méditations, '1735), enquanto Hegel faz dela a «filosofia da
arte» (Cours d'Esthétique, 1818-1830). A~st_a confusão junta-se
o seQ.tido veiculado pela origem do termo: «estética» vem da
palavra grega aistbêsis que designa simultaneamente a faculdade
e o acto de sentir (a sensação e a percepção), e esta etimologia
Rarece designar a estética como o estudo dos factos de sensibi- lJ
Fdade no sentido lato (os aisthêta) por oposição aos factos de
(
.
inteligência (os noêta). A estética será crítica do gosto, teoria do " ~
belo, ciência do sentir, filosofia da arte? ,J
Desta cacofonia de definições, sobressaem dois pontos. A,
\

I. ,
_est~j:!caé_J:.lm~reflexão sobre um campo de objectos domi-
nado pelos termos «belo», «sensível» e «arte». Cada um destes
(I
c.-
...
'c

termos encerra e implica outros e estas séries cruzam-se em

7
~_É_T_IC_A _ INTRODUÇÃO

diversos pontos: «belo» abre-se para o conjunto das proprieda- passado ~m julgar obrãs do ,presente)_A estética um.método $r
)
il)
é

des estéticas; ~~el».!~eJe_ ~ra sentir, ressentir,_imag,in..ar discursivo, analítico e argumentado que _pe.r_mit~clarificaCfóey
e também para o gosto, pata as qualidades sensíveis, .para.as/ conceptuais. Isto não significa que esteja reservada unica-
imagens, para os afectos, etc.j «arte» abre-se para a criação, mente ao; filósofos reconhecidos: quando respondem a estas
imitação, génio, inspiração, valor artístico, etc. Contudo, seria exigências, os escritos dos poetas (pensemos na Introduction
falso pensar que há temas imutáveis da estética. O do gosto, àla méthode de Léonard de Vinci de Valéry, 1894), do crítico
~ por exemplo, apmce\,no século XVII, conhece um longo eclipse (Art de Clive Bell, 1914, por exemplo), do historiador da arte
no século XI~, e volta a ressurgir como tema de interesse no (citemos apenas -lirt q-nd !llu~i(}l1de E. H. Gombrich, 1960),
decurso da ~eg!lnd<Lilletade do século xx. Em si mesmos, estes estão em harmonia com a estética.
temas têm uma história que é a do seu tratamento teórico. Entretanto, definir a estética como um método e um campo
No entanto, do ponto de vista trans-histórico em que aqui de objectos ainda não é suficiente. De facto, o termo «estética»
nos colocamos, é possível dizer que esta esfera dos objectos da não aparece senão np século xvúi;\pela pena de Baumgarten o-,
estética é muito ampla, mas não ilimitada. Uma das questões que, primeiro, propõe o substantivo em latim (aesthetica) nas
que teremos de tratar será a de saber se é ou não compósito suas l'tf!1itações Filosóficas (lnS), e depois em alemão (die Aes-
o carácter deste conjunto e da conexão das três noçôes matri- thetik) no seu Aesthetica, em 1750. Mas a invenção do nome
ciais a que podemos reportar os seus elementos, Haverá uma não significa a invenção da disciplina. Senão, seria necessário
ligação forte entre estes objectos que estabeleceria a unidade excluir da estética não só o lJ:gJJ.Ldu beau de jean-Pierre de
subjacente da estética, independentemente da diversidade das Crousaz (1715), mas também o Inquiry into the OriginalofOur
definições que dela se dá? ideas of Beauty and Virtue de Hutcheson (1725) ou o Temple
Contudo, é jmp,o.§sível ficarmos por uma abordagem_à d1!:_ Coút de Voltaire (1733). rortanto~' Baumgar_ten só inventa
estética pelos ~eus objectos, porque alguns deles, muito par- _apalav~a.rÁ.pesar disso, quanto tempo o nascimento precede o
ticularmente os que se relacionam com a arte, também são baptismo? Meio século ou dois mil 'anos? Se se considera que o
os objectos de outras disciplinas como a crítica ou a história t;lparecirlierítõ'lda estética não coincide com a sualdenominaÇ'ã'ó,
da arte, que nascem precisamente na mesma época que a porque não fazer remontar este nascimento aos inícios da filo-
estética (sem falar das ciências humanas mais recentes que sofia e incluir na disciplina estética o THíjias !v1q_To} de.Platão, a
tratam da mesma questão: sociologia da arte, psicologia da ~.'rl~ Áristót~i;;sJou <I.§!:éada,I, 6/de pIo tino sobre o belo?
criação, semiologia das obras, etc., que alguns, hoje, conside- Os autores da Antiguidade teriam feito da estética o que Aris-
ram significar o desaparecimento da estética por explosão e tótek~§zAa meJaf!sica: reflectir sobre o ser, mas sem dispor
dissolução - questão que será abordada como conclusão desta de um nome para designar estas reflexões. Como os sucessores
obra). Assim, é preciso fazer intervir outro critério, que cons- de Aristóteles baptizaram com o nome «metafísica» as obras
titui o segundo ponto que deriva das definições atrás citadas: que estão depois (meta) das de física, não será preciso baptizar
~ um..a -disciplina.....filosófi® A estética distingue-se retroactivamente como «estética»' a sua Poética? Que vale essa
da ,história,na_arte e da crítica pelo seu calác~r conceprual denominação retrospectiva? lCom~"'y~,~_!p.bora seja simples
~geral: a sua tarefa não é apresentar e ordenar as obras do datar o aparecimento da palavra, é muito mais difícil datar o

8 9
~_É_T_IC_A _ INTRODUÇÃO

diversos pontos: «belo» abre-se para o conjunto das proprieda- passado ~m julgar obrãs do ,presente)_A estética um.método $r
)
il)
é

des estéticas; ~~el».!~eJe_ ~ra sentir, ressentir,_imag,in..ar discursivo, analítico e argumentado que _pe.r_mit~clarificaCfóey
e também para o gosto, pata as qualidades sensíveis, .para.as/ conceptuais. Isto não significa que esteja reservada unica-
imagens, para os afectos, etc.j «arte» abre-se para a criação, mente ao; filósofos reconhecidos: quando respondem a estas
imitação, génio, inspiração, valor artístico, etc. Contudo, seria exigências, os escritos dos poetas (pensemos na Introduction
falso pensar que há temas imutáveis da estética. O do gosto, àla méthode de Léonard de Vinci de Valéry, 1894), do crítico
~ por exemplo, apmce\,no século XVII, conhece um longo eclipse (Art de Clive Bell, 1914, por exemplo), do historiador da arte
no século XI~, e volta a ressurgir como tema de interesse no (citemos apenas -lirt q-nd !llu~i(}l1de E. H. Gombrich, 1960),
decurso da ~eg!lnd<Lilletade do século xx. Em si mesmos, estes estão em harmonia com a estética.
temas têm uma história que é a do seu tratamento teórico. Entretanto, definir a estética como um método e um campo
No entanto, do ponto de vista trans-histórico em que aqui de objectos ainda não é suficiente. De facto, o termo «estética»
nos colocamos, é possível dizer que esta esfera dos objectos da não aparece senão np século xvúi;\pela pena de Baumgarten o-,
estética é muito ampla, mas não ilimitada. Uma das questões que, primeiro, propõe o substantivo em latim (aesthetica) nas
que teremos de tratar será a de saber se é ou não compósito suas l'tf!1itações Filosóficas (lnS), e depois em alemão (die Aes-
o carácter deste conjunto e da conexão das três noçôes matri- thetik) no seu Aesthetica, em 1750. Mas a invenção do nome
ciais a que podemos reportar os seus elementos, Haverá uma não significa a invenção da disciplina. Senão, seria necessário
ligação forte entre estes objectos que estabeleceria a unidade excluir da estética não só o lJ:gJJ.Ldu beau de jean-Pierre de
subjacente da estética, independentemente da diversidade das Crousaz (1715), mas também o Inquiry into the OriginalofOur
definições que dela se dá? ideas of Beauty and Virtue de Hutcheson (1725) ou o Temple
Contudo, é jmp,o.§sível ficarmos por uma abordagem_à d1!:_ Coút de Voltaire (1733). rortanto~' Baumgar_ten só inventa
estética pelos ~eus objectos, porque alguns deles, muito par- _apalav~a.rÁ.pesar disso, quanto tempo o nascimento precede o
ticularmente os que se relacionam com a arte, também são baptismo? Meio século ou dois mil 'anos? Se se considera que o
os objectos de outras disciplinas como a crítica ou a história t;lparecirlierítõ'lda estética não coincide com a sualdenominaÇ'ã'ó,
da arte, que nascem precisamente na mesma época que a porque não fazer remontar este nascimento aos inícios da filo-
estética (sem falar das ciências humanas mais recentes que sofia e incluir na disciplina estética o THíjias !v1q_To} de.Platão, a
tratam da mesma questão: sociologia da arte, psicologia da ~.'rl~ Áristót~i;;sJou <I.§!:éada,I, 6/de pIo tino sobre o belo?
criação, semiologia das obras, etc., que alguns, hoje, conside- Os autores da Antiguidade teriam feito da estética o que Aris-
ram significar o desaparecimento da estética por explosão e tótek~§zAa meJaf!sica: reflectir sobre o ser, mas sem dispor
dissolução - questão que será abordada como conclusão desta de um nome para designar estas reflexões. Como os sucessores
obra). Assim, é preciso fazer intervir outro critério, que cons- de Aristóteles baptizaram com o nome «metafísica» as obras
titui o segundo ponto que deriva das definições atrás citadas: que estão depois (meta) das de física, não será preciso baptizar
~ um..a -disciplina.....filosófi® A estética distingue-se retroactivamente como «estética»' a sua Poética? Que vale essa
da ,história,na_arte e da crítica pelo seu calác~r conceprual denominação retrospectiva? lCom~"'y~,~_!p.bora seja simples
~geral: a sua tarefa não é apresentar e ordenar as obras do datar o aparecimento da palavra, é muito mais difícil datar o

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~_É_T_IC_A __ INTRODUÇÃO

~Earecimento da disciQlinª" \.Estamos perante uma questão .que. para designar as coisas que se nomeiam e não para mostrar
não é histórica, mas filosóficaz
•• _ T_'" • a sua natureza». É por isso que as pretensas «definições das
Ver:i>_e.:-á.
g_ge_ foi precisamente no século XVIII que nasceu coisas» são «proposições sujeitas a contradição» e que as únicas
a estética., Porque, para que a'-.discip._lina«estética» pudesse definições são «definições de nomes» (Do Espírito Geométrico).
aparecer, eram precisos não somente objectos e um certo tipo Se as definições que pretendem dizer a natureza da coisa - neste
de abordagem, mas ainda faltava um determinado número de caso, «a» natureza da estética - estão sujeitas a contradição, é
condições; ora foi nesta época que estas condições se reuniram. porque não há essên~s-~istórica da disciplina. «Estética»,

.-
t No início da Idade Clássica! (em meados do século XVII), sur-

giu na cultura ocidental uma nova epistê11?f,quer dizer, urna


~o_~ocabylário dt(Wittgenstein'; e
um «conceito aberto». A
estética é o conjunto dos sentidos'que se deu à estapalavra quando
_çerta organização_das ideias que transcendem as consciências a epistêmê tornou a disciplina possível. Referindo-nos a uma
individuais, que constitui o fundo sobre o qual a estética (mas essência da disciplina, é impossível optar entre estes diferentes
também outras disciplinas novas - como a crítica ou a história sentidos propostos) ~O sentido da palavra é o conjunto dos seus ,
da arte -, ou formas novas de disciplinas antigas - particu- usos. Cada um deles define uma visão histórica da disciplina.
larmente a nova física mecanicista) pode nascer. Nesta jiova Por isso, trataremos aqui de analisá-los, um de cada vez, de
epistêmê ligam-se de maneira absolurarnente inédita o sensível, colocá-los em relação com o estado da arte e a visão do mundo ~-
J o belo e a arts· Portanto, o século XVIII inventa não ~ pala- da época em que eles se desenvolvem. Também trataremos de
I na, mas também a disciplina. Mas, como se verá, este duplo pensar as semelhanças, as afinidades e as filiações que existem
aparecimento é muito complexo: 9 inventor do ter!!l0 nâoé entre eles.
~ .o da-disciplina; ..a disciplina existiu antes do termo ~, depois Um conceito aberto como o de estética também é um
. da introdução da palavra, a disciplina existiu sem ela (Kant, conceito susceptível de evolução. Se a estética não se reduz à
Crítica da Faculdade do Juízo). Portanto, existe um período história das estéticas do passado.ise ela é uma disciplina viva
complexo, de um lado porque a disciplina não nasce de maneira ~não fóssil, a questão também é saber em que deve tornar-se. ""
definitiva e incontestável numa obra particular, mas eclode Podem-se recensear os sentidos dados à palavra e, assim, dizer
simultaneamente em certos escritos de ensaístas e de filósofos o que a estética foi; mas o que ela foi só decide parcialmente o
....!!.ª França, na Inglaterra, na Escócia e na Alemanha; e, por que ela será. A sua evolução também é função de decisões. Não
outro lado, porque este acontecimento múltiplo não está isento de decisões arbitrárias, mas proposições reflectidas apoiadas na
de mal entendidos e de falsas partidas. análise da nova cO_llfigu~ç~o epistémica da nossa contempq-
Tendo por fundo a epistêmê que a tornou possível, o que raneidade. \
é,_exa'Ctamente a estética? É crítica do gosto como pensava o
.século XVIII francês e inglês? Teoria do sensível como. queria
Baumgarren? Ou filosofia da arte como afirma amplamente o
? _"J..- '~-"', \}ir-~ ( - ,,' l ,.~ 1. CI-
kr, )0 Jl\y, :)
século XIX?Será pensamento do ser como diz a fenomenologia,
"'+
c: ,,... Q
I tC":. )

...R (, (\J. /
ou elucidação crítica dos conceitos estéticos como quer a filo- I r}V (;''Y'--) d '" I' i I
..J ("".
• .f;
sofia analítica? Pascal escrevia que «as definições só são feitas )"l-rt'.(
AC\
10 11
~_É_T_IC_A __ INTRODUÇÃO

~Earecimento da disciQlinª" \.Estamos perante uma questão .que. para designar as coisas que se nomeiam e não para mostrar
não é histórica, mas filosóficaz
•• _ T_'" • a sua natureza». É por isso que as pretensas «definições das
Ver:i>_e.:-á.
g_ge_ foi precisamente no século XVIII que nasceu coisas» são «proposições sujeitas a contradição» e que as únicas
a estética., Porque, para que a'-.discip._lina«estética» pudesse definições são «definições de nomes» (Do Espírito Geométrico).
aparecer, eram precisos não somente objectos e um certo tipo Se as definições que pretendem dizer a natureza da coisa - neste
de abordagem, mas ainda faltava um determinado número de caso, «a» natureza da estética - estão sujeitas a contradição, é
condições; ora foi nesta época que estas condições se reuniram. porque não há essên~s-~istórica da disciplina. «Estética»,

.-
t No início da Idade Clássica! (em meados do século XVII), sur-

giu na cultura ocidental uma nova epistê11?f,quer dizer, urna


~o_~ocabylário dt(Wittgenstein'; e
um «conceito aberto». A
estética é o conjunto dos sentidos'que se deu à estapalavra quando
_çerta organização_das ideias que transcendem as consciências a epistêmê tornou a disciplina possível. Referindo-nos a uma
individuais, que constitui o fundo sobre o qual a estética (mas essência da disciplina, é impossível optar entre estes diferentes
também outras disciplinas novas - como a crítica ou a história sentidos propostos) ~O sentido da palavra é o conjunto dos seus ,
da arte -, ou formas novas de disciplinas antigas - particu- usos. Cada um deles define uma visão histórica da disciplina.
larmente a nova física mecanicista) pode nascer. Nesta jiova Por isso, trataremos aqui de analisá-los, um de cada vez, de
epistêmê ligam-se de maneira absolurarnente inédita o sensível, colocá-los em relação com o estado da arte e a visão do mundo ~-
J o belo e a arts· Portanto, o século XVIII inventa não ~ pala- da época em que eles se desenvolvem. Também trataremos de
I na, mas também a disciplina. Mas, como se verá, este duplo pensar as semelhanças, as afinidades e as filiações que existem
aparecimento é muito complexo: 9 inventor do ter!!l0 nâoé entre eles.
~ .o da-disciplina; ..a disciplina existiu antes do termo ~, depois Um conceito aberto como o de estética também é um
. da introdução da palavra, a disciplina existiu sem ela (Kant, conceito susceptível de evolução. Se a estética não se reduz à
Crítica da Faculdade do Juízo). Portanto, existe um período história das estéticas do passado.ise ela é uma disciplina viva
complexo, de um lado porque a disciplina não nasce de maneira ~não fóssil, a questão também é saber em que deve tornar-se. ""
definitiva e incontestável numa obra particular, mas eclode Podem-se recensear os sentidos dados à palavra e, assim, dizer
simultaneamente em certos escritos de ensaístas e de filósofos o que a estética foi; mas o que ela foi só decide parcialmente o
....!!.ª França, na Inglaterra, na Escócia e na Alemanha; e, por que ela será. A sua evolução também é função de decisões. Não
outro lado, porque este acontecimento múltiplo não está isento de decisões arbitrárias, mas proposições reflectidas apoiadas na
de mal entendidos e de falsas partidas. análise da nova cO_llfigu~ç~o epistémica da nossa contempq-
Tendo por fundo a epistêmê que a tornou possível, o que raneidade. \
é,_exa'Ctamente a estética? É crítica do gosto como pensava o
.século XVIII francês e inglês? Teoria do sensível como. queria
Baumgarren? Ou filosofia da arte como afirma amplamente o
? _"J..- '~-"', \}ir-~ ( - ,,' l ,.~ 1. CI-
kr, )0 Jl\y, :)
século XIX?Será pensamento do ser como diz a fenomenologia,
"'+
c: ,,... Q
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ou elucidação crítica dos conceitos estéticos como quer a filo- I r}V (;''Y'--) d '" I' i I
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sofia analítica? Pascal escrevia que «as definições só são feitas )"l-rt'.(
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CAPÍTULO I

PRÉ-HISTÓRIA
DA ESTÉTICA

uito antes do aparecimento do substantivo


«estética» e do nascimento da disciplina
filosófica com este nome, existem reflexões
filosóficas sobre temas que serão os seus e particularmente
sobre dois dos mais importantes deles: o belo e a arte. Trata-se,
portanto, aqui, de examinar em que consistem estas reflexões,
de analisar as razões 'pelas quais elas não autorizam a falar
de estética antes do século XVIII e de mostrar em que sentido
inseminam a estética futura e apresentam um grande interesse
para a estética hoje.

I. - A metafísica do belo

1. Platão. - Um diálogo de juventude de Platão incide


precisamente sobre a questão do belo: trata-se de Hípias Maior
que põe em cena Sócrates, à procura da essência da beleza,
diante do sofista Hípias. À pergunta «o que é o belo?» são pro-
postas várias respostas, examinadas e descartadas após crítica.
O diálogo conclui com uma aporia carregada de sentidos. A
primeira resposta de Hípias, segundo a qual a beleza é «uma
bela virgem», é rejeitada pelo motivo de que um exemplo não é
uma definição. De facto, não diz a essência da coisa e é sempre
criticável: há outras coisas belas (uma égua ou uma lira podem
ser consideradas belas); há coisas radicalmente diferentes que
também são belas (uma panela); a beleza da coisa escolhida
também é discutível (comparada com uma deusa, uma jovem
não é bela). Então, o belo seria o conveniente? Não, porque o

13
CAPÍTULO I

PRÉ-HISTÓRIA
DA ESTÉTICA

uito antes do aparecimento do substantivo


«estética» e do nascimento da disciplina
filosófica com este nome, existem reflexões
filosóficas sobre temas que serão os seus e particularmente
sobre dois dos mais importantes deles: o belo e a arte. Trata-se,
portanto, aqui, de examinar em que consistem estas reflexões,
de analisar as razões 'pelas quais elas não autorizam a falar
de estética antes do século XVIII e de mostrar em que sentido
inseminam a estética futura e apresentam um grande interesse
para a estética hoje.

I. - A metafísica do belo

1. Platão. - Um diálogo de juventude de Platão incide


precisamente sobre a questão do belo: trata-se de Hípias Maior
que põe em cena Sócrates, à procura da essência da beleza,
diante do sofista Hípias. À pergunta «o que é o belo?» são pro-
postas várias respostas, examinadas e descartadas após crítica.
O diálogo conclui com uma aporia carregada de sentidos. A
primeira resposta de Hípias, segundo a qual a beleza é «uma
bela virgem», é rejeitada pelo motivo de que um exemplo não é
uma definição. De facto, não diz a essência da coisa e é sempre
criticável: há outras coisas belas (uma égua ou uma lira podem
ser consideradas belas); há coisas radicalmente diferentes que
também são belas (uma panela); a beleza da coisa escolhida
também é discutível (comparada com uma deusa, uma jovem
não é bela). Então, o belo seria o conveniente? Não, porque o

13
~_É_T_Ic_A __ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

conveniente dá somente a aparência da beleza. Mas sê-lo-ia o platónico: é belo aquilo a que os homens chamam belo, a beleza
útil? Para o afirmar, seria necessário conhecer também a essên- é uma qualidade e não uma essência, a beleza não é nada fora
cia do útil e, para isso, a do bem; também seria preciso conhecer da aparência bela.
o laço que une estas essências, o que apenas será estabelecido Os diálogos metafísicos da maturidade dão uma resposta
na época d:4 República. Por isso, numa perspectiva muito dife- a um certo número de questões aqui deixadas em suspenso.
rente, será preciso dizer que o belo é aquilo que causa prazer O belo aparecerá no seu esplendor metafísico de ldeia. Com
sensível da vista ou do ouvido? Mas, como todos os sentidos são o verdadeiro e o bem, ele forma três princípios inseparáveis.
susceptíveis de fazer sentir prazer, por que razão limitar o belo Portanto, o belo está para além do sensível que muda, que
ao que motiva prazer unicamente a estes dois sentidos? O Filebo é diverso, misturado, ontologicamente matizado. As coisas
(51 b-d) abrirá uma pista para responder a esta questão, distin- sensíveis só são belas pela presença nelas da ldeia de belo. Elas
guindo os prazeres impuros (que estão ligados ao relaxamento são o brilho sensível da forma inteligível. Por conseguinte,
que sucede à tensão ou então à repleção que sucede à falta), os a beleza sensível é tão-só um primeiro grau da beleza; para
prazeres misturados (os experimentados no espectáculo trágico, além dela, há a beleza das almas, a dos actos e dos conheci-
por exemplo) e os prazeres puros (recebidos das formas belas mentos.
e dos sons belos). Mas aqui Platão esbarra em dois problemas Consequentemente, a experiência da beleza não é essencial-
simetricamente opostos: o da restrição do prazer do belo a dois mente sensível, mas intelectual. A experiência das belezas ter-
sentidos somente e o da unidade destes dois tipos de prazer cuja renas é uma iniciação: é preciso remontar da visão das belezas
união pelo «e» apresenta aqui um problema. Além disso, dizer sensíveis à contemplação da ldeia do belo segundo um percurso
que o belo causa um prazer não é dizer que o belo é que causa de espiritualização progressiva descrita no discurso de Diotima
um prazer. E que fazer da beleza das coisas que não são sensí- n'Q Banquete: «Tomando o seu ponto de partida nas belezas
veis, como as leis belas, por exemplo? A questão da passagem de cá de baixo com o objectivo de que esta beleza sobrenatural
da beleza sensível para a beleza não sensível também não está [...] se eleve sem cessar, como por meio de degraus; partindo
resolvida. O diálogo acaba numa aporia. de um único corpo belo [...] elevar-se a dois e,. partindo de
Todavia, permite que se compreenda o que é este belo em dois [...], elevar-se à beleza dos corpos universalmente; depois,
busca do qual Sócrates parte: é «aquilo pelo qual são belas todas partindo dos belos corpos [...], elevar-se às belas ocupações; e,
as coisas belas» (294 b), «seja qual for a coisa a que ele se junte, partindo das belas ocupações [...], elevar-se às belas ciências,
realizando nesta coisa a beleza, na pedra como na madeira, até que, partindo das ciências, se chegue, para terminar, a
no homem como em Deus, tanto em toda a espécie de acção esta ciência sublime, que é unicamente a ciência deste único
como em todo o objecto de estudo» (292 d); ele é aquilo que, belo sobrenatural e assim, no fim, conhecer-se, isoladamente,
«em tempo algum, em lugar algum, aos olhos de nenhum a própria essência do belo» (Banquete, 211 c). Esta beleza é
homem, não deve parecer feio» (291 d). Sócrates procura o belo, eterna, absoluta, irrelativa, estranha à geração e à corrupção. O
enquanto Hípias diz o que é belo, por não ter compreendido a Fedro, no subtítulo Da beleza, expõe como a alma que viu as
diferença entre as duas fórmulas ou porque não admite que haja ideias (reminiscência) procura encontrar cá em baixo as cópias
uma diferença. A sua posição nominalista opõe-se ao idealismo insuficientes que são apenas indícios delas. A contemplação do

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~_É_T_Ic_A __ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

conveniente dá somente a aparência da beleza. Mas sê-lo-ia o platónico: é belo aquilo a que os homens chamam belo, a beleza
útil? Para o afirmar, seria necessário conhecer também a essên- é uma qualidade e não uma essência, a beleza não é nada fora
cia do útil e, para isso, a do bem; também seria preciso conhecer da aparência bela.
o laço que une estas essências, o que apenas será estabelecido Os diálogos metafísicos da maturidade dão uma resposta
na época d:4 República. Por isso, numa perspectiva muito dife- a um certo número de questões aqui deixadas em suspenso.
rente, será preciso dizer que o belo é aquilo que causa prazer O belo aparecerá no seu esplendor metafísico de ldeia. Com
sensível da vista ou do ouvido? Mas, como todos os sentidos são o verdadeiro e o bem, ele forma três princípios inseparáveis.
susceptíveis de fazer sentir prazer, por que razão limitar o belo Portanto, o belo está para além do sensível que muda, que
ao que motiva prazer unicamente a estes dois sentidos? O Filebo é diverso, misturado, ontologicamente matizado. As coisas
(51 b-d) abrirá uma pista para responder a esta questão, distin- sensíveis só são belas pela presença nelas da ldeia de belo. Elas
guindo os prazeres impuros (que estão ligados ao relaxamento são o brilho sensível da forma inteligível. Por conseguinte,
que sucede à tensão ou então à repleção que sucede à falta), os a beleza sensível é tão-só um primeiro grau da beleza; para
prazeres misturados (os experimentados no espectáculo trágico, além dela, há a beleza das almas, a dos actos e dos conheci-
por exemplo) e os prazeres puros (recebidos das formas belas mentos.
e dos sons belos). Mas aqui Platão esbarra em dois problemas Consequentemente, a experiência da beleza não é essencial-
simetricamente opostos: o da restrição do prazer do belo a dois mente sensível, mas intelectual. A experiência das belezas ter-
sentidos somente e o da unidade destes dois tipos de prazer cuja renas é uma iniciação: é preciso remontar da visão das belezas
união pelo «e» apresenta aqui um problema. Além disso, dizer sensíveis à contemplação da ldeia do belo segundo um percurso
que o belo causa um prazer não é dizer que o belo é que causa de espiritualização progressiva descrita no discurso de Diotima
um prazer. E que fazer da beleza das coisas que não são sensí- n'Q Banquete: «Tomando o seu ponto de partida nas belezas
veis, como as leis belas, por exemplo? A questão da passagem de cá de baixo com o objectivo de que esta beleza sobrenatural
da beleza sensível para a beleza não sensível também não está [...] se eleve sem cessar, como por meio de degraus; partindo
resolvida. O diálogo acaba numa aporia. de um único corpo belo [...] elevar-se a dois e,. partindo de
Todavia, permite que se compreenda o que é este belo em dois [...], elevar-se à beleza dos corpos universalmente; depois,
busca do qual Sócrates parte: é «aquilo pelo qual são belas todas partindo dos belos corpos [...], elevar-se às belas ocupações; e,
as coisas belas» (294 b), «seja qual for a coisa a que ele se junte, partindo das belas ocupações [...], elevar-se às belas ciências,
realizando nesta coisa a beleza, na pedra como na madeira, até que, partindo das ciências, se chegue, para terminar, a
no homem como em Deus, tanto em toda a espécie de acção esta ciência sublime, que é unicamente a ciência deste único
como em todo o objecto de estudo» (292 d); ele é aquilo que, belo sobrenatural e assim, no fim, conhecer-se, isoladamente,
«em tempo algum, em lugar algum, aos olhos de nenhum a própria essência do belo» (Banquete, 211 c). Esta beleza é
homem, não deve parecer feio» (291 d). Sócrates procura o belo, eterna, absoluta, irrelativa, estranha à geração e à corrupção. O
enquanto Hípias diz o que é belo, por não ter compreendido a Fedro, no subtítulo Da beleza, expõe como a alma que viu as
diferença entre as duas fórmulas ou porque não admite que haja ideias (reminiscência) procura encontrar cá em baixo as cópias
uma diferença. A sua posição nominalista opõe-se ao idealismo insuficientes que são apenas indícios delas. A contemplação do

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~_É_T_Ic_A _ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

belo sensível procura ultrapassar-se na contemplação intelectual a obscuridade da matéria e da presença de uma luz incorporal
do inteligível. que é razão e ideia».
Para atingir esta essência do belo, o homem deve realizar
2. Plotino. - Na Enéada, I, 6, vê-se que Plotino con- um trabalho sobre si mesmo que, ao cabo de uma purificação,
sagra à questão do belo um certo número de temas plató- lhe permita tornar-se visão e luz. Plotino insiste na necessidade
nicos: a beleza sensível só existe por participação na Ideia de se desviar do sensível: é preciso abandonar a visão dos olhos
inteligível do Belo; o belo em si mesmo fornece a beleza a sob pena de conhecer o mesmo destino que Narciso, a não ser
todas as coisas permanecendo ele próprio; as diferentes bele- que «não seja o seu corpo, mas a sua alma que mergulhe nas
zas assemelham-se pela participação na ideia de belo; uma profundezas escuras e funestas para a inteligência [...] e viva
caminhada ascendente permite a subida dos degraus a partir com sombras, [como] um cego a viver no Hades», É preciso
da beleza dos corpos em direcção a outras formas cada vez fechar os olhos da carne para abrir os «olhos interiores». Mas,
mais espiritualizadas do belo; nesta ascensão progressiva, o para revelar estes olhos interiores, é necessário purificar-se,
amor desempenha um papel decisivo; o belo está ligado ao separar-se de tudo o que não é essencial: o corpo, a consciência
bem no inteligível. Mas, aqui, estes temas são inflectidos ou sensível, as paixões e as especificidades individuais. A alma deve
juntos a outros, e destas modificações nascerá a concepção desviar-se da vida do corpo, portanto da matéria que é indefi-
neoplatónica do belo. nida, informe, obscura e associada ao feio e ao mal: «Faz como
Entre estas novidades introduzidas por Plotino, notar-se-á o escultor de uma estátua que deve tornar-se bela; ele retira
uma reflexão sobre a beleza dos corpos e uma interessante uma parte, raspa, pule, limpa até que liberta belas linhas no
discussão crítica da ideia defendida por Cícero nas Tusculanas mármore; como ele, retira o supérfluo, endireita o que é oblí-
(IV; 31), ideia segundo a qual a beleza visível reside na sime- quo, limpa o que está sujo para torná-lo brilhante, e não cesses
tria das partes, umas em relação às outras e em relação ao de esculpir a tua própria estátua.» No fim deste despojamento
conjunto. Mas é sobretudo no terreno de uma metafísica do e deste abandono de si mesma, a alma tornar-se-á luz e visão.
belo que PIotino borda temas novos numa talagarça platónica. É a condição para que tenha acesso ao belo absoluto eterno e
Assim, a beleza é pensada através das categorias de matéria e imutável, porque é preciso tornar-se semelhante ao objecto visto
de forma. A ideia é aquilo que dá forma à matéria e que, por para o ver: «Nunca os olhos verão o Sol, sem se terem tornado
isso, domina a obscuridade desta. Ao ordenar as partes de que semelhantes ao Sol, nem uma alma veria o belo sem ser bela.
as coisas múltiplas são feitas, ela harmoniza-as e faz delas um Primeiro, que tudo se torne divino e belo, se quiser contemplar
todo: «Assim, a beleza reside neste ser, quando ele é recondu- Deus e o Belo.»
zido à unidade, e ela dá-se a todas as suas partes e ao conjunto.»
Inversamente, «é feio [...] tudo o que não é dominado por 3. A Idade Média. - A Idade Média cristã também pensa
uma forma e por uma razão, porque a matéria não admitiu o belo como uma propriedade do Ser. Esta época não conhece
completamente a informação pela idéia». Deste modo, o belo nada de Platão que não seja o Timeu, mas é precisamente lá que
é a ideia dominando a matéria, e o feio é o informe. Mesmo se encontra a visão de um mundo ordenado por uma arte divina
a beleza de uma cor simples vem «de uma forma que domina e dotado de uma admirável beleza. Esta referência platónica

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belo sensível procura ultrapassar-se na contemplação intelectual a obscuridade da matéria e da presença de uma luz incorporal
do inteligível. que é razão e ideia».
Para atingir esta essência do belo, o homem deve realizar
2. Plotino. - Na Enéada, I, 6, vê-se que Plotino con- um trabalho sobre si mesmo que, ao cabo de uma purificação,
sagra à questão do belo um certo número de temas plató- lhe permita tornar-se visão e luz. Plotino insiste na necessidade
nicos: a beleza sensível só existe por participação na Ideia de se desviar do sensível: é preciso abandonar a visão dos olhos
inteligível do Belo; o belo em si mesmo fornece a beleza a sob pena de conhecer o mesmo destino que Narciso, a não ser
todas as coisas permanecendo ele próprio; as diferentes bele- que «não seja o seu corpo, mas a sua alma que mergulhe nas
zas assemelham-se pela participação na ideia de belo; uma profundezas escuras e funestas para a inteligência [...] e viva
caminhada ascendente permite a subida dos degraus a partir com sombras, [como] um cego a viver no Hades», É preciso
da beleza dos corpos em direcção a outras formas cada vez fechar os olhos da carne para abrir os «olhos interiores». Mas,
mais espiritualizadas do belo; nesta ascensão progressiva, o para revelar estes olhos interiores, é necessário purificar-se,
amor desempenha um papel decisivo; o belo está ligado ao separar-se de tudo o que não é essencial: o corpo, a consciência
bem no inteligível. Mas, aqui, estes temas são inflectidos ou sensível, as paixões e as especificidades individuais. A alma deve
juntos a outros, e destas modificações nascerá a concepção desviar-se da vida do corpo, portanto da matéria que é indefi-
neoplatónica do belo. nida, informe, obscura e associada ao feio e ao mal: «Faz como
Entre estas novidades introduzidas por Plotino, notar-se-á o escultor de uma estátua que deve tornar-se bela; ele retira
uma reflexão sobre a beleza dos corpos e uma interessante uma parte, raspa, pule, limpa até que liberta belas linhas no
discussão crítica da ideia defendida por Cícero nas Tusculanas mármore; como ele, retira o supérfluo, endireita o que é oblí-
(IV; 31), ideia segundo a qual a beleza visível reside na sime- quo, limpa o que está sujo para torná-lo brilhante, e não cesses
tria das partes, umas em relação às outras e em relação ao de esculpir a tua própria estátua.» No fim deste despojamento
conjunto. Mas é sobretudo no terreno de uma metafísica do e deste abandono de si mesma, a alma tornar-se-á luz e visão.
belo que PIotino borda temas novos numa talagarça platónica. É a condição para que tenha acesso ao belo absoluto eterno e
Assim, a beleza é pensada através das categorias de matéria e imutável, porque é preciso tornar-se semelhante ao objecto visto
de forma. A ideia é aquilo que dá forma à matéria e que, por para o ver: «Nunca os olhos verão o Sol, sem se terem tornado
isso, domina a obscuridade desta. Ao ordenar as partes de que semelhantes ao Sol, nem uma alma veria o belo sem ser bela.
as coisas múltiplas são feitas, ela harmoniza-as e faz delas um Primeiro, que tudo se torne divino e belo, se quiser contemplar
todo: «Assim, a beleza reside neste ser, quando ele é recondu- Deus e o Belo.»
zido à unidade, e ela dá-se a todas as suas partes e ao conjunto.»
Inversamente, «é feio [...] tudo o que não é dominado por 3. A Idade Média. - A Idade Média cristã também pensa
uma forma e por uma razão, porque a matéria não admitiu o belo como uma propriedade do Ser. Esta época não conhece
completamente a informação pela idéia». Deste modo, o belo nada de Platão que não seja o Timeu, mas é precisamente lá que
é a ideia dominando a matéria, e o feio é o informe. Mesmo se encontra a visão de um mundo ordenado por uma arte divina
a beleza de uma cor simples vem «de uma forma que domina e dotado de uma admirável beleza. Esta referência platónica

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~_É_T_Ic_A _ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

somada ao texto bíblico, com as especulações pitagóricas refor- fim, um brilho, de maneira que se declarem belas as coisas que
muladas na concepção matemático-musical do Universo por possuem uma cor que resplende» (Suma Teológica).
Boécio e ao neoplatonismo essencialmente conhecido através
de Pseudo-Dionísio, convida a pensar a beleza como realidade 4. Conclusão. - Para a Antiguidade e para a Idade Média,
inteligível, esplendor metafísico, harmonia moral. O belo, atri- a beleza não é essencialmente sensível e as coisas sensíveis não
buto de Deus, é uma perfeição suplementar do cosmos. são belas a não ser por participação no inteligível. Portanto, a
Por isso, a beleza conserva a sua consistência metafísica e beleza sensível é só um pálido reflexo das Ideias e não merece
reafirma-se a convertibilidade dos transcendentais: «O belo e que nos detenhamos nela, e até convém que nos desviemos
o bom são idênticos e só diferem na maneira como são consi- activamente dela. Isto de modo nenhum significa que a Idade
derados [...]; diz-se do bom que é o que especialmente agrada Média e a Antiguidade não tenham conhecido a experiência da
ao apetite, enquanto se diz do belo que é o que é agradável beleza das coisas. A beleza é reconhecida, admirada; é atraente,
perceber», escreve São Tomás. como o disseram Platão e Plotino, deleitável e desejável como
Portanto, o belo conserva uma objectividade incontestável: viram São Bernardo e São Tomás, e como mostra erotismo
«Se me fosse posta a questão de saber se as coisas são belas sublimado dos comentários do Cântico dos Cânticos. É pre-
porque causam prazer ou, então, se causam prazer pelo facto de cisamente por isso que a beleza sensível é julgada perigosa,
serem belas, eis o que eu responderia sem hesitações: elas pro- particularmente pelos místicos. Por conseguinte, existe uma
vocam prazer porque são belas», escreve Santo Agostinho (De sensibilidade estética concreta e a experiência da fruição estética
Vera Religione); oito séculos mais tarde, São Tomás repete esta não é uma invenção da modernidade, mas a filosofia convida
ideia: «Uma coisa não é bela porque a amamos, mas amamo-la a desviarmo-nos dela em proveito de finalidades mais nobres e
porque é bela e boa» (Sobre os Nomes Divinos). A beleza é uma de satisfações de outra ordem.
propriedade objectiva de certos objectos, de certos seres e de Isso permite compreender a ausência de temas que, mais
certas obras. tarde, se tornarão temas estéticos por excelência, como o do
Esta objectividade do belo convida a que se procurem as suas prazer estético ou do julgamento de gosto. O belo sensível não
características formais. A noção de proporção é tão capital para merece que nos detenhamos nele.
a Idade Média quanto era para a Antiguidade. Encontramo-la
em Platão, Aristóteles e Cícero, mas também é teorizada e posta
em prática pelos artistas (o Cânon de Policleto). São Tomás 11. - As reflexões sobre a arte
acrescenta a esta proporção (consonantia) duas outras caracte-
rísticas formais do belo: a integritas (completude) e a claritas Assim como se encontram reflexões sobre o belo, também
(claridade, brilho): «A beleza requer três propriedades. Em pri- encontramos na filosofia antiga e medieval numerosas reíle-
meiro lugar a integridade, por outras palavras, o acabamento, xões sobre questões relativas à arte: sobre a imitação, sobre o
a conclusão; com efeito, as coisas que estão incompletas são, que deve ser a tragédia, sobre os efeitos psicagógicos da poesia
por isso mesmo, feias. Depois, uma proporção conveniente, ou da música. Isso não autoriza, contudo, que se conclua a
por outras palavras, uma harmonia (das partes entre si). E, por existência de uma reflexão sobre a arte na Antiguidade e na

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~_É_T_Ic_A _ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

somada ao texto bíblico, com as especulações pitagóricas refor- fim, um brilho, de maneira que se declarem belas as coisas que
muladas na concepção matemático-musical do Universo por possuem uma cor que resplende» (Suma Teológica).
Boécio e ao neoplatonismo essencialmente conhecido através
de Pseudo-Dionísio, convida a pensar a beleza como realidade 4. Conclusão. - Para a Antiguidade e para a Idade Média,
inteligível, esplendor metafísico, harmonia moral. O belo, atri- a beleza não é essencialmente sensível e as coisas sensíveis não
buto de Deus, é uma perfeição suplementar do cosmos. são belas a não ser por participação no inteligível. Portanto, a
Por isso, a beleza conserva a sua consistência metafísica e beleza sensível é só um pálido reflexo das Ideias e não merece
reafirma-se a convertibilidade dos transcendentais: «O belo e que nos detenhamos nela, e até convém que nos desviemos
o bom são idênticos e só diferem na maneira como são consi- activamente dela. Isto de modo nenhum significa que a Idade
derados [...]; diz-se do bom que é o que especialmente agrada Média e a Antiguidade não tenham conhecido a experiência da
ao apetite, enquanto se diz do belo que é o que é agradável beleza das coisas. A beleza é reconhecida, admirada; é atraente,
perceber», escreve São Tomás. como o disseram Platão e Plotino, deleitável e desejável como
Portanto, o belo conserva uma objectividade incontestável: viram São Bernardo e São Tomás, e como mostra erotismo
«Se me fosse posta a questão de saber se as coisas são belas sublimado dos comentários do Cântico dos Cânticos. É pre-
porque causam prazer ou, então, se causam prazer pelo facto de cisamente por isso que a beleza sensível é julgada perigosa,
serem belas, eis o que eu responderia sem hesitações: elas pro- particularmente pelos místicos. Por conseguinte, existe uma
vocam prazer porque são belas», escreve Santo Agostinho (De sensibilidade estética concreta e a experiência da fruição estética
Vera Religione); oito séculos mais tarde, São Tomás repete esta não é uma invenção da modernidade, mas a filosofia convida
ideia: «Uma coisa não é bela porque a amamos, mas amamo-la a desviarmo-nos dela em proveito de finalidades mais nobres e
porque é bela e boa» (Sobre os Nomes Divinos). A beleza é uma de satisfações de outra ordem.
propriedade objectiva de certos objectos, de certos seres e de Isso permite compreender a ausência de temas que, mais
certas obras. tarde, se tornarão temas estéticos por excelência, como o do
Esta objectividade do belo convida a que se procurem as suas prazer estético ou do julgamento de gosto. O belo sensível não
características formais. A noção de proporção é tão capital para merece que nos detenhamos nele.
a Idade Média quanto era para a Antiguidade. Encontramo-la
em Platão, Aristóteles e Cícero, mas também é teorizada e posta
em prática pelos artistas (o Cânon de Policleto). São Tomás 11. - As reflexões sobre a arte
acrescenta a esta proporção (consonantia) duas outras caracte-
rísticas formais do belo: a integritas (completude) e a claritas Assim como se encontram reflexões sobre o belo, também
(claridade, brilho): «A beleza requer três propriedades. Em pri- encontramos na filosofia antiga e medieval numerosas reíle-
meiro lugar a integridade, por outras palavras, o acabamento, xões sobre questões relativas à arte: sobre a imitação, sobre o
a conclusão; com efeito, as coisas que estão incompletas são, que deve ser a tragédia, sobre os efeitos psicagógicos da poesia
por isso mesmo, feias. Depois, uma proporção conveniente, ou da música. Isso não autoriza, contudo, que se conclua a
por outras palavras, uma harmonia (das partes entre si). E, por existência de uma reflexão sobre a arte na Antiguidade e na

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~_É_T_Ic_A _ 1- PRÉ-HISTORIA DA ESTÉTICA

Idade Média, pois a arte, no sentido em que entendemos hoje e os seus produtos são muito inferiores à contemplação e ao
esta palavra, não corresponde a nenhuma categoria conceptual conhecimento.
de então. Portanto, a nossa palavra «arte» não tem a mesma extensão
nem o mesmo conteúdo que ars ou technê. Se, em alguns dos
1. Ars e technê. - Na Antiguidade latina, a palavra ars, seus usos, os sentidos coincidem, o valor destes termos, todas
artis, existe, é claro, e a actual palavra francesa art [a italiana, as implicações subtis que eles veiculam, as suas conotações,
a espanhola e a portuguesa, arte, e a romena arta] provéjêjm diferem consideravelmente. Ora, sabe-se que a língua não é
dela directamente. Mas esta palavra designava então o talento, uma nomenclatura, mas um determinado recorte do real que se
o saber-fazer, a habilidade, e remete tanto para a prática da sobrepõe apenas imperfeitamente ao operado por outra língua.
pintura ou da escultura como para a da retórica, passando pelo O que hoje distinguimos com as palavras «arte», «técnica»,
ofício de sapateiro e pelo de talhante.' Aquele que pratica esta «artesanato» não constitui para o homem da Antiguidade greco-
arte (artifex, artificis) é o que pratica um ofício ou orienta um -romana três partes distintas da actividades humana, mas uma
negócio ou comércio; por vezes, a palavra também designa o única região indistinta do agir em que o ferreiro está ao lado
organizador do universo. A situação é comparável na Antigui- do aedo, e o sapateiro ao lado do arquitecto.
dade grega: a palavra technê designa o conjunto dos conheci- É evidente que o facto de a Antiguidade e a Idade Média
mentos práticos e das capacidades requeridas para a execução terem ignorado a arte no sentido moderno do termo e o sis-
de uma tarefa ou para a confecção de um produto, assim como tema moderno das belas-artes não significa que não tenham
aquilo a que se aplicam estes saberes. produzido obras. A reputação de um Fídias, de um Praxíteles
Ainda na Idade Média, a arte é concebida como o per- ou de um Lisipo chegou até nós; é-nos dado admirar mosaicos,
feito domínio das normas de um fazer. De Aristóteles a Duns pinturas e edifícios da Idade Média cristã, e continuamos a
Escoto, todos os autores repetem que existe de um saber-fazer ler Sófocles, Homero e Virgílio. Em suma, estes tempos sem
que pressupõe dois elementos: um cognitivo (conhecer as regras arte e sem sistema das belas-artes produziram as obras-primas
que permitem produzir) e o outro operativo (depende do fazer que conhecemos. Mas nem por isso a atitude a propósito desta
e não do agir). A teoria da arte é, antes de tudo, teoria do ofí- produção pode ser comparada com a nossa; Malraux fala jus-
cio, do artifex [do artífice]. À arte não é reconhecida nenhuma tamente, n'A Metamorfose dos Deuses, destas obras «criadas por
autonomia metafísica; ela está afastada da criação divina e é artistas para quem a ideia de arte não existia».
inferior à natureza, que contudo imita nas suas operações.
Porque utiliza, dispõe e ordena os seus elementos para produzir 2. A condenação platónica. - Na obra de Platão, encon-
novos efeitos: «Comparada com a operação natural, a arte é tram-se numerosas reflexões, não sobre a arte - acabámos de
deficiente, porque a natureza proporciona esta forma substan- ver porquê -, mas sobre a pintura, a poesia, a música ou a
cial, que a arte não tem o poder de causar», escreve São Tomás arquitectura. De maneira geral, a atitude do filósofo a propósito
(Suma Teológica). do que reunimos na categoria das belas-artes é ambivalente,
A distinção medieval entre artes mecânicas e artes liberais pelo menos acerca da poesia. O autor d' A República confessa
confirma tratar-se de uma época em que o trabalho manual a sua admiração por Homero (598 e) e hesita em saber se se

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~_É_T_Ic_A _ 1- PRÉ-HISTORIA DA ESTÉTICA

Idade Média, pois a arte, no sentido em que entendemos hoje e os seus produtos são muito inferiores à contemplação e ao
esta palavra, não corresponde a nenhuma categoria conceptual conhecimento.
de então. Portanto, a nossa palavra «arte» não tem a mesma extensão
nem o mesmo conteúdo que ars ou technê. Se, em alguns dos
1. Ars e technê. - Na Antiguidade latina, a palavra ars, seus usos, os sentidos coincidem, o valor destes termos, todas
artis, existe, é claro, e a actual palavra francesa art [a italiana, as implicações subtis que eles veiculam, as suas conotações,
a espanhola e a portuguesa, arte, e a romena arta] provéjêjm diferem consideravelmente. Ora, sabe-se que a língua não é
dela directamente. Mas esta palavra designava então o talento, uma nomenclatura, mas um determinado recorte do real que se
o saber-fazer, a habilidade, e remete tanto para a prática da sobrepõe apenas imperfeitamente ao operado por outra língua.
pintura ou da escultura como para a da retórica, passando pelo O que hoje distinguimos com as palavras «arte», «técnica»,
ofício de sapateiro e pelo de talhante.' Aquele que pratica esta «artesanato» não constitui para o homem da Antiguidade greco-
arte (artifex, artificis) é o que pratica um ofício ou orienta um -romana três partes distintas da actividades humana, mas uma
negócio ou comércio; por vezes, a palavra também designa o única região indistinta do agir em que o ferreiro está ao lado
organizador do universo. A situação é comparável na Antigui- do aedo, e o sapateiro ao lado do arquitecto.
dade grega: a palavra technê designa o conjunto dos conheci- É evidente que o facto de a Antiguidade e a Idade Média
mentos práticos e das capacidades requeridas para a execução terem ignorado a arte no sentido moderno do termo e o sis-
de uma tarefa ou para a confecção de um produto, assim como tema moderno das belas-artes não significa que não tenham
aquilo a que se aplicam estes saberes. produzido obras. A reputação de um Fídias, de um Praxíteles
Ainda na Idade Média, a arte é concebida como o per- ou de um Lisipo chegou até nós; é-nos dado admirar mosaicos,
feito domínio das normas de um fazer. De Aristóteles a Duns pinturas e edifícios da Idade Média cristã, e continuamos a
Escoto, todos os autores repetem que existe de um saber-fazer ler Sófocles, Homero e Virgílio. Em suma, estes tempos sem
que pressupõe dois elementos: um cognitivo (conhecer as regras arte e sem sistema das belas-artes produziram as obras-primas
que permitem produzir) e o outro operativo (depende do fazer que conhecemos. Mas nem por isso a atitude a propósito desta
e não do agir). A teoria da arte é, antes de tudo, teoria do ofí- produção pode ser comparada com a nossa; Malraux fala jus-
cio, do artifex [do artífice]. À arte não é reconhecida nenhuma tamente, n'A Metamorfose dos Deuses, destas obras «criadas por
autonomia metafísica; ela está afastada da criação divina e é artistas para quem a ideia de arte não existia».
inferior à natureza, que contudo imita nas suas operações.
Porque utiliza, dispõe e ordena os seus elementos para produzir 2. A condenação platónica. - Na obra de Platão, encon-
novos efeitos: «Comparada com a operação natural, a arte é tram-se numerosas reflexões, não sobre a arte - acabámos de
deficiente, porque a natureza proporciona esta forma substan- ver porquê -, mas sobre a pintura, a poesia, a música ou a
cial, que a arte não tem o poder de causar», escreve São Tomás arquitectura. De maneira geral, a atitude do filósofo a propósito
(Suma Teológica). do que reunimos na categoria das belas-artes é ambivalente,
A distinção medieval entre artes mecânicas e artes liberais pelo menos acerca da poesia. O autor d' A República confessa
confirma tratar-se de uma época em que o trabalho manual a sua admiração por Homero (598 e) e hesita em saber se se

20 21
I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

deve colocar os poetas do lado da aparêência e da ilusão ou do é conhecer qual é precisamente a natureza real das próprias
lado de um saber a que eles têm acesso) por um delírio então coisas» (595 b). As imitações dirigem-se à parte sensível e irra-
concebido como «um dom divino» (Fedrro,244 a). Fedro ilustra cional da alma e, ao fazer isso, em vez de «entreter (a alma)
esta dupla atitude a respeito da poesia: emtre uma desconfiança com o que ela tem de melhor» (605 b), negoceia com o que nela
frequentemente declarada e um fascínio) por vezes confessado, nada vale. Se o poeta for proibido de permanecer no Estado
que se percebe na utilização que o própriio Platão faz dos mitos, regido por boas leis, será «porque desperta e [...] alimenta este
utilização que deixa pressupor que Platão admite uma ligação elemento inferior da nossa alma e (porque), ao dar-lhe força,
da imaginação e do verdadeiro muito dl.iferente da grande luz arruína o elemento capaz de raciocinar» (ibid.). A representação
da razão. do patético torna-nos complacentes com o irrazoável em nós:
Contudo, n'A República, Platão entrcega-se a uma condena- «Será às nossas emoções pessoais que aproveitará a substância
ção geral da arte de imitação. O que aqui interessa ao nosso destas emoções estranhas» (606 b). Portanto, é preciso expulsar
propósito é aquilo em nome do qual estta condenação é feita. da Cidade boa todos aqueles cuja arte mantém e desenvolve
É com o pretexto da verdade que foi ,condenada esta arte de as partes irracionais da alma, «alimentando-as e regando-as
imitação que é a pintura. Conhecem-se aisfamosas passagens do quando o que é preciso é que fiquem secas» (606 d).
livro x d'A República e os seus ecos n'Q Sofista que denunciam Assim se vê que é com a medida da verdade e do bem que
a indignidade ontológica da arte de imitação. A arte do marce- são julgadas as produções da arte, e a perspectiva em que se
neiro é ontologicamente superior à do pintor porque aquele, ao inscrevem estas observações não é a de uma reflexão sobre a
fabricar uma cama, imita a ldeia da cama, seu arquétipo eterno, arte ou de uma estética da recepção, mas a reflexão política da
.enquanto este, ao pintar uma cama, imita a cama sensível que constituição do Estado perfeito .
já é uma imitação. Por consequência, a representação pictural Mas não seremos, pelo menos, autorizados a pensar que a
está afastada mais um grau da ldeia: «A pintura e, em geral, a categoria de mimesis em Platão constitui um conceito unifica-
arte de imitação realizam na sua obra uma existência que está dor de certas technai sob a categoria moderna de arte? Apenas
longe da verdade» (603 a). Além disso, tanto o pintor como muito imperfeitamente. Com efeito, em Platão, a imitação é
o tragediógrafo e todos os outros imitadores só produzem um muito menos um conceito estético que metafísico, que se aplica
simulacro da coisa, pois não têm de conhecer o que pintam: em primeiro lugar à relação das ldeias e das realidades sensíveis.
não há «nenhum saber nem recta opinião no imitador, no que Além disso, haveria aqui um conceito unificador muito pouco
concerne às coisas que vai imitar, relativamente à sua beleza ou pertinente porque excluiria certas práticas não imitativas como
à sua defeiruosidade» (602 a). a arquitectura e, inversamente, conduziria à inclusão da sofís-
A condenação da arte de imitação não diz respeito somente tica (Sofista, 234 b), da magia (Sofista, 235 a) e até a imitação
à obra e àquele que a faz, mas também aos seus efeitos no das vozes dos animais (Crátilo, 423 c) na arte.
espectador. Ao convidá-lo a comprazer-se na aparência, elas
mantêm-no à distância do verdadeiro: «Todas as composições 3. A Poética de Aristóteles. - As reflexões sobre a arte
que têm este carácter são feitas para contaminar o julgamento que nos são dadas pelo que chegou até nós da obra de Aris-
daqueles que os escutam, pessoas às quais falta o remédio, que tóteles estão principalmente contidas na Poética. De natureza

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I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

deve colocar os poetas do lado da aparêência e da ilusão ou do é conhecer qual é precisamente a natureza real das próprias
lado de um saber a que eles têm acesso) por um delírio então coisas» (595 b). As imitações dirigem-se à parte sensível e irra-
concebido como «um dom divino» (Fedrro,244 a). Fedro ilustra cional da alma e, ao fazer isso, em vez de «entreter (a alma)
esta dupla atitude a respeito da poesia: emtre uma desconfiança com o que ela tem de melhor» (605 b), negoceia com o que nela
frequentemente declarada e um fascínio) por vezes confessado, nada vale. Se o poeta for proibido de permanecer no Estado
que se percebe na utilização que o própriio Platão faz dos mitos, regido por boas leis, será «porque desperta e [...] alimenta este
utilização que deixa pressupor que Platão admite uma ligação elemento inferior da nossa alma e (porque), ao dar-lhe força,
da imaginação e do verdadeiro muito dl.iferente da grande luz arruína o elemento capaz de raciocinar» (ibid.). A representação
da razão. do patético torna-nos complacentes com o irrazoável em nós:
Contudo, n'A República, Platão entrcega-se a uma condena- «Será às nossas emoções pessoais que aproveitará a substância
ção geral da arte de imitação. O que aqui interessa ao nosso destas emoções estranhas» (606 b). Portanto, é preciso expulsar
propósito é aquilo em nome do qual estta condenação é feita. da Cidade boa todos aqueles cuja arte mantém e desenvolve
É com o pretexto da verdade que foi ,condenada esta arte de as partes irracionais da alma, «alimentando-as e regando-as
imitação que é a pintura. Conhecem-se aisfamosas passagens do quando o que é preciso é que fiquem secas» (606 d).
livro x d'A República e os seus ecos n'Q Sofista que denunciam Assim se vê que é com a medida da verdade e do bem que
a indignidade ontológica da arte de imitação. A arte do marce- são julgadas as produções da arte, e a perspectiva em que se
neiro é ontologicamente superior à do pintor porque aquele, ao inscrevem estas observações não é a de uma reflexão sobre a
fabricar uma cama, imita a ldeia da cama, seu arquétipo eterno, arte ou de uma estética da recepção, mas a reflexão política da
.enquanto este, ao pintar uma cama, imita a cama sensível que constituição do Estado perfeito .
já é uma imitação. Por consequência, a representação pictural Mas não seremos, pelo menos, autorizados a pensar que a
está afastada mais um grau da ldeia: «A pintura e, em geral, a categoria de mimesis em Platão constitui um conceito unifica-
arte de imitação realizam na sua obra uma existência que está dor de certas technai sob a categoria moderna de arte? Apenas
longe da verdade» (603 a). Além disso, tanto o pintor como muito imperfeitamente. Com efeito, em Platão, a imitação é
o tragediógrafo e todos os outros imitadores só produzem um muito menos um conceito estético que metafísico, que se aplica
simulacro da coisa, pois não têm de conhecer o que pintam: em primeiro lugar à relação das ldeias e das realidades sensíveis.
não há «nenhum saber nem recta opinião no imitador, no que Além disso, haveria aqui um conceito unificador muito pouco
concerne às coisas que vai imitar, relativamente à sua beleza ou pertinente porque excluiria certas práticas não imitativas como
à sua defeiruosidade» (602 a). a arquitectura e, inversamente, conduziria à inclusão da sofís-
A condenação da arte de imitação não diz respeito somente tica (Sofista, 234 b), da magia (Sofista, 235 a) e até a imitação
à obra e àquele que a faz, mas também aos seus efeitos no das vozes dos animais (Crátilo, 423 c) na arte.
espectador. Ao convidá-lo a comprazer-se na aparência, elas
mantêm-no à distância do verdadeiro: «Todas as composições 3. A Poética de Aristóteles. - As reflexões sobre a arte
que têm este carácter são feitas para contaminar o julgamento que nos são dadas pelo que chegou até nós da obra de Aris-
daqueles que os escutam, pessoas às quais falta o remédio, que tóteles estão principalmente contidas na Poética. De natureza

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~_É_T_Ic_A _ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

completamente diferente das de Platão, referem-se a uma põe em cena homens triviais; a tragédia, seres de excepção): a
prática efectiva da literatura: o teatro grego do século IV a.C. sua maneira de imitar (narração como na epopeia, ou descrição
Aristóteles parte da arte existente para ordenar esta diversi- directa como na tragédia).
dade empírica, desenvolver os seus princípios, precisar os seus Tendo distinguido assim os géneros literários, Aristóteles
conceitos e fixar as suas regras. consagra à tragédia o essencial deste livro I da Poética (o livro
Trata-se, em primeiro lugar, de situar a tragédia no interior II, que tratava da comédia, não chegou até nós). Sabendo qual
do género arte. É a ocasião de se definir aquilo que confirma o é o seu fim (o verosímil, o possível credível), segue-se um certo
que dissémos atrás acerca do sentido da palavra «arte» na Anti- número de preceitos: não recorrer às facilidades do maravi-
guidade. A arte pertence ao conjunto das actividades humanas, lhoso ou a situações inverosímeis, unificar a intriga, utilizar
mas especifica-se pelo facto de se efectuar em função de um uma linguagem elevada empregando figuras como a metá-
fim exterior: não é uma actividade prática, mas produtiva. Por fora, recorrer aos topoi ou lugares-comuns da cultura grega
isso, é preciso distinguir a acção de, por exemplo, bem comer (lendas ou episódios históricos conhecidos). Assim, a tragédia
(que mantém a saúde do corpo) da arte do médico que age com pode ser definida como «a representação de uma acção nobre
o objectivo de tratar. Portanto, Aristóteles pode definir a arte levada até ao seu termo e tendo uma certa extensão, através de
no sentido lato do termo, como «uma disposição para produzir uma linguagem elevada e com vários condimentos, utilizados
acompanhada de regras». separadamente segundo as partes da obra; a representação é
A Poética interessa-se por esta arte da mimesis, a que hoje levada a cabo pelas personagens do drama e não por recurso à
chamaríamos literatura. O termo mimesis não tem em Aris- narração» (1449 b).
tóteles as conotações negativas que tinha em Platão; por duas A análise de Aristóteles não ignora a recepção da obra
razões principais: por um lado, a metafísica aristotélica não e dá lugar à noção de prazer. Prazer retirado, em primeiro
induz a mesma hostilidade em relação ao mundo dos sentidos lugar, da própria imitação (simultaneamente na sua produção
e, por consequência, em relação àquilo que esse mundo imita; e na sua contemplação). Prazer mais 'complexo de sentir os
por outro, aqui, a imitação não significa cópia servil. É ver- efeitos sobre o modo do fingimento e de, por isso mesmo, se
dade que a imitação se serve do real (neste caso, ela imita bem purificar dele: «Ao suscitar a piedade e o medo, (a tragédia)
«homens em acção»), mas é para dar origem a um objecto que realiza uma depuração (catharsis) deste género de emoção»
é novo: um ser de ficção. Trata do possível, não do existente. (1449 b). Na Política, agora a propósito da música, Aristó-
Esta arte da mimesis tem por finalidade não o verdadeiro, como teles escreve que, «depois de ter recorrido a estes cantos que
a história, mas o verosímil. Portanto, a mimesis é fabricação; põem a alma fora de si mesma (as pessoas afectadas por estas
imita a natureza no sentido em que produz como a natureza, emoções como o medo, a piedade ou o entusiasmo) recobram
repete o seu processo. a sua calma [...] e para todos se produz uma espécie de "pur-
Aristóteles procede à distinção das diferentes espécies desta gação" e um alívio misturado de prazer» (1341 b). Vemos
arte da mimesis. Para fazê-lo, considera três dos seus aspectos: que estas duas únicas passagens em que se trata de catbarsis
o seu meio (o ritmo, a melodia e a linguagem); o seu objecto: o na obra de Aristóteles são breves e enigmáticas. No entanto,
homem sempre em acção, mas mais ou menos nobre (a comédia é possível dizer que é a mimesis constitutiva da tragédia

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~_É_T_Ic_A _ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

completamente diferente das de Platão, referem-se a uma põe em cena homens triviais; a tragédia, seres de excepção): a
prática efectiva da literatura: o teatro grego do século IV a.C. sua maneira de imitar (narração como na epopeia, ou descrição
Aristóteles parte da arte existente para ordenar esta diversi- directa como na tragédia).
dade empírica, desenvolver os seus princípios, precisar os seus Tendo distinguido assim os géneros literários, Aristóteles
conceitos e fixar as suas regras. consagra à tragédia o essencial deste livro I da Poética (o livro
Trata-se, em primeiro lugar, de situar a tragédia no interior II, que tratava da comédia, não chegou até nós). Sabendo qual
do género arte. É a ocasião de se definir aquilo que confirma o é o seu fim (o verosímil, o possível credível), segue-se um certo
que dissémos atrás acerca do sentido da palavra «arte» na Anti- número de preceitos: não recorrer às facilidades do maravi-
guidade. A arte pertence ao conjunto das actividades humanas, lhoso ou a situações inverosímeis, unificar a intriga, utilizar
mas especifica-se pelo facto de se efectuar em função de um uma linguagem elevada empregando figuras como a metá-
fim exterior: não é uma actividade prática, mas produtiva. Por fora, recorrer aos topoi ou lugares-comuns da cultura grega
isso, é preciso distinguir a acção de, por exemplo, bem comer (lendas ou episódios históricos conhecidos). Assim, a tragédia
(que mantém a saúde do corpo) da arte do médico que age com pode ser definida como «a representação de uma acção nobre
o objectivo de tratar. Portanto, Aristóteles pode definir a arte levada até ao seu termo e tendo uma certa extensão, através de
no sentido lato do termo, como «uma disposição para produzir uma linguagem elevada e com vários condimentos, utilizados
acompanhada de regras». separadamente segundo as partes da obra; a representação é
A Poética interessa-se por esta arte da mimesis, a que hoje levada a cabo pelas personagens do drama e não por recurso à
chamaríamos literatura. O termo mimesis não tem em Aris- narração» (1449 b).
tóteles as conotações negativas que tinha em Platão; por duas A análise de Aristóteles não ignora a recepção da obra
razões principais: por um lado, a metafísica aristotélica não e dá lugar à noção de prazer. Prazer retirado, em primeiro
induz a mesma hostilidade em relação ao mundo dos sentidos lugar, da própria imitação (simultaneamente na sua produção
e, por consequência, em relação àquilo que esse mundo imita; e na sua contemplação). Prazer mais 'complexo de sentir os
por outro, aqui, a imitação não significa cópia servil. É ver- efeitos sobre o modo do fingimento e de, por isso mesmo, se
dade que a imitação se serve do real (neste caso, ela imita bem purificar dele: «Ao suscitar a piedade e o medo, (a tragédia)
«homens em acção»), mas é para dar origem a um objecto que realiza uma depuração (catharsis) deste género de emoção»
é novo: um ser de ficção. Trata do possível, não do existente. (1449 b). Na Política, agora a propósito da música, Aristó-
Esta arte da mimesis tem por finalidade não o verdadeiro, como teles escreve que, «depois de ter recorrido a estes cantos que
a história, mas o verosímil. Portanto, a mimesis é fabricação; põem a alma fora de si mesma (as pessoas afectadas por estas
imita a natureza no sentido em que produz como a natureza, emoções como o medo, a piedade ou o entusiasmo) recobram
repete o seu processo. a sua calma [...] e para todos se produz uma espécie de "pur-
Aristóteles procede à distinção das diferentes espécies desta gação" e um alívio misturado de prazer» (1341 b). Vemos
arte da mimesis. Para fazê-lo, considera três dos seus aspectos: que estas duas únicas passagens em que se trata de catbarsis
o seu meio (o ritmo, a melodia e a linguagem); o seu objecto: o na obra de Aristóteles são breves e enigmáticas. No entanto,
homem sempre em acção, mas mais ou menos nobre (a comédia é possível dizer que é a mimesis constitutiva da tragédia

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~_ÉT_I_c_A __ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

que realiza esta libertação dos afectos. A tragédia estabelece Se o belo é transposição e apresentação sensível do verda-
entre o espectador e o acontecimento patético a distância da deiro, a filosofia deve ir ao essencial e negligenciar o secundário.
ficção. Mimesis e catharsis são o verso e o reverso do mesmo O sensível é um objecto ontologicamente indigno e a beleza
fenómeno: é a ficção que funda a libertação. Experimentar está algures mas não nas coisas. A estética entendida como
paixões na distância ficcional a respeito do que a faz nascer reflexão sobre a aisthêsis e a beleza sensível não tem nenhumas
é experimentá-las de maneira não habitual, de modo quintes- hipóteses. Esta metafísica do belo constitui um obstáculo à
sencial. E é da própria transmutação do afecto comum que estética.
nasce o prazer trágico. Como o sistema das belas-artes e a ideia moderna de arte
A feitura desta reflexão aristotélica leva a melhor em vários que lhe está associada ainda só pertencem ao futuro, tam-
aspectos, sobre a de Platão. Por um lado, estas reflexões sobre bém não há lugar para uma estética concebida como teoria
a arte são independentes de considerações metafísicas e éticas. filosófica da arte. Entretanto, há práticas notáveis e tratados
Quando muito, pode ver-se no tema da catbarsis um ponto técnicos que os codificam, como o tratado de pintura e de
pelo qual Aristóteles toca nos efeitos psicológicos e éticos da escultura de Nenócrates no século III a.c. que dá conselhos
arte para afirmar, contra Platão, que a tragédia tem um efeito e preceitos. A Idade Média produz tratados de óptica, repor-
moral e, além disso, político positivo: o de purificar paixões. tórios iconográficos de modelos para copiar, obras técnicas
Por outro lado, para Aristóteles trata-se de dizer a natureza da destinadas aos pintores, aos escultores ou aos mestres vidreiros.
arte examinada, de contribuir com clarificações para um dado Nestes tratados de praticantes da arte encontram-se por vezes
de facto (uma determinada arte que se pratica nessa época) e fermentos teóricos importantes. Assim, nos manuais literários
não, como em Platão, de julgar o seu valor. Finalmente, esta vai-se, pouco a pouco, iluminando a ideia de uma autonomia
reflexão é uma poética, quer dizer, fornece a uma determinada da poesia, distinta simultaneamente da gramática e da métrica.
arte (à tragédia, neste caso) regras e preceitos, não de maneira Em suma, não se tratando de exposições sistemáticas, afloram
arbitrária, mas depois de reflexão e exame da sua natureza. A noções como a invenção ou a efusão sentimental, de que mais
Poética, enquanto teoria injuntiva (Anne Cauquelin, Les Théo- tarde a estética se ocupará. No Renascimento, Dante, Petrarca
ries de l'Art, 1998), terá uma influência directa considerável e Bocácio escrevem sobre a arte pictural do seu tempo, reu-
sobre a arte do Renascimento e da Idade Clássica. nindo deste modo arte figurativa e cultura literária erudita.
Os próprios pintores reflectem sobre as suas práticas. Entre
os textos mais importantes sobre este assunto, mencionemos
IH. - Reflexões estéticas os tratados Da Pintura de Alberti (1436) e de Leonardo da
sem estética Vinci (1490), assim como o Tratado da Arte da Pintura de
G. P. Lomazzo (1584). A contribuição dos praticantes da arte
Portanto, o estatuto destas reflexões da filosofia antiga e para a reflexão sobre a arte desempenhará um papel decisivo,
medieval sobre a arte e o belo é ambíguo: elas constituem como se verá, na constituição da estética. Contudo, no decurso
simultaneamente os germes da estética e interditam a sua cons- deste longo período de artes sem Arte, não existiria estética
tituição. Consideremos estes dois aspectos, um de cada vez. entendida como teoria da Arte.

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que realiza esta libertação dos afectos. A tragédia estabelece Se o belo é transposição e apresentação sensível do verda-
entre o espectador e o acontecimento patético a distância da deiro, a filosofia deve ir ao essencial e negligenciar o secundário.
ficção. Mimesis e catharsis são o verso e o reverso do mesmo O sensível é um objecto ontologicamente indigno e a beleza
fenómeno: é a ficção que funda a libertação. Experimentar está algures mas não nas coisas. A estética entendida como
paixões na distância ficcional a respeito do que a faz nascer reflexão sobre a aisthêsis e a beleza sensível não tem nenhumas
é experimentá-las de maneira não habitual, de modo quintes- hipóteses. Esta metafísica do belo constitui um obstáculo à
sencial. E é da própria transmutação do afecto comum que estética.
nasce o prazer trágico. Como o sistema das belas-artes e a ideia moderna de arte
A feitura desta reflexão aristotélica leva a melhor em vários que lhe está associada ainda só pertencem ao futuro, tam-
aspectos, sobre a de Platão. Por um lado, estas reflexões sobre bém não há lugar para uma estética concebida como teoria
a arte são independentes de considerações metafísicas e éticas. filosófica da arte. Entretanto, há práticas notáveis e tratados
Quando muito, pode ver-se no tema da catbarsis um ponto técnicos que os codificam, como o tratado de pintura e de
pelo qual Aristóteles toca nos efeitos psicológicos e éticos da escultura de Nenócrates no século III a.c. que dá conselhos
arte para afirmar, contra Platão, que a tragédia tem um efeito e preceitos. A Idade Média produz tratados de óptica, repor-
moral e, além disso, político positivo: o de purificar paixões. tórios iconográficos de modelos para copiar, obras técnicas
Por outro lado, para Aristóteles trata-se de dizer a natureza da destinadas aos pintores, aos escultores ou aos mestres vidreiros.
arte examinada, de contribuir com clarificações para um dado Nestes tratados de praticantes da arte encontram-se por vezes
de facto (uma determinada arte que se pratica nessa época) e fermentos teóricos importantes. Assim, nos manuais literários
não, como em Platão, de julgar o seu valor. Finalmente, esta vai-se, pouco a pouco, iluminando a ideia de uma autonomia
reflexão é uma poética, quer dizer, fornece a uma determinada da poesia, distinta simultaneamente da gramática e da métrica.
arte (à tragédia, neste caso) regras e preceitos, não de maneira Em suma, não se tratando de exposições sistemáticas, afloram
arbitrária, mas depois de reflexão e exame da sua natureza. A noções como a invenção ou a efusão sentimental, de que mais
Poética, enquanto teoria injuntiva (Anne Cauquelin, Les Théo- tarde a estética se ocupará. No Renascimento, Dante, Petrarca
ries de l'Art, 1998), terá uma influência directa considerável e Bocácio escrevem sobre a arte pictural do seu tempo, reu-
sobre a arte do Renascimento e da Idade Clássica. nindo deste modo arte figurativa e cultura literária erudita.
Os próprios pintores reflectem sobre as suas práticas. Entre
os textos mais importantes sobre este assunto, mencionemos
IH. - Reflexões estéticas os tratados Da Pintura de Alberti (1436) e de Leonardo da
sem estética Vinci (1490), assim como o Tratado da Arte da Pintura de
G. P. Lomazzo (1584). A contribuição dos praticantes da arte
Portanto, o estatuto destas reflexões da filosofia antiga e para a reflexão sobre a arte desempenhará um papel decisivo,
medieval sobre a arte e o belo é ambíguo: elas constituem como se verá, na constituição da estética. Contudo, no decurso
simultaneamente os germes da estética e interditam a sua cons- deste longo período de artes sem Arte, não existiria estética
tituição. Consideremos estes dois aspectos, um de cada vez. entendida como teoria da Arte.

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~_É_T_Ic_A ~ _ I - PRÉ-HISTÓRIA DA ESTÉTICA

Finalmente, e esta consideração liga os dois pontos prece- oposição entre Platão e Aristóteles sobre os efeitos das imagens
dentes, o belo não está ligado à arte de maneira privilegiada. preforma as posições possíveis sobre a questão muito actual
A crença na beleza intelectual proíbe toda a sobrestimação da da violência no cinema e, por isso, constituem uma espécie
arte. Também Aristóteles não questionava a arte a partir do de matriz de debates muito contemporâneos). Desde que não
belo; e, para Platão, é a dialéctica e não a arte que conduz à nos sintamos ligados a um sistema e consideremos que os
beleza. argumentos podem ser isoláveis, estes textos antigos podem
Portanto, para o período que vai da Antiguidade ao Renas- ser reinvestidos (deste modo, questões actualíssimas como a do
cimento, o caso da estética não é exactamente o mesmo que o realismo das propriedades estéticas podem encontrar argumen-
da metafísica para Aristóteles. Para ele, a palavra «metafísica» tos entre os teóricos antigos e medievais da objectividade dos
não existia e foram os seus discípulos que designaram por esta valores). Por fim, estas reflexões convidam a que nos integremos
palavra os textos que, no corpus do mestre, estavam colocados na nossa contemporaneidade: a ligação do belo, da verdade e
depois dos da física. Mas, mesmo que faltasse a palavra, a dis- do bem impediu a constituição de uma estética do belo e a
ciplina estava toda lá. Em contrapartida, no caso da estética, separação da estética e da ética; mas, inversamente e em com-
antes do século XVIII não existe nem a palavra nem o campo pensação, a consideração desta época em que a arte não era a
disciplinar. Arte e em que o belo não era separável do bem faz aparecer a
Esta situação teórica comanda e explica a ausência de temas estética como o fruto de uma configuração histórica particular
que, depois, se tornarão centrais para a estética como o gosto, e põe o problema não só da sua independência em relação à
a experiência, o prazer e o julgamento estéticos. A história da ética, como também o da pertinência de uma estética distinta
estética também é a história dos seus temas. de uma calística (ciência do belo) mais vasta. Em suma, estas
Ao mesmo tempo que é impedida a constituição do campo reflexões estéticas anteriores à própria estética dão muito que
que será o da disciplina estética, estas reflexões são o ponto de pensar à estética.
partida de problemáticas estéticas.
Este período deu conceitos à estética: contemplação, mime-
sis, catharsis. Ela também lhe legou análises que serão retoma-
das (no século XVIII, Shaftesbury seguirá a sugestão de Platão
no Hípias Maior, segundo a qual o belo poderia ser útil), desen-
volvidas (os séculos XVII e XVIII darão ao tema praticamente só
esboçado por Aristóteles da catharsis desenvolvimentos amplos
e complexos) ou concretamente aplicadas (a arte da Idade Clás-
sica recorrerá largamente à Poética de Aristóteles).
Estas reflexões estéticas anteriores à própria estética não
inseminarão unicamente a disciplina que nasce, mas também
dizem respeito à estética de hoje, em que um certo número de
debates travados ao longo da Antiguidade prossegue (assim, a

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Finalmente, e esta consideração liga os dois pontos prece- oposição entre Platão e Aristóteles sobre os efeitos das imagens
dentes, o belo não está ligado à arte de maneira privilegiada. preforma as posições possíveis sobre a questão muito actual
A crença na beleza intelectual proíbe toda a sobrestimação da da violência no cinema e, por isso, constituem uma espécie
arte. Também Aristóteles não questionava a arte a partir do de matriz de debates muito contemporâneos). Desde que não
belo; e, para Platão, é a dialéctica e não a arte que conduz à nos sintamos ligados a um sistema e consideremos que os
beleza. argumentos podem ser isoláveis, estes textos antigos podem
Portanto, para o período que vai da Antiguidade ao Renas- ser reinvestidos (deste modo, questões actualíssimas como a do
cimento, o caso da estética não é exactamente o mesmo que o realismo das propriedades estéticas podem encontrar argumen-
da metafísica para Aristóteles. Para ele, a palavra «metafísica» tos entre os teóricos antigos e medievais da objectividade dos
não existia e foram os seus discípulos que designaram por esta valores). Por fim, estas reflexões convidam a que nos integremos
palavra os textos que, no corpus do mestre, estavam colocados na nossa contemporaneidade: a ligação do belo, da verdade e
depois dos da física. Mas, mesmo que faltasse a palavra, a dis- do bem impediu a constituição de uma estética do belo e a
ciplina estava toda lá. Em contrapartida, no caso da estética, separação da estética e da ética; mas, inversamente e em com-
antes do século XVIII não existe nem a palavra nem o campo pensação, a consideração desta época em que a arte não era a
disciplinar. Arte e em que o belo não era separável do bem faz aparecer a
Esta situação teórica comanda e explica a ausência de temas estética como o fruto de uma configuração histórica particular
que, depois, se tornarão centrais para a estética como o gosto, e põe o problema não só da sua independência em relação à
a experiência, o prazer e o julgamento estéticos. A história da ética, como também o da pertinência de uma estética distinta
estética também é a história dos seus temas. de uma calística (ciência do belo) mais vasta. Em suma, estas
Ao mesmo tempo que é impedida a constituição do campo reflexões estéticas anteriores à própria estética dão muito que
que será o da disciplina estética, estas reflexões são o ponto de pensar à estética.
partida de problemáticas estéticas.
Este período deu conceitos à estética: contemplação, mime-
sis, catharsis. Ela também lhe legou análises que serão retoma-
das (no século XVIII, Shaftesbury seguirá a sugestão de Platão
no Hípias Maior, segundo a qual o belo poderia ser útil), desen-
volvidas (os séculos XVII e XVIII darão ao tema praticamente só
esboçado por Aristóteles da catharsis desenvolvimentos amplos
e complexos) ou concretamente aplicadas (a arte da Idade Clás-
sica recorrerá largamente à Poética de Aristóteles).
Estas reflexões estéticas anteriores à própria estética não
inseminarão unicamente a disciplina que nasce, mas também
dizem respeito à estética de hoje, em que um certo número de
debates travados ao longo da Antiguidade prossegue (assim, a

28 29
CAPÍTULO II

NASCIMENTO DA ESTÉTICA

;-

E conhecida a data de baptismo da estética; na sua


f2!!!!-ª--subst~_,ntiva,
a palavra aparece pela primeira
vez em \1635 'na obra do filósofo alemão Baumgar-
ten, Mas o baptismo não é o nascimento;' Este não aconteceu
numa obra concreta que constituísse a primeira e incon-
testável ocorrência de um género novo. Vai-se desenhando
em diversas obras, eclode um pouco por toda a Europa na
viragem do século' XVII para o XVIII e só progressivamente
vai ganhando uma clara consciência de si. A estética aparece
quando se reenche um determinado número --_ de condições
- --"_

e para ela se constitui um campo que convém analisar. Por


isso, examinar-se-âo as mutações decisivas que afectam os
dois temas que constituíram o objecto da investigação que
acabámos de ver ao longo da Antiguidade e da Idade Média:
o belo e a arte.

L - Uma nova epistêmê

1. O novo estatuto da beleza. - Por razões complexas,


na passagem do século XVI para o século XVII opera-se uma
mudança na maneira de conceber o mundo tal como se apre-
senta aos nossos sentidos. A partir de então, o sensível é auto-
nomizado em relação ao inteligível; já não é o reflexo imper-
feito das Ideias, e constitui um mundo fenomenal autónomo
que Kant teorizará na Crítica da Razão Pura. Os aisthêta,
factos de sensibilidade, tornam-se um objecto de reflexão
independente.

31
CAPÍTULO II

NASCIMENTO DA ESTÉTICA

;-

E conhecida a data de baptismo da estética; na sua


f2!!!!-ª--subst~_,ntiva,
a palavra aparece pela primeira
vez em \1635 'na obra do filósofo alemão Baumgar-
ten, Mas o baptismo não é o nascimento;' Este não aconteceu
numa obra concreta que constituísse a primeira e incon-
testável ocorrência de um género novo. Vai-se desenhando
em diversas obras, eclode um pouco por toda a Europa na
viragem do século' XVII para o XVIII e só progressivamente
vai ganhando uma clara consciência de si. A estética aparece
quando se reenche um determinado número --_ de condições
- --"_

e para ela se constitui um campo que convém analisar. Por


isso, examinar-se-âo as mutações decisivas que afectam os
dois temas que constituíram o objecto da investigação que
acabámos de ver ao longo da Antiguidade e da Idade Média:
o belo e a arte.

L - Uma nova epistêmê

1. O novo estatuto da beleza. - Por razões complexas,


na passagem do século XVI para o século XVII opera-se uma
mudança na maneira de conceber o mundo tal como se apre-
senta aos nossos sentidos. A partir de então, o sensível é auto-
nomizado em relação ao inteligível; já não é o reflexo imper-
feito das Ideias, e constitui um mundo fenomenal autónomo
que Kant teorizará na Crítica da Razão Pura. Os aisthêta,
factos de sensibilidade, tornam-se um objecto de reflexão
independente.

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~_É_T_Ic_A _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

Paralelamente, este sensível subjectiviza-se, isto é, considera- aritmética, geometria, astronomia e música) e, mais tarde (no
-se ~e- ~riste unicamente para um sujeito. As qualidades cha- século XII), as artes mecânicas, que pressupõem a mão e o corpo.
madas «segundas», as que nos são dadas só por um sentido Mas, em vez de preparar o sistema moderno das belas-artes,
(como o vermelho, o agudo, o amargo e o doce) e que cons- estas classificações impedem-no porque, ~sando a distinção
tituem o propriamente sensível do sensível, não residem no 40 ~aber e dQ__fazer,impossibilitam a reunião da pintura e da
objecto. Não existem para lá da sensação. O lírio não é em si po~i~ no mesmo espaço teórico, e também a exclusão desse
mesmo nem branco nem liso nem odorífero. A ciência actual mesmo espaço de outros saberes e de outros fazeres, contudo
. (a física mecanicista corpuscular) afirma que as qualidades muito próximos de um ponto de vista poiético [criador] (o do
sensíveis resultam de uma certa disposição espacial das partí- ourives, por exemplo). Como mostra Paul Oskar Kristeller (Le
culas de matéria em movimento. Em contacto com os sentidos, Systême Moderne des Arts, 1951-1952){ é preciso esperar pelo
esta microestrutura do objecto produz uma ou outra sensação. .Renascimentd para as artes visuais se emancipem da categoria
Portanto, as qualidades sensíveis remetem para sensações ou das artes mecânicas, contribuindo para tornar possível (mas,
ideias e não para qualidades intrinsecamente compreendidas apesar de tudo, ainda não efectiva) a ideia mo.derna de arte. (4::\
r
nas coisas. Assim, dizer aquele objecto é vermelho é apenas Esta emancipação é facilitada pelo facto de se reconhecer a t ~
afirmar que é feito de tal maneira que pode causar em nós a ~ta~ artes uma dimensão do saber. O pintor também é ~~
impressão de vermelho. sábio cuja prática exige conhecimentos (particularmente o do
Isto acarreta capitais para a compreensão da beleza sensível. ramo da óptica que é a perspectiva) e, por sua vez, esta prática
Esta não é uma propriedade do objecto e, ainda menos, o eco faz avançar o saber ..A figura de Leonardo da Vinci incarna a
da Ideia inteligível de beleza no objecto: é uma qualidade rela- grande síntese renascentista das actividades humanas. A dou-
, cional que nasce do encontro de um objecto e de um sujeito, trina da Ut pictura poesis contribui também poderosamente para
-,uma ideia que nasce em nós ao contacto de certas proprieda- o enobrecimento das artes visuais, porque afirma, apoiando-se
des das coisas. Mais precisamente, é um complexo especial de em Horácio, que a pintura - poesia muda - é irmã da poesia
qualidades primeiras e segundas percebidas por um sentido e, portanto, merece a mesma consideração que aquela de que a
interno. Por isso, daqui em diante, o belo deve ser pensado na literatura sempre gozou. Esta habilitação das artes visuais tem
slla relação com o sujeito e não na sua ligação com o mundo 't uma manifestação institucional: na Itália, desde o século XVI,
das Ideias. Deste modof~lo~adquire um consistência depois em França-e" por toda a Europa no século seguinte,
própria e torna-se independente. de qualquer outra forma de criam-se as academias-de pintura e de escultura: esta designa-
beleza, intelectual ou moral. ção, tomada da escola fundada por Platão, diz eloquentemente
que se saiu das guildas de artífices e do sistema das corporações.
2. A invenção da ideia moderna das belas-artes. - No Deste modo, levanta-se a hipoteca da separação do saber e do
contexto da história da humanidade, a ideia moderna de arte fazer que tornava impossível a reunião de certas actividades
é uma invenção recente. Já vimos que a Idade Média tinha humanas na categoria de belas-artes.
introduzido uma distinção no interior do vasto campo das Ao mesmo tempo que se criam as academias, desenvolve-se
artes, isolando as artes liberais (gramática, retórica, dialéctica, uma literatura crítica e teórica sobre as artes visuais. Du Fresnoy,

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~_É_T_Ic_A _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

Paralelamente, este sensível subjectiviza-se, isto é, considera- aritmética, geometria, astronomia e música) e, mais tarde (no
-se ~e- ~riste unicamente para um sujeito. As qualidades cha- século XII), as artes mecânicas, que pressupõem a mão e o corpo.
madas «segundas», as que nos são dadas só por um sentido Mas, em vez de preparar o sistema moderno das belas-artes,
(como o vermelho, o agudo, o amargo e o doce) e que cons- estas classificações impedem-no porque, ~sando a distinção
tituem o propriamente sensível do sensível, não residem no 40 ~aber e dQ__fazer,impossibilitam a reunião da pintura e da
objecto. Não existem para lá da sensação. O lírio não é em si po~i~ no mesmo espaço teórico, e também a exclusão desse
mesmo nem branco nem liso nem odorífero. A ciência actual mesmo espaço de outros saberes e de outros fazeres, contudo
. (a física mecanicista corpuscular) afirma que as qualidades muito próximos de um ponto de vista poiético [criador] (o do
sensíveis resultam de uma certa disposição espacial das partí- ourives, por exemplo). Como mostra Paul Oskar Kristeller (Le
culas de matéria em movimento. Em contacto com os sentidos, Systême Moderne des Arts, 1951-1952){ é preciso esperar pelo
esta microestrutura do objecto produz uma ou outra sensação. .Renascimentd para as artes visuais se emancipem da categoria
Portanto, as qualidades sensíveis remetem para sensações ou das artes mecânicas, contribuindo para tornar possível (mas,
ideias e não para qualidades intrinsecamente compreendidas apesar de tudo, ainda não efectiva) a ideia mo.derna de arte. (4::\
r
nas coisas. Assim, dizer aquele objecto é vermelho é apenas Esta emancipação é facilitada pelo facto de se reconhecer a t ~
afirmar que é feito de tal maneira que pode causar em nós a ~ta~ artes uma dimensão do saber. O pintor também é ~~
impressão de vermelho. sábio cuja prática exige conhecimentos (particularmente o do
Isto acarreta capitais para a compreensão da beleza sensível. ramo da óptica que é a perspectiva) e, por sua vez, esta prática
Esta não é uma propriedade do objecto e, ainda menos, o eco faz avançar o saber ..A figura de Leonardo da Vinci incarna a
da Ideia inteligível de beleza no objecto: é uma qualidade rela- grande síntese renascentista das actividades humanas. A dou-
, cional que nasce do encontro de um objecto e de um sujeito, trina da Ut pictura poesis contribui também poderosamente para
-,uma ideia que nasce em nós ao contacto de certas proprieda- o enobrecimento das artes visuais, porque afirma, apoiando-se
des das coisas. Mais precisamente, é um complexo especial de em Horácio, que a pintura - poesia muda - é irmã da poesia
qualidades primeiras e segundas percebidas por um sentido e, portanto, merece a mesma consideração que aquela de que a
interno. Por isso, daqui em diante, o belo deve ser pensado na literatura sempre gozou. Esta habilitação das artes visuais tem
slla relação com o sujeito e não na sua ligação com o mundo 't uma manifestação institucional: na Itália, desde o século XVI,
das Ideias. Deste modof~lo~adquire um consistência depois em França-e" por toda a Europa no século seguinte,
própria e torna-se independente. de qualquer outra forma de criam-se as academias-de pintura e de escultura: esta designa-
beleza, intelectual ou moral. ção, tomada da escola fundada por Platão, diz eloquentemente
que se saiu das guildas de artífices e do sistema das corporações.
2. A invenção da ideia moderna das belas-artes. - No Deste modo, levanta-se a hipoteca da separação do saber e do
contexto da história da humanidade, a ideia moderna de arte fazer que tornava impossível a reunião de certas actividades
é uma invenção recente. Já vimos que a Idade Média tinha humanas na categoria de belas-artes.
introduzido uma distinção no interior do vasto campo das Ao mesmo tempo que se criam as academias, desenvolve-se
artes, isolando as artes liberais (gramática, retórica, dialéctica, uma literatura crítica e teórica sobre as artes visuais. Du Fresnoy,

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~_ÉT_I_c_A _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

De Piles, Fréart de Chambray, Félibien publicam tratados e as A arte e o belo encontram-se juntos na categoria de belas-
Conferências da Academia proporcionam debates fecundos. -artes.
Estes ensaios críticos, estes tratados e estas conferências já não Do conjunto destas modificações nasce uma constelação
incidem só, como anteriormente, sobre a literatura e as suas nova que estabelece uma relação estreita entre o sensível, o bel~ ~
formas (poesia, teatro), mas também sobre as artes visuais e a e _~~Deste ~od~, cri~se as condições de R.?~i~ilidade
música, e contribuem para a construção teórica progressiva de
um sistema das belas-artes. -
da estética. Aliás, não só da estética: o século- xvrn-é também
o da iOY.eIlção_da_hist6ria_daarre.e d~ crftica;
A obra de Vasari intitulada As Vidas dos Mais Excelentes
Para que ele se instalasse eram necessárias duas condições
positivas principais. A primeira era a invenção da categoria Arquitectos, Pintores e Escultores Italianos (1550) continha um
de génio.' A ideia platónica de loucura divina, retomada pelo elemento novo em relação aos relatos de vidas de artistas da
platonismo renascentista permite que estas artes se emancipem Antiguidade. Nela, manifestava-se um ponto de vista histó-
do artesanato, se autonomizem também em relação à ciência. rico no sentido de que as obras não se reportavam apenas à
Da Querela dos Antigos e dos Modernos que agita o final do sua época, mas ainda eram julgadas segundo o seu tempo.
século ~:yII em França, resulta que se os saberes e as técni- Mas Vasari acreditava numa regra absoluta das artes que
cas progridem, e neste ponto a superioridade dos modernos é ele considerava, e misturava explicação e julgamento trans-
incontestável, já o mesmo não acontece com outros produtos -histórico sobre o valor. Assim, para ele, a história destas
da actividade humana. Um dos seus campos até então não artes é a de uma aproximação progressiva a este ideal, pro-
delimitados encontrou um princípio unificador, expresso expli- gressão cujas etapas são marcadas pelos nomes de Giotto e
citamente pelo título do § 46 da Crítica da Faculdade do Juízo de Cimabue (balbucios), de Donatello e de Masaccio (aper-
de Kant: «As belas-artes são as artes do génio». feiçoamento), de Leonardo da Vinci, Rafael e Miguel Ângelo
A este critéri0U!!!.ié!!
..ciJ junta-se outro: Q. prazer. A Idade (acabamento). Também a história _~ art~ sócomeça verda-
Clássica queria que a arte instruísse e deleitasse (é utile dulci). deiramente com a obra de Winckelmann História da Arte
O segundo destes fins vai-se sobrepondo cada vez mais ao pri- Antiga (1764) que fá .nãa.é .uma história 'dos artistas, mas
meiro. A ideia progride nos escritos de artistas (Poussin, Cor- uma história da arte, que estuda a evolução dos estilos da
neille, Racine), depois entre os teóricos das práticas artísticas arte grega. A história_4_a ar~e Ere~supõe que se tenha esta-
como Du Bos. É exemplar, a propósito, a publicação em 1746 belecido o conceito moderno de arte e postula a invariância
da obra do padre Batteux: Les Beaux-Arts Réduits à un Même da arte assim compreendida.
Principe. De facto, neste livro, as belas-artes são distinguidas As novas condições institucionais da. arte (as Academias e
das artes mecânicas pela sua finalidade: es!as visam a utilidade, os seus Salões onde seexpõem as produções daqueles a quem
as primeiras, o prazer. D'Alambert, no seu Discours Prélimi- já não se chama artesãos [ou artífices], mas artistas), somadas
naire à Enciclopédie, também reúne na categoria de belas-artes, nova
à visãoCh~d~ da arte (se a finalidade da arte é agra-
as artes que têm a distracção como objecto. Assim, a ideia dar, «todos os homens devem estar em condições de dar o seu
moderna de arte vai-se constituindo mediante os escritos dos parecer quando se trata de decidir se os poemas ou os qua-
artistas, os 'dos teóricos da arte e, depois, os dos filósofos. dros produzem o efeito que devem produzir», escreve o padre

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~_ÉT_I_c_A _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

De Piles, Fréart de Chambray, Félibien publicam tratados e as A arte e o belo encontram-se juntos na categoria de belas-
Conferências da Academia proporcionam debates fecundos. -artes.
Estes ensaios críticos, estes tratados e estas conferências já não Do conjunto destas modificações nasce uma constelação
incidem só, como anteriormente, sobre a literatura e as suas nova que estabelece uma relação estreita entre o sensível, o bel~ ~
formas (poesia, teatro), mas também sobre as artes visuais e a e _~~Deste ~od~, cri~se as condições de R.?~i~ilidade
música, e contribuem para a construção teórica progressiva de
um sistema das belas-artes. -
da estética. Aliás, não só da estética: o século- xvrn-é também
o da iOY.eIlção_da_hist6ria_daarre.e d~ crftica;
A obra de Vasari intitulada As Vidas dos Mais Excelentes
Para que ele se instalasse eram necessárias duas condições
positivas principais. A primeira era a invenção da categoria Arquitectos, Pintores e Escultores Italianos (1550) continha um
de génio.' A ideia platónica de loucura divina, retomada pelo elemento novo em relação aos relatos de vidas de artistas da
platonismo renascentista permite que estas artes se emancipem Antiguidade. Nela, manifestava-se um ponto de vista histó-
do artesanato, se autonomizem também em relação à ciência. rico no sentido de que as obras não se reportavam apenas à
Da Querela dos Antigos e dos Modernos que agita o final do sua época, mas ainda eram julgadas segundo o seu tempo.
século ~:yII em França, resulta que se os saberes e as técni- Mas Vasari acreditava numa regra absoluta das artes que
cas progridem, e neste ponto a superioridade dos modernos é ele considerava, e misturava explicação e julgamento trans-
incontestável, já o mesmo não acontece com outros produtos -histórico sobre o valor. Assim, para ele, a história destas
da actividade humana. Um dos seus campos até então não artes é a de uma aproximação progressiva a este ideal, pro-
delimitados encontrou um princípio unificador, expresso expli- gressão cujas etapas são marcadas pelos nomes de Giotto e
citamente pelo título do § 46 da Crítica da Faculdade do Juízo de Cimabue (balbucios), de Donatello e de Masaccio (aper-
de Kant: «As belas-artes são as artes do génio». feiçoamento), de Leonardo da Vinci, Rafael e Miguel Ângelo
A este critéri0U!!!.ié!!
..ciJ junta-se outro: Q. prazer. A Idade (acabamento). Também a história _~ art~ sócomeça verda-
Clássica queria que a arte instruísse e deleitasse (é utile dulci). deiramente com a obra de Winckelmann História da Arte
O segundo destes fins vai-se sobrepondo cada vez mais ao pri- Antiga (1764) que fá .nãa.é .uma história 'dos artistas, mas
meiro. A ideia progride nos escritos de artistas (Poussin, Cor- uma história da arte, que estuda a evolução dos estilos da
neille, Racine), depois entre os teóricos das práticas artísticas arte grega. A história_4_a ar~e Ere~supõe que se tenha esta-
como Du Bos. É exemplar, a propósito, a publicação em 1746 belecido o conceito moderno de arte e postula a invariância
da obra do padre Batteux: Les Beaux-Arts Réduits à un Même da arte assim compreendida.
Principe. De facto, neste livro, as belas-artes são distinguidas As novas condições institucionais da. arte (as Academias e
das artes mecânicas pela sua finalidade: es!as visam a utilidade, os seus Salões onde seexpõem as produções daqueles a quem
as primeiras, o prazer. D'Alambert, no seu Discours Prélimi- já não se chama artesãos [ou artífices], mas artistas), somadas
naire à Enciclopédie, também reúne na categoria de belas-artes, nova
à visãoCh~d~ da arte (se a finalidade da arte é agra-
as artes que têm a distracção como objecto. Assim, a ideia dar, «todos os homens devem estar em condições de dar o seu
moderna de arte vai-se constituindo mediante os escritos dos parecer quando se trata de decidir se os poemas ou os qua-
artistas, os 'dos teóricos da arte e, depois, os dos filósofos. dros produzem o efeito que devem produzir», escreve o padre

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~_É_T_Ic_A _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

) Du Bos nas suas Reflexões Críticas sobre a Poesia e a Pintura), de


~elxa
:_~+A_~:"{-::::::) rI.' d aS='\9gilli.J2e
Ia razao; - se O IL
- . O b eIo nao
contribuem para o~~ no~ão ~ público. capta pela razão ou pelo entendimento, também não se cons-
O j~.9 sobre as obras é assunto de amaClõfesclarecido. Em. tata, propriamente falando, com a vista ou o ouvido como a cor,
1747, La Font de Saint-Yenne apresenta o primeiro relatório de a forma, o tamanho de um objecto ou a altura _de um som. É
exposição. Ds._1759...aJZ81, Diderot publica QU."'ll~lons em percebido por uma ~écie de sexto sentido que, à semelhança
q~.~a..-para as cortes estrangeiras que .pintura-se-produz dos outros cinco,~. se Rronun_<:i,!napresença 'do~ec~?.JComo
I na.Erança. Por isso, no século XVIII, também aparece entre as Kant, Du Bos insiste neste ponto comum às duas formas do
noções novas de belas-artes.e.de pJÍbliGo-a--bgtlTa::do~_que gosto: «Acaso se racioci~para ~a~er_se o guisado é bom. ou
pratica a arte de.julgar. ma_!:!,e - depois de se terem formulado princípios geométricos.
Desta aliança nova do sensível ido belo e da arte, de que sobre o sabor e definido as qualidades de cada ingrediente qu.e
nasce a estética, emerge um tema novo que dominará todo este entra na composição deste prato alguém se lembrou de di~cl1:.~ir
período e em torno do qual a disciplina se constitui ampla- a proporção usada na mistura de ingredientes, para decidir se
mente: o gosto. o prato está bom? [...] Saboreia-se a refeição e, mesmo sem se
conhecer estas regras, sabe-se se está bom» (Reflexões Críticas,
Il, secção 22). Este sexto sentido é um sentido interno, sem
lI. - A estética como crítica do gosto órgão visível, qU~Rrocede a partir do testemunho dos sentidos
c externos. São-lhe reconhecidos os mesmos caracteres que aos
No § 1 da Crítica da Razão Pura, ~nt nota que «os Ale- outros: a 'universalidadê>o carácter inato e um veredicto tão
mães são os únicos que hoje se servem da palavra "estética" imediato quanto seguro.
para designar.aquílc.a.que onjros cha.mam~crítica do gosto». LAssim ~vocado,_o gosto sofre aameaça.do seu plural:~ .
Os «outros» são os.Ingleses, os-Escoceses e os Franceses, cujos não ~imo de preferências idiossincráticas? Contudo, o
escritos marcam o século. Esta utilização recordada por_Kant século ?CVIII não considera que [o objectivismo então impossível
mostra bem o carácter central do tema do gosto e a Crítica rJfl deva ceder . o lt:g~r _a ,!m subjectivismo estrit~;: embora carr~-
Faculdade do juízo será, ela própria, uma crítica do juizo go gando consigo uma suspeita de arbitrário, lO gosto_~_capaz de . <-;:-
gosto. Esta noção está incontestavelmente no centro dos escri- reunir os homens e não de os separar.jlirnbora a sua apreensão
tos estéticos do século XVIII. : j~ja feita pelcí,esPlito~para o século os valores estéticqs
conservam a sua permaI~fncia e a.sua l!!!lversalid~.::~e.
1. A invenção dogosto. - O termo? no seu uso metafórico V (it~
(este sexto sentido que permite apreender o belo), aparece pela 2. O domínio inglês, escocês e francês. - No entanto,
primeira vez pela pena de Baltasar Gracián em 1647 (O Homem este tema do gosto encontra-se em autores ainda imbuídos
da Corte), masainda _não uma categoria estética, vindo a sê-lo
é das ideias do passado. Assim, Shaftesbury, cuja obra tenta
no decurso da segunda metade do século XVII. Quando a b~leza )f @matar lC! neoplatonismo ao empirismo lockiano e defende
deixa de ser pensada como a maIJifestação sensív~l d~ p'erf~ 0'1-' o classicismo, também acrescenta o gosto aos cinco sentidos,
o gosto aparece, no seu uso metafórico, para ocupar as funçõe\ ( permitindo-lhe repensar o elo muito antigo da virtude com a
- \Yx,
36 .r~ 37
~_É_T_Ic_A _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

) Du Bos nas suas Reflexões Críticas sobre a Poesia e a Pintura), de


~elxa
:_~+A_~:"{-::::::) rI.' d aS='\9gilli.J2e
Ia razao; - se O IL
- . O b eIo nao
contribuem para o~~ no~ão ~ público. capta pela razão ou pelo entendimento, também não se cons-
O j~.9 sobre as obras é assunto de amaClõfesclarecido. Em. tata, propriamente falando, com a vista ou o ouvido como a cor,
1747, La Font de Saint-Yenne apresenta o primeiro relatório de a forma, o tamanho de um objecto ou a altura _de um som. É
exposição. Ds._1759...aJZ81, Diderot publica QU."'ll~lons em percebido por uma ~écie de sexto sentido que, à semelhança
q~.~a..-para as cortes estrangeiras que .pintura-se-produz dos outros cinco,~. se Rronun_<:i,!napresença 'do~ec~?.JComo
I na.Erança. Por isso, no século XVIII, também aparece entre as Kant, Du Bos insiste neste ponto comum às duas formas do
noções novas de belas-artes.e.de pJÍbliGo-a--bgtlTa::do~_que gosto: «Acaso se racioci~para ~a~er_se o guisado é bom. ou
pratica a arte de.julgar. ma_!:!,e - depois de se terem formulado princípios geométricos.
Desta aliança nova do sensível ido belo e da arte, de que sobre o sabor e definido as qualidades de cada ingrediente qu.e
nasce a estética, emerge um tema novo que dominará todo este entra na composição deste prato alguém se lembrou de di~cl1:.~ir
período e em torno do qual a disciplina se constitui ampla- a proporção usada na mistura de ingredientes, para decidir se
mente: o gosto. o prato está bom? [...] Saboreia-se a refeição e, mesmo sem se
conhecer estas regras, sabe-se se está bom» (Reflexões Críticas,
Il, secção 22). Este sexto sentido é um sentido interno, sem
lI. - A estética como crítica do gosto órgão visível, qU~Rrocede a partir do testemunho dos sentidos
c externos. São-lhe reconhecidos os mesmos caracteres que aos
No § 1 da Crítica da Razão Pura, ~nt nota que «os Ale- outros: a 'universalidadê>o carácter inato e um veredicto tão
mães são os únicos que hoje se servem da palavra "estética" imediato quanto seguro.
para designar.aquílc.a.que onjros cha.mam~crítica do gosto». LAssim ~vocado,_o gosto sofre aameaça.do seu plural:~ .
Os «outros» são os.Ingleses, os-Escoceses e os Franceses, cujos não ~imo de preferências idiossincráticas? Contudo, o
escritos marcam o século. Esta utilização recordada por_Kant século ?CVIII não considera que [o objectivismo então impossível
mostra bem o carácter central do tema do gosto e a Crítica rJfl deva ceder . o lt:g~r _a ,!m subjectivismo estrit~;: embora carr~-
Faculdade do juízo será, ela própria, uma crítica do juizo go gando consigo uma suspeita de arbitrário, lO gosto_~_capaz de . <-;:-
gosto. Esta noção está incontestavelmente no centro dos escri- reunir os homens e não de os separar.jlirnbora a sua apreensão
tos estéticos do século XVIII. : j~ja feita pelcí,esPlito~para o século os valores estéticqs
conservam a sua permaI~fncia e a.sua l!!!lversalid~.::~e.
1. A invenção dogosto. - O termo? no seu uso metafórico V (it~
(este sexto sentido que permite apreender o belo), aparece pela 2. O domínio inglês, escocês e francês. - No entanto,
primeira vez pela pena de Baltasar Gracián em 1647 (O Homem este tema do gosto encontra-se em autores ainda imbuídos
da Corte), masainda _não uma categoria estética, vindo a sê-lo
é das ideias do passado. Assim, Shaftesbury, cuja obra tenta
no decurso da segunda metade do século XVII. Quando a b~leza )f @matar lC! neoplatonismo ao empirismo lockiano e defende
deixa de ser pensada como a maIJifestação sensív~l d~ p'erf~ 0'1-' o classicismo, também acrescenta o gosto aos cinco sentidos,
o gosto aparece, no seu uso metafórico, para ocupar as funçõe\ ( permitindo-lhe repensar o elo muito antigo da virtude com a
- \Yx,
36 .r~ 37
II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA
~_É_T_Ic_A _

beleza sob a forma de uma relação original do sentido moral e distingue o belo essencial ou absoluto, que agrada ao espírito
do gosto pelo belo (Characteristics o/ Men, Manners, Opinions, pela razão, do belo variável que depende «da educação, do
Times, 1711-1714). preconceito, do capricho e da imaginação».
Em 1712, Joseph Addison publica considerações estéticas Para todos os que fizeram a sua epistêmê nova, a reflexão
no Spectator com o título «Os Prazeres da Imaginação», onde se entra mãis' resolutamente no novo caminho. Se o belo é uma ".
pode ler a hesitação de um tempo ainda impregnado por uma \,_qualidade rêlácional\se nasce do encontro de um sujeito com
estética clássica das regras sobre que se funda o julgamento e um objecto, há duas direcções de investigação: uma, do lado
onde cada vez mais se procura a apreensão do belo do lado ~ objecto - trata-se de inquirir sobre aquilo que no objecto,
da recepção e do sentimento. Nele se desenvolvem os temas em Contacto com o sujeito, produz o belo; o outro, do lado do
do gosto (educado e culto), do sublime e do belo, e também sujeito: qual é a faculdade pela qual o belo é percebido? De que
considerações sobre a paisagem que serão desenvolvidas por julgamêuto ela é capaz? Que valor atribuir-lhe? O que é que
Burke em meados do século e, no fim dele, pelos teóricos do está no princípio do gosto? O gosto educa-se? Etc.
pitoresco (W Gilpin, por exemplo). Mas Addison ainda é um Outrora, Hume e, sobretudo, Hutcheson tomaram a pri-
homem do passado na medida em que as suas considerações meira via. No seu Inquiry concerning Moral Good and Evil
estéticas estão mescladas de metafísica. Deste modo, para ele, a (1725), este distingue a beleza absoluta da beleza relativa que é
experiência estética da beleza acaba numa experiência religiosa: a da imitação conseguida. A parte da análise que é, ao mesmo
por um sentimento de gratidão para com Deus que derramou tempo, original, característica da época e influente ao longo
a beleza no mundo. do século, diz respeito à beleza absoluta. A percepção estética
No domínio francês, jean-Pierre de Crousaz, no seu Traité é pensada sobre o modelo da explicação lockiana da percepção
du Beau (1715), ainda defende que o belo não é só um sen- das qualidades segundas. A microestrutura material do objecto,
timento, mas também a manifestação sensível da verdade e ou seja, a organização espacial das partículas de matéria que o
do bom. A beleza permite distinguir o verdadeiro: «Desde constituem, interage com os sentidos para produzir a sensação
que nos tornemos atentos ao destino do homem, não teremos de vermelho, de amargo e de agudo. À análise da beleza articula-
dificuldade em distinguir as ciências que têm uma verdadeira -se com a das sensações: de facto, a beleza é um complexo de
Beleza das que só têm um brilho falso.» A beleza de que ele qualidades primeiras e segundas percebidas por um «sentido
fala é a dos teoremas, das demonstrações, da religião e, acesso- interno». Diferentemente das qualidades sensíveis - segundas,
riamente apenas, a das belas-artes. A beleza assim entendida é portanto -;, a beleza é relativa ao mundo interno das ideias. Por
apreendida independentemente dos sentidos e da sensação. Por isso, a palavra «beleza» remete para esta ideia nascida em nós e
conseguinte, a reflexão estética de Crousaz ainda tem muita a expressão «o sentido da beleza» designa «o poder de receber
mistura de metafísica e de religião. Encontram-se essas posições essas idéias».
intelectualistas no Essai sur le Beau (1741) do padre André, Hutcheson entende regressar da experiência ao objecto que
onde se distinguem o belo sensível (relativo ao sentimento e ao a ocasiona e estabelecer qual é a propriedade no objecto que
aprazimento) e o belo inteligível (que é uma questão de razão faz nascer a ideia da beleza em nós: «Procuraremos descobrir
e unidade). Ao querer salvar o belo do relativismo céptico, ele qual é a ocasião imediata destas ideias agradáveis ou qual é a

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II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA
~_É_T_Ic_A _

beleza sob a forma de uma relação original do sentido moral e distingue o belo essencial ou absoluto, que agrada ao espírito
do gosto pelo belo (Characteristics o/ Men, Manners, Opinions, pela razão, do belo variável que depende «da educação, do
Times, 1711-1714). preconceito, do capricho e da imaginação».
Em 1712, Joseph Addison publica considerações estéticas Para todos os que fizeram a sua epistêmê nova, a reflexão
no Spectator com o título «Os Prazeres da Imaginação», onde se entra mãis' resolutamente no novo caminho. Se o belo é uma ".
pode ler a hesitação de um tempo ainda impregnado por uma \,_qualidade rêlácional\se nasce do encontro de um sujeito com
estética clássica das regras sobre que se funda o julgamento e um objecto, há duas direcções de investigação: uma, do lado
onde cada vez mais se procura a apreensão do belo do lado ~ objecto - trata-se de inquirir sobre aquilo que no objecto,
da recepção e do sentimento. Nele se desenvolvem os temas em Contacto com o sujeito, produz o belo; o outro, do lado do
do gosto (educado e culto), do sublime e do belo, e também sujeito: qual é a faculdade pela qual o belo é percebido? De que
considerações sobre a paisagem que serão desenvolvidas por julgamêuto ela é capaz? Que valor atribuir-lhe? O que é que
Burke em meados do século e, no fim dele, pelos teóricos do está no princípio do gosto? O gosto educa-se? Etc.
pitoresco (W Gilpin, por exemplo). Mas Addison ainda é um Outrora, Hume e, sobretudo, Hutcheson tomaram a pri-
homem do passado na medida em que as suas considerações meira via. No seu Inquiry concerning Moral Good and Evil
estéticas estão mescladas de metafísica. Deste modo, para ele, a (1725), este distingue a beleza absoluta da beleza relativa que é
experiência estética da beleza acaba numa experiência religiosa: a da imitação conseguida. A parte da análise que é, ao mesmo
por um sentimento de gratidão para com Deus que derramou tempo, original, característica da época e influente ao longo
a beleza no mundo. do século, diz respeito à beleza absoluta. A percepção estética
No domínio francês, jean-Pierre de Crousaz, no seu Traité é pensada sobre o modelo da explicação lockiana da percepção
du Beau (1715), ainda defende que o belo não é só um sen- das qualidades segundas. A microestrutura material do objecto,
timento, mas também a manifestação sensível da verdade e ou seja, a organização espacial das partículas de matéria que o
do bom. A beleza permite distinguir o verdadeiro: «Desde constituem, interage com os sentidos para produzir a sensação
que nos tornemos atentos ao destino do homem, não teremos de vermelho, de amargo e de agudo. À análise da beleza articula-
dificuldade em distinguir as ciências que têm uma verdadeira -se com a das sensações: de facto, a beleza é um complexo de
Beleza das que só têm um brilho falso.» A beleza de que ele qualidades primeiras e segundas percebidas por um «sentido
fala é a dos teoremas, das demonstrações, da religião e, acesso- interno». Diferentemente das qualidades sensíveis - segundas,
riamente apenas, a das belas-artes. A beleza assim entendida é portanto -;, a beleza é relativa ao mundo interno das ideias. Por
apreendida independentemente dos sentidos e da sensação. Por isso, a palavra «beleza» remete para esta ideia nascida em nós e
conseguinte, a reflexão estética de Crousaz ainda tem muita a expressão «o sentido da beleza» designa «o poder de receber
mistura de metafísica e de religião. Encontram-se essas posições essas idéias».
intelectualistas no Essai sur le Beau (1741) do padre André, Hutcheson entende regressar da experiência ao objecto que
onde se distinguem o belo sensível (relativo ao sentimento e ao a ocasiona e estabelecer qual é a propriedade no objecto que
aprazimento) e o belo inteligível (que é uma questão de razão faz nascer a ideia da beleza em nós: «Procuraremos descobrir
e unidade). Ao querer salvar o belo do relativismo céptico, ele qual é a ocasião imediata destas ideias agradáveis ou qual é a

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\

qualidade real dos objectos que habitualmente as provoca.» poderia significar a descoberta das qualidades que provocam
A resposta que ele dá é que se trata de uma certa configura- o deleite, já que a constituição da natureza humana é relati-
ção que ele designa pela fórmula famosa de «uniformidade na vamente invariável: «No meio da variedade e do capricho do
diversidade». Em geral, sentimos a beleza sem estarmos cons- gosto, há certos princípios gerais de aprovação ou de censura,
cientes desta configuração particular. «A sensação agradável cuja influência um olhar atento pode detectar em todas as'
nasce somente de objectos nos quais existe uniformidade na operações do espírito. Pela estrutura original da constituição
variedade. Temos esta sensação sem conhecer a sua causa, como interna do homem, umas formas ou qualidades particulares
o gosto de um homem lhe sugere as ideias de doçura, acidez estão calculadas para agradar e outras para desagradar.» Toda-
ou amargo, embora ignore o que nele excita estas percepções.» via, Hume não efectua o programa indicado. Por um lado,
Só a pesquisa filosófica permite explicar aquilo que sentimos porque compreende que as regras do gosto são tão genéricas
sem o compreender. que, de facto, não têm pertinência. Por outro, porque não se
O escrito estético maior de Hume, A Norma do Gosto pode, em nome de uma generalidade empírica, desacreditar um
(1757), começa por uma longa verificação da infinita variedade sentimento sobre o qual, aliás, afirmou que era sempre justo;
dos gostos. Como o belo é «inteiramente o facto do sentido tal passagem do facto para o valor seria ilegítima.
interno», tanto quanto de «fábricas particulares», quer dizer, Abandonando, por isso, a «via da regra», Hume já não,
de disposições do sujeito, tantas serão as apreciações e senti- considera o objecto que ocasiona o sentimento estético, mas'
mentos divergentes. Como a verdade e o erro não têm sentido o sujeito que o experimenta. Ora, embora o sentimento seja
no domínio do sentimento, parece necessário concluir pela sempre justo, aquilo que faz com que o experimentemos nem ,
«impossibilidade de nunca esperar qualquer norma do gosto». sempre o é. De facto, pode-se sentir prazer (ou desprazer) por
r Todavia, embora dando maior força à argumentação relativista, más razões. Primeiro, existem aguelas a que Hl!me cha,!!!a
Hume concluirá a favor da possibilidade de uma norma, ou «obstruções»; a autoridade, o preconceito, a moda, a inveja
seja, de «uma regra pela qual os sentimentos dos homens pos- e~bepois, há as que resultam de uma falta de cuÍ-
sam ser reconciliados ou, pelo menos, uma decisão proposta, tura. Conclui-se que a-norma. do' gosto é não aquilo que,
confirmando um sentimento e condenando outro». fI!as_aquele cujos sentimentos não se baseiam em más razões.
Primeiro, Hume nota que o senso comum não atribui a Quer dizer, aquele que não carece nem de delicadeza nem
todos os gostos o mesmo valor, que existem acordos de fac- de bom senso, nem de familiaridade com as obras, nem de
tos e, sobretudo, consensos trans-históricos perturbadores que imparcialidade, e que procura praticar as artes e comparar as
dizem, por exemplo, que «o mesmo Homero, que, há dois mil .suas produções. Para dizer de maneira positiva, é aquele que
anos agradava a Atenas e a Roma, ainda é admirado em Paris possui este conjunto de qualidades reunidas na fórmula: «Um
e em Londres». sentido forte, unido a um sentimento delicado, melhorado
Esta verificação arrasta Hume para o caminho aberto por pela prática, tornado perfeito pela comparação e despido de
Hutcheson: o que provoca uma experiência estética consensual qualquer preconceito.» O padrão do.gosto já não é 5) critério,;
é uma qualidade estética consensual: a análise das primeiras da quªlid~~stética, mas Q_critéfio_objecti\TQ.4~capacidade
deve permitir induzir as segundas. Descobrir a norma do gosto e~~ti.f.a. A norma do gosto não deve ser procurada do lado

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qualidade real dos objectos que habitualmente as provoca.» poderia significar a descoberta das qualidades que provocam
A resposta que ele dá é que se trata de uma certa configura- o deleite, já que a constituição da natureza humana é relati-
ção que ele designa pela fórmula famosa de «uniformidade na vamente invariável: «No meio da variedade e do capricho do
diversidade». Em geral, sentimos a beleza sem estarmos cons- gosto, há certos princípios gerais de aprovação ou de censura,
cientes desta configuração particular. «A sensação agradável cuja influência um olhar atento pode detectar em todas as'
nasce somente de objectos nos quais existe uniformidade na operações do espírito. Pela estrutura original da constituição
variedade. Temos esta sensação sem conhecer a sua causa, como interna do homem, umas formas ou qualidades particulares
o gosto de um homem lhe sugere as ideias de doçura, acidez estão calculadas para agradar e outras para desagradar.» Toda-
ou amargo, embora ignore o que nele excita estas percepções.» via, Hume não efectua o programa indicado. Por um lado,
Só a pesquisa filosófica permite explicar aquilo que sentimos porque compreende que as regras do gosto são tão genéricas
sem o compreender. que, de facto, não têm pertinência. Por outro, porque não se
O escrito estético maior de Hume, A Norma do Gosto pode, em nome de uma generalidade empírica, desacreditar um
(1757), começa por uma longa verificação da infinita variedade sentimento sobre o qual, aliás, afirmou que era sempre justo;
dos gostos. Como o belo é «inteiramente o facto do sentido tal passagem do facto para o valor seria ilegítima.
interno», tanto quanto de «fábricas particulares», quer dizer, Abandonando, por isso, a «via da regra», Hume já não,
de disposições do sujeito, tantas serão as apreciações e senti- considera o objecto que ocasiona o sentimento estético, mas'
mentos divergentes. Como a verdade e o erro não têm sentido o sujeito que o experimenta. Ora, embora o sentimento seja
no domínio do sentimento, parece necessário concluir pela sempre justo, aquilo que faz com que o experimentemos nem ,
«impossibilidade de nunca esperar qualquer norma do gosto». sempre o é. De facto, pode-se sentir prazer (ou desprazer) por
r Todavia, embora dando maior força à argumentação relativista, más razões. Primeiro, existem aguelas a que Hl!me cha,!!!a
Hume concluirá a favor da possibilidade de uma norma, ou «obstruções»; a autoridade, o preconceito, a moda, a inveja
seja, de «uma regra pela qual os sentimentos dos homens pos- e~bepois, há as que resultam de uma falta de cuÍ-
sam ser reconciliados ou, pelo menos, uma decisão proposta, tura. Conclui-se que a-norma. do' gosto é não aquilo que,
confirmando um sentimento e condenando outro». fI!as_aquele cujos sentimentos não se baseiam em más razões.
Primeiro, Hume nota que o senso comum não atribui a Quer dizer, aquele que não carece nem de delicadeza nem
todos os gostos o mesmo valor, que existem acordos de fac- de bom senso, nem de familiaridade com as obras, nem de
tos e, sobretudo, consensos trans-históricos perturbadores que imparcialidade, e que procura praticar as artes e comparar as
dizem, por exemplo, que «o mesmo Homero, que, há dois mil .suas produções. Para dizer de maneira positiva, é aquele que
anos agradava a Atenas e a Roma, ainda é admirado em Paris possui este conjunto de qualidades reunidas na fórmula: «Um
e em Londres». sentido forte, unido a um sentimento delicado, melhorado
Esta verificação arrasta Hume para o caminho aberto por pela prática, tornado perfeito pela comparação e despido de
Hutcheson: o que provoca uma experiência estética consensual qualquer preconceito.» O padrão do.gosto já não é 5) critério,;
é uma qualidade estética consensual: a análise das primeiras da quªlid~~stética, mas Q_critéfio_objecti\TQ.4~capacidade
deve permitir induzir as segundas. Descobrir a norma do gosto e~~ti.f.a. A norma do gosto não deve ser procurada do lado

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das regras, mas do da figura do conhecedor: «Os veredictos (principalmente amor e sexualidade, mas também amizade e
reunidos desses homens, onde quer que se possam encon- simpatia): «Entendo por beleza - escreve Burke - a qualidade
trar, constituem a verdadeira norma do gosto e da beleza.» ou as qualidades dos corpos, mediante as quais eles causam o
Portanto, a norma são os especialistas. Deste modo, Hume amor ou alguma paixão semelhante ao amor.» Mas o sublime
desloca a questão do valor da qualidade dos objectos para a refere-se às paixões instintivas da conservação de si próprio. O
competência crítica. sublime assusta e, contudo, agrada. Eis o paradoxo desta emo-
Se o gosto e as suas questões satélites (será universal, uni- ção negativa que Burke resolve fazendo intervir a ficção que
versalizável? que tipo de prazer resulta do seu exercício?) são o nos põe não diante do perigo, mas da ideia do perigo. Nasce,
tema privilegiado desta estética nascente, não são o único. Para assim, perante o sublime este sentimento complexo a que Burke
dar uma visão de conjunto da riqueza das problemáticas, men- chama «delicioso horror».
cionemos a obra de Burke, pelo seu contributo para a reflexão Esta análise do sublime que prefigura temas que serão larga-
sobre a categoria do sublime, e a do padre Du Bos pelas suas mente explorados pelo romantismo, terá grande influência não
considerações sobre as relações da arte e das paixões. só na Inglaterra, mas também na Alemanha, nomeadamente
Na Investigação Filosófica sobre a Origem das nossasIdeias do em Lessing e Kant. '
Sublime e do Belo (1757) de Edmund Burke, também encon- As Reflexões Críticas sobre a Poesia e sobre a Pintura (1719)
tramos considerações sobre o gosto: este tem «princípios fixos» do padre Du Bos constituem uma obra compósita e díspar em
e a imaginação é afectada segundo «leis invariáveis e certas». que tanto se fala da questão do gosto como da teoria dos cli-
O gosto, como a razão, radica-se na comum natureza humana. mas, tanto do público como de pontos particulares relativos à
Os princípios do julgamento do gosto são comuns a todos e a composição pictórica e poética. Mas, aqui, analisaremos o que
diversidade das opiniões estéticas explica-se quer pela variação ele diz dos efeitos da arte sobre o coração. Com efeito, Du Bos
de grau da «sensibilidade natural», quer pela qualidade da desenvolve uma reflexão sobre as paixões e o aborrecimento,
atenção dada ao objecto. que se estende a prolongamentos estéticos e artísticos impor-
Mas o tema da obra que trataremos aqui é outro: o exame tantes. As paixões - segundo a análise de Du Bos - embora
comparado dos sentimentos do sublime e do belo. A beleza não muitas vezes sejam dolorosas (directamente ou pelas suas con-
é uma questão nem de proporção nem de conveniência, coisas sequências), são procuradas pelos homens para fugir do mal
que suporiam a intervenção do entendimento, mas de senti- supremo do tédio e da inacção. Pela representação que oferece
mento. Todavia, Burke propõe uma lista de caracteres objecti- de cenas e situações patéticas, a arte é a oportunidade para se
vos e universais da beleza, entre os quais figuram a pequenez, sentir paixões fingidas que suscitam a distracção das verdadeiras
a suavidade dos contornos, a delicadeza das formas e das cores. sem os inconvenientes que, em geral, as acompanham: «Estes
O sublime tem a ver com as situações de sofrimento, e de fantasmas de paixões que a poesia e a pintura sabem excitar
perigo possíveis (montanhas vertiginosas, mar furioso). Estas em nós emocionando-nos pelas imitações que nos apresentam,
duas qualidades estéticas estão ligadas a paixões específicas: o satisfazem a necessidade que temos de estar ocupados.» Como
prazer provocado pelo belo não é da mesma natureza que o esta afirmação geral tem diferentes aspectos consoante as artes,
ocasionado pelo sublime. O belo está ligado às paixões sociais Ou Bos analisa os poderes e os méritos comparados da poesia e

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das regras, mas do da figura do conhecedor: «Os veredictos (principalmente amor e sexualidade, mas também amizade e
reunidos desses homens, onde quer que se possam encon- simpatia): «Entendo por beleza - escreve Burke - a qualidade
trar, constituem a verdadeira norma do gosto e da beleza.» ou as qualidades dos corpos, mediante as quais eles causam o
Portanto, a norma são os especialistas. Deste modo, Hume amor ou alguma paixão semelhante ao amor.» Mas o sublime
desloca a questão do valor da qualidade dos objectos para a refere-se às paixões instintivas da conservação de si próprio. O
competência crítica. sublime assusta e, contudo, agrada. Eis o paradoxo desta emo-
Se o gosto e as suas questões satélites (será universal, uni- ção negativa que Burke resolve fazendo intervir a ficção que
versalizável? que tipo de prazer resulta do seu exercício?) são o nos põe não diante do perigo, mas da ideia do perigo. Nasce,
tema privilegiado desta estética nascente, não são o único. Para assim, perante o sublime este sentimento complexo a que Burke
dar uma visão de conjunto da riqueza das problemáticas, men- chama «delicioso horror».
cionemos a obra de Burke, pelo seu contributo para a reflexão Esta análise do sublime que prefigura temas que serão larga-
sobre a categoria do sublime, e a do padre Du Bos pelas suas mente explorados pelo romantismo, terá grande influência não
considerações sobre as relações da arte e das paixões. só na Inglaterra, mas também na Alemanha, nomeadamente
Na Investigação Filosófica sobre a Origem das nossasIdeias do em Lessing e Kant. '
Sublime e do Belo (1757) de Edmund Burke, também encon- As Reflexões Críticas sobre a Poesia e sobre a Pintura (1719)
tramos considerações sobre o gosto: este tem «princípios fixos» do padre Du Bos constituem uma obra compósita e díspar em
e a imaginação é afectada segundo «leis invariáveis e certas». que tanto se fala da questão do gosto como da teoria dos cli-
O gosto, como a razão, radica-se na comum natureza humana. mas, tanto do público como de pontos particulares relativos à
Os princípios do julgamento do gosto são comuns a todos e a composição pictórica e poética. Mas, aqui, analisaremos o que
diversidade das opiniões estéticas explica-se quer pela variação ele diz dos efeitos da arte sobre o coração. Com efeito, Du Bos
de grau da «sensibilidade natural», quer pela qualidade da desenvolve uma reflexão sobre as paixões e o aborrecimento,
atenção dada ao objecto. que se estende a prolongamentos estéticos e artísticos impor-
Mas o tema da obra que trataremos aqui é outro: o exame tantes. As paixões - segundo a análise de Du Bos - embora
comparado dos sentimentos do sublime e do belo. A beleza não muitas vezes sejam dolorosas (directamente ou pelas suas con-
é uma questão nem de proporção nem de conveniência, coisas sequências), são procuradas pelos homens para fugir do mal
que suporiam a intervenção do entendimento, mas de senti- supremo do tédio e da inacção. Pela representação que oferece
mento. Todavia, Burke propõe uma lista de caracteres objecti- de cenas e situações patéticas, a arte é a oportunidade para se
vos e universais da beleza, entre os quais figuram a pequenez, sentir paixões fingidas que suscitam a distracção das verdadeiras
a suavidade dos contornos, a delicadeza das formas e das cores. sem os inconvenientes que, em geral, as acompanham: «Estes
O sublime tem a ver com as situações de sofrimento, e de fantasmas de paixões que a poesia e a pintura sabem excitar
perigo possíveis (montanhas vertiginosas, mar furioso). Estas em nós emocionando-nos pelas imitações que nos apresentam,
duas qualidades estéticas estão ligadas a paixões específicas: o satisfazem a necessidade que temos de estar ocupados.» Como
prazer provocado pelo belo não é da mesma natureza que o esta afirmação geral tem diferentes aspectos consoante as artes,
ocasionado pelo sublime. O belo está ligado às paixões sociais Ou Bos analisa os poderes e os méritos comparados da poesia e

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da pintura do ponto de vista destas paixões «artificiais». Através faculdade que vale para o mundo sensível o análogo daquilo
destas reflexões, Du Bos reencontra a problemática antiga da que a razão é para o inteligível. Ao contrário do seu mestre
arte e das paixões. ~I Baumgarten considera que o sensível não é somente
õfriiãSeilSIVelãoi."'nteligL\rel'e que o seu conteúdo é específico.
A esfera do sensível é certamente inferior à do inteligível e o
111. - Baptismo da estética: Baumgarten conhecimento que concerne àquela é menos nobre do que o
que se exige para este; mas nem por isso deixa de ser conhe-
Baumgarten inventa o substantivo «estética». O termo apa- cimento. A faculdade de sentir é uma faculdade autónoma de
rece primeiro em latim nas suas Meditações Filosóficas sobre conhecer (ela não fornece só materiais que o entendimento
Alguns Temas Relativos à Essência do Poema (1735), depois em tiver de tratar, como afirmará Kant); ela fornece conhecimentos
alemão, em 1750, na sua Aesthetica. Mas inventa, por isso, a confusos, mas insubstituíveis. .e. esta faculdade de sentir que
disciplina? Porventura dá, não só uma designação, mas ~am- constitui o objecto próprio da estética e constitui um tema de
bém forma e consistência a um novo tipo de reflexões? E, sob estudo legítimo: «À objecção (segundo a qual) as sensações, as
este título, que põe na sua obra? representações imaginárias, as fábulas e as perturbações pas-
I Uma parte da obra de Baumgarten consiste numa poética, sionais não são dignas dos filósofos e se situam aquém do seu
/ quer dizer, numa teoria normativa da obra de arte. Sendo a horizonte, respondo (que) o filósofo é um homem entre os
I
poética «o conjunto das regras a que o poema deve conformar- homens e não é bom que ele considere uma parte tão impor-

I"
-se», a «poética filosófica» é uma espécie de metapoética, é ~ tante do conhecimento humano como se lhe fosse estranha»
«ciência da poética» (Meditações, § 9). Os Antigos conheciam (§ 6). 'po[taJ.ll_o a estética é explicitamente apresentada como -
as regras da produção do poema belo; por isso, não é necessário urna teoria da sensibilidade, mas da sensibilidade como modo
inventá-las, mas expô-las de maneira sistemática e deduzi-las: de conhecimento. \
«Partindo unicamente do conceito de poema desde há muito A arte e o belo não estão ausentes das considerações da
gravado na alma, é possível provar numerosas afirmações que Estética. Baumgarten não rompeu com a tese segundo a qual
foram proferidas centenas de vezes, mas dificilmente foram a beleza éa~rdade enquanto elemento sensível. A ligação da
objecto de uma única prova» (Meditações, Introdução). _Afina- beleza com a verdade é constituída pela ideia de perfeição: a
lidade desta poética é a de «conduzir o discurso sensível para a beleza é a manifestação sensível da perfeição de um objecto e
sua perfeição» (ibid., § 115), marca a adequação da essência e da aparência. Daí também o
A Estética também comporta essa «poética filosófica», mas privilégio concedido por Baumgarten ao belo em matéria de
não se reduz a isso. Ela é também4ilos~a da faculdade ~e conhecimento. Por isso também o privilégio cognitivo da arte
s~m!!;,e isto é novo. As Meditações davam as seguintes defini- enquanto lugar por excelência da produção do belo e da afirma-
ções da estética: «ciência do modo sensível do conhecimento I ção recíproca de que o conhecimento perfeito também é belo.
de um objecto», «lógica da faculdade do conhecimento inferior, Diferentemente de Platão,lBaumgarten considera ~ ~ beleza
gnoseologia inferior, arte da beleza do pensar, arte do analogon ~~el ~~. tem o papel" propedêutico rle nos elevar à beleza µ1~ /'
da razão» (§ 533). Segundo Baumgarten, existe de facto uma inteligível: o domínio do 'bêlo sensível é autónomo. Mas não {.y..., ~ c c,
""_ ' ,.,,)tr

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da pintura do ponto de vista destas paixões «artificiais». Através faculdade que vale para o mundo sensível o análogo daquilo
destas reflexões, Du Bos reencontra a problemática antiga da que a razão é para o inteligível. Ao contrário do seu mestre
arte e das paixões. ~I Baumgarten considera que o sensível não é somente
õfriiãSeilSIVelãoi."'nteligL\rel'e que o seu conteúdo é específico.
A esfera do sensível é certamente inferior à do inteligível e o
111. - Baptismo da estética: Baumgarten conhecimento que concerne àquela é menos nobre do que o
que se exige para este; mas nem por isso deixa de ser conhe-
Baumgarten inventa o substantivo «estética». O termo apa- cimento. A faculdade de sentir é uma faculdade autónoma de
rece primeiro em latim nas suas Meditações Filosóficas sobre conhecer (ela não fornece só materiais que o entendimento
Alguns Temas Relativos à Essência do Poema (1735), depois em tiver de tratar, como afirmará Kant); ela fornece conhecimentos
alemão, em 1750, na sua Aesthetica. Mas inventa, por isso, a confusos, mas insubstituíveis. .e. esta faculdade de sentir que
disciplina? Porventura dá, não só uma designação, mas ~am- constitui o objecto próprio da estética e constitui um tema de
bém forma e consistência a um novo tipo de reflexões? E, sob estudo legítimo: «À objecção (segundo a qual) as sensações, as
este título, que põe na sua obra? representações imaginárias, as fábulas e as perturbações pas-
I Uma parte da obra de Baumgarten consiste numa poética, sionais não são dignas dos filósofos e se situam aquém do seu
/ quer dizer, numa teoria normativa da obra de arte. Sendo a horizonte, respondo (que) o filósofo é um homem entre os
I
poética «o conjunto das regras a que o poema deve conformar- homens e não é bom que ele considere uma parte tão impor-

I"
-se», a «poética filosófica» é uma espécie de metapoética, é ~ tante do conhecimento humano como se lhe fosse estranha»
«ciência da poética» (Meditações, § 9). Os Antigos conheciam (§ 6). 'po[taJ.ll_o a estética é explicitamente apresentada como -
as regras da produção do poema belo; por isso, não é necessário urna teoria da sensibilidade, mas da sensibilidade como modo
inventá-las, mas expô-las de maneira sistemática e deduzi-las: de conhecimento. \
«Partindo unicamente do conceito de poema desde há muito A arte e o belo não estão ausentes das considerações da
gravado na alma, é possível provar numerosas afirmações que Estética. Baumgarten não rompeu com a tese segundo a qual
foram proferidas centenas de vezes, mas dificilmente foram a beleza éa~rdade enquanto elemento sensível. A ligação da
objecto de uma única prova» (Meditações, Introdução). _Afina- beleza com a verdade é constituída pela ideia de perfeição: a
lidade desta poética é a de «conduzir o discurso sensível para a beleza é a manifestação sensível da perfeição de um objecto e
sua perfeição» (ibid., § 115), marca a adequação da essência e da aparência. Daí também o
A Estética também comporta essa «poética filosófica», mas privilégio concedido por Baumgarten ao belo em matéria de
não se reduz a isso. Ela é também4ilos~a da faculdade ~e conhecimento. Por isso também o privilégio cognitivo da arte
s~m!!;,e isto é novo. As Meditações davam as seguintes defini- enquanto lugar por excelência da produção do belo e da afirma-
ções da estética: «ciência do modo sensível do conhecimento I ção recíproca de que o conhecimento perfeito também é belo.
de um objecto», «lógica da faculdade do conhecimento inferior, Diferentemente de Platão,lBaumgarten considera ~ ~ beleza
gnoseologia inferior, arte da beleza do pensar, arte do analogon ~~el ~~. tem o papel" propedêutico rle nos elevar à beleza µ1~ /'
da razão» (§ 533). Segundo Baumgarten, existe de facto uma inteligível: o domínio do 'bêlo sensível é autónomo. Mas não {.y..., ~ c c,
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é menos verdade que este domínio autônomo é um domínio mas com _o_2ujeito».E o caso de um certo tipo de.julgamentQs.
de saber. A estética de Baumgarten p~.t!.l!-ªne_ce_-prisioneit:a.
do Pon~t~, o adjectivo qualifica esta espécie de julgam,ento e não (
modelo da lógica. - --- um campo de objectos. É esta categoria de juízos que estará no
- .'

centro da investigação.
, A primeira parte da Críticq da Faculdade do juízo examina a
IV. - O momento kantiano .questão que atravessa o século: saber como é que o juízo estético

--
, .
que é subjectivo pode, não obstante, ter uma validade univer-
Embora na obra de Kant se encontrem reflexões esparsas saL Existem duas grandes categorias de juízos estéticos: as que
sobre temas estéticos desde os anos 1750 e terem aparecido, se ocupam da beleta (são os juízos
-
de gosto) e as que se referem -
em 1764, as suas Observações sobre o Se;timento do Belo e do àõ sublime, sendo a diferença essencial entre elas consiste em
Sublime, o grande texto fundador que é a Crítica da Faculdade (;", beleza repousar nas formas espaciais e temporais dos objectos
..____
do juízo só v~a o dia em ~ e este aparecimento pode, na (portanto, no que é limitado no espaço e no tempo), enquanto
perspectiva do que Kant escrevia em 1781, parecer inesperado. a de sublime repousa na ilimitação, tem dimensão" (sublime
De facto, -na época da Çrítica da Razão Pura: Kant não via matemático) ou (em potência (sublime dinâmico). Mas a nossa
lugar na filosofia para a estética, quer - afirmava ele então - se experiência de sublime é apenas parcialmente estética porque,
compreenda a estética no sentido psicológico de crítica do gos~o ao contrário da beleza, deve ser mediatizado pelas ideias da
ou de teoria do belo (como querem os ingleses e os franceses) E~zão e da moralidade (o sublime de uma tempestade na alta
e, então, ela entronca na antropologia e não na filosofia; quer montanha lembra ao homem o seu valor moral por contraste
fazendo dela uma disciplina autenticamente filos.ófi~a, que já com a sua fraqueza natural). O sublime é testemunho sensível,
~ão é uma doutrina do belo e do gosto, mas uma análise do «apresentação negativa» do irrepresentável, quer dizer, da Idei~.
espaço e do tempo como formas a priori rda sensibilidade' (é o Então, o respeito e a admiração misturam-se com o medo, o
sentido da parte da Crítica da Razão Pura intitulada «Estética' espírito é alternadamente atraído e repelido pelo objecto, daí r

transcendental» na qual Kant estuda a maneira comojos fenó-


menos acontecem): Por isso, a distinção nítida entre o empírico
". ---....,-
resulta uma satisfação muito particular que Kant designa como'
,«D~zer negativ~§
'

23).
e o transcendental operada por Kant nesta época da sua obra i as é outra coisa fazer a experiência da beleza (quer se trate

impede-o de constituir uma estética filosófica. / ' da beleza da natureza ou da de um produto da arte dos homens).
Todavia, Kant voltará a esta impossibilidade em 1790)ao É J!~mir prazer com a organização das qualidades sensíveis _da
escrever o texto que a tradição reteve, consagrou como um dos coisa. A..beleza não é uma propriedade dos objectos, mas um
....-----:
dois ou três maiores monumentos da disciplina e onde se trata ~.qua...1ili_cativo concedido aos objectos que provocam um prazer
do julgamento de gosto, do belo, do sublime, da arte e do géniç. ~~co_; por isso, ela só remete para a relação do sujeito e
Contudo, e uma vez mais, uma dificuldade aparece: Kant, que d_o_objecto~O juízo de gosto é, porém, um-jüí~ alguma
utiliza o termo uma única vez, não designa a sua obra com este coisa a propósito de alguma coisa), mas não é um juízo «deter-
termo. Em contrapartida, define o adjectivo «estético» como minante» ou «lógico» que, esse, supõe a posse de um conceito
~ue se refere à relação da representação não com o objecto, a que se reporta um objecto singular (possuindo eu o conceito
J.

46
~_É_T_Ic_A ~ . _ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA
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é menos verdade que este domínio autônomo é um domínio mas com _o_2ujeito».E o caso de um certo tipo de.julgamentQs.
de saber. A estética de Baumgarten p~.t!.l!-ªne_ce_-prisioneit:a.
do Pon~t~, o adjectivo qualifica esta espécie de julgam,ento e não (
modelo da lógica. - --- um campo de objectos. É esta categoria de juízos que estará no
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centro da investigação.
, A primeira parte da Críticq da Faculdade do juízo examina a
IV. - O momento kantiano .questão que atravessa o século: saber como é que o juízo estético

--
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que é subjectivo pode, não obstante, ter uma validade univer-
Embora na obra de Kant se encontrem reflexões esparsas saL Existem duas grandes categorias de juízos estéticos: as que
sobre temas estéticos desde os anos 1750 e terem aparecido, se ocupam da beleta (são os juízos
-
de gosto) e as que se referem -
em 1764, as suas Observações sobre o Se;timento do Belo e do àõ sublime, sendo a diferença essencial entre elas consiste em
Sublime, o grande texto fundador que é a Crítica da Faculdade (;", beleza repousar nas formas espaciais e temporais dos objectos
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do juízo só v~a o dia em ~ e este aparecimento pode, na (portanto, no que é limitado no espaço e no tempo), enquanto
perspectiva do que Kant escrevia em 1781, parecer inesperado. a de sublime repousa na ilimitação, tem dimensão" (sublime
De facto, -na época da Çrítica da Razão Pura: Kant não via matemático) ou (em potência (sublime dinâmico). Mas a nossa
lugar na filosofia para a estética, quer - afirmava ele então - se experiência de sublime é apenas parcialmente estética porque,
compreenda a estética no sentido psicológico de crítica do gos~o ao contrário da beleza, deve ser mediatizado pelas ideias da
ou de teoria do belo (como querem os ingleses e os franceses) E~zão e da moralidade (o sublime de uma tempestade na alta
e, então, ela entronca na antropologia e não na filosofia; quer montanha lembra ao homem o seu valor moral por contraste
fazendo dela uma disciplina autenticamente filos.ófi~a, que já com a sua fraqueza natural). O sublime é testemunho sensível,
~ão é uma doutrina do belo e do gosto, mas uma análise do «apresentação negativa» do irrepresentável, quer dizer, da Idei~.
espaço e do tempo como formas a priori rda sensibilidade' (é o Então, o respeito e a admiração misturam-se com o medo, o
sentido da parte da Crítica da Razão Pura intitulada «Estética' espírito é alternadamente atraído e repelido pelo objecto, daí r

transcendental» na qual Kant estuda a maneira comojos fenó-


menos acontecem): Por isso, a distinção nítida entre o empírico
". ---....,-
resulta uma satisfação muito particular que Kant designa como'
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23).
e o transcendental operada por Kant nesta época da sua obra i as é outra coisa fazer a experiência da beleza (quer se trate

impede-o de constituir uma estética filosófica. / ' da beleza da natureza ou da de um produto da arte dos homens).
Todavia, Kant voltará a esta impossibilidade em 1790)ao É J!~mir prazer com a organização das qualidades sensíveis _da
escrever o texto que a tradição reteve, consagrou como um dos coisa. A..beleza não é uma propriedade dos objectos, mas um
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dois ou três maiores monumentos da disciplina e onde se trata ~.qua...1ili_cativo concedido aos objectos que provocam um prazer
do julgamento de gosto, do belo, do sublime, da arte e do géniç. ~~co_; por isso, ela só remete para a relação do sujeito e
Contudo, e uma vez mais, uma dificuldade aparece: Kant, que d_o_objecto~O juízo de gosto é, porém, um-jüí~ alguma
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~ue se refere à relação da representação não com o objecto, a que se reporta um objecto singular (possuindo eu o conceito
J.

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~_É_T_Ic_A ~ __ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

de triângulo, posso dizer se esta figura concreta que vejo é ou O, desinteresse _permite compreender i.estranha pretensão
não um triângulo). Q_juízo_go_gºsto....não_é,_12o~um juízo de I ~ universalidade d0lfu1~o ae g<:stq, pretensão que o distingue
conhecimento!
' J
De facto,_ no conhecimento, C Iõ ent~dime;to dos juízos sobre o agradável (se eu admitir que se pode preferir
legisla pelos seus conceitos le\~imaginação esquematiza, ou seja, os morangos às cerejas, não posso impedir-me de pensar que
fornece a um conceito a sua imagem sensível [o esquema é um os outros devem achar belo aquilo que eu julgo belo). Dizer
elemento intermediário, simultaneamente homogéneo do ele- que uma coisa é bela é supor que os outros a acham bela, é
mento intelectual (conceito) e do elemento sensível (a intuiçâoj], acreditar que ela provoca em outrem o mesmo prazer que
I.. I
Mas, na experiência estética da beleza, só existe o particular; em mim. O desinteresse permite compreender esta pretensão
, '\ '<r.] então, a faculdade de julgar chama-se «reflexiva», quer dizer; sempre renascente, embora frequentemente desmentida pelos
\ '.., ~ reporta a representação ao sujeito e ao seu sentimento. Sente-se ~ É verdade que os juízos de gosto não são, de facto, J
o estado em que o espírito é colocado - neste caso, sente-se o .!:!,niversais,mas não podemos deixar de crer que podem sê-lo.
, processo liberto das faculdades: o entendimento não legisla p'~r Não pre<Ií:zem uma reacção similar à nossa, mas fr~tenâenL\
conceito e a imaginação já não tem que esquematizar. O seu que a reacção dos outrosería se~ semelhante à nossa. Este
exercício é diferente do comum e daí resulta um prazer. Por «dever», porém, é muito diferente do dever de juízo prático que
isso, o juízo de gosto repousa num sentimento de prazer Slu
-, , desprazer e, neste sentido, é subjectivo, Tais juízos não pode: )
~~:--_.-:
repousa no conceito .. ~ de um fim (assim, no domínio da moral,
é porque é preciso considerar outrem como um fim e nunca
ser verdadeiros ou falsos. Contrariamente ao que Baumgarten o como um meio que não posso mentir).I0 belo é independen_te
afirmava, não buscam nenhum saber no objecto. . de qualquer conceito: julgar o belo não é estabelecer a proxi-
~as ~~ que prazer se trata? Kant recusa o empirismo de~ midade em relação àquilo que a coisa deve ser (isto vale paraas
Hume que definia o belo pelo agradável, tA._como recusa, o ~f' belezas a que Kant chama «aderentes», isto é, relativas a upa
intelectualismo de Baumgarten que o definia pela perfeição. cqnce.p..çfu4préyia daquilo que o objecto deve ser, e não par~
O que é g~~~ste prazer que não deve ser confurulido as belezas ditas «livrese qüe são o objecto da análise kantiana).
com.!l:.~12I~s satisfação sensual? A quest~o é decisiva: com- Sente-se que o objecto é confor~e deve ser, mas não se sabe
preender a natureza do prazer estético é compreender a beleza. como deve ser; tal é esta ,fj.nalidade sem fim, que constitui a
Kant estabelece em primeiro lugar aquilo que ele não é: não é terceira característica do juízo de gosto. O último momento da
o prazer do agradável nem o prazer motivado pelo bem. Dife-
---
renternente destes, o prazer estético não está ligado à satisfação
de um interesse pessoal, intelectual ou moral. (tdesin~eres-)
análise estuda a quarta e derradeira característica deste juízo de
gosto: a sua necessidade livre.
Aquilo a que se chama a estética kantiana consiste, por-
, .sado. Kant estabelece aqui uma noção capital cujos primeiros tanto, na análise transcendental do juízo de gosto que exprime
vestígios encontrámos em Shaftesbury e que continua a ser a experiência estética da beleza sensível.
,. :-_..,.._"
percorrida e discutida (pensemos no debate que, nos anos ses- " ,;I
v
senta do século xx; opôs Jerome Stolnitz a George Dickíe), De
facto, estabelecer a existência de um prazer desinteressado é
estabelecer, a autonomia do valor estético." . J
./

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~_É_T_Ic_A ~ __ II - NASCIMENTO DA ESTÉTICA

de triângulo, posso dizer se esta figura concreta que vejo é ou O, desinteresse _permite compreender i.estranha pretensão
não um triângulo). Q_juízo_go_gºsto....não_é,_12o~um juízo de I ~ universalidade d0lfu1~o ae g<:stq, pretensão que o distingue
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De facto,_ no conhecimento, C Iõ ent~dime;to dos juízos sobre o agradável (se eu admitir que se pode preferir
legisla pelos seus conceitos le\~imaginação esquematiza, ou seja, os morangos às cerejas, não posso impedir-me de pensar que
fornece a um conceito a sua imagem sensível [o esquema é um os outros devem achar belo aquilo que eu julgo belo). Dizer
elemento intermediário, simultaneamente homogéneo do ele- que uma coisa é bela é supor que os outros a acham bela, é
mento intelectual (conceito) e do elemento sensível (a intuiçâoj], acreditar que ela provoca em outrem o mesmo prazer que
I.. I
Mas, na experiência estética da beleza, só existe o particular; em mim. O desinteresse permite compreender esta pretensão
, '\ '<r.] então, a faculdade de julgar chama-se «reflexiva», quer dizer; sempre renascente, embora frequentemente desmentida pelos
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o estado em que o espírito é colocado - neste caso, sente-se o .!:!,niversais,mas não podemos deixar de crer que podem sê-lo.
, processo liberto das faculdades: o entendimento não legisla p'~r Não pre<Ií:zem uma reacção similar à nossa, mas fr~tenâenL\
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exercício é diferente do comum e daí resulta um prazer. Por «dever», porém, é muito diferente do dever de juízo prático que
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repousa no conceito .. ~ de um fim (assim, no domínio da moral,
é porque é preciso considerar outrem como um fim e nunca
ser verdadeiros ou falsos. Contrariamente ao que Baumgarten o como um meio que não posso mentir).I0 belo é independen_te
afirmava, não buscam nenhum saber no objecto. . de qualquer conceito: julgar o belo não é estabelecer a proxi-
~as ~~ que prazer se trata? Kant recusa o empirismo de~ midade em relação àquilo que a coisa deve ser (isto vale paraas
Hume que definia o belo pelo agradável, tA._como recusa, o ~f' belezas a que Kant chama «aderentes», isto é, relativas a upa
intelectualismo de Baumgarten que o definia pela perfeição. cqnce.p..çfu4préyia daquilo que o objecto deve ser, e não par~
O que é g~~~ste prazer que não deve ser confurulido as belezas ditas «livrese qüe são o objecto da análise kantiana).
com.!l:.~12I~s satisfação sensual? A quest~o é decisiva: com- Sente-se que o objecto é confor~e deve ser, mas não se sabe
preender a natureza do prazer estético é compreender a beleza. como deve ser; tal é esta ,fj.nalidade sem fim, que constitui a
Kant estabelece em primeiro lugar aquilo que ele não é: não é terceira característica do juízo de gosto. O último momento da
o prazer do agradável nem o prazer motivado pelo bem. Dife-
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de um interesse pessoal, intelectual ou moral. (tdesin~eres-)
análise estuda a quarta e derradeira característica deste juízo de
gosto: a sua necessidade livre.
Aquilo a que se chama a estética kantiana consiste, por-
, .sado. Kant estabelece aqui uma noção capital cujos primeiros tanto, na análise transcendental do juízo de gosto que exprime
vestígios encontrámos em Shaftesbury e que continua a ser a experiência estética da beleza sensível.
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percorrida e discutida (pensemos no debate que, nos anos ses- " ,;I
v
senta do século xx; opôs Jerome Stolnitz a George Dickíe), De
facto, estabelecer a existência de um prazer desinteressado é
estabelecer, a autonomia do valor estético." . J
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CAPÍTULO IH

AS TEORIAS FILOSÓFICAS

...
DA ARTE

',,~
~J/~

E nquanto o século XVIII tratava tanto do belo


natural como do belo artístico (Burke, Du Bos
ou Kant consideram até que o juízo de gosto é
mais puro quando o seu sujeito é natural porque não se
misturam nisso considerações sobre a intencionalidade artís-
tica), na época seguinte é a arte que monopoliza a atenção
da reflexão estética. Hegel escreve, sintomaticamente: «O
objecto da estética é o vasto reino do belo e o seu domínio,
a arte.» Observando imediatamente que a palavra «estética»
não convém, dada a sua etimologia e ~ recente definição de
«ciência do sentir» que dela foi dada por Baumgarten, pre-
fere a expressão «filosofia da arte)).lEsta posição hegeliana é
paradigmática de uma época em que a estética se transforma I
< ~~o~ofia da arte.
Esta expressão «filosofia da arte» é rica pela sua própria
ambiguidade. D~ facto, consoante o significado que se der ao
«da»: «sobre a, acerca da» ou «que pertence à», assim se obtêm
duas interpretações da expressáo «filosofia da arte» entre as
quais hesita todo este período que se estende desde finais do
século XVIII a meados do século xx.
No primeiro sentido dado a «da», a filosofia da arte é filo-
sofia a propósito, acerca, sobre a arte, tomando a arte como
objecto da sua reflexão. Foi o que fizeram Aristóteles ou Mar-
sílio Ficino (com a reserva de que a arte da altura não tinha
o sentido moderno que hoje lhe damos), e também o que faz
Hume no seu ensaio Sobre a Tragédia ou Kant nos §§ 43 a 'i4
da ~Crítica da Faculdade do juízo. É o que farão igualmente
, .
Hegel e Schopenhauer, mas de maneira absolutamente inédita

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CAPÍTULO IH

AS TEORIAS FILOSÓFICAS

...
DA ARTE

',,~
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E nquanto o século XVIII tratava tanto do belo


natural como do belo artístico (Burke, Du Bos
ou Kant consideram até que o juízo de gosto é
mais puro quando o seu sujeito é natural porque não se
misturam nisso considerações sobre a intencionalidade artís-
tica), na época seguinte é a arte que monopoliza a atenção
da reflexão estética. Hegel escreve, sintomaticamente: «O
objecto da estética é o vasto reino do belo e o seu domínio,
a arte.» Observando imediatamente que a palavra «estética»
não convém, dada a sua etimologia e ~ recente definição de
«ciência do sentir» que dela foi dada por Baumgarten, pre-
fere a expressão «filosofia da arte)).lEsta posição hegeliana é
paradigmática de uma época em que a estética se transforma I
< ~~o~ofia da arte.
Esta expressão «filosofia da arte» é rica pela sua própria
ambiguidade. D~ facto, consoante o significado que se der ao
«da»: «sobre a, acerca da» ou «que pertence à», assim se obtêm
duas interpretações da expressáo «filosofia da arte» entre as
quais hesita todo este período que se estende desde finais do
século XVIII a meados do século xx.
No primeiro sentido dado a «da», a filosofia da arte é filo-
sofia a propósito, acerca, sobre a arte, tomando a arte como
objecto da sua reflexão. Foi o que fizeram Aristóteles ou Mar-
sílio Ficino (com a reserva de que a arte da altura não tinha
o sentido moderno que hoje lhe damos), e também o que faz
Hume no seu ensaio Sobre a Tragédia ou Kant nos §§ 43 a 'i4
da ~Crítica da Faculdade do juízo. É o que farão igualmente
, .
Hegel e Schopenhauer, mas de maneira absolutamente inédita

51
~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE

que convirá analisar com rigor. Aqui, a arte é objecto de estudo o romantismo opõe a sua nostalgia da unidade dos diferentes
para a filosofia. domínios da vida encarnada pela bela totalidade grega e a
Mas a expressão «filosofia da arte>, também pode significar sua necessidade metafísica. Mas pensa-se que há um meio de
que um pensamento brote da arte, que possui a sua própria contornar o interdito kantiano a respeito da ontoteologia: é
filosofia. Não se trata da teorização de uma prática (como acon- confiar a tarefa deste saber à arte. O que a filosofia é incapaz
tece no Tratado da Pintura de Leonardo. da Vinci) nem de um de alcançar, consegue-o a arte. Onde a discursividade filosófica
discurso explicando e justificando uma obra ou um movimento mostra os seus limites, a arte pode continuar.
(textos de Zola sobre o romance experimental, manifestos do Portanto, a revolução romântica consiste, primeiro, numa\
surrealismo ou do futurismo) nem de um discurso de artista nova maneira de pensar a arte; ela não é nem actividade pro-
com reflexões gerais sobre a arte (textos de Duchamp reunidos dutora nem ornamento nem jogo ou divertimento, é conheci-
sob o título Duchamp du Signe). Trata-se de um discurso filo- mento. A arte está investida de uma grande missão: espera-se
sófico que estaria contido na própria arte. dela o regresso à unidade perdida. Num fundo de dessacrali-
Aqui, neste período da estética concebida como filosofia da zação do mundo, a arte é sacralizada.
arte, distinguir-se-ão três configurações das relações da arte e O romantismo também significa uma nova maneira de pen-
da filosofia: as duas primeiras correspondem aos dois sentidos sar a filosofia, entendamos a filosofia que deve surgir da arte:
da expressão «filosofia da arte" que acabámos de distinguir; a já não é um método de investigação racional, um pensamento
terceira caracteriza-se pela afirmação de uma identidade fun- discursivo e conceptual, mas uma espécie de saber intuitivo
damental da arte e da filosofia. e absoluto. Ao contrário de Platão que expulsa Homero da
ci~e ideal em nome das exigências da verdade e da razão, o
romantismo tem por modelos os poetas filósofos pré-socráticos,
1. - A estética como discurso da arte corno Heráclito ou Parménides.
'-- Esta subversão das categorias tradicionais da arte e da filoso-
1. O romantismo alemão, - É o romantismo que levará fia afecta .a da estética que acaba em discurso da arte no sentido
mais longe o tema do estatuto filosófico da arte. Temos de ir
'

de um discurso que procede da própria arte e esta conclusão


direitos ao primeiro romantismo, o de rena, onde toda a sequên- é considerada simultaneamente como uma destruição e uma
cia europeia do movimento mergulhará as suas raízes teóricas. apoteose.
Jean-Marie Schaeffer mostrou como a revolução romântica foi A estética dos românticos de rena (Novalis, os irmãos Schle-
uma resposta a uma situação de crise: as Luzes puseram em gel, Schleiermacher, Schelling, Tieck, etc.) está disseminada em
causa os fundamentos religiosos do real e o criticismo kantiano numerosos textos entre os quais se citará os Fragmentos Críticos
minou os fundamentos transcendentes da filosofia (L/Irt de (1797-1800) de F. Schlegel, A Filosofia da Arte de Schelling
i~ge- M~dern~, 1992). De facto, Kant estabeleceu a impossibi- (1802-1803) e a revista Athenaeum, fundada em 1798, que foi
lidade de o homem ter ~;o .a-um conhecimento do se~;-de o órgão teórico deste pensamento.
Deus (Ideias da razão), que, doravante, só podem ser objecto Na obra abundante e inacabada de Novalis, lê-se a tomada
de crença. A esta seca filosofia dos limites do conhecimento, de consciência da incompatibilidade do romantismo e do

52 53
~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE

que convirá analisar com rigor. Aqui, a arte é objecto de estudo o romantismo opõe a sua nostalgia da unidade dos diferentes
para a filosofia. domínios da vida encarnada pela bela totalidade grega e a
Mas a expressão «filosofia da arte>, também pode significar sua necessidade metafísica. Mas pensa-se que há um meio de
que um pensamento brote da arte, que possui a sua própria contornar o interdito kantiano a respeito da ontoteologia: é
filosofia. Não se trata da teorização de uma prática (como acon- confiar a tarefa deste saber à arte. O que a filosofia é incapaz
tece no Tratado da Pintura de Leonardo. da Vinci) nem de um de alcançar, consegue-o a arte. Onde a discursividade filosófica
discurso explicando e justificando uma obra ou um movimento mostra os seus limites, a arte pode continuar.
(textos de Zola sobre o romance experimental, manifestos do Portanto, a revolução romântica consiste, primeiro, numa\
surrealismo ou do futurismo) nem de um discurso de artista nova maneira de pensar a arte; ela não é nem actividade pro-
com reflexões gerais sobre a arte (textos de Duchamp reunidos dutora nem ornamento nem jogo ou divertimento, é conheci-
sob o título Duchamp du Signe). Trata-se de um discurso filo- mento. A arte está investida de uma grande missão: espera-se
sófico que estaria contido na própria arte. dela o regresso à unidade perdida. Num fundo de dessacrali-
Aqui, neste período da estética concebida como filosofia da zação do mundo, a arte é sacralizada.
arte, distinguir-se-ão três configurações das relações da arte e O romantismo também significa uma nova maneira de pen-
da filosofia: as duas primeiras correspondem aos dois sentidos sar a filosofia, entendamos a filosofia que deve surgir da arte:
da expressão «filosofia da arte" que acabámos de distinguir; a já não é um método de investigação racional, um pensamento
terceira caracteriza-se pela afirmação de uma identidade fun- discursivo e conceptual, mas uma espécie de saber intuitivo
damental da arte e da filosofia. e absoluto. Ao contrário de Platão que expulsa Homero da
ci~e ideal em nome das exigências da verdade e da razão, o
romantismo tem por modelos os poetas filósofos pré-socráticos,
1. - A estética como discurso da arte corno Heráclito ou Parménides.
'-- Esta subversão das categorias tradicionais da arte e da filoso-
1. O romantismo alemão, - É o romantismo que levará fia afecta .a da estética que acaba em discurso da arte no sentido
mais longe o tema do estatuto filosófico da arte. Temos de ir
'

de um discurso que procede da própria arte e esta conclusão


direitos ao primeiro romantismo, o de rena, onde toda a sequên- é considerada simultaneamente como uma destruição e uma
cia europeia do movimento mergulhará as suas raízes teóricas. apoteose.
Jean-Marie Schaeffer mostrou como a revolução romântica foi A estética dos românticos de rena (Novalis, os irmãos Schle-
uma resposta a uma situação de crise: as Luzes puseram em gel, Schleiermacher, Schelling, Tieck, etc.) está disseminada em
causa os fundamentos religiosos do real e o criticismo kantiano numerosos textos entre os quais se citará os Fragmentos Críticos
minou os fundamentos transcendentes da filosofia (L/Irt de (1797-1800) de F. Schlegel, A Filosofia da Arte de Schelling
i~ge- M~dern~, 1992). De facto, Kant estabeleceu a impossibi- (1802-1803) e a revista Athenaeum, fundada em 1798, que foi
lidade de o homem ter ~;o .a-um conhecimento do se~;-de o órgão teórico deste pensamento.
Deus (Ideias da razão), que, doravante, só podem ser objecto Na obra abundante e inacabada de Novalis, lê-se a tomada
de crença. A esta seca filosofia dos limites do conhecimento, de consciência da incompatibilidade do romantismo e do

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~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSOFIcAS DA ARTE

cnticrsrno.o poeta interessa-se pelo ser e não pelos funda- a estética como uma região da filosofia seria absurdamente
mentos e as condições do saber. Para ele, trata-se de ultrapas- limitado: «Portanto, na filosofia da arte, não começo por
sar o eu empírico, de sair da finitude do sujeito a que Kant construir a arte como arte, com este particular, mas construo
tinha condenado o homem. A arte permite essa saída para fora o universo na figura da arte e a ciência da arte é ciência do
de si. A poesia tem, no interior da arte, um estatuto privile- Todo na forma ou a potência da arte»
giado; é «consciência de si do universo», apresentação da vida.
- É a ela que está confiada a tarefa de realizar a filosofia.
O tema da poetização da filosofia é retomado por Frie- lI. - A estética como discurso sobre a arte
drich Schlegel: «Uma filosofia da poesia em geral [...] osci-
laria entre a união e a separação da filosofia e da poesia, da 1. Hegel. - _Hegel recusa à estética todo o campo do sen-
poesia em geral e dos géneros e espécies, e terminaria pela sua sível que lhe está atribuído pela etimologia: «O seu domínio
união total» (Athenaeum. 252). Porque a poesia está no cume - declara -, (é) a arte.» Também prefere, como dizíamos atrás,
das artes: todas as artes não verbais se reduzem à literatura, e o título de «filosofia da arte». Todavia, é com o nome de Curso
a poesia é a essência dela. Aliás, a poesia, género romântico de Estética que o seu ensino na Universidade de Berlim nos
por excelência, é mais do que um género artístico. Porque anos de 1818 a 1830 foi publicado e domina o campo da disci-
o seu conteúdo é o ser sob as suas diferentes determinações plina como um dos seus textos-chave. A esta primeira redução
(o infinito, a natureza, a humanidade, o bem, o belo ...). junta-se uma segunda: a §ua filosofia da arte não se interessará
Depois, Schlegel procede à redução da diferença entre a pela recepção das obras, pela experiência, pelo prazer ou pelo
filosofia e a poesia: «O que não poderia ser resumido num j~í~o estéticos: não é uma crítica do gosto. Enquanto a estética
conceito, deixa-se talvez apresentar numa imagem; e, assim, kantiana se concentra nas características da experiência estética
a necessidade do conhecimento leva à apresentação, leva a que a diferenciam de outras experiências (a do conhecimento
filosofia à poesia.» ou da acçâo), a estética hegeliana sublinha os significados e os
Compreende-se, então, que A Filosofia da Arte (1802-1803) conteúdos das obras. .
de Schelling pretenda ser não uma reflexão sobre a arte, mas Esta dupla redução da estética explica-se quando a repor-
uma compreensão de todo o universo no elemento da arte. tamos aos princípios da filosofia hegeliana. Compreender-se-á
Por isso, é muito crítico relativamente à estética precedente: porque se trata de uma estética dos conteúdos das obras de
recusa a psicologia empírica do século XVIII francês e inglês, arte e o que são estes conteúdos, ao considerar o conjunto do
classifica as poéticas filosóficas do género da de Aristóteles sistema. Porque a reflexão hegeliana sobre a arte inscreve-se
de «livros de cozinha» e julga que a obra de Kant «não tem no contexto de uma metafísica global. O conteúdo da arte é o
espírito». Schelling pretende substituir estas teorias das belas- absoluto, a verdade do ser. A arte é uma das figuras do espírito,
-artes e estas estéticas por «uma doutrina científica e filosófica o lugar da revelação sensível do absoluto. Mas esta revelação
da arte». É que esta revela a forma em que o absoluto ao sair do espírito é progressiva. Por conseguinte, a arte deve situar-se
da sua noite se manifesta, forma que, com o nome de Ideia, no interior de uma evolução que a ultrapassa e que é a odisseia
constitui o objecto da filosofia. Consequentemente, pensar do espírito.

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~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSOFIcAS DA ARTE

cnticrsrno.o poeta interessa-se pelo ser e não pelos funda- a estética como uma região da filosofia seria absurdamente
mentos e as condições do saber. Para ele, trata-se de ultrapas- limitado: «Portanto, na filosofia da arte, não começo por
sar o eu empírico, de sair da finitude do sujeito a que Kant construir a arte como arte, com este particular, mas construo
tinha condenado o homem. A arte permite essa saída para fora o universo na figura da arte e a ciência da arte é ciência do
de si. A poesia tem, no interior da arte, um estatuto privile- Todo na forma ou a potência da arte»
giado; é «consciência de si do universo», apresentação da vida.
- É a ela que está confiada a tarefa de realizar a filosofia.
O tema da poetização da filosofia é retomado por Frie- lI. - A estética como discurso sobre a arte
drich Schlegel: «Uma filosofia da poesia em geral [...] osci-
laria entre a união e a separação da filosofia e da poesia, da 1. Hegel. - _Hegel recusa à estética todo o campo do sen-
poesia em geral e dos géneros e espécies, e terminaria pela sua sível que lhe está atribuído pela etimologia: «O seu domínio
união total» (Athenaeum. 252). Porque a poesia está no cume - declara -, (é) a arte.» Também prefere, como dizíamos atrás,
das artes: todas as artes não verbais se reduzem à literatura, e o título de «filosofia da arte». Todavia, é com o nome de Curso
a poesia é a essência dela. Aliás, a poesia, género romântico de Estética que o seu ensino na Universidade de Berlim nos
por excelência, é mais do que um género artístico. Porque anos de 1818 a 1830 foi publicado e domina o campo da disci-
o seu conteúdo é o ser sob as suas diferentes determinações plina como um dos seus textos-chave. A esta primeira redução
(o infinito, a natureza, a humanidade, o bem, o belo ...). junta-se uma segunda: a §ua filosofia da arte não se interessará
Depois, Schlegel procede à redução da diferença entre a pela recepção das obras, pela experiência, pelo prazer ou pelo
filosofia e a poesia: «O que não poderia ser resumido num j~í~o estéticos: não é uma crítica do gosto. Enquanto a estética
conceito, deixa-se talvez apresentar numa imagem; e, assim, kantiana se concentra nas características da experiência estética
a necessidade do conhecimento leva à apresentação, leva a que a diferenciam de outras experiências (a do conhecimento
filosofia à poesia.» ou da acçâo), a estética hegeliana sublinha os significados e os
Compreende-se, então, que A Filosofia da Arte (1802-1803) conteúdos das obras. .
de Schelling pretenda ser não uma reflexão sobre a arte, mas Esta dupla redução da estética explica-se quando a repor-
uma compreensão de todo o universo no elemento da arte. tamos aos princípios da filosofia hegeliana. Compreender-se-á
Por isso, é muito crítico relativamente à estética precedente: porque se trata de uma estética dos conteúdos das obras de
recusa a psicologia empírica do século XVIII francês e inglês, arte e o que são estes conteúdos, ao considerar o conjunto do
classifica as poéticas filosóficas do género da de Aristóteles sistema. Porque a reflexão hegeliana sobre a arte inscreve-se
de «livros de cozinha» e julga que a obra de Kant «não tem no contexto de uma metafísica global. O conteúdo da arte é o
espírito». Schelling pretende substituir estas teorias das belas- absoluto, a verdade do ser. A arte é uma das figuras do espírito,
-artes e estas estéticas por «uma doutrina científica e filosófica o lugar da revelação sensível do absoluto. Mas esta revelação
da arte». É que esta revela a forma em que o absoluto ao sair do espírito é progressiva. Por conseguinte, a arte deve situar-se
da sua noite se manifesta, forma que, com o nome de Ideia, no interior de uma evolução que a ultrapassa e que é a odisseia
constitui o objecto da filosofia. Consequentemente, pensar do espírito.

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~_É_T_Ic_A _ IH - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE

A arte é o primeiro momento desta odisseia, a primeira maneira a fazer dele um veículo para o espírito. Mas este está
etapa num processo histórico de sucessão das figuras do espí- mais ou menos à vontade nos diferentes materiais sensíveis das
rito. Devem suceder-lhe a religião e a filosofia. Porque a arte artes. Igualmente a história das formas da arte combina com
partilha o seu conteúdo com elas: a arte é apresentação sensí- as destes géneros.
vel do Absoluto; a religião é consciência interior do Absoluto; Assim, a arte simbólica acontece de maneira privilegiada
a filosofia é o Absoluto pensando-se a si mesmo. Portanto, a na arquitectura do Egipto e da Índia antigos e também na
arte é chamada a ser superada por um pensamento que já não escultura destas culturas que representa animais, seres mons-
terá necessidade da forma sensível para aparecer. Compreende- truosos ou figuras humanas inexpressivas. Se esta arte é quali-
-se porque é que esta ~stética exclui a beleza natural e só se ficada como simbólica é porque há entre o conteúdo e a forma
interessa pela beleza dos objectos de arte. É porque a marca do do símbolo uma relação não injustificada, mas inadequada: é
espírito do homem neles os torna infinitamente superiores: «A preferível escolher a raposa em vez da galinha para simbolizar
pior ideia que atravessa o espírito de um homem é melhor e a astúcia, mas vai uma distância enorme entre a figura do
mais elevada do que a maior produção da natureza, justamente animal e o conceito. Na arte simbólica, do mesmo modo, há
porque participa do espírito e porque o espiritual é superior ao inadequação entre a realidade sensível e o conteúdo espiritual
natural.» que ela quer exprimir, por exemplo entre a maciça pirâmide de
Portanto, a arte constitui a primeira etapa da odisseia do pedra e a alma do defunto que nela repousa. A representação
espírito durante a qual ele triunfa da separação entre exteriori- da ideia é exterior ao seu conteúdo. É certo que o espírito está
dade e interioridade, entre natureza finita e liberdade infinita mais ou menos à sua vontade na matéria-prima arquitectural:
do pensamento. A arte realiza esta conciliação, ao espiritualizar a pirâmide maciça está muito afastada da catedral gótica, em
o sensível e ao tornar sensível o inteligível. A obra é unidade que a pedra é quase desmaterializada pela luz. Mas sob as suas
do sensível e do espiritual. formas anteriores à Antiguidade grega, a arquitectura, que é
Assim como situa a arte no interior de um devir que o a arte mais ligada às constrições do mundo material, é a arte
supera largamente, assim também Hegel vê as obras desta por excelência da inadequação da forma sensível e do conteúdo
arte na história interna dela. Ele distingue três formas de arte ideal.
que correspondem a períodos históricos desde a Antiguidade Em contrapartida, na arte clássica, a forma «encarna livre
egípcia até à modernidade: a arte simbólica (cujo paradigma e adequadamente a idéia». O género de eleição desta segunda
é a arte religiosa da Índia e do Egipto antigos), a arte clássica forma de arte é a escultura e o seu modelo histórico, a esta-
(arte da Grécia antiga) e arte romântica (que abarca um período tuária grega clássica. Diferentemente da escultura primitiva,
que vai da Idade Média à época de Hegel). Cada uma destas ela já não representa um bestiário fantástico, mas deuses e
formas caracteriza-se por uma relação particular da ideia com homens. O antropomorfismo desta forma de arte constitui
a forma sensível. um momento necessário da manifestação do espírito, porque
Cada um destes períodos encarna a sua especificidade num este só pode aparecer de maneira satisfatória no sensível sob a
ou em vários géneros artísticos paradigmáticos. Porque cada forma do humano. A matéria (a pedra, o mármore) está aqui
arte tem um meio material específico que o artista domina de bem presente, mas é para representar o espírito encarnado que

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~_É_T_Ic_A _ IH - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE

A arte é o primeiro momento desta odisseia, a primeira maneira a fazer dele um veículo para o espírito. Mas este está
etapa num processo histórico de sucessão das figuras do espí- mais ou menos à vontade nos diferentes materiais sensíveis das
rito. Devem suceder-lhe a religião e a filosofia. Porque a arte artes. Igualmente a história das formas da arte combina com
partilha o seu conteúdo com elas: a arte é apresentação sensí- as destes géneros.
vel do Absoluto; a religião é consciência interior do Absoluto; Assim, a arte simbólica acontece de maneira privilegiada
a filosofia é o Absoluto pensando-se a si mesmo. Portanto, a na arquitectura do Egipto e da Índia antigos e também na
arte é chamada a ser superada por um pensamento que já não escultura destas culturas que representa animais, seres mons-
terá necessidade da forma sensível para aparecer. Compreende- truosos ou figuras humanas inexpressivas. Se esta arte é quali-
-se porque é que esta ~stética exclui a beleza natural e só se ficada como simbólica é porque há entre o conteúdo e a forma
interessa pela beleza dos objectos de arte. É porque a marca do do símbolo uma relação não injustificada, mas inadequada: é
espírito do homem neles os torna infinitamente superiores: «A preferível escolher a raposa em vez da galinha para simbolizar
pior ideia que atravessa o espírito de um homem é melhor e a astúcia, mas vai uma distância enorme entre a figura do
mais elevada do que a maior produção da natureza, justamente animal e o conceito. Na arte simbólica, do mesmo modo, há
porque participa do espírito e porque o espiritual é superior ao inadequação entre a realidade sensível e o conteúdo espiritual
natural.» que ela quer exprimir, por exemplo entre a maciça pirâmide de
Portanto, a arte constitui a primeira etapa da odisseia do pedra e a alma do defunto que nela repousa. A representação
espírito durante a qual ele triunfa da separação entre exteriori- da ideia é exterior ao seu conteúdo. É certo que o espírito está
dade e interioridade, entre natureza finita e liberdade infinita mais ou menos à sua vontade na matéria-prima arquitectural:
do pensamento. A arte realiza esta conciliação, ao espiritualizar a pirâmide maciça está muito afastada da catedral gótica, em
o sensível e ao tornar sensível o inteligível. A obra é unidade que a pedra é quase desmaterializada pela luz. Mas sob as suas
do sensível e do espiritual. formas anteriores à Antiguidade grega, a arquitectura, que é
Assim como situa a arte no interior de um devir que o a arte mais ligada às constrições do mundo material, é a arte
supera largamente, assim também Hegel vê as obras desta por excelência da inadequação da forma sensível e do conteúdo
arte na história interna dela. Ele distingue três formas de arte ideal.
que correspondem a períodos históricos desde a Antiguidade Em contrapartida, na arte clássica, a forma «encarna livre
egípcia até à modernidade: a arte simbólica (cujo paradigma e adequadamente a idéia». O género de eleição desta segunda
é a arte religiosa da Índia e do Egipto antigos), a arte clássica forma de arte é a escultura e o seu modelo histórico, a esta-
(arte da Grécia antiga) e arte romântica (que abarca um período tuária grega clássica. Diferentemente da escultura primitiva,
que vai da Idade Média à época de Hegel). Cada uma destas ela já não representa um bestiário fantástico, mas deuses e
formas caracteriza-se por uma relação particular da ideia com homens. O antropomorfismo desta forma de arte constitui
a forma sensível. um momento necessário da manifestação do espírito, porque
Cada um destes períodos encarna a sua especificidade num este só pode aparecer de maneira satisfatória no sensível sob a
ou em vários géneros artísticos paradigmáticos. Porque cada forma do humano. A matéria (a pedra, o mármore) está aqui
arte tem um meio material específico que o artista domina de bem presente, mas é para representar o espírito encarnado que

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~_É_T_Ic_A __ UI - AS TEORIAS FILOs6FIcAS DA ARTE

é o homem. É por isso que este momento clássico representa como o Absoluto é o logos, é na filosofia que ele está no seu
um ponto de perfeição da arte. Nele se realiza um equilíbrio elemento verdadeiro. Hegel vê sinais deste devir geral na arte
inultrapassável entre exterioridade e interioridade. Mas, na do seu tempo: o discurso está em excesso sobre o' sensível e
perspectiva das exigências do devir do espírito, falta-lhe ainda a reflexão crítica que se desenvolve em redor da arte atinge
«a vida da subjectividade interior». os próprios artistas. Isto mostra bem que a arte perdeu a
Ela manifestar-se-á na terceira forma da arte, o seu momento sua função especulativa, que cumpriu a sua tarefa ontológica:
romântico. Nele, o espírito manifesta-se como subjectividade «Quanto à sua finalidade suprema, a arte é para nós uma coisa
infinita e interioridade absoluta. Esta arte romântica inicia-se do passado.» Tornou-se objecto de estudo: o mundo da arte,
pela arte cristã, depois seculariza-se progressivamente. Os géne- as suas obras, as suas instituições e as suas teorias são objecto
ros artísticos particularmente adequados a esta forma artística de uma hermenêutica que permite conhecer os povos e as suas
são a pintura, a música e a poesia. De uma a outra destas artes, culturas. A idade da arte acabou; a da filosofia da arte pode
a espiritualização do meio progride. A pintura só se ocupa começar.
da aparência das coisas. Não tem a tridimensionalidade da Se, na época do Mais Antigo Programa Sistemático do Idea-
escultura; nela, o elemento material é mais discreto porque já lismo Alemão, Hegel, ainda fortemente marcado pelos seus
só consiste em superfícies coloridas; permite a representação debates com Hõlderlin e Schelling, declarava que o acto mais
da consciência humana pintando os sentimentos da alma tais elevado da razão é um acto estético e que a verdade e o bem são
como se manifestam nas cenas pintadas e exprimem-se nos irmãos na beleza, regressa, desde a Fenomenologia do Espírito
rostos e nos corpos. A música permite que se vá mais longe no (1807), a esta tentação romântica de um discurso filosófico da
mundo interior do espírito porque a sua matéria-prima sensível, arte, em proveito do discurso filosófico sobre a arte. A priori-
o som, é desmaterializada. Contudo, é a poesia (entendamos, dade é dada ao conhecimento sobre este pensamento intuitivo
a literatura) que constitui a arte suprema da interioridade. De e figurativo que marca os limites não só da arte mas também
facto, nela, a dimensão sensível (o rasto das palavras no papel) da religião. Na arte, mesmo na mais espiritualizada, ainda há
é totalmente inessencial e só tem existência verdadeira na ima- um rasto de aparência exterior. Ora, para Hegel, é possível
ginação dos homens. Portanto, a poesia é a arte mais filosófica uma representação directa do espírito. O espírito manifesta-
e Hegel atribui-lhe no seu Curso de Estética tanto espaço como -se no elemento do logos. Ao contrário do romantismo, Hegel
a todas as outras juntas, distinguindo entre os géneros épico, não considera a arte como a forma suprema do conhecimento.
lírico e dramático, segundo as transformações que neles se lêem Como o romantismo, ele concede à arte um estatuto ontoló-
da relação da subjectividade à objectividade. gico e um papel messiânico absolutamente inéditos, mas esta
O momento artístico da odisseia do espírito conclui-se santificação da arte é justificada por um discurso que lhe é
naquilo a que Hegel chama a dissolução (Auflosung) da arte. A exterior.
expressão não designa o fim da produção artística ou de todo
o interesse pela arte, mas o fim deste período durante o qual 2. Schopenhauer. - A reflexão de Schopenhauer sobre a
a arte era a forma mais elevada de manifestação do espírito. A arte, tal como figura no livro III da sua grande obra O Mundo
chama do espírito passa à religião e, depois, à filosofia porque, como Vontade e como Representação (1819), só tem sentido se

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é o homem. É por isso que este momento clássico representa como o Absoluto é o logos, é na filosofia que ele está no seu
um ponto de perfeição da arte. Nele se realiza um equilíbrio elemento verdadeiro. Hegel vê sinais deste devir geral na arte
inultrapassável entre exterioridade e interioridade. Mas, na do seu tempo: o discurso está em excesso sobre o' sensível e
perspectiva das exigências do devir do espírito, falta-lhe ainda a reflexão crítica que se desenvolve em redor da arte atinge
«a vida da subjectividade interior». os próprios artistas. Isto mostra bem que a arte perdeu a
Ela manifestar-se-á na terceira forma da arte, o seu momento sua função especulativa, que cumpriu a sua tarefa ontológica:
romântico. Nele, o espírito manifesta-se como subjectividade «Quanto à sua finalidade suprema, a arte é para nós uma coisa
infinita e interioridade absoluta. Esta arte romântica inicia-se do passado.» Tornou-se objecto de estudo: o mundo da arte,
pela arte cristã, depois seculariza-se progressivamente. Os géne- as suas obras, as suas instituições e as suas teorias são objecto
ros artísticos particularmente adequados a esta forma artística de uma hermenêutica que permite conhecer os povos e as suas
são a pintura, a música e a poesia. De uma a outra destas artes, culturas. A idade da arte acabou; a da filosofia da arte pode
a espiritualização do meio progride. A pintura só se ocupa começar.
da aparência das coisas. Não tem a tridimensionalidade da Se, na época do Mais Antigo Programa Sistemático do Idea-
escultura; nela, o elemento material é mais discreto porque já lismo Alemão, Hegel, ainda fortemente marcado pelos seus
só consiste em superfícies coloridas; permite a representação debates com Hõlderlin e Schelling, declarava que o acto mais
da consciência humana pintando os sentimentos da alma tais elevado da razão é um acto estético e que a verdade e o bem são
como se manifestam nas cenas pintadas e exprimem-se nos irmãos na beleza, regressa, desde a Fenomenologia do Espírito
rostos e nos corpos. A música permite que se vá mais longe no (1807), a esta tentação romântica de um discurso filosófico da
mundo interior do espírito porque a sua matéria-prima sensível, arte, em proveito do discurso filosófico sobre a arte. A priori-
o som, é desmaterializada. Contudo, é a poesia (entendamos, dade é dada ao conhecimento sobre este pensamento intuitivo
a literatura) que constitui a arte suprema da interioridade. De e figurativo que marca os limites não só da arte mas também
facto, nela, a dimensão sensível (o rasto das palavras no papel) da religião. Na arte, mesmo na mais espiritualizada, ainda há
é totalmente inessencial e só tem existência verdadeira na ima- um rasto de aparência exterior. Ora, para Hegel, é possível
ginação dos homens. Portanto, a poesia é a arte mais filosófica uma representação directa do espírito. O espírito manifesta-
e Hegel atribui-lhe no seu Curso de Estética tanto espaço como -se no elemento do logos. Ao contrário do romantismo, Hegel
a todas as outras juntas, distinguindo entre os géneros épico, não considera a arte como a forma suprema do conhecimento.
lírico e dramático, segundo as transformações que neles se lêem Como o romantismo, ele concede à arte um estatuto ontoló-
da relação da subjectividade à objectividade. gico e um papel messiânico absolutamente inéditos, mas esta
O momento artístico da odisseia do espírito conclui-se santificação da arte é justificada por um discurso que lhe é
naquilo a que Hegel chama a dissolução (Auflosung) da arte. A exterior.
expressão não designa o fim da produção artística ou de todo
o interesse pela arte, mas o fim deste período durante o qual 2. Schopenhauer. - A reflexão de Schopenhauer sobre a
a arte era a forma mais elevada de manifestação do espírito. A arte, tal como figura no livro III da sua grande obra O Mundo
chama do espírito passa à religião e, depois, à filosofia porque, como Vontade e como Representação (1819), só tem sentido se

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III - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE
~_É_T_Ic_A _

reportada ao conjunto do seu sistema filosófico, e ao princípio véu da individuação) e metafísica (o atingir de um ideal de
dele: a teoria da vontade e da representação, saída da distinção ascetismo e de renúncia). Como no sistema hegeliano, aqui a
kantiana do fenómeno e da coisa em si. arte é apenas uma etapa.
Schopenhauer rompe com a tradição espiritualista e racio- Ao longo desta etapa estética, a única que aqui nos interessa,
nalista, fazendo da vontade não uma faculdade humana, mas o homem deixa de ser o actor do querer para se tornar o seu
o real em si próprio, desembaraçado da sua aparência fenomé- espectador. Esta contemplação significa uma fruição especial:
nica. Ela é a essência profunda de todas as coisas, umas vezes, a de nunca mais sentir a dor do querer. Porque os mundos da
cega (no mundo, inorgânico), outras semiconsciente (no ani- arte (o universo de Proust, uma natureza-morta de Zurbarán,
mal), outras ainda acompanhada de consciência (no homem). A uma suite de Bach) não têm influência na acção; contemplamo-
vontade é única (a pedra que rola, a planta que cresce, o animal -los sem sequer nos tocarem. Durante um tempo que é o da
que constrói o seu ninho são manifestações deste único prin- contemplação, somos isentados de vontade e gozamos com o
cípio), todo-poderosa (ela é única e não está em concorrência facto de não nos sentirmos afectados pelos seus efeitos.
com nenhum outro princípio), absurda (sem causa, sem fim) Esta atitude inabitual permite não só interromper a dor
e irrepresentável (escapa às formas da representação, isto é, ao do querer-viver, mas ainda e sobretudo alcançar uma forma
espaço, ao tempo e à causalidade). superior de conhecimento. Habitualmente, vemos o mundo em
-Se o mundo é, em si mesmo, vontade, também é, agora ao objectos, isto é, vemos a vontade difractada através das formas
nível fenomenal (ecomo representação»), fragmentado numa a priori do entendimento e da sensibilidade (espaço-tempo-
pluralidade de lares, ou seja, numa multidão de indivíduos -causalidade), e o conhecimento ordinário usa conceitos para .
e de coisas, lutando uns contra os outros (as raízes da árvore estabelecer relações entre as coisas em ordem ao uso que pode-
fazem rebentar o rochedo, o animal devora o fruto, o homem mos fazer delas. A contemplação estética permite outro conhe-
alimenta-se do animal) porque a vontade, sozinha na sua exis- cimento, somente possível a um «sujeito conhecente puro», isto
tência, só pode alimentar-se de si mesma. é, a um sujeito que, durante algum tempo, já não participe
O homem é a vítima consciente desta vontade implacável nesta vontade e que, abandonando momentaneamente o seu
que o habita como habita todas as coisas. Ela condena-o ao estado de indivíduo, pode tornar-se todas as coisas.
sofrimento (o querer procede de uma necessidade e, por isso, O objecto deste conhecimento é a essência de todas as coisas.
de uma privação que é sofrimento) e ao tédio (entre o breve Como será possível alcançá-lo se, como já dissemos, a vontade é
momento da satisfação e a reaparição da dor da falta). irrepresentável e a arte é tão-só uma duplicação mimética deste
Schopenhauer entrevê uma saída para esta infelicidade mundo difractado em fenómenos individuais que temos diante
numa sabedoria concebida como arrancamento à vontade. Ora, dos olhos? É que a arte, sob a representação das coisas sensíveis,
não se escapa à vontade querendo, mas dando a si mesmo dá a ver ldeias. Por este termo, Schopenhauer designa «os actos
uma representação dela, ou, seja, fazendo dela um objecto de isolados e simples em si mesmos da vontade», ou seja, as formas
contemplação. Esta libertação comporta três estádios: estético, gerais e eternas sob as quais a vontade se manifesta: as forças
ético (a experiência da piedade e da simpatia permite tomar (inorgânicas), as espécies (viventes), os caracteres inteligíveis.
consciência da identidade das vontades individuais, e rasga o As ldeias ocupam um lugar intermédio entre a generalidade

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III - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE
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reportada ao conjunto do seu sistema filosófico, e ao princípio véu da individuação) e metafísica (o atingir de um ideal de
dele: a teoria da vontade e da representação, saída da distinção ascetismo e de renúncia). Como no sistema hegeliano, aqui a
kantiana do fenómeno e da coisa em si. arte é apenas uma etapa.
Schopenhauer rompe com a tradição espiritualista e racio- Ao longo desta etapa estética, a única que aqui nos interessa,
nalista, fazendo da vontade não uma faculdade humana, mas o homem deixa de ser o actor do querer para se tornar o seu
o real em si próprio, desembaraçado da sua aparência fenomé- espectador. Esta contemplação significa uma fruição especial:
nica. Ela é a essência profunda de todas as coisas, umas vezes, a de nunca mais sentir a dor do querer. Porque os mundos da
cega (no mundo, inorgânico), outras semiconsciente (no ani- arte (o universo de Proust, uma natureza-morta de Zurbarán,
mal), outras ainda acompanhada de consciência (no homem). A uma suite de Bach) não têm influência na acção; contemplamo-
vontade é única (a pedra que rola, a planta que cresce, o animal -los sem sequer nos tocarem. Durante um tempo que é o da
que constrói o seu ninho são manifestações deste único prin- contemplação, somos isentados de vontade e gozamos com o
cípio), todo-poderosa (ela é única e não está em concorrência facto de não nos sentirmos afectados pelos seus efeitos.
com nenhum outro princípio), absurda (sem causa, sem fim) Esta atitude inabitual permite não só interromper a dor
e irrepresentável (escapa às formas da representação, isto é, ao do querer-viver, mas ainda e sobretudo alcançar uma forma
espaço, ao tempo e à causalidade). superior de conhecimento. Habitualmente, vemos o mundo em
-Se o mundo é, em si mesmo, vontade, também é, agora ao objectos, isto é, vemos a vontade difractada através das formas
nível fenomenal (ecomo representação»), fragmentado numa a priori do entendimento e da sensibilidade (espaço-tempo-
pluralidade de lares, ou seja, numa multidão de indivíduos -causalidade), e o conhecimento ordinário usa conceitos para .
e de coisas, lutando uns contra os outros (as raízes da árvore estabelecer relações entre as coisas em ordem ao uso que pode-
fazem rebentar o rochedo, o animal devora o fruto, o homem mos fazer delas. A contemplação estética permite outro conhe-
alimenta-se do animal) porque a vontade, sozinha na sua exis- cimento, somente possível a um «sujeito conhecente puro», isto
tência, só pode alimentar-se de si mesma. é, a um sujeito que, durante algum tempo, já não participe
O homem é a vítima consciente desta vontade implacável nesta vontade e que, abandonando momentaneamente o seu
que o habita como habita todas as coisas. Ela condena-o ao estado de indivíduo, pode tornar-se todas as coisas.
sofrimento (o querer procede de uma necessidade e, por isso, O objecto deste conhecimento é a essência de todas as coisas.
de uma privação que é sofrimento) e ao tédio (entre o breve Como será possível alcançá-lo se, como já dissemos, a vontade é
momento da satisfação e a reaparição da dor da falta). irrepresentável e a arte é tão-só uma duplicação mimética deste
Schopenhauer entrevê uma saída para esta infelicidade mundo difractado em fenómenos individuais que temos diante
numa sabedoria concebida como arrancamento à vontade. Ora, dos olhos? É que a arte, sob a representação das coisas sensíveis,
não se escapa à vontade querendo, mas dando a si mesmo dá a ver ldeias. Por este termo, Schopenhauer designa «os actos
uma representação dela, ou, seja, fazendo dela um objecto de isolados e simples em si mesmos da vontade», ou seja, as formas
contemplação. Esta libertação comporta três estádios: estético, gerais e eternas sob as quais a vontade se manifesta: as forças
ético (a experiência da piedade e da simpatia permite tomar (inorgânicas), as espécies (viventes), os caracteres inteligíveis.
consciência da identidade das vontades individuais, e rasga o As ldeias ocupam um lugar intermédio entre a generalidade

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indiferenciada do querer e a particularidade absoluta dos fenó- exige um tratamento especial porque está na primeira linha
menos. A sua generalidade não é a do conceito porque este das artes e também, de certa maneira, para além delas. De
extrai da multiplicidade fenomenal uma unidade posterior, facto, as artes exprimem as Ideias, através de uma relação
ao passo que a Ideia é unidade a montante da multiplicidade mimética de cópia e modelo, mas a música tem uma relação
fenomenal. Nesta afirmação schopenhaueriana de que a arte directa com a essência do mundo. Representa o que não pode
eleva o espírito à contemplação das Ideias, encontram-se con- ser objecto de uma representação (o próprio querer) dado que
ceitos platónicos (contemplação, Ideias), mas dotados de outro ele escapa às próprias formas da representação que são o espaço,
conteúdo (aqui, as Ideias são as formas do querer e não os o tempo e a causalidade, o que se torna possível pelo facto de
arquétipos das realidades sensíveis) e, sobretudo, utilizadas de a música (instrumental) exprimir os grandes movimentos do
modo muito diferente (é a experiência estética da arte que eleva querer, abstraindo-se das circunstâncias: ele pinta a Alegria e
à contemplação das Ideias). o Desespero, isto é, a essência do sentimento e não o amor de
As Ideias podem ser inferiores ou superiores consoante as Filémon e Báucis ou do desespero de Fedro, ou seja, sentimentos
forças que elas põem em jogo estejam mais ou menos afastadas particularizados pelas circunstâncias. A abstracção da música
dos interesses humanos. Cada arte corresponde a um dos graus permite-lhe evitar a encarnação ocorrencial. Por conseguinte,
de objectivação da vontade; representa-o e dá-nos acesso a eles. ela põe em relação directa com a essência íntima do mundo.
As Ideias inferiores são as que se vêem presentes na natureza Contrariamente à da filosofia hegeliana da arte, a estética
bruta e que a arquitectura põe em cena: contemplar as abóba- schopenhauriana é uma teoria da experiência estética. Mas
das de um edifício e os contrafortes que as sustentam é ver o partilha com aquela um certo número de afirmações: a arte está
«esforço infatigável de duas forças» e ter a intuição das Ideias investida de uma função de revelação ontológica, pois fornece
de peso, de resistência e de coesão. A escultura faz contemplar um conhecimento superior, mas constitui apenas uma etapa
a Ideia do homem como forma particular do querer, distinta (da odisseia do espírito absoluto num caso, e da libertação do
de todas as outras. A pintura exprime o homem não na sua indivíduo em relação à vontade, no outro caso). As filosofias
diferença em relação às outras formas do querer, mas no seu hegeliana e schopenhauriana da arte partilham também este
pormenor, quer dizer, nos seus caracteres, nos seus estados traço que as distingue do romantismo: são pensamentos sobre
d'alma, nas suas paixões e nas suas actividades. A literatura a arte que legitimam do exterior o carácter excepcional do seu
representa a natureza humana no exercício do pensamento estatuto.
através desta combinação de conceitos, de rimas e de ritmo.
Assim, chegamos à Ideia de ciúme ou à de avareza pelo relato
das maquinações de Swann em Um Amor de Swann de Proust IH. - O artista-filósofo
e do pai Grandet, em Eugénie Crandet de Balzac. A tragédia e o filósofo-artista
que, segundo Schopenhauer é «o mais elevado dos géneros
poéticos», representa a vida sob o seu aspecto mais terrível, Novalis é, em primeiro lugar, poeta; é partindo do lugar
isto é, põe em cena o fracasso inevitável da vontade humana da poesia que ele afirma a dimensão filosófica da arte. Hegel
confrontada com o mundo. Finalmente vem a música, que e Schopenhauer são filósofos e tratam da arte a partir da sede

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~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSÓFICAS DA ARTE

indiferenciada do querer e a particularidade absoluta dos fenó- exige um tratamento especial porque está na primeira linha
menos. A sua generalidade não é a do conceito porque este das artes e também, de certa maneira, para além delas. De
extrai da multiplicidade fenomenal uma unidade posterior, facto, as artes exprimem as Ideias, através de uma relação
ao passo que a Ideia é unidade a montante da multiplicidade mimética de cópia e modelo, mas a música tem uma relação
fenomenal. Nesta afirmação schopenhaueriana de que a arte directa com a essência do mundo. Representa o que não pode
eleva o espírito à contemplação das Ideias, encontram-se con- ser objecto de uma representação (o próprio querer) dado que
ceitos platónicos (contemplação, Ideias), mas dotados de outro ele escapa às próprias formas da representação que são o espaço,
conteúdo (aqui, as Ideias são as formas do querer e não os o tempo e a causalidade, o que se torna possível pelo facto de
arquétipos das realidades sensíveis) e, sobretudo, utilizadas de a música (instrumental) exprimir os grandes movimentos do
modo muito diferente (é a experiência estética da arte que eleva querer, abstraindo-se das circunstâncias: ele pinta a Alegria e
à contemplação das Ideias). o Desespero, isto é, a essência do sentimento e não o amor de
As Ideias podem ser inferiores ou superiores consoante as Filémon e Báucis ou do desespero de Fedro, ou seja, sentimentos
forças que elas põem em jogo estejam mais ou menos afastadas particularizados pelas circunstâncias. A abstracção da música
dos interesses humanos. Cada arte corresponde a um dos graus permite-lhe evitar a encarnação ocorrencial. Por conseguinte,
de objectivação da vontade; representa-o e dá-nos acesso a eles. ela põe em relação directa com a essência íntima do mundo.
As Ideias inferiores são as que se vêem presentes na natureza Contrariamente à da filosofia hegeliana da arte, a estética
bruta e que a arquitectura põe em cena: contemplar as abóba- schopenhauriana é uma teoria da experiência estética. Mas
das de um edifício e os contrafortes que as sustentam é ver o partilha com aquela um certo número de afirmações: a arte está
«esforço infatigável de duas forças» e ter a intuição das Ideias investida de uma função de revelação ontológica, pois fornece
de peso, de resistência e de coesão. A escultura faz contemplar um conhecimento superior, mas constitui apenas uma etapa
a Ideia do homem como forma particular do querer, distinta (da odisseia do espírito absoluto num caso, e da libertação do
de todas as outras. A pintura exprime o homem não na sua indivíduo em relação à vontade, no outro caso). As filosofias
diferença em relação às outras formas do querer, mas no seu hegeliana e schopenhauriana da arte partilham também este
pormenor, quer dizer, nos seus caracteres, nos seus estados traço que as distingue do romantismo: são pensamentos sobre
d'alma, nas suas paixões e nas suas actividades. A literatura a arte que legitimam do exterior o carácter excepcional do seu
representa a natureza humana no exercício do pensamento estatuto.
através desta combinação de conceitos, de rimas e de ritmo.
Assim, chegamos à Ideia de ciúme ou à de avareza pelo relato
das maquinações de Swann em Um Amor de Swann de Proust IH. - O artista-filósofo
e do pai Grandet, em Eugénie Crandet de Balzac. A tragédia e o filósofo-artista
que, segundo Schopenhauer é «o mais elevado dos géneros
poéticos», representa a vida sob o seu aspecto mais terrível, Novalis é, em primeiro lugar, poeta; é partindo do lugar
isto é, põe em cena o fracasso inevitável da vontade humana da poesia que ele afirma a dimensão filosófica da arte. Hegel
confrontada com o mundo. Finalmente vem a música, que e Schopenhauer são filósofos e tratam da arte a partir da sede

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~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSOFIcAS DA ARTE

da filosofia. Consideremos agora uma configuração caracteri- da Tragédia). A arte dionisíaca também suaviza a vida porque
zada pela afirmação da identidade fundamental da arte e da permite ultrapassar o seu horror por meio da beleza. A arte
filosofia. é mais do que arte, é «a actividade propriamente metafísica»
(Prefácio a O Nascimento da Tragédia).
1. Nietzsche. - No fim do século XIX, a obra de Nietzs- Uma segunda fase correspondente à época da publicação
che, largamente divulgada, contraditória e inclassificável, pode, de Humano, Demasiado Humano (1878) marca o abandono
contudo, considerar-se uma figura importante e complexa deste do pessimismo schopenhauriano que se pode ler nas teses
momento da estética durante o qual as relações da arte e da d'O Nascimento da Tragédia. Nietzsche rompe com Wagner
filosofia são pensadas de maneira absolutamente inédita. Nesta que considera um representante do romantismo decadente que
obra que recusa a forma da filosofia tradicional, a estética não procura na arte um narcótico que lhe permita esquecer a difi-
pode revestir as formas conhecidas. Trata-se de meditações culdade de viver. Porque, daqui em diante, Nietzsche recusa
aforísticas apoiadas numa filosofia que recusa o sistema em os mundos do passado e a oposição entre o ser e os fenómenos
proveito da intuição e da visão. que se seguiria. Então, a arte já não é o acesso ao coração
A questão nietzschiana por excelência é a das relações da escondido do mundo. Muito crítico da concepção romântica
arte e da vida. Na época do Nascimento da Tragédia (1872), da arte, de que partilhara muitas das teses, Nietzsche entende
Nietzsche distingue dois arquétipos fundamentais da arte considerar o mundo e a arte tal como são, e combater por uma
grega que manifestam dois princípios ontológicos (nos quais genealogia que verse não somente a religião, a moral e a meta-
se reconhece a influência da oposição schopenhauriana da von- física, mas também a arte e os artistas, a ilusão de um mundo
tade e dos fenómenos). O primeiro encarna na figura de Apolo, real escondido sob as aparências. A arte já não tem dimensão
filho de Zeus e de Leto, deus da luz e das artes que representa ontológica; é um jogo, uma disposição agradável de qualidades
o mundo dos fenómenos, das formas belas e do sonho. A sensíveis que permitem a promoção da vida desmultiplicando
obra de Homero realça-o. O segundo encarna na figura de as forças vitais.
Dioniso, filho de Zeus e de Semele, deus da vinha, do vinho Na época de Gaia Ciência (1882), começa uma nova fase. O
e da embriaguez, que está do lado das forças fundamentais ideal de verdade e de ciência anteriormente defendido também
da existência, do lado da vida e do fundo do ser. Seguem este cai por efeito da crítica. Então, as ilusões da arte tornam-se
princípio as tragédias de Sófocles e também a obra de Wag- um modelo para um mundo liberto da verdade: «Para um
ner, que, nesta época, Nietzsche considera a forma moderna filósofo é uma vergonha dizer "o bem e o belo coincidem";
desta arte dionisíaca. Por isso, esta arte tem o privilégio de dar se, ainda por cima, ele acrescentar "e o mesmo se diga da ver-
acesso ao fundamento último do mundo: a tragédia é «conhe- dade", merece uma tareia. A verdade é inconveniente. Temos
cimento fundamental da unidade de tudo o que é presente, a arte para não morrermos da verdade» (Fragmentos Póstumos,
a concepção da individuação como causa original do mal e, 1888-1889). Deste modo, a arte reencontra um estatuto de
por fim, esta ideia de que a arte é o que representa a esperança excepção, mas diferente do que lhe atribuíam os primeiros
de uma futura destruição das fronteiras da individuação e o textos de Nietzsche: presentemente, é a vontade de poder na
pressentimento alegre da unidade restaurada» (O Nascimento sua dimensão criadora. Então, aparece o tema da estetização

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da filosofia. Consideremos agora uma configuração caracteri- da Tragédia). A arte dionisíaca também suaviza a vida porque
zada pela afirmação da identidade fundamental da arte e da permite ultrapassar o seu horror por meio da beleza. A arte
filosofia. é mais do que arte, é «a actividade propriamente metafísica»
(Prefácio a O Nascimento da Tragédia).
1. Nietzsche. - No fim do século XIX, a obra de Nietzs- Uma segunda fase correspondente à época da publicação
che, largamente divulgada, contraditória e inclassificável, pode, de Humano, Demasiado Humano (1878) marca o abandono
contudo, considerar-se uma figura importante e complexa deste do pessimismo schopenhauriano que se pode ler nas teses
momento da estética durante o qual as relações da arte e da d'O Nascimento da Tragédia. Nietzsche rompe com Wagner
filosofia são pensadas de maneira absolutamente inédita. Nesta que considera um representante do romantismo decadente que
obra que recusa a forma da filosofia tradicional, a estética não procura na arte um narcótico que lhe permita esquecer a difi-
pode revestir as formas conhecidas. Trata-se de meditações culdade de viver. Porque, daqui em diante, Nietzsche recusa
aforísticas apoiadas numa filosofia que recusa o sistema em os mundos do passado e a oposição entre o ser e os fenómenos
proveito da intuição e da visão. que se seguiria. Então, a arte já não é o acesso ao coração
A questão nietzschiana por excelência é a das relações da escondido do mundo. Muito crítico da concepção romântica
arte e da vida. Na época do Nascimento da Tragédia (1872), da arte, de que partilhara muitas das teses, Nietzsche entende
Nietzsche distingue dois arquétipos fundamentais da arte considerar o mundo e a arte tal como são, e combater por uma
grega que manifestam dois princípios ontológicos (nos quais genealogia que verse não somente a religião, a moral e a meta-
se reconhece a influência da oposição schopenhauriana da von- física, mas também a arte e os artistas, a ilusão de um mundo
tade e dos fenómenos). O primeiro encarna na figura de Apolo, real escondido sob as aparências. A arte já não tem dimensão
filho de Zeus e de Leto, deus da luz e das artes que representa ontológica; é um jogo, uma disposição agradável de qualidades
o mundo dos fenómenos, das formas belas e do sonho. A sensíveis que permitem a promoção da vida desmultiplicando
obra de Homero realça-o. O segundo encarna na figura de as forças vitais.
Dioniso, filho de Zeus e de Semele, deus da vinha, do vinho Na época de Gaia Ciência (1882), começa uma nova fase. O
e da embriaguez, que está do lado das forças fundamentais ideal de verdade e de ciência anteriormente defendido também
da existência, do lado da vida e do fundo do ser. Seguem este cai por efeito da crítica. Então, as ilusões da arte tornam-se
princípio as tragédias de Sófocles e também a obra de Wag- um modelo para um mundo liberto da verdade: «Para um
ner, que, nesta época, Nietzsche considera a forma moderna filósofo é uma vergonha dizer "o bem e o belo coincidem";
desta arte dionisíaca. Por isso, esta arte tem o privilégio de dar se, ainda por cima, ele acrescentar "e o mesmo se diga da ver-
acesso ao fundamento último do mundo: a tragédia é «conhe- dade", merece uma tareia. A verdade é inconveniente. Temos
cimento fundamental da unidade de tudo o que é presente, a arte para não morrermos da verdade» (Fragmentos Póstumos,
a concepção da individuação como causa original do mal e, 1888-1889). Deste modo, a arte reencontra um estatuto de
por fim, esta ideia de que a arte é o que representa a esperança excepção, mas diferente do que lhe atribuíam os primeiros
de uma futura destruição das fronteiras da individuação e o textos de Nietzsche: presentemente, é a vontade de poder na
pressentimento alegre da unidade restaurada» (O Nascimento sua dimensão criadora. Então, aparece o tema da estetização

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~_É_T_Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSOFIcAS DA ARTE

da existência. A arte para que agora Nietzsche se volta não é Na obra de Heidegger, encontram-se esparsas numerosas
só a das obras, mas a da vida. A vida tornou-se «o fenômeno considerações sobre artes particulares, sobre a poesia tHõlderlin
artístico fundamental» (Fragmentos Póstumos, 1884). É preciso e a Essência da Poesia, 1936-1951) e a arquitectura (<<Construir,
ensinar os artistas a serem «poetas das nossas vidas» (Gaia habitar, pensar», 1951, in Ensaios e Conferências, 1954) especial-
Ciência, § 299). Também, acima da figura tradicional do mente. Mas é numa conferência de 1935 intitulada «A Origem
artista, Nietzsche apela para o «artista filósofo» (Fragmentos da Obra de Arte» (in Caminhos que Levam a Parte Nenhuma,
Póstumos, 1886), capaz de uma regeneração da sociedade. 1950) que se encontra uma reflexão geral sobre a arte. Será este
texto que iremos interrogar aqui.
2. Heidegger. - Como as de Hegel ou a de Schopenhauer, a Para conseguir pensar o carácter obra da obra, é necessário
reflexão de Heidegger sobre a arte está intimamente dependente «pensar no próprio contacto do ente». Para isto, é preciso que
dos princípios da sua filosofia. De facto, ela só se compreende se «deixe (a obra) entregue a si mesma, repousando em si»,
sobre o pano de fundo da sua condenação da metafísica como quer dizer, não considerar nem o seu criador nem o seu lugar
esquecimento do ser. A metafísica desconhece o ser e ignora na história da arte. É preciso deixá-la à sua imanência, no seu
a diferença ontológica (quer dizer, a diferença entre o ser e os lugar, no seu mundo, fora do qual o ser obra está escondido
entes, entre o que é e o que faz com que qualquer coisa seja). pelo ser objecto. Porque a obra abre aquilo a que Heidegger
Heidegger considera que, desde Sócrates, este esquecimento chama «um mundo» (sser obra significa instalar um mundo»),
da questão do ser se agravou progressivamente e que o roman- que não é o lugar de reunião dos entes, mas «abertura que abre
tismo, enquanto doutrina da subjectividade como fundamento, toda a amplitude das opções simples e decisivas no destino
constitui simultaneamente a derradeiro avatar e a conclusão de um povo historial». Assim, o templo grego é uma instala-
desta metafísica ocidental. Portanto, a fenomenologia quer vol- ção que estabelece um mundo: o do povo que o edificou. A
tar à origem, ao pensamento do ser. Do grego phainomenon, obra é também um «fazer vir a terra». A «terra» de aqui fala
que designa o que brilha em si mesmo, e de legein que significa Heidegger manifesta-se em primeiro lugar no material da
recolher, expor, assume a tarefa de «expor o que acontece em si obra, mas esta revela não somente aquilo de que é feita, mas
mesmo, iluminando-o à sua própria luz». também a natureza no seu conjunto (a physis dos primeiros
Nesta questão, a arte tem um papel capital que as estéticas gregos). A terra é aqui o que «resta como reserva», a «livre
anteriores, por mais impregnadas que estivessem pela metafí- aparição do que se fecha constantemente sobre si». Há tensão
sica segundo Heidegger, não souberam ver. Para Heidegger, o na obra entre o mundo que aspira a dominar a terra, e a terra
erro da estética precedente foi ter pensado a obra de arte sob o que aspira a fazer entrar o mundo nela. O ser obra da obra
paradigma do produto, quer dizer, da matéria informada, de ter é a efectividade deste combate: «Instalando um mundo e
partido da coisidade [onticidade] da obra e de lhe ter acrescen- fazendo vir a terra, a obra é a batalha em que se conquista o
tado qualidades estéticas. Assim fazendo, ela não pode pensar surgimento do ente na sua totalidade, quer dizer, a verdade.»
o carácter de obra da obra. Contudo, Heidegger partilha com Assim, a famosa análise dos Sapatos de Van Gogh pretende
os românticos e os seus sucessores a afirmação capital segundo dizer como «o ente na sua totalidade, o mundo e a terra no
a qual a arte possui uma dimensão ontológica. seu jogo recíproco, chegam à eclosão».

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da existência. A arte para que agora Nietzsche se volta não é Na obra de Heidegger, encontram-se esparsas numerosas
só a das obras, mas a da vida. A vida tornou-se «o fenômeno considerações sobre artes particulares, sobre a poesia tHõlderlin
artístico fundamental» (Fragmentos Póstumos, 1884). É preciso e a Essência da Poesia, 1936-1951) e a arquitectura (<<Construir,
ensinar os artistas a serem «poetas das nossas vidas» (Gaia habitar, pensar», 1951, in Ensaios e Conferências, 1954) especial-
Ciência, § 299). Também, acima da figura tradicional do mente. Mas é numa conferência de 1935 intitulada «A Origem
artista, Nietzsche apela para o «artista filósofo» (Fragmentos da Obra de Arte» (in Caminhos que Levam a Parte Nenhuma,
Póstumos, 1886), capaz de uma regeneração da sociedade. 1950) que se encontra uma reflexão geral sobre a arte. Será este
texto que iremos interrogar aqui.
2. Heidegger. - Como as de Hegel ou a de Schopenhauer, a Para conseguir pensar o carácter obra da obra, é necessário
reflexão de Heidegger sobre a arte está intimamente dependente «pensar no próprio contacto do ente». Para isto, é preciso que
dos princípios da sua filosofia. De facto, ela só se compreende se «deixe (a obra) entregue a si mesma, repousando em si»,
sobre o pano de fundo da sua condenação da metafísica como quer dizer, não considerar nem o seu criador nem o seu lugar
esquecimento do ser. A metafísica desconhece o ser e ignora na história da arte. É preciso deixá-la à sua imanência, no seu
a diferença ontológica (quer dizer, a diferença entre o ser e os lugar, no seu mundo, fora do qual o ser obra está escondido
entes, entre o que é e o que faz com que qualquer coisa seja). pelo ser objecto. Porque a obra abre aquilo a que Heidegger
Heidegger considera que, desde Sócrates, este esquecimento chama «um mundo» (sser obra significa instalar um mundo»),
da questão do ser se agravou progressivamente e que o roman- que não é o lugar de reunião dos entes, mas «abertura que abre
tismo, enquanto doutrina da subjectividade como fundamento, toda a amplitude das opções simples e decisivas no destino
constitui simultaneamente a derradeiro avatar e a conclusão de um povo historial». Assim, o templo grego é uma instala-
desta metafísica ocidental. Portanto, a fenomenologia quer vol- ção que estabelece um mundo: o do povo que o edificou. A
tar à origem, ao pensamento do ser. Do grego phainomenon, obra é também um «fazer vir a terra». A «terra» de aqui fala
que designa o que brilha em si mesmo, e de legein que significa Heidegger manifesta-se em primeiro lugar no material da
recolher, expor, assume a tarefa de «expor o que acontece em si obra, mas esta revela não somente aquilo de que é feita, mas
mesmo, iluminando-o à sua própria luz». também a natureza no seu conjunto (a physis dos primeiros
Nesta questão, a arte tem um papel capital que as estéticas gregos). A terra é aqui o que «resta como reserva», a «livre
anteriores, por mais impregnadas que estivessem pela metafí- aparição do que se fecha constantemente sobre si». Há tensão
sica segundo Heidegger, não souberam ver. Para Heidegger, o na obra entre o mundo que aspira a dominar a terra, e a terra
erro da estética precedente foi ter pensado a obra de arte sob o que aspira a fazer entrar o mundo nela. O ser obra da obra
paradigma do produto, quer dizer, da matéria informada, de ter é a efectividade deste combate: «Instalando um mundo e
partido da coisidade [onticidade] da obra e de lhe ter acrescen- fazendo vir a terra, a obra é a batalha em que se conquista o
tado qualidades estéticas. Assim fazendo, ela não pode pensar surgimento do ente na sua totalidade, quer dizer, a verdade.»
o carácter de obra da obra. Contudo, Heidegger partilha com Assim, a famosa análise dos Sapatos de Van Gogh pretende
os românticos e os seus sucessores a afirmação capital segundo dizer como «o ente na sua totalidade, o mundo e a terra no
a qual a arte possui uma dimensão ontológica. seu jogo recíproco, chegam à eclosão».

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Por isso, o que é obra na obra é o advento da verdade. A obra que não Levam a Parte Nenhuma)]. Ambas se juntam ao pen-
revela o ser. O ente-obra faz advir a verdade do ser dos entes. samento do ser.
Mas esta verdade de que fala Heidegger está para além do dis-
curso lógico, e não deve ser compreendida como a adequação
ou a concordância entre o discurso e as coisas. Ela é alêtheia, IV. - Conclusão: arte e filosofia
revelação, comparência, ter-lugar do que tem lugar.
Além desta afirmação de uma relação estreita e privile- Para além de tudo aquilo que separa os autores considerados
giada da arte com a verdade que ele partilha com os filósofos nesta terceira parte, aeroxima-os ~ certa maneira ae abordar
da arte que o precederam, Heidegger afirma com o roman- ~ estét~ca: antes de mais, a estética é filosofia da arte, a arte pos-
tismo que, entre todas as artes, a poesia tem um estatuto de sui uma dim~~são ;ntológka e {o mêIõ-ae um conhecimento
excepção. Toda a arte é poesia no sentido de execução e todas de- out~ ordem, .superior ~~onhecílllenro ordinário. 'Deste
as artes são modos do projecto de esclarecimento da verdade; modo se explica o fascínio recíproco da arte e da filosofia: a
no entanto, a poesia ocupa um lugar privilegiado. Este privi- arte tende para o saber e a filosofia tende para a arte como para
légio explica-se pelo facto de que o homem é o único ser de o lugar deste saber supremo.
palavra e que é «a língua que faz acontecer o ente enquanto Este período, ao longo do qual a estética é pensada como
ente em aberto». A própria linguagem revela-se a verdadeira filosofia da arte, com todas as 'declinações da fórmula con- -
poiêsis porque, nela, o ente surge em aberto. A língua é o sítio soante os autores que estudámos, também é marcado pelo <Je~a-_
da palavra do ser e não um instrumento ao serviço de um parecimento de certos temas e pelo aparecimento de outros.
pensamento, pensamento que seria tão-somente um utensílio Notar-se-á o leclipse sintomático da noção de gosto, tão central,
ao serviço da práxis. A nomeação poética faz aparecer pela contudo, no século XVIII. Quando a arte já não é pensada do
primeira vez a coisa naquilo que ela é. Hôlderlin, «poeta dos PQnto de vista da experiência sensível do belo, mas do pont<?
poetas)), soube reconduzir a poesia à sua essência original de vista da verdade e do conhecimento extático do ser" o gosto ,..
voltando a pô-la em contacto com o ser e não com a subjec- como faculdade de apreender a beleza é uma categoria sem p~r-
tividade. Heidegger quer fazer dos poetas (nomeadamente tinência, E também a questão do prazer estético convém mal
Hõlderlin, Rilke e Trakl) a «prova pensante» e não o estudo a uma época em que a,sacralização da arte-se concilia com um-
(que transformaria a poesia em conceitos), isto é, quer colocar- ce~tolf~r1tanisdJ.o estétTc~ A questão dos critérios de excelência
-se no poder do seu apelo. com cuja medida se julga o valor das obras particulares dissolve-
Portanto, esta estética não é nem filosofia da arte nem filo- -se na afirmação do valor global da arte . Em contrapartida, vão
sofia sobre a arte. Porque a arte e a fenomenologia perseguem ga...E_~a_ndo força alguns temas como os do génio e do sublime.
a mesma tarefa, o filósofo e o poeta são irmãos. Por um lado, a Este já fora tratado na Investigação Filosófica sobre a Origem
afirmação pressupõe que a arte tenha um alcance ontológico e, das Nossas Ideias de Sublime e de Belo de Burke, nos Elementos
por outro, que a filosofia já não seja pensada como o império da de Crítica de Henri Home (1763) ou na Critica da Faculdade
razão [«a razão é o inimigo mais encarniçado do pensamento» _...:I:!!-..l.!!:Ízo de Kant. Mas o tema permaneceria secundário no
(A expressão de Nietzsche "Deus morreu"», 1843, in Caminhos século XVIII e Kant não concebe o seu exame a não ser como

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Por isso, o que é obra na obra é o advento da verdade. A obra que não Levam a Parte Nenhuma)]. Ambas se juntam ao pen-
revela o ser. O ente-obra faz advir a verdade do ser dos entes. samento do ser.
Mas esta verdade de que fala Heidegger está para além do dis-
curso lógico, e não deve ser compreendida como a adequação
ou a concordância entre o discurso e as coisas. Ela é alêtheia, IV. - Conclusão: arte e filosofia
revelação, comparência, ter-lugar do que tem lugar.
Além desta afirmação de uma relação estreita e privile- Para além de tudo aquilo que separa os autores considerados
giada da arte com a verdade que ele partilha com os filósofos nesta terceira parte, aeroxima-os ~ certa maneira ae abordar
da arte que o precederam, Heidegger afirma com o roman- ~ estét~ca: antes de mais, a estética é filosofia da arte, a arte pos-
tismo que, entre todas as artes, a poesia tem um estatuto de sui uma dim~~são ;ntológka e {o mêIõ-ae um conhecimento
excepção. Toda a arte é poesia no sentido de execução e todas de- out~ ordem, .superior ~~onhecílllenro ordinário. 'Deste
as artes são modos do projecto de esclarecimento da verdade; modo se explica o fascínio recíproco da arte e da filosofia: a
no entanto, a poesia ocupa um lugar privilegiado. Este privi- arte tende para o saber e a filosofia tende para a arte como para
légio explica-se pelo facto de que o homem é o único ser de o lugar deste saber supremo.
palavra e que é «a língua que faz acontecer o ente enquanto Este período, ao longo do qual a estética é pensada como
ente em aberto». A própria linguagem revela-se a verdadeira filosofia da arte, com todas as 'declinações da fórmula con- -
poiêsis porque, nela, o ente surge em aberto. A língua é o sítio soante os autores que estudámos, também é marcado pelo <Je~a-_
da palavra do ser e não um instrumento ao serviço de um parecimento de certos temas e pelo aparecimento de outros.
pensamento, pensamento que seria tão-somente um utensílio Notar-se-á o leclipse sintomático da noção de gosto, tão central,
ao serviço da práxis. A nomeação poética faz aparecer pela contudo, no século XVIII. Quando a arte já não é pensada do
primeira vez a coisa naquilo que ela é. Hôlderlin, «poeta dos PQnto de vista da experiência sensível do belo, mas do pont<?
poetas)), soube reconduzir a poesia à sua essência original de vista da verdade e do conhecimento extático do ser" o gosto ,..
voltando a pô-la em contacto com o ser e não com a subjec- como faculdade de apreender a beleza é uma categoria sem p~r-
tividade. Heidegger quer fazer dos poetas (nomeadamente tinência, E também a questão do prazer estético convém mal
Hõlderlin, Rilke e Trakl) a «prova pensante» e não o estudo a uma época em que a,sacralização da arte-se concilia com um-
(que transformaria a poesia em conceitos), isto é, quer colocar- ce~tolf~r1tanisdJ.o estétTc~ A questão dos critérios de excelência
-se no poder do seu apelo. com cuja medida se julga o valor das obras particulares dissolve-
Portanto, esta estética não é nem filosofia da arte nem filo- -se na afirmação do valor global da arte . Em contrapartida, vão
sofia sobre a arte. Porque a arte e a fenomenologia perseguem ga...E_~a_ndo força alguns temas como os do génio e do sublime.
a mesma tarefa, o filósofo e o poeta são irmãos. Por um lado, a Este já fora tratado na Investigação Filosófica sobre a Origem
afirmação pressupõe que a arte tenha um alcance ontológico e, das Nossas Ideias de Sublime e de Belo de Burke, nos Elementos
por outro, que a filosofia já não seja pensada como o império da de Crítica de Henri Home (1763) ou na Critica da Faculdade
razão [«a razão é o inimigo mais encarniçado do pensamento» _...:I:!!-..l.!!:Ízo de Kant. Mas o tema permaneceria secundário no
(A expressão de Nietzsche "Deus morreu"», 1843, in Caminhos século XVIII e Kant não concebe o seu exame a não ser como

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~_ÉT __Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSOFIcAS DA ARTE

um «apêndice» da reflexão sobre o belo (<<osublime exige outra alta voz, pelo hábito universal de emitir juízos e opiniões sobre
bitola de' apreciação diferente daquela que tem o gosto como a arte, deixa-se conquistar pelo contágio que o leva a introduzir,
princípio», § 14). Além disso, a experiênçia 40 sublime {e~tã"Ô) no seu próprio trabalho, cada vez mais pensamento» (Curso
a da natureza. Tudo mudará quando o sublime se tornar Urna de Estética). Apollinaire é poeta e ensaísta, Maurice Denis e
categoria artística, O sublime convém à ideia de que a ~xpe- Paul Klee são ao mesmo tempo pintores e teóricos. Os artistas
riência da arte é uma experiência extátic~. redigem manifestos [Manifestos: futurista (1910), Dada (1918),
Estas filosofias da arte tiveram uma influência notória no De Stijl (1918), do surrealismo (1924 e 1930), do novo realismo
mundo da arte, isto é, na ou nas produções dos artistas e nos (1960), fazem conferências (Yves Klein, Frank Stella), publicam
seus discursos sobre a arte. Apesar da sua forma dispersa e as suas conversas (Bacon, Jasper Johns)]. Estes artistas teóricos
fragmentária ou, talvez, graças a esta ausência de sistematici- não têm nada a ver com os artistas clássicos que debate~ras J
dade que permite muitas interpretações, o romantismo influen- (la sua arte no século XVIII. Apropriam-se com mais ou menos
ciou a arte e, muito especialmente a poesia (Hugo, Nerval ou Mt"e do discurso filosÓfico, aliás, como o discurso romântico
Rimbaud encarnarão a figura do poeta vidente e profeta). O cor;ida a fazer. Deste modo, umaboa parte da arte dos sécu-
artista conceptual Joseph Kosuth, ao declarar que «a linguagem l~s XIX e XX foi directa ou indirectamente marcada por esta
filosófica ou teórica é uma palavra no interior da arte», não faz filosofia que ll:Íe confere um estatuto absolutamente inédito, a
mais do que perseguir esta ideologia romântica. O pensamento saberxuma dimensão ontológicg um alcance gnoseológico e
de Hegel contribui para este clima teórico que liga arte e expe- un: papel messiânico.
riência do absoluto, mas foi, sobretudo, sobre a história da arte
do século XIX que o seu historicismo, explicando a sucessão dos
acontecimentos por uma lógica interna de que eles são as mani-
festações, foi influente. A estética de Schopenhauer foi muito
marcante sobre a poesia de finais do século XIX ao início do
século xx, sobre a música e a literatura, nomeadamente sobre
Wagner, Huysmans e Proust. Nietzsche fascinou largamente
as vanguardas do século xx. A marca de Heidegger é visível
nos escritos de René Char, de Yves Bonnefoy ou de Michel
Deguy. Estas filosofias da arte constituem aquilo que Anne
Cauquelin designa como uma «teoria ambiental» (As Teorias ~
da Arte, 1998).
Este halo teórico estende-se tanto mais longe quanto a
intelectualidade progride no seio do próprio campo artístico,
tornando porosas as fronteiras entre os géneros teóricos. Era
profeticamente que Hegel escrevia: «Mesmo na sua prática, o
artista, arrastado pela reflexão que se desenvolve à sua volta a

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~_ÉT __Ic_A _ III - AS TEORIAS FILOSOFIcAS DA ARTE

um «apêndice» da reflexão sobre o belo (<<osublime exige outra alta voz, pelo hábito universal de emitir juízos e opiniões sobre
bitola de' apreciação diferente daquela que tem o gosto como a arte, deixa-se conquistar pelo contágio que o leva a introduzir,
princípio», § 14). Além disso, a experiênçia 40 sublime {e~tã"Ô) no seu próprio trabalho, cada vez mais pensamento» (Curso
a da natureza. Tudo mudará quando o sublime se tornar Urna de Estética). Apollinaire é poeta e ensaísta, Maurice Denis e
categoria artística, O sublime convém à ideia de que a ~xpe- Paul Klee são ao mesmo tempo pintores e teóricos. Os artistas
riência da arte é uma experiência extátic~. redigem manifestos [Manifestos: futurista (1910), Dada (1918),
Estas filosofias da arte tiveram uma influência notória no De Stijl (1918), do surrealismo (1924 e 1930), do novo realismo
mundo da arte, isto é, na ou nas produções dos artistas e nos (1960), fazem conferências (Yves Klein, Frank Stella), publicam
seus discursos sobre a arte. Apesar da sua forma dispersa e as suas conversas (Bacon, Jasper Johns)]. Estes artistas teóricos
fragmentária ou, talvez, graças a esta ausência de sistematici- não têm nada a ver com os artistas clássicos que debate~ras J
dade que permite muitas interpretações, o romantismo influen- (la sua arte no século XVIII. Apropriam-se com mais ou menos
ciou a arte e, muito especialmente a poesia (Hugo, Nerval ou Mt"e do discurso filosÓfico, aliás, como o discurso romântico
Rimbaud encarnarão a figura do poeta vidente e profeta). O cor;ida a fazer. Deste modo, umaboa parte da arte dos sécu-
artista conceptual Joseph Kosuth, ao declarar que «a linguagem l~s XIX e XX foi directa ou indirectamente marcada por esta
filosófica ou teórica é uma palavra no interior da arte», não faz filosofia que ll:Íe confere um estatuto absolutamente inédito, a
mais do que perseguir esta ideologia romântica. O pensamento saberxuma dimensão ontológicg um alcance gnoseológico e
de Hegel contribui para este clima teórico que liga arte e expe- un: papel messiânico.
riência do absoluto, mas foi, sobretudo, sobre a história da arte
do século XIX que o seu historicismo, explicando a sucessão dos
acontecimentos por uma lógica interna de que eles são as mani-
festações, foi influente. A estética de Schopenhauer foi muito
marcante sobre a poesia de finais do século XIX ao início do
século xx, sobre a música e a literatura, nomeadamente sobre
Wagner, Huysmans e Proust. Nietzsche fascinou largamente
as vanguardas do século xx. A marca de Heidegger é visível
nos escritos de René Char, de Yves Bonnefoy ou de Michel
Deguy. Estas filosofias da arte constituem aquilo que Anne
Cauquelin designa como uma «teoria ambiental» (As Teorias ~
da Arte, 1998).
Este halo teórico estende-se tanto mais longe quanto a
intelectualidade progride no seio do próprio campo artístico,
tornando porosas as fronteiras entre os géneros teóricos. Era
profeticamente que Hegel escrevia: «Mesmo na sua prática, o
artista, arrastado pela reflexão que se desenvolve à sua volta a

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LO 1( O,~,).ta A.Á CAPÍTULO IV • r ~~
_' .-.1.""
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I
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tiry....J;....·7 (."'{.-tÃ,

A ESTETICA (.pÜ_. I.JA"

PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS


DO SÉCULO XX

A estética nasceu de uma determinada configu-


ração das noções de sensível, de belo e de arte.
O seu devir é em grande medida função ~
da arte, não só porque a evolução deste objecto é alvo de
reflexão da disciplina, mas também porque esta evolução
()
a rf"\
t
produz modificações na configuração que esteve na origem Vt (fi' ~
da disciplina. Considerar-se-á nesta parte o primeiro destes ,-1/'
pontos, reservando o seguinte para a conclusão desta obra. ' ".. )'
r:..
Quais foram as atitudes da estética perante este período de ,,J'

r"êVõíuçõescontínuas da drte que teve início nos anos de 1210


e que chamaremos com Harold Rosenberg o da «desdefinição»
da arte? I. J I I
/Wr...
'I
, (/ {lo a L... :1'11 cr. t r 1"1

.:.V ~

L - A desdefini'ção da arte

A arte contemporânea abalou seriamente três certezas sobre


as quais as e/~téticasfundavam até então a sua s~gurança: saber
o que é uma obra, o que é um género, o que é 'a arte.
O inacabamento de um texto desconstruído, como Cent
Mille Milliards de Poêmes de Queneau, a precariedade essencial
das estrututras auto destrutivas de Tinguely, a ausência de uma
construção do artista no Sêche-bouteille de Duchamp, o afasta-
mento do controlo crítico numa action painting de Pollock são
outras tantas ameaças à compreensão do conceito de obra (tra-
dicionalmente definida como totalidade orgânica e acabada,
realizada por uma livre escolha precedida pelo pensamento do
fim a que o objecto deve a sua forma).

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A ESTETICA (.pÜ_. I.JA"

PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS


DO SÉCULO XX

A estética nasceu de uma determinada configu-


ração das noções de sensível, de belo e de arte.
O seu devir é em grande medida função ~
da arte, não só porque a evolução deste objecto é alvo de
reflexão da disciplina, mas também porque esta evolução
()
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da disciplina. Considerar-se-á nesta parte o primeiro destes ,-1/'
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Quais foram as atitudes da estética perante este período de ,,J'

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e que chamaremos com Harold Rosenberg o da «desdefinição»
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L - A desdefini'ção da arte

A arte contemporânea abalou seriamente três certezas sobre


as quais as e/~téticasfundavam até então a sua s~gurança: saber
o que é uma obra, o que é um género, o que é 'a arte.
O inacabamento de um texto desconstruído, como Cent
Mille Milliards de Poêmes de Queneau, a precariedade essencial
das estrututras auto destrutivas de Tinguely, a ausência de uma
construção do artista no Sêche-bouteille de Duchamp, o afasta-
mento do controlo crítico numa action painting de Pollock são
outras tantas ameaças à compreensão do conceito de obra (tra-
dicionalmente definida como totalidade orgânica e acabada,
realizada por uma livre escolha precedida pelo pensamento do
fim a que o objecto deve a sua forma).

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

Um objecto compósito de Rauschenberg, uma cirurgia de contemp.od.~as queremafastar-se não só da beleza, mas tam-
Orlan ou o embrulhar das falésias do Norte de Sydney por ~ém da gualillilqe estética em geral e do elernento sensfvel] O
Christo, além de.inclassificáveis, põem em causa as tradicionais escultor minimalista Robert Morris declara por um acto de
fronteiras interior~eque permitem a delimitação dos notariado datado de 15 de Novembro de 1963, a propósito
géneros (das belas-artes). A arte tornou-~~ genérica (1hierry de ' da sua construção de metal baptizada Litanie: «O abaixo-
Duve, Nominalisme Pictural, 1984), no sentido de que tem a -assinado Robert Morris [...] retira à supracitada construção
ver com a Arte sem artes. toda a qualidade estética e todo o conteúdo, e declara, a partir
Por outro lado, as fronteiras externas da arte tornaram-se deste dia, a referida construção desprovida de qualquer qua-
..._indecifráveis: abriu-se ao passado mais recuado (pintura dos lidade e também de conteúdo» e Marcel Duchamp objecta,
aborígenes australianos, por exemplo), aos longínquos (pintura a todos os que julgam ler nos seus ready-made a vontade de
sobre areia dos Índios Navajos), à outra arte (arte das crianças, mostrar a qualidade estética de objectos considerados feios ou
arte dos loucos, etc.), ao vulgar extra-artístico nas performan- não agradáveis ou insignificantes, qu~ a escolha destes ready-
ces e nos happenings (Allan Kaprow, teórico e .RIªtic~os -lJ.!i!:.df!. (pá de neve, secador de garrafa ou urinol) lhe foi ditada
J !
happenings, declara qu~~a linha de demarcaçãQ_td}tre a arte e a pela indiferença e total ausência de deleitação estética que
vida deve ser mantida tão fluida quanto possível») e me~~o_ ao pudessem suscitar. É dizer que as qualidades aspectuais do
-.A _!!!!J.Il~:fia ciência e da técnica (artes tecnológicas, bioarte). objecto não estão lá para suscitar prazer sensível, mas somente .
A, propósito da arte contemporânea, Harold Rosenberg como qualidades impossíveis de eliminar e tão indiferentes
falava não só de desdefinição~ mas também de .desestetizaçãa quanto 0- peso ou o sistema de prender a coisa à parede. A
(La Dé-définition de l'Art, 1972). Este termo pode ser enten- arte irá cada vez mais longe e procederá a esta eliminação ,
dido em diversos sentidos . .rrÚneiro, neste sentido em que o (particularmente na arte conceptual). Os seus objectos são
belo, desde há muito tempo, já _deixou de ser a preocupação desmaterializados: a Escultura Invisível de Claes Oldenburg
principal da arte. Com o romantismo, a arte abriu-se ao feio consiste num buraco cavado e logo tapado no Central Park,
"como a um novo campo de exploração (pensemos no Prefácio e Yves Klein expõe o vazio na Galerie Iris Clert (1958). Só
de Cromwell, de Hugo). Estendeu-se no expressionismo ao contam o gesto, a intenção, o processo, como diz eloquente-
mórbido, ao macabro, ao angustiante. ço.m._2...~!!lpres§!9n~s!ll0 mente o título da exposição na Kunsthalle de Berna em 1969:
interessou-se pelo vulgar, pelo quotidiano, pelo trivial: La Quando as Atitudes se tornam Forma. \A_yiragem tecnológica
gare Saint-Lazare (Monet), os passeios molhados (Renoir), um dg arte (vídeo, Art computer, arte biotecnológica) confirma e
Buveur d'Absinthe (Manet). A arte contemporânea remata este reforça esta tendência para o processo. Já não existe a obra
c movimento representando ou apresentando objectos mO<iesJ classicamente concebida como totalidade sensível, acabada e
tos ou desagradáveis (acumulações de Rauschenberg" caixotes . durável. I
do lixo de Arman, objectos usados ou danificados da Arte Deste modo, a natureza da arte tornou-se muito incerta.
povera). Como, já em 1972, escrevia Rosenberg, «ninguém pode dizer
Mas a desestetização da arte vai mais longe e deve ser com certeza o que é uma obra de arte ou - mais importante
entendida noutros sentidos. De facto, certas correntes - o que não é uma obra de arte. Quando um objecto de arte

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Um objecto compósito de Rauschenberg, uma cirurgia de contemp.od.~as queremafastar-se não só da beleza, mas tam-
Orlan ou o embrulhar das falésias do Norte de Sydney por ~ém da gualillilqe estética em geral e do elernento sensfvel] O
Christo, além de.inclassificáveis, põem em causa as tradicionais escultor minimalista Robert Morris declara por um acto de
fronteiras interior~eque permitem a delimitação dos notariado datado de 15 de Novembro de 1963, a propósito
géneros (das belas-artes). A arte tornou-~~ genérica (1hierry de ' da sua construção de metal baptizada Litanie: «O abaixo-
Duve, Nominalisme Pictural, 1984), no sentido de que tem a -assinado Robert Morris [...] retira à supracitada construção
ver com a Arte sem artes. toda a qualidade estética e todo o conteúdo, e declara, a partir
Por outro lado, as fronteiras externas da arte tornaram-se deste dia, a referida construção desprovida de qualquer qua-
..._indecifráveis: abriu-se ao passado mais recuado (pintura dos lidade e também de conteúdo» e Marcel Duchamp objecta,
aborígenes australianos, por exemplo), aos longínquos (pintura a todos os que julgam ler nos seus ready-made a vontade de
sobre areia dos Índios Navajos), à outra arte (arte das crianças, mostrar a qualidade estética de objectos considerados feios ou
arte dos loucos, etc.), ao vulgar extra-artístico nas performan- não agradáveis ou insignificantes, qu~ a escolha destes ready-
ces e nos happenings (Allan Kaprow, teórico e .RIªtic~os -lJ.!i!:.df!. (pá de neve, secador de garrafa ou urinol) lhe foi ditada
J !
happenings, declara qu~~a linha de demarcaçãQ_td}tre a arte e a pela indiferença e total ausência de deleitação estética que
vida deve ser mantida tão fluida quanto possível») e me~~o_ ao pudessem suscitar. É dizer que as qualidades aspectuais do
-.A _!!!!J.Il~:fia ciência e da técnica (artes tecnológicas, bioarte). objecto não estão lá para suscitar prazer sensível, mas somente .
A, propósito da arte contemporânea, Harold Rosenberg como qualidades impossíveis de eliminar e tão indiferentes
falava não só de desdefinição~ mas também de .desestetizaçãa quanto 0- peso ou o sistema de prender a coisa à parede. A
(La Dé-définition de l'Art, 1972). Este termo pode ser enten- arte irá cada vez mais longe e procederá a esta eliminação ,
dido em diversos sentidos . .rrÚneiro, neste sentido em que o (particularmente na arte conceptual). Os seus objectos são
belo, desde há muito tempo, já _deixou de ser a preocupação desmaterializados: a Escultura Invisível de Claes Oldenburg
principal da arte. Com o romantismo, a arte abriu-se ao feio consiste num buraco cavado e logo tapado no Central Park,
"como a um novo campo de exploração (pensemos no Prefácio e Yves Klein expõe o vazio na Galerie Iris Clert (1958). Só
de Cromwell, de Hugo). Estendeu-se no expressionismo ao contam o gesto, a intenção, o processo, como diz eloquente-
mórbido, ao macabro, ao angustiante. ço.m._2...~!!lpres§!9n~s!ll0 mente o título da exposição na Kunsthalle de Berna em 1969:
interessou-se pelo vulgar, pelo quotidiano, pelo trivial: La Quando as Atitudes se tornam Forma. \A_yiragem tecnológica
gare Saint-Lazare (Monet), os passeios molhados (Renoir), um dg arte (vídeo, Art computer, arte biotecnológica) confirma e
Buveur d'Absinthe (Manet). A arte contemporânea remata este reforça esta tendência para o processo. Já não existe a obra
c movimento representando ou apresentando objectos mO<iesJ classicamente concebida como totalidade sensível, acabada e
tos ou desagradáveis (acumulações de Rauschenberg" caixotes . durável. I
do lixo de Arman, objectos usados ou danificados da Arte Deste modo, a natureza da arte tornou-se muito incerta.
povera). Como, já em 1972, escrevia Rosenberg, «ninguém pode dizer
Mas a desestetização da arte vai mais longe e deve ser com certeza o que é uma obra de arte ou - mais importante
entendida noutros sentidos. De facto, certas correntes - o que não é uma obra de arte. Quando um objecto de arte

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continua presente como na pintura é aquilo a que chamei um som) tornaram possível a reprodução ilimitada das obras do
"objecto ansioso": ignora se é uma obra-prima ou um resíduo» passado que, até então, só tinham uma existência por unidade
(La Dé-définition de l:Art). (fõto-gra~as das obras plásticas. ravação das obras musicais).
\ Se a questão central levantada pela nova epistêmê no sécu- Dotadas desta nov . uidad as obras deixaram o seu
lo XVIII era a do juízo de gosto, a que o futuro da arte levanta lugar e o seu tempo para se aproximarem.dc-ouvinre, ou do
no século xx é a da definição da arte. Perante esta nova situação, espectador. Estas novas técnicas também permitiram o apare-
~
a estética toma várias posições, de que consideraremos três. A cimento de novas formas de arte, por natureza reprodutíveis: a
primeira é a da Escola de Francoforte; a segunda, a da estética fotografia e o cinema. Estas transformações, somadas a outras
fenomenológica; a terceira, a da estética analítica. evoluções ~ócio-hi~tóricas que conduziram ao surgimento de
um público de massa, mudaram consideravelmente o rosto f
de uma arte, cujo valor cultuai foi substituído pelo valor de eJ' /_".

lI. - A Escola de Francoforte e:eosição. (


Segue-se uma modificação considerável da própria expe-
A primeira postura desta estética contemporânea é uma riên~ia artística: a obra da idade moderna (a que hoje se pro-
reflexão sobre a arte em geral e sobre o seu devir actual em duz e as do passado reproduzidas com meios do presente) já
particular, consistindo numa análise das suas condições de ~o exige a contemplação, o recolhimento, a atenção séria
possibilidade sócio-históricas. É o caso de dois teóricos de que outrora a obra requeria; convida a uma atenção distraída,
inspiração marxista: Walter Benjamin e Adorno. ligeira e efémera. O interesse da análise de Benjamin é o de
mostrar que este fenómeno ultrapassa o domínio da experiência
1. Walter Benjamin. - (Tomou posição a favor da politi- artística que, assim, tem valor de sintoma. Está em jogo uma
.._~~

zação da arte contra a estetização da política no fascismo. Mas modificação da sensibilidade humana global: «Ao longo dos
é a sua reflexão sobre o estado presente da arte, as suas con- grandes períodos históricos, assiste-se à transformação não só
dições de possibilidade e as suas consequências, que encon- de todo o modo de existência das comunidades humanas, mas
tramos em A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade igualmente da sua maneira de sentir e de. perceber,> A forma
Técnica\(1939), que nos ocupará agora. Nela, Benjamin ana- da sensibilidade humana não depende só da natureza, mas
lisa este fenómeno moderno a que chama «a perda da aura>? também da história. ~~I _I
.l
J "

Com este termo «aura», que define como «a única aparição de I

um longínquo, por mais próxima que possa estar», Benjamin 2. Adorno. - Segundo Adorno, uma história da arte .não
designa a irradiação das obras do passado que lhes conferia a deve ser especulativa (as «últimas grandes estéticas [Hegel e
existência num só lugar do espaço e num único. momento do Kant] - declara ele em Teoria Estética, 1970 - foram escritas
tempo. A unicidade, a autenticidade e a autoridade das obras sem nada compreender da arte»), rnas .crítica. Aqui, 0_ termo.
constituíam o seu valor cultual (ligado ao culto, ao sagrado). «crítica» remete para o 'programa daquilo que, depois da
A evolução da técnica significou a penda da aura das obras. Segunda Guerra Mundial, viria a ser a Escola de Fr-ªnc_o(orte
De facto, as novas técnicas de reprodução (da imagem e do (de que Adorno, com Benjamin, Marcuse e Horkheimer, é um

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

continua presente como na pintura é aquilo a que chamei um som) tornaram possível a reprodução ilimitada das obras do
"objecto ansioso": ignora se é uma obra-prima ou um resíduo» passado que, até então, só tinham uma existência por unidade
(La Dé-définition de l:Art). (fõto-gra~as das obras plásticas. ravação das obras musicais).
\ Se a questão central levantada pela nova epistêmê no sécu- Dotadas desta nov . uidad as obras deixaram o seu
lo XVIII era a do juízo de gosto, a que o futuro da arte levanta lugar e o seu tempo para se aproximarem.dc-ouvinre, ou do
no século xx é a da definição da arte. Perante esta nova situação, espectador. Estas novas técnicas também permitiram o apare-
~
a estética toma várias posições, de que consideraremos três. A cimento de novas formas de arte, por natureza reprodutíveis: a
primeira é a da Escola de Francoforte; a segunda, a da estética fotografia e o cinema. Estas transformações, somadas a outras
fenomenológica; a terceira, a da estética analítica. evoluções ~ócio-hi~tóricas que conduziram ao surgimento de
um público de massa, mudaram consideravelmente o rosto f
de uma arte, cujo valor cultuai foi substituído pelo valor de eJ' /_".

lI. - A Escola de Francoforte e:eosição. (


Segue-se uma modificação considerável da própria expe-
A primeira postura desta estética contemporânea é uma riên~ia artística: a obra da idade moderna (a que hoje se pro-
reflexão sobre a arte em geral e sobre o seu devir actual em duz e as do passado reproduzidas com meios do presente) já
particular, consistindo numa análise das suas condições de ~o exige a contemplação, o recolhimento, a atenção séria
possibilidade sócio-históricas. É o caso de dois teóricos de que outrora a obra requeria; convida a uma atenção distraída,
inspiração marxista: Walter Benjamin e Adorno. ligeira e efémera. O interesse da análise de Benjamin é o de
mostrar que este fenómeno ultrapassa o domínio da experiência
1. Walter Benjamin. - (Tomou posição a favor da politi- artística que, assim, tem valor de sintoma. Está em jogo uma
.._~~

zação da arte contra a estetização da política no fascismo. Mas modificação da sensibilidade humana global: «Ao longo dos
é a sua reflexão sobre o estado presente da arte, as suas con- grandes períodos históricos, assiste-se à transformação não só
dições de possibilidade e as suas consequências, que encon- de todo o modo de existência das comunidades humanas, mas
tramos em A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade igualmente da sua maneira de sentir e de. perceber,> A forma
Técnica\(1939), que nos ocupará agora. Nela, Benjamin ana- da sensibilidade humana não depende só da natureza, mas
lisa este fenómeno moderno a que chama «a perda da aura>? também da história. ~~I _I
.l
J "

Com este termo «aura», que define como «a única aparição de I

um longínquo, por mais próxima que possa estar», Benjamin 2. Adorno. - Segundo Adorno, uma história da arte .não
designa a irradiação das obras do passado que lhes conferia a deve ser especulativa (as «últimas grandes estéticas [Hegel e
existência num só lugar do espaço e num único. momento do Kant] - declara ele em Teoria Estética, 1970 - foram escritas
tempo. A unicidade, a autenticidade e a autoridade das obras sem nada compreender da arte»), rnas .crítica. Aqui, 0_ termo.
constituíam o seu valor cultual (ligado ao culto, ao sagrado). «crítica» remete para o 'programa daquilo que, depois da
A evolução da técnica significou a penda da aura das obras. Segunda Guerra Mundial, viria a ser a Escola de Fr-ªnc_o(orte
De facto, as novas técnicas de reprodução (da imagem e do (de que Adorno, com Benjamin, Marcuse e Horkheimer, é um

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

. o
/\ J)5"'J'dosmais eminentes representantes). Que a teoria da arte deva das de Mallarmé, de Kafka ou de Celan, e das de Klee ou de.
LP;;r
J ~ , crítica entende-se em diversos sentidos. . ,Ka~~!?-~y. Ele espera que esta arte proporcione ao proletariado _,
r ;} Isto significa, em primeiro lugar, que ela deve mostrar as nobres lazeres e também participe activamente na, regeneração @
\...o r, ligações que unem a arte ao momento histórico e social e!? , da ·sociedadf.
II que se desenvolve. Porque a crença na autonomia da arte é um Portanto, na obra de Adorno há uma tensão sensível entre
~ logro; ela própria é explicável por razões sócio-históricas cor- 'esta crença na função critíca'e redentora da arte, por um lado, e
.J. ~ '/ respondentes a uma etapa do pensamento burguês do fim _9-0 a afirmação da dependência da arte relativamente ao social, por
.~ _/ século XVIII. Portanto, segundo Adorno, a arte não tem uma outro, tensão que se lê no seu conceito «le soberania da arte .
\l ~\~/essência intrínseca que permita fazer, sobre as suas produções,
~~_, um juízo avaliativo definitivo em função da sua proximidade
em relação a esta essência. IH. - A estética fenomenológica
Esta teoria da arte é também crítica no sentido em que pre-
tende denunciar a sorte da cult~ra numa sociedade capitalista Com esta expressão designar-se-á uma tendência contem-
~b!lleJjda ao domínio da racionalidade técllica_) porânea da estética que agrupa um número de pensadores sob
Adorno analisa os efeitos de manipulação e de condiciona- o estandarte da fenomenologia, entre os quais Merleau-Ponty,
mento na consciência e na sensibilidade causados por estes Mikel Dufrenne, Michel Henry ou Henri Maldiney, Aplicando
produtos standard, pobres e degradados saídos daquilo a que à estética o aparato conceptual da fenomenologia, estes pensa-
ele dá o nome de «indústria cultural». . dores reuniram-se por conteúdos, temas e teses - em suma, um
Mas «crítica» também se entende noutro sentido que remete corpo de doutrina, mas tratado de diversas maneiras.
para a capacidade crítica que Adorno reconhece à arte. A obra A estética fenomenológica é principalmente (mas não exclu-
verdadeira, que não saiu da indústria da cultura, é um pro- sivamente) uma meditação sobre a arte. Porque existe - afirma
testo contra um real em que o domínio se afirma e é capaz de - uma afinidade especial da arte com a fenomenologia. É ver-
l transformar a submissão em transgressão.' Além disso, contra dade que a obra é tão-só um caso particular de fenómeno, mas é
~o divertimento degradante oferecido pela produção industrial fenómeno absolutamente à parte: a sua visibilidade excepcional
dos bens culturais, Adorno defende uma arte formal! Porque (a sua «audibilidade» particular, dever-se-ia dizer acerca das (A

a época em que «o prazer e a forma ainda podiam comunicar obras musicais) tem a ver c:.0!.ll_ o facto de ser realizada para I. l"P-.,.,{. ,
e-
ser vista ou ouvida e não utilizada ou compreendida. Por isso, P"- t?l'
')f, ~
"- muito estreitamente» terminou, a experiência da arte deve ser
O
ascética. A austeridade de muitas das vanguardas do século xx a arte é considerada uma estrada real para a fenomenalidade "é1lr'
/'
._tr-,
convida a este tipo de experiências que são outros tantos meios em geral. ) )I- 1-

de resistência à produção capitalista. O ascetismo artístico é Para além da diversidade das suas produções é possível ;~t:/'"
condição de uma felicidade vindoura: «O burguês deseja que caracterizar ~~gativameqte esta estética fenomenológica da
a arte seja voluptuosa e a vida? ascética; mas seria preferível o arte, precisando o que ela não é. De facto, os seus autores con-
contrário.»\Adorno é o teórico desta modernidade artística na cordam em dizer que ela não é uma pesquisa sócio-histórica
qual as obras de Schõnberg, de Berg ou de Webern andam a par que procura abordar o sentido da obra reportando-a ao seu

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

. o
/\ J)5"'J'dosmais eminentes representantes). Que a teoria da arte deva das de Mallarmé, de Kafka ou de Celan, e das de Klee ou de.
LP;;r
J ~ , crítica entende-se em diversos sentidos. . ,Ka~~!?-~y. Ele espera que esta arte proporcione ao proletariado _,
r ;} Isto significa, em primeiro lugar, que ela deve mostrar as nobres lazeres e também participe activamente na, regeneração @
\...o r, ligações que unem a arte ao momento histórico e social e!? , da ·sociedadf.
II que se desenvolve. Porque a crença na autonomia da arte é um Portanto, na obra de Adorno há uma tensão sensível entre
~ logro; ela própria é explicável por razões sócio-históricas cor- 'esta crença na função critíca'e redentora da arte, por um lado, e
.J. ~ '/ respondentes a uma etapa do pensamento burguês do fim _9-0 a afirmação da dependência da arte relativamente ao social, por
.~ _/ século XVIII. Portanto, segundo Adorno, a arte não tem uma outro, tensão que se lê no seu conceito «le soberania da arte .
\l ~\~/essência intrínseca que permita fazer, sobre as suas produções,
~~_, um juízo avaliativo definitivo em função da sua proximidade
em relação a esta essência. IH. - A estética fenomenológica
Esta teoria da arte é também crítica no sentido em que pre-
tende denunciar a sorte da cult~ra numa sociedade capitalista Com esta expressão designar-se-á uma tendência contem-
~b!lleJjda ao domínio da racionalidade técllica_) porânea da estética que agrupa um número de pensadores sob
Adorno analisa os efeitos de manipulação e de condiciona- o estandarte da fenomenologia, entre os quais Merleau-Ponty,
mento na consciência e na sensibilidade causados por estes Mikel Dufrenne, Michel Henry ou Henri Maldiney, Aplicando
produtos standard, pobres e degradados saídos daquilo a que à estética o aparato conceptual da fenomenologia, estes pensa-
ele dá o nome de «indústria cultural». . dores reuniram-se por conteúdos, temas e teses - em suma, um
Mas «crítica» também se entende noutro sentido que remete corpo de doutrina, mas tratado de diversas maneiras.
para a capacidade crítica que Adorno reconhece à arte. A obra A estética fenomenológica é principalmente (mas não exclu-
verdadeira, que não saiu da indústria da cultura, é um pro- sivamente) uma meditação sobre a arte. Porque existe - afirma
testo contra um real em que o domínio se afirma e é capaz de - uma afinidade especial da arte com a fenomenologia. É ver-
l transformar a submissão em transgressão.' Além disso, contra dade que a obra é tão-só um caso particular de fenómeno, mas é
~o divertimento degradante oferecido pela produção industrial fenómeno absolutamente à parte: a sua visibilidade excepcional
dos bens culturais, Adorno defende uma arte formal! Porque (a sua «audibilidade» particular, dever-se-ia dizer acerca das (A

a época em que «o prazer e a forma ainda podiam comunicar obras musicais) tem a ver c:.0!.ll_ o facto de ser realizada para I. l"P-.,.,{. ,
e-
ser vista ou ouvida e não utilizada ou compreendida. Por isso, P"- t?l'
')f, ~
"- muito estreitamente» terminou, a experiência da arte deve ser
O
ascética. A austeridade de muitas das vanguardas do século xx a arte é considerada uma estrada real para a fenomenalidade "é1lr'
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._tr-,
convida a este tipo de experiências que são outros tantos meios em geral. ) )I- 1-

de resistência à produção capitalista. O ascetismo artístico é Para além da diversidade das suas produções é possível ;~t:/'"
condição de uma felicidade vindoura: «O burguês deseja que caracterizar ~~gativameqte esta estética fenomenológica da
a arte seja voluptuosa e a vida? ascética; mas seria preferível o arte, precisando o que ela não é. De facto, os seus autores con-
contrário.»\Adorno é o teórico desta modernidade artística na cordam em dizer que ela não é uma pesquisa sócio-histórica
qual as obras de Schõnberg, de Berg ou de Webern andam a par que procura abordar o sentido da obra reportando-a ao seu

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lugar na história de um homem, dos homens, da arte ou dos como a geografia em relação à paisagem em que, primeiro,
estilos, já que a obra é algo muito diferente de um núcleo de aprendemos o que é uma floresta, uma pradaria ou um rio»
determinações históricas e sociais. A estética fenomenológica, (Preâmbulo da Fenomenologia da Percepção, 1945).
pelo contrário, insiste na presença nas próprias obras: «O A contribuição da arte para esta tarefa é excepcional: ao
olhar fenomenológico (deve ser) a revelação do ser cujo olhar passo que a ciência «manipula as coisas e renuncia a habitá-las»
estético-artístico se ilumina a si próprio», escreve Maldiney (O Olho e o Espírito, 1961), ignorando assim o chão em que
(<<ACaminho de que Fenomenologia da Arte?», in Art et nasceu, a arte, por seu lado, nutre-se dessa «camada de sentido
pbilosopbie, revista La part de l'ceil, 1991). Encontra-se ne§~a) bruto» (ibid.). Por isso, há um parentesco muito estreito entre o
fórmula a definição da fenomenologia segundo Heidegger: . olh<!f.e_st~ticoe o olhar fenomenológico. No quadro, realiza-se
~lA.)«"Fenomenologia" quer dizer apophainesthai ta phainomena, esta libertação do aparecimento. O estudo de Merleau-Ponty
L~
,
f~z~r ver a pa~tir de. si mesmo o que se mostra t;:t~~ual se
mostra a partIr de SI mesmo» (Ser e Tempo), d~fill1çao que)
sobre Cézanne (<<ADúvida de Céz~nne», in Sens et Non-sens,

j
194-8) mostra como ele pintou fpuros momentos fenomenais' e
, tindica o seu programa: !põr à vista o ser do ente.i /' ~ão um universo cristalizado em objectos (<<Vejopor tarefas»,
A diferença entre os autores vem principalmente da diferença
do sentido a dar a este ser do ente para o qual a experiên~ia
fenomenológica, como a experiência da arte, deve reconduzir.
º~
dizia o pintor). Desembaraçando assim o mundo da camada
sentidos que impede de vê-lo, os seus quadros revelam um
sentir primitivo. A pintura é consciência deste enraizamento
Assim, p_ara Merleau-Ponty, trata-se do mundo de antes .~_o
I conhecimento; para Michel Henry trata-se da vida. Aqui con-
no mundo de um sujeito encarnado, simultaneamente vidente
e,visível, que faz ser a fenomenalidade porque ele próprio é um
I
I

I sideraremos estas duas figuras da estética fenomenológica. corpo. Ela manifesta e celebra o enlace original do sentir e do /I l'
sensível, a que Merleau-Ponty chama «quiasma» e que conduz )1-'
1. Merleau-Ponty.-Na obra de Merleau-Ponty (1908-1961), a ultrapassar a oposição do corpo e do mundo em proveito '
é impossível separar os seus escritos sobre a arte e, principal- do termo único de «carne» (O Visível e o Invisível, 1964).
mente sobre a pintura, da sua aproximação ao homem. O que Esta grande pesquisa sobre o visível como acto comum do
o filósofo quer, de facto, _explorar é a experiência primordial ver e do mundo encontra na pintura um terreno privilegiado
que o homem faz do mundo, previamente à objectivação deste de investigação porque esta «celebra unicamente o enigma da
pelo conhecimento em geral e pela ciência em particular. Por- visibilidade» (O Olho e o Espírito).
que, ordinariamente, o sensível é ocultado pelas exigências do
conhecer e do agir.t O pensamento ingénuo, tal como o pen- 2. Michel Henry. - A fenomenologia não intencional de
samento científico, interpõe uma camada de sentidos entre o Michel Henry quer operar uma redução -;;is radk~fd;;- que
homem e o mundo. É esta espessura de saber que é necessário a praticada até então pela fenomenologia, pondo fora de jogo
t
remover para ~cuperar o «h'"
a» prevlO do mun diQ: «vo
'\, Itar as
' a própria intencionalidade para chegar' à ~ndição do apa- ~
próprias coisas é regressar a este mundo antes do conhecimento recimento da coisa. Pretende visar não'" õ fenómeno, ~ a
de que o conhecimento fala sempre, a respeito do qual toda a fenomenalidade, não a aparição mas o aparecer! Porque o apa-
determinação científica é abstracta, significativa e dependente, recimento da coisa só é possível quando acontece o próprio t "
1\, 'Do

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lugar na história de um homem, dos homens, da arte ou dos como a geografia em relação à paisagem em que, primeiro,
estilos, já que a obra é algo muito diferente de um núcleo de aprendemos o que é uma floresta, uma pradaria ou um rio»
determinações históricas e sociais. A estética fenomenológica, (Preâmbulo da Fenomenologia da Percepção, 1945).
pelo contrário, insiste na presença nas próprias obras: «O A contribuição da arte para esta tarefa é excepcional: ao
olhar fenomenológico (deve ser) a revelação do ser cujo olhar passo que a ciência «manipula as coisas e renuncia a habitá-las»
estético-artístico se ilumina a si próprio», escreve Maldiney (O Olho e o Espírito, 1961), ignorando assim o chão em que
(<<ACaminho de que Fenomenologia da Arte?», in Art et nasceu, a arte, por seu lado, nutre-se dessa «camada de sentido
pbilosopbie, revista La part de l'ceil, 1991). Encontra-se ne§~a) bruto» (ibid.). Por isso, há um parentesco muito estreito entre o
fórmula a definição da fenomenologia segundo Heidegger: . olh<!f.e_st~ticoe o olhar fenomenológico. No quadro, realiza-se
~lA.)«"Fenomenologia" quer dizer apophainesthai ta phainomena, esta libertação do aparecimento. O estudo de Merleau-Ponty
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mostra a partIr de SI mesmo» (Ser e Tempo), d~fill1çao que)
sobre Cézanne (<<ADúvida de Céz~nne», in Sens et Non-sens,

j
194-8) mostra como ele pintou fpuros momentos fenomenais' e
, tindica o seu programa: !põr à vista o ser do ente.i /' ~ão um universo cristalizado em objectos (<<Vejopor tarefas»,
A diferença entre os autores vem principalmente da diferença
do sentido a dar a este ser do ente para o qual a experiên~ia
fenomenológica, como a experiência da arte, deve reconduzir.
º~
dizia o pintor). Desembaraçando assim o mundo da camada
sentidos que impede de vê-lo, os seus quadros revelam um
sentir primitivo. A pintura é consciência deste enraizamento
Assim, p_ara Merleau-Ponty, trata-se do mundo de antes .~_o
I conhecimento; para Michel Henry trata-se da vida. Aqui con-
no mundo de um sujeito encarnado, simultaneamente vidente
e,visível, que faz ser a fenomenalidade porque ele próprio é um
I
I

I sideraremos estas duas figuras da estética fenomenológica. corpo. Ela manifesta e celebra o enlace original do sentir e do /I l'
sensível, a que Merleau-Ponty chama «quiasma» e que conduz )1-'
1. Merleau-Ponty.-Na obra de Merleau-Ponty (1908-1961), a ultrapassar a oposição do corpo e do mundo em proveito '
é impossível separar os seus escritos sobre a arte e, principal- do termo único de «carne» (O Visível e o Invisível, 1964).
mente sobre a pintura, da sua aproximação ao homem. O que Esta grande pesquisa sobre o visível como acto comum do
o filósofo quer, de facto, _explorar é a experiência primordial ver e do mundo encontra na pintura um terreno privilegiado
que o homem faz do mundo, previamente à objectivação deste de investigação porque esta «celebra unicamente o enigma da
pelo conhecimento em geral e pela ciência em particular. Por- visibilidade» (O Olho e o Espírito).
que, ordinariamente, o sensível é ocultado pelas exigências do
conhecer e do agir.t O pensamento ingénuo, tal como o pen- 2. Michel Henry. - A fenomenologia não intencional de
samento científico, interpõe uma camada de sentidos entre o Michel Henry quer operar uma redução -;;is radk~fd;;- que
homem e o mundo. É esta espessura de saber que é necessário a praticada até então pela fenomenologia, pondo fora de jogo
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remover para ~cuperar o «h'"
a» prevlO do mun diQ: «vo
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' a própria intencionalidade para chegar' à ~ndição do apa- ~
próprias coisas é regressar a este mundo antes do conhecimento recimento da coisa. Pretende visar não'" õ fenómeno, ~ a
de que o conhecimento fala sempre, a respeito do qual toda a fenomenalidade, não a aparição mas o aparecer! Porque o apa-
determinação científica é abstracta, significativa e dependente, recimento da coisa só é possível quando acontece o próprio t "
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"l'

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\ \ ( ,...,
aparecer. Este aparecer fundamental é a consciência pura, o fenomenológica. A crença no mundo é suspensa, ao mesmo
«experimentar-se a si mesmo», a afectividade; é aquilo a que tempo que todo o interesse prático ou intelectual», escreve
M. Henry dá o nomelde vida: Pensar o sentir é precisamente a H. Maldiney em «Intencionalidade e Estética» (op. cit.).
tarefa que a fenomenologia assume, mas trata-se aqui de fazê-lo Mas, aqui, de que arte se fala? As evoluções contemporâ-
não a partir do modo de manifestação extática, mas a partir neas da arte autorizam a dizer que ela é sempre a «verdade»
da essência da vida. \ ou a «perfeição» do sentir? Certamente que não. Corno a arte
A vida não pode ser vista. No entanto, na pintura de Kan- deixou largamente de ser fenomenológica, a fenomenologia
dinsky, a quem M:,_Henry consagra (~ir l'Inuisible ~(1988), e d~~ algum pode pensar o devi r contemporâneo da arte.
mais geralmente em toda a pintura que tem mais a ver com a Baseando-se no postulado de uma an-historicidade da arte e da
interioridade do que com a exterioridade: «Pintar é um fazer- essência intemporal das suas obras, a estética fenomenológica
-ver, mas este fazer-ver tem por fim fazer-nos ver o que não se deve deixar na sombra do inexplorado partes inteiras da arte
vê e que não pode ser visto.» contemporânea, em diversos sentidos: ela não se interessa, não
Portanto, como é que a pintura, arte do visível, pode pintar reflecte na sua presença embaraçante, bane-os implicitamente
o invisível, isto é, a subjectividade, não no sentido da idiossin- do mundo da arte e rejeita-os para os limbos da insignificân-
crasia, mas no sentido desta auto-afeição de si por sipP~de, cia. Todas estas formas, do que se chamará muito em síntese o
porque as formas e as cores que são os seus elementos pl,lros estado conceptual da arte, porque rompem com a aistbêsis, são
dão-se de duas maneiras: na exterioridade, onde são traçados e ~sim excluídas da arte; porque é «a essência da sensibilidade
~ ,,); superfícies visíveis, e na interioridade, onde elas são~nalidades que, desde sempre, atribui à arte o círculo das suas possibilida-
X' f;r 2tect~v3!.j Cada forma, cada cor é, em si mesma, J.!m afecto. des», todo o resto são apenas «iniciativas impotentes», escreve
\,V Y'- Formas e cores estão presentes, é certo, nos objectos do mundo também M. Henry (Ver o Invisível).
I \ e nele ressoam com o seu pathos próprio; mas estas ressonâncias ~ Todavia, a estética fenomenológica não se limita a ser uma
,{ ~ '. são quase inaudíveis na cacofonia das nossas percepções utili- ' ~losofia da arte. Ela é também reflexão sobre a aisthêsis, sobre
. I tárias. Mas, na pintura, em que se dão a ver fora de qualquer o sentir e o parecer. Neste sentido, a obra de Erwin Straus Do
preocupação ordinária, e mais ainda na pintura não figurativa
em que não estão sujeitas à representação mimética dos objectos
do mundo, podem desenvolver toda a sua força emocional. A
~ª~,
Sentido dos Sentidos (1935) é realmente uma l~r;-de estética.
o autor distingue cuidadosamente o s';;;tir ci; conhe-
cer, o que não significa que o sensível e o conhecimento não
pintura oferece assim à vida a ocasião de uma excepcional prova tenham nada a ver entre si: as sensações constituem realmente
de si, e a arte no seu conjunto permite esta «vida engrandecida a primeira matéria-prima d~íi. Mas Erwin Straus, r_ççysando.
que é a experiência estética». q~se reduza sentir a «ter sensações», mostra como, além da
sua dimensão gnósica que me informa sobre as propriedades
3. A arte e o sensível. - Portanto, a arte constitui um ter- do objecto, o sentir possui uma dimensão pática que «define o
reno de pesquisa privilegiado para a estética fenomenológica em modo de participação do sujeito no mundo». Por conseguinte,
função do parentesco do olhar estético e do olhar fenomenoló- é preciso distinguir no interior do sentir entre «ter uma sen-
gico: «A experiência estética, quando é pura, realiza a redução sação» e «experimentar». Os escritos de Merleau-Ponty a que

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VI
" cN .!~
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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

\ \ ( ,...,
aparecer. Este aparecer fundamental é a consciência pura, o fenomenológica. A crença no mundo é suspensa, ao mesmo
«experimentar-se a si mesmo», a afectividade; é aquilo a que tempo que todo o interesse prático ou intelectual», escreve
M. Henry dá o nomelde vida: Pensar o sentir é precisamente a H. Maldiney em «Intencionalidade e Estética» (op. cit.).
tarefa que a fenomenologia assume, mas trata-se aqui de fazê-lo Mas, aqui, de que arte se fala? As evoluções contemporâ-
não a partir do modo de manifestação extática, mas a partir neas da arte autorizam a dizer que ela é sempre a «verdade»
da essência da vida. \ ou a «perfeição» do sentir? Certamente que não. Corno a arte
A vida não pode ser vista. No entanto, na pintura de Kan- deixou largamente de ser fenomenológica, a fenomenologia
dinsky, a quem M:,_Henry consagra (~ir l'Inuisible ~(1988), e d~~ algum pode pensar o devi r contemporâneo da arte.
mais geralmente em toda a pintura que tem mais a ver com a Baseando-se no postulado de uma an-historicidade da arte e da
interioridade do que com a exterioridade: «Pintar é um fazer- essência intemporal das suas obras, a estética fenomenológica
-ver, mas este fazer-ver tem por fim fazer-nos ver o que não se deve deixar na sombra do inexplorado partes inteiras da arte
vê e que não pode ser visto.» contemporânea, em diversos sentidos: ela não se interessa, não
Portanto, como é que a pintura, arte do visível, pode pintar reflecte na sua presença embaraçante, bane-os implicitamente
o invisível, isto é, a subjectividade, não no sentido da idiossin- do mundo da arte e rejeita-os para os limbos da insignificân-
crasia, mas no sentido desta auto-afeição de si por sipP~de, cia. Todas estas formas, do que se chamará muito em síntese o
porque as formas e as cores que são os seus elementos pl,lros estado conceptual da arte, porque rompem com a aistbêsis, são
dão-se de duas maneiras: na exterioridade, onde são traçados e ~sim excluídas da arte; porque é «a essência da sensibilidade
~ ,,); superfícies visíveis, e na interioridade, onde elas são~nalidades que, desde sempre, atribui à arte o círculo das suas possibilida-
X' f;r 2tect~v3!.j Cada forma, cada cor é, em si mesma, J.!m afecto. des», todo o resto são apenas «iniciativas impotentes», escreve
\,V Y'- Formas e cores estão presentes, é certo, nos objectos do mundo também M. Henry (Ver o Invisível).
I \ e nele ressoam com o seu pathos próprio; mas estas ressonâncias ~ Todavia, a estética fenomenológica não se limita a ser uma
,{ ~ '. são quase inaudíveis na cacofonia das nossas percepções utili- ' ~losofia da arte. Ela é também reflexão sobre a aisthêsis, sobre
. I tárias. Mas, na pintura, em que se dão a ver fora de qualquer o sentir e o parecer. Neste sentido, a obra de Erwin Straus Do
preocupação ordinária, e mais ainda na pintura não figurativa
em que não estão sujeitas à representação mimética dos objectos
do mundo, podem desenvolver toda a sua força emocional. A
~ª~,
Sentido dos Sentidos (1935) é realmente uma l~r;-de estética.
o autor distingue cuidadosamente o s';;;tir ci; conhe-
cer, o que não significa que o sensível e o conhecimento não
pintura oferece assim à vida a ocasião de uma excepcional prova tenham nada a ver entre si: as sensações constituem realmente
de si, e a arte no seu conjunto permite esta «vida engrandecida a primeira matéria-prima d~íi. Mas Erwin Straus, r_ççysando.
que é a experiência estética». q~se reduza sentir a «ter sensações», mostra como, além da
sua dimensão gnósica que me informa sobre as propriedades
3. A arte e o sensível. - Portanto, a arte constitui um ter- do objecto, o sentir possui uma dimensão pática que «define o
reno de pesquisa privilegiado para a estética fenomenológica em modo de participação do sujeito no mundo». Por conseguinte,
função do parentesco do olhar estético e do olhar fenomenoló- é preciso distinguir no interior do sentir entre «ter uma sen-
gico: «A experiência estética, quando é pura, realiza a redução sação» e «experimentar». Os escritos de Merleau-Ponty a que

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~_ÉT __Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTíSTICOS DO SÉCULO XX

~s referimos atrás, também se inscrevem nesta análise da a qual a arte é expressão, ou da _~eseda forma significante de
aisthêsis. Os estudos de jean-Luc Marion sobre a perspectiva Clive Bell.itodas estas proposições são consideradas confusas,
(A Cruzada do Visível, 1991), os de Dufrenne sobre a natureza duvidosas e estéreis.
(<<Aexperiência Estética da Natureza», 1955), os de Maldine;y Esta confusão, contra a qual a filosofia analítica pretende
sobre o ritmo (Olhar, Palavra, Espaço, 1973) ou os de Sartre lutar em geral, está, segundo ela, ligada a um essencialismo
sobre a imaginação (O Imaginário, 1940) são outras tantas paralisante. É porque os filósofos crêem na existência de essên-
contribuições para uma estética compreendida como reflexão cias (da obra, da arte, da contemplação, etc.) que são levados
sobre a aisthêsis. ~ a fórmulas vagas e obscuras, as únicas capazes de pretender
explicar uma realidade complexa e instável que escaparia de
maneira muito visível às redes do conceito claro. A luta pela
IV. - A estética analítica clareza está portanto inseparavelmente ligada ao combate con-
tra o essencialismo.
o que é a estética analítica? A existência nela de um objecto Se a estética fenomenológica ignora a parte mais problema-
consistente parece desde logo autorizar a concluir na sua opo- tica da arte contemporânea, a estética analítica, por seu lado,
'--- -
sição por vezes feroz à corrente fenomenológica que, aliás, lhe está em linha com as produções do seu tempo e, considerando
dá boa réplica. Mas, embora seja fácil compreender o que ela que o devir contemporâneo da arte não pode ser ignorado, Jaz
não é, é mais difícil dizer o que ela é e que nomes e que obras daquestão candente da definição da arte um dos seus objectos II

devem ser abrangidos por esta designação. Estes dois últimos de investigação privilegiados. \ ~
pontos estão evidentemente ligados: quanto mais precisa for a
• ; ',j,J

definição, tanto menor será o número de escritos considera- 1. A questão da definição da arte. - Um artigo de Mor- r\V'
dos. De facto, a estética analítica não é nem um movimento "'" I
ris Weitz surgido emC)956' desempenhou um papel seminal. .r ,

caracterizado por conteúdos doutrinais nem um simples estilo Lembrando que os filósofos consideraram central a questão da
de escrita, \..masum método particular de abordar as questões natureza da arte de que, segundo eles, dependem a apreciação
estéticas :-' e a crítica, o autor passa em revista diferentes teorias artísticas
Todos os pensadores que subscrevem este método analítico recentes, das quais o @otivismo de Tolsto~, o intuicionismo
fazem sua a fórmula de Russell, segundo a qual não se trata de de Croce e a teoria voluntarista de Parker. Depois, mostra que,
construir sistemas, mas de analisar, quer dizer, de decompor em cada um destes casos, o princípio de definição considerado
um conceito, um facto ou uma entidade nos seus componentes, é inaceitável: está incompleto, deixando fora do seu alcance um
e clarificar noções vagas e confusas examinando a maneira grande conjunto de obras, e de uma generalidade tal que não
como são empregues. Neste sentido, a estética analítica no seu pode ser nem confirmado nem infirmado pelos factos. Segundo
conjunto ~ uma reacção contra os grandes sistemas especula- Weitz, não se trata de tentativas desastradas e não conseguidas
tivos de tipo hegeliano e, mais recentemente, contra as teorias de um projecto legítimo, ma§ i(~rmas de fracasso inscritas no r/\,.f.r-
transcendentais e idealistas da arte. Quer se trate do ser do ente próprio projecto de uma definição de essência. De tal modo,
segundo Heidegger, da afirmação de Benedetto Croce segundo que Weitz incita a uma mudança completa de perspectivas e r: ~,

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~_ÉT __Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTíSTICOS DO SÉCULO XX

~s referimos atrás, também se inscrevem nesta análise da a qual a arte é expressão, ou da _~eseda forma significante de
aisthêsis. Os estudos de jean-Luc Marion sobre a perspectiva Clive Bell.itodas estas proposições são consideradas confusas,
(A Cruzada do Visível, 1991), os de Dufrenne sobre a natureza duvidosas e estéreis.
(<<Aexperiência Estética da Natureza», 1955), os de Maldine;y Esta confusão, contra a qual a filosofia analítica pretende
sobre o ritmo (Olhar, Palavra, Espaço, 1973) ou os de Sartre lutar em geral, está, segundo ela, ligada a um essencialismo
sobre a imaginação (O Imaginário, 1940) são outras tantas paralisante. É porque os filósofos crêem na existência de essên-
contribuições para uma estética compreendida como reflexão cias (da obra, da arte, da contemplação, etc.) que são levados
sobre a aisthêsis. ~ a fórmulas vagas e obscuras, as únicas capazes de pretender
explicar uma realidade complexa e instável que escaparia de
maneira muito visível às redes do conceito claro. A luta pela
IV. - A estética analítica clareza está portanto inseparavelmente ligada ao combate con-
tra o essencialismo.
o que é a estética analítica? A existência nela de um objecto Se a estética fenomenológica ignora a parte mais problema-
consistente parece desde logo autorizar a concluir na sua opo- tica da arte contemporânea, a estética analítica, por seu lado,
'--- -
sição por vezes feroz à corrente fenomenológica que, aliás, lhe está em linha com as produções do seu tempo e, considerando
dá boa réplica. Mas, embora seja fácil compreender o que ela que o devir contemporâneo da arte não pode ser ignorado, Jaz
não é, é mais difícil dizer o que ela é e que nomes e que obras daquestão candente da definição da arte um dos seus objectos II

devem ser abrangidos por esta designação. Estes dois últimos de investigação privilegiados. \ ~
pontos estão evidentemente ligados: quanto mais precisa for a
• ; ',j,J

definição, tanto menor será o número de escritos considera- 1. A questão da definição da arte. - Um artigo de Mor- r\V'
dos. De facto, a estética analítica não é nem um movimento "'" I
ris Weitz surgido emC)956' desempenhou um papel seminal. .r ,

caracterizado por conteúdos doutrinais nem um simples estilo Lembrando que os filósofos consideraram central a questão da
de escrita, \..masum método particular de abordar as questões natureza da arte de que, segundo eles, dependem a apreciação
estéticas :-' e a crítica, o autor passa em revista diferentes teorias artísticas
Todos os pensadores que subscrevem este método analítico recentes, das quais o @otivismo de Tolsto~, o intuicionismo
fazem sua a fórmula de Russell, segundo a qual não se trata de de Croce e a teoria voluntarista de Parker. Depois, mostra que,
construir sistemas, mas de analisar, quer dizer, de decompor em cada um destes casos, o princípio de definição considerado
um conceito, um facto ou uma entidade nos seus componentes, é inaceitável: está incompleto, deixando fora do seu alcance um
e clarificar noções vagas e confusas examinando a maneira grande conjunto de obras, e de uma generalidade tal que não
como são empregues. Neste sentido, a estética analítica no seu pode ser nem confirmado nem infirmado pelos factos. Segundo
conjunto ~ uma reacção contra os grandes sistemas especula- Weitz, não se trata de tentativas desastradas e não conseguidas
tivos de tipo hegeliano e, mais recentemente, contra as teorias de um projecto legítimo, ma§ i(~rmas de fracasso inscritas no r/\,.f.r-
transcendentais e idealistas da arte. Quer se trate do ser do ente próprio projecto de uma definição de essência. De tal modo,
segundo Heidegger, da afirmação de Benedetto Croce segundo que Weitz incita a uma mudança completa de perspectivas e r: ~,

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

convida a rebater o sentido sobre o uso. É preciso substituir 'IJn densidade sintáctica e semântica, a saturação, a exemplificação
<,

a-pergunta «0_ ~~ é a arte?» por esta «Que uso fazemos da ,'/ e a multirreferência [Modos de Fazer Mundos, 1978]), mas tam-
pa Iavra "arte "?r» E ntao,
- arte aparece como um conceito . ab erto, j bém posta em causa no próprio interior da filosofia analítica,
como é o conceito de jogo analisado por Wittgenstein, o que nomeadamente por Maurice Mandelbaum que, num artigo de
significa que não há tanto entre as obras de arte como entre 1965 (<<FamilyResemblances and Generalizations concerning
os jogos (damas, macaca, ténis, xadrez ...) nenhum carácter the Arts»), considera que é possível não abandonar a ideia de
comum que permita estabelecer uma definição em termos de definição, sem, por isso, crer na existência de uma essência da
condições necessárias e suficientes (diferentemente do conceito arte.
fechado de triângulo, por exemplo; é necessário e suficiente que A discussão aberta por Mandelbaum prosseguiu em diversos
um polígono tenha três lados para que se trate de um triân- autores. Assim, Arthur Danto considera que, longe de tornar
gulo), mas suficientes afinidades e analogias parciais para tecer impossível a definição da arte, a evolução contemporânea da
entre estas actividades uma rede de traços que Wittgenstein arte e, nomeadamente, a paradigmática exposição de Warhol
designa pela fórmula «semelhanças de família». Portanto, o das caixas de cartão de esfregões limpa-metais da marca Brillo
conceito de arte não é mais do que um feixe de propriedades, na Stable Gallery em Nova Iorque em 1964, torna esta defini-
nenhuma das quais é absolutamente necessária mas de que ção urgente. Porque é que dois objectos perceptualmente indis-
um certo número está presente quando se descreve um objecto cerníveis (a caixa de Brillo no entreposto do supermercado, por
como uma obra de arte, o que basta para fazer dele um conceito um lado; na galeria, por outro), são, um arte, e o utto.,__!!Ql
razoável e utilizável. ob~'ecto trivial? Danto analisa a maneira como «mundo da '"::'~
.....--. ~",' '" Co

Portanto, um conceito aberto é também um conceito cujas , arte» opera esta transmutação do objecto vulgar em objecto A~~
condições de aplicação podem ser modificadas. Assim, a escul- "--;rtÍstico: «ver qualquer coisa como arte requer algo mais do -w-,.~.
tura é tradicionalmente definida pela tridimensionalidade e pela que os olhos não podem aperceber-se ~ uma atmosfera da teoria c1
imobilidade. Quando surgem na história da arte os primeiros artÍstica, um conhecimento da história da arte: um mundo da (~' ":;;
móbiles, que convirá fazer? Eliminar a última característica do f
arte» (<<OMundo da Arte», 1964). Esta «atmosfera de teoria 1-'" ( CoA' ,,~,

conceito de escultura e portanto alargar a extensão do conceito artística» é um conjunto delicado de saberes, de valores, de 1'0 c,

restringindo a sua compreensão (os móbiles são da escultura)? concepções difusas, que formam a sensibilidade teórica de uma
Ou, então, criar outro conceito a par do conceito de escultura, época. Era impensável que as Caixas de Brillo de Warhol pudes-
o conceito de móbil? Aqui, o essencial é compreender que sem ser consideradas obras de arte em finais do século XIX,
qualquer uma destas possibilidades exige uma decisão. Num mas, entretanto, já houvera as colagens cubistas e os ready-made
céu das Ideias não há uma essência de escultura que permita de Duchamp que tinham modificado esta pré-compreensão
dizer que as obras são pu não são escultura. da arte.@a atmosfera teórica nova abre um novo campo de
A_posição ~id~~~ de,3'eitz foi partilhada (Nel- possíveis. Seria ingénuo acreditar que apreender uma pintura,
son Goodman, por exemplo, considera como anti-essencialista é ver simplesmente formas e cores; não há olhar ingénuo, mas
que um objecto é estético quando funciona simbolicamente uma visão informada por um saber mais ou menos consciente
de maneira caracterizada por cinco «sintomas» ou índices: a e articulado, mas sempre pressuposto pela percepção da arte.

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

convida a rebater o sentido sobre o uso. É preciso substituir 'IJn densidade sintáctica e semântica, a saturação, a exemplificação
<,

a-pergunta «0_ ~~ é a arte?» por esta «Que uso fazemos da ,'/ e a multirreferência [Modos de Fazer Mundos, 1978]), mas tam-
pa Iavra "arte "?r» E ntao,
- arte aparece como um conceito . ab erto, j bém posta em causa no próprio interior da filosofia analítica,
como é o conceito de jogo analisado por Wittgenstein, o que nomeadamente por Maurice Mandelbaum que, num artigo de
significa que não há tanto entre as obras de arte como entre 1965 (<<FamilyResemblances and Generalizations concerning
os jogos (damas, macaca, ténis, xadrez ...) nenhum carácter the Arts»), considera que é possível não abandonar a ideia de
comum que permita estabelecer uma definição em termos de definição, sem, por isso, crer na existência de uma essência da
condições necessárias e suficientes (diferentemente do conceito arte.
fechado de triângulo, por exemplo; é necessário e suficiente que A discussão aberta por Mandelbaum prosseguiu em diversos
um polígono tenha três lados para que se trate de um triân- autores. Assim, Arthur Danto considera que, longe de tornar
gulo), mas suficientes afinidades e analogias parciais para tecer impossível a definição da arte, a evolução contemporânea da
entre estas actividades uma rede de traços que Wittgenstein arte e, nomeadamente, a paradigmática exposição de Warhol
designa pela fórmula «semelhanças de família». Portanto, o das caixas de cartão de esfregões limpa-metais da marca Brillo
conceito de arte não é mais do que um feixe de propriedades, na Stable Gallery em Nova Iorque em 1964, torna esta defini-
nenhuma das quais é absolutamente necessária mas de que ção urgente. Porque é que dois objectos perceptualmente indis-
um certo número está presente quando se descreve um objecto cerníveis (a caixa de Brillo no entreposto do supermercado, por
como uma obra de arte, o que basta para fazer dele um conceito um lado; na galeria, por outro), são, um arte, e o utto.,__!!Ql
razoável e utilizável. ob~'ecto trivial? Danto analisa a maneira como «mundo da '"::'~
.....--. ~",' '" Co

Portanto, um conceito aberto é também um conceito cujas , arte» opera esta transmutação do objecto vulgar em objecto A~~
condições de aplicação podem ser modificadas. Assim, a escul- "--;rtÍstico: «ver qualquer coisa como arte requer algo mais do -w-,.~.
tura é tradicionalmente definida pela tridimensionalidade e pela que os olhos não podem aperceber-se ~ uma atmosfera da teoria c1
imobilidade. Quando surgem na história da arte os primeiros artÍstica, um conhecimento da história da arte: um mundo da (~' ":;;
móbiles, que convirá fazer? Eliminar a última característica do f
arte» (<<OMundo da Arte», 1964). Esta «atmosfera de teoria 1-'" ( CoA' ,,~,

conceito de escultura e portanto alargar a extensão do conceito artística» é um conjunto delicado de saberes, de valores, de 1'0 c,

restringindo a sua compreensão (os móbiles são da escultura)? concepções difusas, que formam a sensibilidade teórica de uma
Ou, então, criar outro conceito a par do conceito de escultura, época. Era impensável que as Caixas de Brillo de Warhol pudes-
o conceito de móbil? Aqui, o essencial é compreender que sem ser consideradas obras de arte em finais do século XIX,
qualquer uma destas possibilidades exige uma decisão. Num mas, entretanto, já houvera as colagens cubistas e os ready-made
céu das Ideias não há uma essência de escultura que permita de Duchamp que tinham modificado esta pré-compreensão
dizer que as obras são pu não são escultura. da arte.@a atmosfera teórica nova abre um novo campo de
A_posição ~id~~~ de,3'eitz foi partilhada (Nel- possíveis. Seria ingénuo acreditar que apreender uma pintura,
son Goodman, por exemplo, considera como anti-essencialista é ver simplesmente formas e cores; não há olhar ingénuo, mas
que um objecto é estético quando funciona simbolicamente uma visão informada por um saber mais ou menos consciente
de maneira caracterizada por cinco «sintomas» ou índices: a e articulado, mas sempre pressuposto pela percepção da arte.

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~_É_T_Ic_A ~ _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX

Numa perspectiva diferente, Georges Dickie, em Art and hábitos e pelos seus rituais. Em cada arte particular há conven-
tbe Aesthetic. An Institutional Analysis (1974), pretende superar ções que é preciso conhecer para desempenhar o papel de autor,
simultaneamente o definicionismo essencialista tradicional e o amador, artista, crítico, etc. Os diferentes actores reconhecem-
antidefinicionismo iniciado por Weitz. Uma defi~iÇi~ da arte -se pelas suas práticas informais (assistir a uma vernissage é
em termos de condições necessárias e suficientes é - afirma ele ter determinadas expectativas, adoptar uma certa maneira de
- possível, se não formos procurá-la do lado de propriedades se comportar, manter um certo tipo de discurso) e usuais. O
manifestas imediatamente referenciáveis, mas do lado de traços mundo da arte em geral consiste no conjunto destes sistemas
não manifestos. A sua tese formula-se assim: «Uma obra de que constituem o teatro, a pintura, a escultura, a música, etc.
arte, no sentido classificatório, é: 1. um artefacto, 2. de que um Portanto, a palavra-chave destas análises é «convenção». A defi-
conjunto de aspectos fez com que se lhe conferisse o estatuto nição da arte não pode ser uma definição de essência porque
de candidato à apreciação por uma ou mais pessoas agindo a arte não tem essência entendida no sentido de uma natureza
em nome de uma certa instituição (o mundo da arte).» Que a trans-histórica, mas isso não significa que qualquer coisa seja].
obra seja «no sentido classificatório», isto é, não avaliativo, um arte: é preciso que esteja reunido um determinado número de /
artefacto, significa que é um objecto fabricado. "Fabricado" não condições institucionais de existência e de reconhecimento. ~
significa necessariamente realizado pela mão do artista (como A estética analítica não se limita a uma reflexão sobre a
é um quadro ou uma escultura), mas que é levado por uma arte e sobre a questão, mais problemática entre todas, da sua
intenção artística: um pedaço de madeira apanhado na praia definição. Interessa-se mais amplamente pela atitude e pela
também pode tornar-se uma obra de arte porque o seu carácter experiência estética O. Stolnitz, Aesthetics and tbe Philosophy of
de objecto artístico lhe é conferido por quem o expõe. Isto Art Criticism, 1960), ao valor estético e aos critérios de exce-
remete para o segundo elemento da definição: a este artefacto lência (M. Beardsley, Aesthetics. Problems in the Philosophy of
deve ser conferido o estatuto de «candidato a apreciação», quer Criticism, 1958), aos conceitos estéticos e ao gosto (F. Sibley,
dizer, que é uma obra de arte, não porque o seu valor artístico «Les concepts esthétiques», 1959).
tenha sido reconhecido, mas porque faz parte da categoria Daremos a seguir um resumo do debate em torno da
dos objectos que pedem essa avaliação. Assim, uma máscara noção de experiência estética. Notar-se-á, como atrás, um
africana não é uma obra de arte para quem a utiliza para fins traço característico desta estética analítica: os autores lêem-se
religiosos ou mágicos; em contrapartida, se Breton ou Picasso e correspondem-se, prosseguindo através de textos interpostos,
se interessam por ela e a expõem, propõem-na à avaliação e discussões frequentemente muito cerradas, com o risco de, por
por isso mesmo fazem dela uma obra de arte. Mas este esta- vezes, constituírem um conjunto complexo de remissões e refe-
tuto de candidato à apreciação não pode ser conferido por rências razoavelmente opacas para todos aqueles que não estão
qualquer um; é necessária uma ou várias pessoas reconhecidas familiarizados com as discussões travadas nestes círculos -.~
no mundo da arte, pertencendo à sua «instituição», quer dizer,
à rede complexa formada pelos seus organismos (instituições 2. A questão da experiência estética. - Retomando em
culturais, escolas de arte ...), pelos seus lugares (museus, galerias, novas bases o tema kantiano do desinteresse, Stolnitz pretende
teatros ...), pelas suas leis explícitas ou implícitas, pelos seus especificar esta atitude mostrando tudo o que a distingue da

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Numa perspectiva diferente, Georges Dickie, em Art and hábitos e pelos seus rituais. Em cada arte particular há conven-
tbe Aesthetic. An Institutional Analysis (1974), pretende superar ções que é preciso conhecer para desempenhar o papel de autor,
simultaneamente o definicionismo essencialista tradicional e o amador, artista, crítico, etc. Os diferentes actores reconhecem-
antidefinicionismo iniciado por Weitz. Uma defi~iÇi~ da arte -se pelas suas práticas informais (assistir a uma vernissage é
em termos de condições necessárias e suficientes é - afirma ele ter determinadas expectativas, adoptar uma certa maneira de
- possível, se não formos procurá-la do lado de propriedades se comportar, manter um certo tipo de discurso) e usuais. O
manifestas imediatamente referenciáveis, mas do lado de traços mundo da arte em geral consiste no conjunto destes sistemas
não manifestos. A sua tese formula-se assim: «Uma obra de que constituem o teatro, a pintura, a escultura, a música, etc.
arte, no sentido classificatório, é: 1. um artefacto, 2. de que um Portanto, a palavra-chave destas análises é «convenção». A defi-
conjunto de aspectos fez com que se lhe conferisse o estatuto nição da arte não pode ser uma definição de essência porque
de candidato à apreciação por uma ou mais pessoas agindo a arte não tem essência entendida no sentido de uma natureza
em nome de uma certa instituição (o mundo da arte).» Que a trans-histórica, mas isso não significa que qualquer coisa seja].
obra seja «no sentido classificatório», isto é, não avaliativo, um arte: é preciso que esteja reunido um determinado número de /
artefacto, significa que é um objecto fabricado. "Fabricado" não condições institucionais de existência e de reconhecimento. ~
significa necessariamente realizado pela mão do artista (como A estética analítica não se limita a uma reflexão sobre a
é um quadro ou uma escultura), mas que é levado por uma arte e sobre a questão, mais problemática entre todas, da sua
intenção artística: um pedaço de madeira apanhado na praia definição. Interessa-se mais amplamente pela atitude e pela
também pode tornar-se uma obra de arte porque o seu carácter experiência estética O. Stolnitz, Aesthetics and tbe Philosophy of
de objecto artístico lhe é conferido por quem o expõe. Isto Art Criticism, 1960), ao valor estético e aos critérios de exce-
remete para o segundo elemento da definição: a este artefacto lência (M. Beardsley, Aesthetics. Problems in the Philosophy of
deve ser conferido o estatuto de «candidato a apreciação», quer Criticism, 1958), aos conceitos estéticos e ao gosto (F. Sibley,
dizer, que é uma obra de arte, não porque o seu valor artístico «Les concepts esthétiques», 1959).
tenha sido reconhecido, mas porque faz parte da categoria Daremos a seguir um resumo do debate em torno da
dos objectos que pedem essa avaliação. Assim, uma máscara noção de experiência estética. Notar-se-á, como atrás, um
africana não é uma obra de arte para quem a utiliza para fins traço característico desta estética analítica: os autores lêem-se
religiosos ou mágicos; em contrapartida, se Breton ou Picasso e correspondem-se, prosseguindo através de textos interpostos,
se interessam por ela e a expõem, propõem-na à avaliação e discussões frequentemente muito cerradas, com o risco de, por
por isso mesmo fazem dela uma obra de arte. Mas este esta- vezes, constituírem um conjunto complexo de remissões e refe-
tuto de candidato à apreciação não pode ser conferido por rências razoavelmente opacas para todos aqueles que não estão
qualquer um; é necessária uma ou várias pessoas reconhecidas familiarizados com as discussões travadas nestes círculos -.~
no mundo da arte, pertencendo à sua «instituição», quer dizer,
à rede complexa formada pelos seus organismos (instituições 2. A questão da experiência estética. - Retomando em
culturais, escolas de arte ...), pelos seus lugares (museus, galerias, novas bases o tema kantiano do desinteresse, Stolnitz pretende
teatros ...), pelas suas leis explícitas ou implícitas, pelos seus especificar esta atitude mostrando tudo o que a distingue da

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~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTíSTICOS DO SÉCULO XX

atitude ordinária (Aesthetics and the Philosophy o/ Art Criticism).


Habitualmente, estamos atentos a objectos em função do uso
l
'--."'- -
t();nado'i!estéticos pelo olhar estético que pomos neles. Não é a
~
J
nalur,:_za do objecto que convida a esta atitude estética, é esta /(1."
que podemos fazer deles: são meios com vista a um fim, sinais a.E!~udeespecífica que lhe confere o seu carácter estético. I

em ordem a uma acção, etc. A atenção vulgar é, por isso, uma Evidentemente, nesta análise de Stolnitz encontra-se a
atenção selectiva, fragmentária, distraída em relação a todo g:se kantiana (prolongada por Eliseo Vivas que, em 1959,
um conjunto de traços e de qualidades aspectuais sem impor- qualificava a atenção estética como «atenção intransitiva» ou
tância para o conhecimento e para a acção. Em contrapartida, E. Bullough que, em 1912, caracterizava a relação estética
a atitude estética considera a coisa não como um meio mas pela «distância psíquica»), mas também afirmações presentes
como um fim; Stolnitz define-a como a «atenção desinteressada em \Ou Bos e ern.Hume (a necessidade de fazer calar os pre-
e cheia de simpatia [...] (e) a contemplação que incide sobre conceitos), sem falar do tema 'ga atenção à fenomenalidade
um qualquer objecto de consciência, seja qual for, só por si do sensível em vez da organização conceptual do mundo em
mesmo». Aqui, «desinteressado» significa sem interesse utilitário Õ15jectos, largamente desenvolvida por Bergsô~ ou' Merleau-
(que poderia resultar da posse ou do uso) ou intelectual, como -Ponty. Por isso" é menos o conteúdo da tese de Stolnitz que
o do restaurador que observa o quadro tendo em vista o seu é inovador do que a maneira de o estabelecer pela análise
restauro, do historiador que o considera enquanto testemunho, cuidadosa das suas componentes.
do crítico que o considera enquanto objecto de um discurso A tese defendida por Stolnitz é objecto de críticas acérrimas I~.I l' ,~
a fazer. Que o olhar seja desinteressado não significa que seja no interior da sua própria família analítica. ~eorge Dicki~( (.
indiferente ou vazio; o adjectivo «desinteressado» deve ser ime- particularmente, num artigo intitulado «O Mito da Atitude .~~.).
diatamente corrigido pelo termo «atenção». De facto, trata-se de Estética» (1964), contesta o carácter profundamente sui generis l
uma percepção activa que põe em alerta a nossa imaginação, as desta experiência. A ideia de atitude estética, sustenta Dickie,
nossas emoções (squeremos que o valor do objecto aceda a uma tão central na estética moderna, é, no fim de contas, confusa e
vida plena na nossa experiêncía»), de uma consciência aguda e vazia. É errado, afirma, que se oponha a atenção desinteressada
activa, cheia de discernimento, atenta aos pormenores e à orga- do amador de pintura à atenção interessada do restaurador
nização interna da coisa. A atitude estética isola o objecto, quer que está perante um rasgão da tela a reparar. Porque no caso
dizer, não o considera nas suas causas nem nos seus efeitos nem deste último, não se trata de atenção, mas de desatenção (ou ( , .:»,
nas suas consequências, mas por si mesmo, enquanto é em s! de atenção a outra coisa, à materialidade da superfície pintada).
mesmo agradável ou desagradável. Além disso, esta atitude esté- Em contrapartida, quem ouve uma peça musical por causa das
tica está «cheia de simpatia» pelo seu objecto, isto é, aborda-o perguntas que lhe serão feitas no dia seguinte escuta melhor do
sem preconceito negativo, sem hostilidade a priori, seja de natu- que o ouvinte comum. Dickie conclui que não há dois tipos de
reza moral, religiosa ou simplesmente relativa a uma antipatia atenção (desinteressada e interessada), mas atenção ou ausência
pessoal ou a um efeito de moda. Finalmente, esta atitude pode dela. O desinteresse é um «mito» não só sem pertinência, mas
ser adoptada relativamente a «qualquer objecto de consciência» também enganador, pois corta a atitude estética da atitude
porque não há objectos estéticos que solicitem esta atenção crítica e isola o valor estético dos outros valores e, particular-
unicamente pelas suas qualidades aspectuais, mas só objectos mente, dos da moral.

90 91
~_É_T_Ic_A _ IV - A ESTÉTICA PERANTE OS DESAFIOS ARTíSTICOS DO SÉCULO XX

atitude ordinária (Aesthetics and the Philosophy o/ Art Criticism).


Habitualmente, estamos atentos a objectos em função do uso
l
'--."'- -
t();nado'i!estéticos pelo olhar estético que pomos neles. Não é a
~
J
nalur,:_za do objecto que convida a esta atitude estética, é esta /(1."
que podemos fazer deles: são meios com vista a um fim, sinais a.E!~udeespecífica que lhe confere o seu carácter estético. I

em ordem a uma acção, etc. A atenção vulgar é, por isso, uma Evidentemente, nesta análise de Stolnitz encontra-se a
atenção selectiva, fragmentária, distraída em relação a todo g:se kantiana (prolongada por Eliseo Vivas que, em 1959,
um conjunto de traços e de qualidades aspectuais sem impor- qualificava a atenção estética como «atenção intransitiva» ou
tância para o conhecimento e para a acção. Em contrapartida, E. Bullough que, em 1912, caracterizava a relação estética
a atitude estética considera a coisa não como um meio mas pela «distância psíquica»), mas também afirmações presentes
como um fim; Stolnitz define-a como a «atenção desinteressada em \Ou Bos e ern.Hume (a necessidade de fazer calar os pre-
e cheia de simpatia [...] (e) a contemplação que incide sobre conceitos), sem falar do tema 'ga atenção à fenomenalidade
um qualquer objecto de consciência, seja qual for, só por si do sensível em vez da organização conceptual do mundo em
mesmo». Aqui, «desinteressado» significa sem interesse utilitário Õ15jectos, largamente desenvolvida por Bergsô~ ou' Merleau-
(que poderia resultar da posse ou do uso) ou intelectual, como -Ponty. Por isso" é menos o conteúdo da tese de Stolnitz que
o do restaurador que observa o quadro tendo em vista o seu é inovador do que a maneira de o estabelecer pela análise
restauro, do historiador que o considera enquanto testemunho, cuidadosa das suas componentes.
do crítico que o considera enquanto objecto de um discurso A tese defendida por Stolnitz é objecto de críticas acérrimas I~.I l' ,~
a fazer. Que o olhar seja desinteressado não significa que seja no interior da sua própria família analítica. ~eorge Dicki~( (.
indiferente ou vazio; o adjectivo «desinteressado» deve ser ime- particularmente, num artigo intitulado «O Mito da Atitude .~~.).
diatamente corrigido pelo termo «atenção». De facto, trata-se de Estética» (1964), contesta o carácter profundamente sui generis l
uma percepção activa que põe em alerta a nossa imaginação, as desta experiência. A ideia de atitude estética, sustenta Dickie,
nossas emoções (squeremos que o valor do objecto aceda a uma tão central na estética moderna, é, no fim de contas, confusa e
vida plena na nossa experiêncía»), de uma consciência aguda e vazia. É errado, afirma, que se oponha a atenção desinteressada
activa, cheia de discernimento, atenta aos pormenores e à orga- do amador de pintura à atenção interessada do restaurador
nização interna da coisa. A atitude estética isola o objecto, quer que está perante um rasgão da tela a reparar. Porque no caso
dizer, não o considera nas suas causas nem nos seus efeitos nem deste último, não se trata de atenção, mas de desatenção (ou ( , .:»,
nas suas consequências, mas por si mesmo, enquanto é em s! de atenção a outra coisa, à materialidade da superfície pintada).
mesmo agradável ou desagradável. Além disso, esta atitude esté- Em contrapartida, quem ouve uma peça musical por causa das
tica está «cheia de simpatia» pelo seu objecto, isto é, aborda-o perguntas que lhe serão feitas no dia seguinte escuta melhor do
sem preconceito negativo, sem hostilidade a priori, seja de natu- que o ouvinte comum. Dickie conclui que não há dois tipos de
reza moral, religiosa ou simplesmente relativa a uma antipatia atenção (desinteressada e interessada), mas atenção ou ausência
pessoal ou a um efeito de moda. Finalmente, esta atitude pode dela. O desinteresse é um «mito» não só sem pertinência, mas
ser adoptada relativamente a «qualquer objecto de consciência» também enganador, pois corta a atitude estética da atitude
porque não há objectos estéticos que solicitem esta atenção crítica e isola o valor estético dos outros valores e, particular-
unicamente pelas suas qualidades aspectuais, mas só objectos mente, dos da moral.

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~_É_T_Ic_A _ CONCLUSÃO A"
,vC' ,,) I
f)
S<.vt.. <) ':J
,) DL 1'C'~.,) vI/O
[;),1 f...-
A ESTÉTICA DO FUTURO
Cinco anos mais tarde~'=~sponde a estas obser-
vações num texto intitulad~;~~cia estética reconquis-
tada» (1969), em que retoma, ponto por ponto, os elementos-
-chave de crítica de Dickie. Como o fio condutor desta crítica
era a afirmação de que a unidade em que crêem os defensores (.(

V
da especificidade da experiência estética não é atribuível à expe-
riência, mas somente ao objecto dessa experiência, Beardsley,
imos que a estética nasceu quando se estabeleceu
pelo contrário, esforça-se por demonstrar que a experiência
uma configuração conceptual até então inédita,
estética é justamente a de uma sequência unificada de afectos.
instituindo uma forte ligação entre a arte, o sensível
Em Aesthetics. Problems in the Philosophy o/ Criticism (1958),
e o belo. Antes, estas três noções tinham sido objecto de investi-
ele definia esta experiência através de três características: a
gações filosóficas, mas, por um lado, eram independentes umas
unidade, a complexidade e a intensidade. Em 1969 reafirma:
das outras (as reflexões de Platão sobre o belo no Hípias Maior
«Uma pessoa é capaz de ter uma experiência estética durante
não tocam mais na arte, a não ser lateralmente, do que as de
um determinado lapso de tempo se, e só se, a maior parte da
Aristóteles sobre o sensível no De A!_lÍlp.a) e, por outro lado, estas ~
sua actividade mental durante este tempo estiver unificada e
reflexões constituem apenas um momento de uma investigação
for tornada agradável pela ligação que ela tem à forma e às
mais vasta (a imitação é estudada por Platão numa perspectiva
qualidades de um objecto, apresentado de maneira sensível
que ultrapassa de longe a consideração da representação artística;
ou visado de maneira imaginativa, sobre o qual a sua atenção
durante toda a Antiguidade e a Idade Média, a questão do belo

I~
principal está concentrada.» A experiência estética assinala-se
é uma subparte da questão das qualidades do ser). A estética
distingue-se por uma unidade, uma coerência e uma com-
c_2modisciplina independente dotada de um objecto autónomo
pletude dos nossos pensamentos muito maiores do~e~as
nasce no século XVIII, quando existe um certo número de con-
,\JQ,.
r~7
Lexperiênci", quotidianas vulgares,
dições epistémicas, e que o sensível, a arte e o belo constituem
uma constelação autónoma.~ arte do século xx desfez a ligação
I 'l~e unia a arte ao belo e, por' vezes, até mesmo o que a ligava
~ ..1\1 ~ / ao sensível. O que resulta para a estética da deflagração da
~.!' ,., ;) configuração que esteve na sua origem? Na hora dos balanços
jC, J-
e das perspectivas a que a entrada num novo milénio convida,
(J r/I!' . (;l.rfl
pergunta-se: Que estética para os novos tempos?
(}, '

)' '
(} \ '~-lP
I/Y L - Objecções à estética

o século xx terminou, deixando em aberto um certo


número de questões sobre a estética de que alguns títulos são

93
~_É_T_Ic_A _ CONCLUSÃO A"
,vC' ,,) I
f)
S<.vt.. <) ':J
,) DL 1'C'~.,) vI/O
[;),1 f...-
A ESTÉTICA DO FUTURO
Cinco anos mais tarde~'=~sponde a estas obser-
vações num texto intitulad~;~~cia estética reconquis-
tada» (1969), em que retoma, ponto por ponto, os elementos-
-chave de crítica de Dickie. Como o fio condutor desta crítica
era a afirmação de que a unidade em que crêem os defensores (.(

V
da especificidade da experiência estética não é atribuível à expe-
riência, mas somente ao objecto dessa experiência, Beardsley,
imos que a estética nasceu quando se estabeleceu
pelo contrário, esforça-se por demonstrar que a experiência
uma configuração conceptual até então inédita,
estética é justamente a de uma sequência unificada de afectos.
instituindo uma forte ligação entre a arte, o sensível
Em Aesthetics. Problems in the Philosophy o/ Criticism (1958),
e o belo. Antes, estas três noções tinham sido objecto de investi-
ele definia esta experiência através de três características: a
gações filosóficas, mas, por um lado, eram independentes umas
unidade, a complexidade e a intensidade. Em 1969 reafirma:
das outras (as reflexões de Platão sobre o belo no Hípias Maior
«Uma pessoa é capaz de ter uma experiência estética durante
não tocam mais na arte, a não ser lateralmente, do que as de
um determinado lapso de tempo se, e só se, a maior parte da
Aristóteles sobre o sensível no De A!_lÍlp.a) e, por outro lado, estas ~
sua actividade mental durante este tempo estiver unificada e
reflexões constituem apenas um momento de uma investigação
for tornada agradável pela ligação que ela tem à forma e às
mais vasta (a imitação é estudada por Platão numa perspectiva
qualidades de um objecto, apresentado de maneira sensível
que ultrapassa de longe a consideração da representação artística;
ou visado de maneira imaginativa, sobre o qual a sua atenção
durante toda a Antiguidade e a Idade Média, a questão do belo

I~
principal está concentrada.» A experiência estética assinala-se
é uma subparte da questão das qualidades do ser). A estética
distingue-se por uma unidade, uma coerência e uma com-
c_2modisciplina independente dotada de um objecto autónomo
pletude dos nossos pensamentos muito maiores do~e~as
nasce no século XVIII, quando existe um certo número de con-
,\JQ,.
r~7
Lexperiênci", quotidianas vulgares,
dições epistémicas, e que o sensível, a arte e o belo constituem
uma constelação autónoma.~ arte do século xx desfez a ligação
I 'l~e unia a arte ao belo e, por' vezes, até mesmo o que a ligava
~ ..1\1 ~ / ao sensível. O que resulta para a estética da deflagração da
~.!' ,., ;) configuração que esteve na sua origem? Na hora dos balanços
jC, J-
e das perspectivas a que a entrada num novo milénio convida,
(J r/I!' . (;l.rfl
pergunta-se: Que estética para os novos tempos?
(}, '

)' '
(} \ '~-lP
I/Y L - Objecções à estética

o século xx terminou, deixando em aberto um certo


número de questões sobre a estética de que alguns títulos são

93
~_É_T_Ic_A~. __ CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO

eco: Gianni Vattimo publicou em 1983 O Pensamento Fraco da psicanálise e das ciências cognitivas; os mecanismos do
. e Gilbert Lascault publica em 1979 os seus Escritos Timidos mercado da arte são tarefa dos economistas; a recepção da arte I
~ sobre o Visível. Aqui, considerar-se-ão cinco pontos de acusação compete à sociologia, etc ... Iluminada pelo fogo cruzado dasl I

à estética. ciências humanas, o que restará da arte para a filosofit? I


l/É-lhe censurado um desconhecimento do objecto de Outros afirmam mais precisamente que a arte contempo-
que fala, uma ignorância culposa da arte do passado e mais rânea leva a que se faça da sociologia já não um adjuvante da
ainda da arte do presente nos seus devires mais contempo- compreensão da arte, mas a abordagem exclusiva que lhe con-
râneos. O esteta, diz-se, não sabe do que fala e invoca a arte vém. Quando a' obra está noutro lado que não na obra: nestas
precisamente por não conhecer as artes. Já em 1937 Valéry circunstâncias (etimologicamente: «o que está à volta de»), como
abria o II Congresso Internacional de Estética, convidando os a obra de Duchamp demonstra suprimindo com ds seus ready-
estetas a não serem metafísicos indiferentes às obras. -made simultaneamente o carácter de artefacto (a obra já não é
2 / Condena-se a sua ignorância daquilo que, para abre- fabricada pelo artista) e a qualidade estética, a própria arte con-
viar, se chamará as circunstâncias da arte: não viu - afirma-se vida a investigar do lado das condições dai arte. É precisamente
- que a arte tem condições históricas, sociais, institucionais e este o objecto da sociologia. O que a arte faz à filosofia - conclui /
éconómicas de existência. O esteta daria mostras de angelismo Natalie Heinich -.é empurrá-la para os braços da sociologia (OI
ao considerar a arte como um absoluto desligado dos determi- Triplo Jogo da Arte Contemporânea, 1998).
nismos psicológicos e psicanalíticos, sociológicos e históricos. 5 / O senso comum considera gue o discurso filosófico
_____ - -~- 1""~

Pierre Bourdieu, por exemplo, acusa a estética de ser o lugar da é impróprio para fazer apreciação da arte, domínio do irra-
negação do social: ela não viu que o gosto é mais determinado cional. Ele c..?nt~~ta.à, estética o estatuto de ciência rigorosa a
do que Kant pensava e que a sua crença na autonomia e na pretexto de que os seus objectos (o belo, o arte, o gosto) têm
., autotelia da arte (e, consequentemente, na sua própria pureza) um carácter subjectivo. Portanto, o discurso filosófico sobre a
é ela própria o fruto da História. me seria ilegítimo. Certos pensadores aderem a esta conclusão,
3 / É acusada de ser um discurso metafísico aplicado à mas a partir da afirmação do carácter transcendente e inefável
arte, uma reflexão que não parte da arte e das obras, mas de da arte. jean-François Lyotard, em O Inumano (1988), opõe
uma certa ideia do que a arte ~..Y~ ~. Muitas vezes, esta cen- o penoso do discurso conceptual à sublime leveza da obra, e
sura está associada com as duas anteriores, A estética é acusada Alain Badiou intitula uma recolha dos seus textos sobre a arte:
de ser um discurso heterónimo, destinado não a servir a arte, Petit Manuel d'Inestbétique (1998). Na boca destes detractores
mas a servir-se da arte para estabelecer ou confirmar uma tese da estética, isto significa não só que todo o discurso sobre a

V/!/ filosófica. 'Assim, jean-Marie Schaeffer, em O Adeus à Esté-


J tica ~2000), censura-lhe um discurso especulativo metafísico
e vazio.
arte é vão e que a estética deve calar-se (Merleau-Ponty escrevia,
em O Visível e o Invisível: «O filósofo fala, mas nele há uma
fraqueza, uma fraqueza inexplicável: deveria calar-se, coinci-
4 / Alguns consideram que a multiplicação das aproxima- dir em silêncio e unir de novo no Ser uma filosofia que lá já
ções à arte operadas pelas ciências humanas significa a dissolu- está feita», ou seja, que deve dar lugar ao discurso da arte: A.
ção da estética: os processos de criação são temas da psicologia, Badiou, reatando com o ideal romântico, pretende substituir o
"r "l)JJr""'")Ij) ,
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~_É_T_Ic_A~. __ CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO

eco: Gianni Vattimo publicou em 1983 O Pensamento Fraco da psicanálise e das ciências cognitivas; os mecanismos do
. e Gilbert Lascault publica em 1979 os seus Escritos Timidos mercado da arte são tarefa dos economistas; a recepção da arte I
~ sobre o Visível. Aqui, considerar-se-ão cinco pontos de acusação compete à sociologia, etc ... Iluminada pelo fogo cruzado dasl I

à estética. ciências humanas, o que restará da arte para a filosofit? I


l/É-lhe censurado um desconhecimento do objecto de Outros afirmam mais precisamente que a arte contempo-
que fala, uma ignorância culposa da arte do passado e mais rânea leva a que se faça da sociologia já não um adjuvante da
ainda da arte do presente nos seus devires mais contempo- compreensão da arte, mas a abordagem exclusiva que lhe con-
râneos. O esteta, diz-se, não sabe do que fala e invoca a arte vém. Quando a' obra está noutro lado que não na obra: nestas
precisamente por não conhecer as artes. Já em 1937 Valéry circunstâncias (etimologicamente: «o que está à volta de»), como
abria o II Congresso Internacional de Estética, convidando os a obra de Duchamp demonstra suprimindo com ds seus ready-
estetas a não serem metafísicos indiferentes às obras. -made simultaneamente o carácter de artefacto (a obra já não é
2 / Condena-se a sua ignorância daquilo que, para abre- fabricada pelo artista) e a qualidade estética, a própria arte con-
viar, se chamará as circunstâncias da arte: não viu - afirma-se vida a investigar do lado das condições dai arte. É precisamente
- que a arte tem condições históricas, sociais, institucionais e este o objecto da sociologia. O que a arte faz à filosofia - conclui /
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ao considerar a arte como um absoluto desligado dos determi- Triplo Jogo da Arte Contemporânea, 1998).
nismos psicológicos e psicanalíticos, sociológicos e históricos. 5 / O senso comum considera gue o discurso filosófico
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Pierre Bourdieu, por exemplo, acusa a estética de ser o lugar da é impróprio para fazer apreciação da arte, domínio do irra-
negação do social: ela não viu que o gosto é mais determinado cional. Ele c..?nt~~ta.à, estética o estatuto de ciência rigorosa a
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é ela própria o fruto da História. me seria ilegítimo. Certos pensadores aderem a esta conclusão,
3 / É acusada de ser um discurso metafísico aplicado à mas a partir da afirmação do carácter transcendente e inefável
arte, uma reflexão que não parte da arte e das obras, mas de da arte. jean-François Lyotard, em O Inumano (1988), opõe
uma certa ideia do que a arte ~..Y~ ~. Muitas vezes, esta cen- o penoso do discurso conceptual à sublime leveza da obra, e
sura está associada com as duas anteriores, A estética é acusada Alain Badiou intitula uma recolha dos seus textos sobre a arte:
de ser um discurso heterónimo, destinado não a servir a arte, Petit Manuel d'Inestbétique (1998). Na boca destes detractores
mas a servir-se da arte para estabelecer ou confirmar uma tese da estética, isto significa não só que todo o discurso sobre a

V/!/ filosófica. 'Assim, jean-Marie Schaeffer, em O Adeus à Esté-


J tica ~2000), censura-lhe um discurso especulativo metafísico
e vazio.
arte é vão e que a estética deve calar-se (Merleau-Ponty escrevia,
em O Visível e o Invisível: «O filósofo fala, mas nele há uma
fraqueza, uma fraqueza inexplicável: deveria calar-se, coinci-
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ções à arte operadas pelas ciências humanas significa a dissolu- está feita», ou seja, que deve dar lugar ao discurso da arte: A.
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~_É_T_Ic_A _ CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO Õ'

discurso sobre a arte pelo de uma arte que é ele próprio, «um seus próprios fins, mas devemos acrescentar que não foi mais
processo de verdade». Mikel Dufrenne descrevia nestes termos que isso, tal como já vimos ao traçar a sua história. Por ~s?,
esta renúncia da filosofia: tudo se passa - escrevia - «como se ~ta ~~tic~ não ~ig!!ifica uma condenação da estética, mas de
a filosofia, quando pretende ser um pensamento do impensável, uma ~~ for_masd._:_ ..9ue historicamente se revestiu. Aliás, jean-
tendo dificuldade em se bastar a si mesma, sentisse a necessi- -Jy1arie Schaeffer apela a um regresso ao projecto não cumprido -
dade de ser substituída ou relançada por um saber que já não de Kant=- segundo ele,-o' verdadeiro fundador da disciplina -,
é filosófico, por um discurso que talvez se situe para além do em ordem a uma renovação.da estética» (O Adeus à Estética).
saber» (A Noção do «a priori», 1959). Portanto, esta terceira objecção não convida a suprimir a dis-
ciplina, mas a ,redefini-Ia. J
A quarta objecção põe a questão geral da relação da filo-
lI. - Respostas às objecções sofia com as ciências humanas. A estética não considera a
arte unicamente do ponto de vista dos seus determinismos
Consideremos as críticas, uma a uma. Às duas primeiras históricos e sociais, dos segredos da alma onde a obra nasce e
objecções, responder-se-á que não se poderá senão deplorar produz os seus efeitos, ou das linguagens da arte no interior de
que, de facto, a estética tenha dado provas de uma ignorância um sistema global de sentido, Ela engloba os resultados deci-
culposa das obras e das circunstâncias da arte, mas esta insufici- sivos destas ciências necessariamente parcelares (que obtêm
ência pode e deve ser compensada pela convivência efectiva das a sua riqueza precisamente desta restrição do seu objecto),
obras tanto do passado como do futuro, e pela colaboração com numa empresa sintética e reflexiva; o que, mais precisamente,
impede que se conclua que a sociologia deve ocupar, sozinha

J
outras disciplinas e ciências humanas. Os seus contributos são
preciosos para a estética. Como a arte é um «facto social total» o campo das investigações sobre a arte, dado que este não se
r--- - ~
(D. Chateau, A Arte Como Facto Social Total, 1998), não pode reduz ao momento histórico de que Duchamp foi o inspira-
prescindir da colaboração da sociologia, mas também da psi- dor e o grande mestre. A arte nem sempre foi procedimental
cologia, da psicanálise, da economia, da história, da semiótica, (entendamos por isso «que consiste unicamente no processo
etc. Deste modo, a análise do psicanalista Anton Ehrensweig que a estabelece como arte») e isso já nem sempre é assim, Li:
contribui para levantar uma ponta do véu de sobre o mistério dado que !!S artes tecnológicas, por exemplo, obedecem _a
do processo de criação (A Ordem Escondida da Arte, 1967), o outra lógica. 0.,Ji9_ciologia ~ realmente o díscursn.exclusivo
historiador da arte Heinrich WõlfRin propõe os esquemas e as que, convém a um certo estado da arte (porque esta arte é,
categorias através das quais as diferentes épocas apreendem as como diz N. Heinich, uma sociologia), mas não a todos_:.1:_
impressões da natureza (Prtncípios Fundamentais da História da ~ estética, eng_uanto disci12lina filosófica, ~ as formas de
Arte, 1915) e Pierre Bourdieu analisa precisamentegs categorias arte mais recentes, como as artes da realidade virtual ou a
~ociais da percepção que agem à revelia dos sujeitos (A Distin- _arte biotecnológ~(a~_~ ....
gue utiliza as técn~a"s de manip~- }
ção, 1979). A arte exige esta pluralidade de abordagens. -- lação d-? ser vivo) qªo...rollitQ_q.!!U~!!g_~ovo s!
estatuto
Em resposta à terceira objecção, convir-se-á que a estética .imagem; !l_a!~.~~al, relações ífP.édità-s~da, art~ eda
pôde ser um discurso metafísico que utilizou a arte para os técnica, d-ª-.a.n.e. ....e_da_ciência,'-'.ijovas eiReriências sens~ii!Sl

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esta renúncia da filosofia: tudo se passa - escrevia - «como se ~ta ~~tic~ não ~ig!!ifica uma condenação da estética, mas de
a filosofia, quando pretende ser um pensamento do impensável, uma ~~ for_masd._:_ ..9ue historicamente se revestiu. Aliás, jean-
tendo dificuldade em se bastar a si mesma, sentisse a necessi- -Jy1arie Schaeffer apela a um regresso ao projecto não cumprido -
dade de ser substituída ou relançada por um saber que já não de Kant=- segundo ele,-o' verdadeiro fundador da disciplina -,
é filosófico, por um discurso que talvez se situe para além do em ordem a uma renovação.da estética» (O Adeus à Estética).
saber» (A Noção do «a priori», 1959). Portanto, esta terceira objecção não convida a suprimir a dis-
ciplina, mas a ,redefini-Ia. J
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Consideremos as críticas, uma a uma. Às duas primeiras históricos e sociais, dos segredos da alma onde a obra nasce e
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que, de facto, a estética tenha dado provas de uma ignorância um sistema global de sentido, Ela engloba os resultados deci-
culposa das obras e das circunstâncias da arte, mas esta insufici- sivos destas ciências necessariamente parcelares (que obtêm
ência pode e deve ser compensada pela convivência efectiva das a sua riqueza precisamente desta restrição do seu objecto),
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impede que se conclua que a sociologia deve ocupar, sozinha

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preciosos para a estética. Como a arte é um «facto social total» o campo das investigações sobre a arte, dado que este não se
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prescindir da colaboração da sociologia, mas também da psi- dor e o grande mestre. A arte nem sempre foi procedimental
cologia, da psicanálise, da economia, da história, da semiótica, (entendamos por isso «que consiste unicamente no processo
etc. Deste modo, a análise do psicanalista Anton Ehrensweig que a estabelece como arte») e isso já nem sempre é assim, Li:
contribui para levantar uma ponta do véu de sobre o mistério dado que !!S artes tecnológicas, por exemplo, obedecem _a
do processo de criação (A Ordem Escondida da Arte, 1967), o outra lógica. 0.,Ji9_ciologia ~ realmente o díscursn.exclusivo
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categorias através das quais as diferentes épocas apreendem as como diz N. Heinich, uma sociologia), mas não a todos_:.1:_
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Em resposta à terceira objecção, convir-se-á que a estética .imagem; !l_a!~.~~al, relações ífP.édità-s~da, art~ eda
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CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO


I

r.r' , t
"Q' '?"
, e intelectuais, ex.tr.a.t.erritQdalidade.....da,.arte__em_matériL4_e No entanto, a questão mantém-se: será desejável que a estética
dir_eit.9_,ede.moral, etc.). acabe por ser uma artística? S~<Lpreciso concordar COD;l Denis
Finalmente, responderemos à quinta objecção dizendo que, Huisman quando declarava: «É preciso considerar a estética
supondo que a arte seja o domínio do irracional (fórmula como a filosofia da arte e nada mais» (A Estética, 1998)?
vaga e contestável), isso não impediria, contudo, uma abor- Não, porque uma estética que fosse apenas uma artística
dagem filosófi~al O fact~ d~ um objecto não ser, rigoro~o ~ão só exploraria um,a...parte do campo que exige a sua reflexão; ]
impede que o discurso sobre ele o seja (na sua Etica, Spinoza além da arte, @inda há o imenso domínio do sensívêl] ~Q ® C8
desenvolve um discurso sobre as paixões - fenómeno conside- _se~tin4o e do senti~, da sensorialidade e da sensibilidade.
rado irracional, por excelência - ql,le é extremamente preciso Valéry, no seu Discurso de abertura do 11 Congresso Interna-
e exposto, além do mais, segundo o método dos geómetras). cional de Estética e de Ciência da Arte (1937), propunha que
o SJ sentimento pode ser objecto de uma investigação racionâ!] se chamasse estésica a «tudo o que se refere ao estudo das
Não é necessário estar inspirado para falar de inspiração nem sensações, mas mais particularmente [...] aos trabalhos que
r \::- estar em êxtase para falar de experiência estética nem ser lírico têm por objecto as excitações e as reacções sensíveis que não
':) para falar do lirismo. Até é recomendável não o ser. Por con- têm papel fisiológico uniforme e bem definido ..lli....fa.c.w,_são
seguinte, a estética não está condenada ao silêncio. Também as modificações sensoriais de. que o ser-vivo pode prescindir \',
"'não está condenada a calar-se para deixar falar a arte, porqu~, e cujo conjunto [...] é o nosso tesouro». Segundo Valéry, esta
s.eexiste pensamento na arte, é, como mostrou Gilles Deleuze, «ciência das sensações» tem precisamente por objecto as sen-
sob a forma de percepções e de afectos e não sob a forma de sações desfuncionalizadas; deve analisar como é que elas, na
conceitos (O Que É a Filosofia? 1991). \ sua dimensão afectiva e não só cognitiva, tocam misteriosa-
/ As objecções dirigidas à estética dirigem-se menos à natu- mente na inteligência, na sensibilidade e na acção, e de que
reza da empresa filosófica de reflexão sobre, a art~o que sobre modo proporcionam um prazer desligado da necessidade.íque r
formas historicamente revestidas pela disciplina .ou sobre defei- excede a sensorialidade e em que se misturam voluptuosidade.> .1
tos que podem e devem ser corrigidos. I ' •I -, fecundidade e energia.> ' I
.,):'~t .J..I ,v I• v
F-ecentf_ar a estética no sensível e no sentIr;) como a isso ~;f'
convidava Valéry e, mais perto de nós, J.-M. Schaeffer (Os
Ill. - A estética novamente centrada na aisthêsis Celibatários da Arte, 1996), é~e a todas as formas do sentir - J
quer o seu objecto seja uma obra de arte, um- objecto natural
Todas as críticas que acabámos de ver incidem sobre a ou artificial, um acontecimento ou uma experiência. ----
estética enquanto teoria da arte (enquanto artística, poder-se-ia Portanto, esta estética alargada estuda um certo tipo muito-1
dizer). Mas toda a estética se reduz a isto?) particular de relação do homem com o mundo bem como os .;
Já vimos que,w.a~~s, a estética não era objectos desta experiêncía.cDeve explorar o mundo das quali-
apenas uma artística; a sua etimologia levava-a noutra direc- dades estéticas em geral: estudar não só as qualidades avaliati-
ção. Certamente, nem a etimologia do termo nem as formas vas (belo, feio ou sublime, por exemplo), mas também as que
primitivas da disciplina ordenam à estética o que ela deve ser. . são simultaneamente descritivas e avaliativas (elegante, pesado,

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dir_eit.9_,ede.moral, etc.). acabe por ser uma artística? S~<Lpreciso concordar COD;l Denis
Finalmente, responderemos à quinta objecção dizendo que, Huisman quando declarava: «É preciso considerar a estética
supondo que a arte seja o domínio do irracional (fórmula como a filosofia da arte e nada mais» (A Estética, 1998)?
vaga e contestável), isso não impediria, contudo, uma abor- Não, porque uma estética que fosse apenas uma artística
dagem filosófi~al O fact~ d~ um objecto não ser, rigoro~o ~ão só exploraria um,a...parte do campo que exige a sua reflexão; ]
impede que o discurso sobre ele o seja (na sua Etica, Spinoza além da arte, @inda há o imenso domínio do sensívêl] ~Q ® C8
desenvolve um discurso sobre as paixões - fenómeno conside- _se~tin4o e do senti~, da sensorialidade e da sensibilidade.
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e exposto, além do mais, segundo o método dos geómetras). cional de Estética e de Ciência da Arte (1937), propunha que
o SJ sentimento pode ser objecto de uma investigação racionâ!] se chamasse estésica a «tudo o que se refere ao estudo das
Não é necessário estar inspirado para falar de inspiração nem sensações, mas mais particularmente [...] aos trabalhos que
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s.eexiste pensamento na arte, é, como mostrou Gilles Deleuze, «ciência das sensações» tem precisamente por objecto as sen-
sob a forma de percepções e de afectos e não sob a forma de sações desfuncionalizadas; deve analisar como é que elas, na
conceitos (O Que É a Filosofia? 1991). \ sua dimensão afectiva e não só cognitiva, tocam misteriosa-
/ As objecções dirigidas à estética dirigem-se menos à natu- mente na inteligência, na sensibilidade e na acção, e de que
reza da empresa filosófica de reflexão sobre, a art~o que sobre modo proporcionam um prazer desligado da necessidade.íque r
formas historicamente revestidas pela disciplina .ou sobre defei- excede a sensorialidade e em que se misturam voluptuosidade.> .1
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convidava Valéry e, mais perto de nós, J.-M. Schaeffer (Os
Ill. - A estética novamente centrada na aisthêsis Celibatários da Arte, 1996), é~e a todas as formas do sentir - J
quer o seu objecto seja uma obra de arte, um- objecto natural
Todas as críticas que acabámos de ver incidem sobre a ou artificial, um acontecimento ou uma experiência. ----
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dizer). Mas toda a estética se reduz a isto?) particular de relação do homem com o mundo bem como os .;
Já vimos que,w.a~~s, a estética não era objectos desta experiêncía.cDeve explorar o mundo das quali-
apenas uma artística; a sua etimologia levava-a noutra direc- dades estéticas em geral: estudar não só as qualidades avaliati-
ção. Certamente, nem a etimologia do termo nem as formas vas (belo, feio ou sublime, por exemplo), mas também as que
primitivas da disciplina ordenam à estética o que ela deve ser. . são simultaneamente descritivas e avaliativas (elegante, pesado,

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~_É_T_Ic_A _ CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO

gracioso, etc.) ou ~crl!i:yas e afectivas (sereno, sinistro, triste, r as rotundas entregues aos paisagistas e a construção de novos
etc.) (Roger Pouivet, A Ontologia da Obra de Arte, 1999), programas a grandes nomes da arquitectura, por toda a parte se
e considerar a sua natureza (serão inteiramente subjectivas? ~I
ir-...)
manifesta a'preocupação da aparência, O valor estético tornou-
I ~. ...oI-.

~,.sêrá preciso, pelo contrário, defender a tese do realismo destas t-:=-I -se um valor autónomo e decisivo. (....
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\~~ I ~,<~:-c;
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O ""y) propriedades ou, pelo menos, de um realismo moderado con- Cet;,t:o~programãSeStéticos do passado tinham-se pronun-
)-)~. ) siderando que elas «derivam» de propriedades não estéticas?). \.'C">/ ciado a favor de uma estetização global da qual esperavam a se:
Do lado do sujeito, ela deve explorar a atitude, a experiência, il felicidade da humanidade. Deste modo, os movimentos da Art
emoção ou as emoções, o juízo e a avaliação estéticos. ~,-f1nd Craft em Inglaterra ou do Bauhaus na Alemanha tinham lI!__.
Essa estética nozamente censrade-ne-seesível, ist~ é, neste (_s I 'preconizado a integração dos [valores estéticos na vida quotií'
domínio em que ~e o s~ntido ~_encajxam um no~utr@: diana. Assim como Schiller esperava que a beleza realizasse o
tem tudo a ganhar coríi a colaboração com outras disciplinas acordo harmonioso das faculdades sensíveis e inteligíveis no
extrafilosóficas de que ela pode esperar cruzamentos férteis homem (Cartas sobre a Educação Estética do Homem, 1795),'
(como a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty [1945] também estes movimentos criam na melhoria, no aperfeiçoa-
dialogava com a psicologia do seu tempo, a estética deve, entre mento ou, até, na redenção do mundo pela beleza das coisas
outras coisas, considerar &s_tIagalhos das ciências cognitivas (~\ e dos lugares. Hoje assiste-se à realização deste antigo sonho
, e àfectivas). Além disso, convida a que se lancem. pontes no \, estético da estetização do mundo (Wolfgang Welsch, Fronteiras
interior da filosofia em direcçâo a outros questionamentos, L
da Estética, 1996).
particularmente os relativo~tos e,à ~tica. ~ ~ estetização do mundo é também uma estetização dos
/olhares e das atitudes. O adjectivo «estético» não qualifica
somente os objectos, mas também qualquer coisa no sujeito:
~\ IV. - Novos objectos em que pensar

Além disso, a estética do futuro tem de pensar nos .remas


r I uma atitude, uma atenção, um olhar, um juízo, caracterizados

pela distância, pelo desinteresse, pela ligeireza, pela gratuidade,


I

pelo cuidado com a aparência, a graça e o prazer requintado.


1!B1Le.specjficos que surgem da nova distribuição de cartas da j Foi assim que classicamente se caracterizou a atitude em relação
contemporaneidade. Ela ~~ve ser a estética da época do «triunfo l:. à arte. Mas esta atitude também pode ser adoptada em relação
, da estética» (Yves Michaud, A Arte no Estado Gasoso, 2003) ( ao mundo. É o convite de um certo número de artistas e de
~~tendendo-se agora «cstética-nem como adjectivo nem com,o pensadores dos séculos XIX e XX, entre os quais Wordsworth,
~.tanti.\[(), mas comqadjectivo substantivado \(das Âstbetiscbe, Coleridge, Emerson, Thoreau, John Cage ou Étienne Souriau.
di~da-êffi...al~mão).,De facto, assiste-se a um fenómeno geral ( , Pela sua recusa em sobres ti mar os sons musicais em relação
d~zação do mundo.j O ) ~t c' L Co _'J'!d ~ ~ , j) z. aos sons em geral, Cage não procura depreciar a arte, mas em
" J
Dizer que-o mundo se estetizou é, em primeiro lugar, dizer valorizar a aisthêsis não artística i (seja natural ou artefactual:
que se tornou belo. Do corpo dos indivíduos embelecido pelos o barulho do mar ou o do comboio) altura da atenção. A
à

cosméticos, dos centros de fitness e da cirurgia estética, às cida- obra já não está na arte, ~ «a maneira como vivemos o nosso
des, cujos centros são objecto de renovações cuidadas, sendo ambiente», escreve ele (Para as Aves, 1981). A nossa atitude em
I /
/ .

1..
100 101
J -.
~_É_T_Ic_A _ CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO

gracioso, etc.) ou ~crl!i:yas e afectivas (sereno, sinistro, triste, r as rotundas entregues aos paisagistas e a construção de novos
etc.) (Roger Pouivet, A Ontologia da Obra de Arte, 1999), programas a grandes nomes da arquitectura, por toda a parte se
e considerar a sua natureza (serão inteiramente subjectivas? ~I
ir-...)
manifesta a'preocupação da aparência, O valor estético tornou-
I ~. ...oI-.

~,.sêrá preciso, pelo contrário, defender a tese do realismo destas t-:=-I -se um valor autónomo e decisivo. (....
, ..;A
\~~ I ~,<~:-c;
~, \ j ,

O ""y) propriedades ou, pelo menos, de um realismo moderado con- Cet;,t:o~programãSeStéticos do passado tinham-se pronun-
)-)~. ) siderando que elas «derivam» de propriedades não estéticas?). \.'C">/ ciado a favor de uma estetização global da qual esperavam a se:
Do lado do sujeito, ela deve explorar a atitude, a experiência, il felicidade da humanidade. Deste modo, os movimentos da Art
emoção ou as emoções, o juízo e a avaliação estéticos. ~,-f1nd Craft em Inglaterra ou do Bauhaus na Alemanha tinham lI!__.
Essa estética nozamente censrade-ne-seesível, ist~ é, neste (_s I 'preconizado a integração dos [valores estéticos na vida quotií'
domínio em que ~e o s~ntido ~_encajxam um no~utr@: diana. Assim como Schiller esperava que a beleza realizasse o
tem tudo a ganhar coríi a colaboração com outras disciplinas acordo harmonioso das faculdades sensíveis e inteligíveis no
extrafilosóficas de que ela pode esperar cruzamentos férteis homem (Cartas sobre a Educação Estética do Homem, 1795),'
(como a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty [1945] também estes movimentos criam na melhoria, no aperfeiçoa-
dialogava com a psicologia do seu tempo, a estética deve, entre mento ou, até, na redenção do mundo pela beleza das coisas
outras coisas, considerar &s_tIagalhos das ciências cognitivas (~\ e dos lugares. Hoje assiste-se à realização deste antigo sonho
, e àfectivas). Além disso, convida a que se lancem. pontes no \, estético da estetização do mundo (Wolfgang Welsch, Fronteiras
interior da filosofia em direcçâo a outros questionamentos, L
da Estética, 1996).
particularmente os relativo~tos e,à ~tica. ~ ~ estetização do mundo é também uma estetização dos
/olhares e das atitudes. O adjectivo «estético» não qualifica
somente os objectos, mas também qualquer coisa no sujeito:
~\ IV. - Novos objectos em que pensar

Além disso, a estética do futuro tem de pensar nos .remas


r I uma atitude, uma atenção, um olhar, um juízo, caracterizados

pela distância, pelo desinteresse, pela ligeireza, pela gratuidade,


I

pelo cuidado com a aparência, a graça e o prazer requintado.


1!B1Le.specjficos que surgem da nova distribuição de cartas da j Foi assim que classicamente se caracterizou a atitude em relação
contemporaneidade. Ela ~~ve ser a estética da época do «triunfo l:. à arte. Mas esta atitude também pode ser adoptada em relação
, da estética» (Yves Michaud, A Arte no Estado Gasoso, 2003) ( ao mundo. É o convite de um certo número de artistas e de
~~tendendo-se agora «cstética-nem como adjectivo nem com,o pensadores dos séculos XIX e XX, entre os quais Wordsworth,
~.tanti.\[(), mas comqadjectivo substantivado \(das Âstbetiscbe, Coleridge, Emerson, Thoreau, John Cage ou Étienne Souriau.
di~da-êffi...al~mão).,De facto, assiste-se a um fenómeno geral ( , Pela sua recusa em sobres ti mar os sons musicais em relação
d~zação do mundo.j O ) ~t c' L Co _'J'!d ~ ~ , j) z. aos sons em geral, Cage não procura depreciar a arte, mas em
" J
Dizer que-o mundo se estetizou é, em primeiro lugar, dizer valorizar a aisthêsis não artística i (seja natural ou artefactual:
que se tornou belo. Do corpo dos indivíduos embelecido pelos o barulho do mar ou o do comboio) altura da atenção. A
à

cosméticos, dos centros de fitness e da cirurgia estética, às cida- obra já não está na arte, ~ «a maneira como vivemos o nosso
des, cujos centros são objecto de renovações cuidadas, sendo ambiente», escreve ele (Para as Aves, 1981). A nossa atitude em
I /
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J -.
CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO

relação ao mundo já não ~ a mesma: pode ser encarada na sua de todo o modo de existência das comunidades humanas, mas
visibilidade e na sua musicalidade próprias, como contendo igualmente da sua maneira de sentir e de se perceber». Que se
l},!l:l poten_cial s~sível ;g,ç_ então I?-ãojnyisjve.l..9.y.
inaudíve], mas passa quando a beleza se torna invasiva? Quando a excepção
~visto e não ouvido: «A arte moderna teve por efeito mudar ~ansforma em paradigma, não advirão modificações inevi-
{ a nossa maneira de ,ver, de tal modo que olhemos para onde táveis da sua qualidade? Que acontece à estetização do olhar
olharmos, possamos olhar esteticamente», nota no seu Diário. lançado sobre o mundo? E às formas inéditas de experiências
Depois de ter permitido a educação da sensibilidade, a arte sensoriais e afectivas a que convêm as artes novas? A estética
poderia desaparecer. O que é outra maneira de pensar o tema do futuro também tem a tarefa de tratar destas questões postas
hegeliano da Il).orte da artex pela sua integração na vida. Numa pela estetízação contemporânea do mundo.
perspectiva diferente, lohn Dew:ey,Junda_9,or da chamada esté-
t}ca pragmática, desejou romper com anoção elitista de arte,
libertá-la das, belas-artes incluindo nela uma espécie de arte de
viver (A Arte como Experiência, 1934). Independentemente de
os artistas terem ou não vontade de trabalhar neste sentido ou
de que esta estetização do olhar tenha ou não sido considerada )

desejável, a arte trabalhou para a estetização do mundo.


As novas tecnologias, sejam ou não integradas num projecto
artístico, contribuem noutro sentido para este processo de este-
tização. O universo das novas imagens e do virtual oferecido
à manipulação não deixa de ter efeito na apreensão do quo-
tidiano: produz uma apreensão desrealizada deste. O mundo
perdeu a sua gravidade, a sua seriedade, o seu peso. Alain Roger
chama «artealização», ao processo pelo qual a arte informa o
olhar que lançamos sobre a natureza fornecendo-lhe esquemas
perceptivos (a pintura aprendeu a ver no campo a paisagem e
na nudez, o Nu) e, ao mesmo tempo, avaliativos (a literatura e
a pintura no século XVIII dotaram a alta montanha e o alto mar
de um valor estético que não lhe eram reconhecidos até então)
(Nus e Paisagens. Ensaio sobre as Funções da Arte, 1978). Como
A. Roger fez sobre a arte do passado.ja estética deve estudar os
efeitos destas novas formas de imagens sobre a sensibilidade. J
Deste modo, também aqui se verifica a afirmação de Walter
Benjamin que citámos atrás, segundo a qual, «ao longo dos
grandes períodos históricos, assiste-se à transformação não só
~
102 103
CONCLUSÃO - A ESTÉTICA DO FUTURO

relação ao mundo já não ~ a mesma: pode ser encarada na sua de todo o modo de existência das comunidades humanas, mas
visibilidade e na sua musicalidade próprias, como contendo igualmente da sua maneira de sentir e de se perceber». Que se
l},!l:l poten_cial s~sível ;g,ç_ então I?-ãojnyisjve.l..9.y.
inaudíve], mas passa quando a beleza se torna invasiva? Quando a excepção
~visto e não ouvido: «A arte moderna teve por efeito mudar ~ansforma em paradigma, não advirão modificações inevi-
{ a nossa maneira de ,ver, de tal modo que olhemos para onde táveis da sua qualidade? Que acontece à estetização do olhar
olharmos, possamos olhar esteticamente», nota no seu Diário. lançado sobre o mundo? E às formas inéditas de experiências
Depois de ter permitido a educação da sensibilidade, a arte sensoriais e afectivas a que convêm as artes novas? A estética
poderia desaparecer. O que é outra maneira de pensar o tema do futuro também tem a tarefa de tratar destas questões postas
hegeliano da Il).orte da artex pela sua integração na vida. Numa pela estetízação contemporânea do mundo.
perspectiva diferente, lohn Dew:ey,Junda_9,or da chamada esté-
t}ca pragmática, desejou romper com anoção elitista de arte,
libertá-la das, belas-artes incluindo nela uma espécie de arte de
viver (A Arte como Experiência, 1934). Independentemente de
os artistas terem ou não vontade de trabalhar neste sentido ou
de que esta estetização do olhar tenha ou não sido considerada )

desejável, a arte trabalhou para a estetização do mundo.


As novas tecnologias, sejam ou não integradas num projecto
artístico, contribuem noutro sentido para este processo de este-
tização. O universo das novas imagens e do virtual oferecido
à manipulação não deixa de ter efeito na apreensão do quo-
tidiano: produz uma apreensão desrealizada deste. O mundo
perdeu a sua gravidade, a sua seriedade, o seu peso. Alain Roger
chama «artealização», ao processo pelo qual a arte informa o
olhar que lançamos sobre a natureza fornecendo-lhe esquemas
perceptivos (a pintura aprendeu a ver no campo a paisagem e
na nudez, o Nu) e, ao mesmo tempo, avaliativos (a literatura e
a pintura no século XVIII dotaram a alta montanha e o alto mar
de um valor estético que não lhe eram reconhecidos até então)
(Nus e Paisagens. Ensaio sobre as Funções da Arte, 1978). Como
A. Roger fez sobre a arte do passado.ja estética deve estudar os
efeitos destas novas formas de imagens sobre a sensibilidade. J
Deste modo, também aqui se verifica a afirmação de Walter
Benjamin que citámos atrás, segundo a qual, «ao longo dos
grandes períodos históricos, assiste-se à transformação não só
~
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-""-----,-----

ÍNDICE

INTRODUÇÃO.. 7

CAPÍTULO I - Pré-história da estética 13

I. A metafísica do belo, 13
_ \~
.
fí',,'Jf
J!
11. As reflexoes sobre a arte, 19 (\ 'í' ~
111. Reflexões estéticas sem estética, 26 l if,/. \' .
~, 1
CAPÍTULO 11 - Nascimento da estética 31

I. Uma nova episthêmê, 31


11. A estética corno crítica do gosto, 36
111. Baptismo da estética; Baumgarten, 44
IV. O momento kantiano, 46

CAPÍTULO 111- As teorias filosóficas da arte 51

I. A estética como discurso da arte, 52


11. A estética como discurso sobre a arte, 55
111. O artista-filósofo e o filósofo-artista, 63
IV. Conclusão; arte e filosofia, 69

CAPÍTULO IV - A estética perante os desafios artísticos


do século XX 73
I. A desdefiniçâo da arte, 73
11. A Escola de Francoforte, 76
111.A estética fenomenológica, 79
IV. A estética analítica, 84

CONCLUSÃO- A estética do futuro 93

105
-""-----,-----

ÍNDICE

INTRODUÇÃO.. 7

CAPÍTULO I - Pré-história da estética 13

I. A metafísica do belo, 13
_ \~
.
fí',,'Jf
J!
11. As reflexoes sobre a arte, 19 (\ 'í' ~
111. Reflexões estéticas sem estética, 26 l if,/. \' .
~, 1
CAPÍTULO 11 - Nascimento da estética 31

I. Uma nova episthêmê, 31


11. A estética corno crítica do gosto, 36
111. Baptismo da estética; Baumgarten, 44
IV. O momento kantiano, 46

CAPÍTULO 111- As teorias filosóficas da arte 51

I. A estética como discurso da arte, 52


11. A estética como discurso sobre a arte, 55
111. O artista-filósofo e o filósofo-artista, 63
IV. Conclusão; arte e filosofia, 69

CAPÍTULO IV - A estética perante os desafios artísticos


do século XX 73
I. A desdefiniçâo da arte, 73
11. A Escola de Francoforte, 76
111.A estética fenomenológica, 79
IV. A estética analítica, 84

CONCLUSÃO- A estética do futuro 93

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