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O PAPEL DA IMPRENSA NA CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL: TOLERÂNCIA

MÚTUA E RESERVAS INSTITUCIONAIS APLICADAS AO JORNALISMO


PROFISSIONAL

Guilherme Ogg1

RESUMO

Hoje podemos afirmar que democracia liberal está em crise no Brasil. Desde muito antes de
2018, Jair Bolsonaro se mostrava um pretenso autocrata. Agora, como Presidente da
República, tensiona as relações com os outros poderes, participando de manifestações que
pedem o fechamento do STF e da Câmara dos Deputados e atacando a mídia. O atual
Presidente parece ter objetivo de fazer ruir a democracia de dentro para fora, como fizeram
Hugo Chávez, Viktor Orbán e Recep Erdogan. Com esse artigo pretendemos entender qual foi
o papel da mídia para termos chegado a esse ponto de corrosão democrática, quando tínhamos
uma democracia que parecia consolidada. Acreditamos que a forma como a mídia se
comportou em momentos importantes da política recente e determinadas escolhas que os
grandes grupos de mídia fizeram em momentos delicados podem ter contribuído para a
eleição de um pretenso autocrata. Nesse artigo realizou-se uma pesquisa bibliográfica de
estudos que analisaram como a mídia retratou vários eventos recentes como o Mensalão, o
Petrolão, o Impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e as eleições de 2018. Através dos
dados fornecidos por esses artigos foi feita uma análise do comportamento da mídia levando
em consideração os conceitos de tolerância mútua e reserva institucional propostos por Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt. Com isso reflete-se sobre como, a partir de agora, a mídia pode agir
para fortalecer a democracia.

Palavras-chave: Democracia; Mídia; Bolsonaro; Comunicação; Política.

1. INTRODUÇÃO

A democracia liberal está em crise. Segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,


cientistas políticos e professores em Harvard, (2018, p.9), até pouco tempo atrás, a maior
preocupação de estudiosos com uma possível recessão da democracia, era a dificuldade na
transição de governos totalitários para democráticos desde meados da década de 2010, como,
por exemplo, no Egito. Porém, houve uma mudança nesse pensamento, pois a preocupação
atualmente, tem sido entender se as democracias tradicionais estão entrando em colapso. O
autor explica (p.17) que diferente de golpes de Estado clássicos, como aconteceu no Brasil
em 64, desde o fim da guerra fria, as rupturas têm se dado por governos eleitos, como com
Chaves na Venezuela, Viktor Orbán na Hungria e Recep Erdogan na Turquia, todos governos
populistas, nacionalistas encabeçados por demagogos. Nesses casos, não houve tanques nas
1
Guilherme Ogg é mestre em comunicação social pela Univeridade Federal do Paraná. E-mail para contato
guilhermeogg@gmail.com
ruas, nem suspensão da constituição, os autocratas mantiveram o verniz de democracia, mas
corroeram a essência. 
É possível afirmar que, desde a eleição de 2018, o Brasil tem seguido uma trajetória
perigosamente parecida com esses países. Levitsky e Ziblatt (p.26) explicam que
frequentemente a derrocada da democracia se dá por um outsider político. Hitler, Fujimori e
Chaves eram todos outsiders e, em todos esses casos, as elites acreditaram que poderiam se
aliar com eles para vencer o processo eleitoral e que depois seria possível contê-los, mas os
planos não funcionaram.
Uma mistura letal de ambição, medo e cálculos equivocados conspirou para levá-las
ao mesmo erro: entregar condescendentemente as chaves do poder a um autocrata
em construção. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018, p. 26).

O autor ressalta também que um cenário de extrema polarização política é o que


favorece a ascensão das figuras autocráticas, essa polarização estimula o discurso da
antipolítica encabeçado por eles e faz com que políticos de algum dos lados ceda à tentação
de apoiá-lo mesmo colocando a democracia em risco.

A polarização pode destruir as normas democráticas. Quando diferenças


socioeconômicas, raciais e religiosas dão lugar a sectarismo extremo, situação em
que as sociedades se dividem em campos políticos cujas visões de mundo são não
apenas diferentes, mas mutuamente excludentes, torna-se difícil sustentar a
tolerância. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018, p. 132).

Esse cenário é bem próximo do brasileiro nas eleições de 2018. Desde 2005, com o
escândalo do mensalão, houve um processo midiático de exposição do Partido dos
Trabalhadores que conectou a imagem dele à ideia de corrupção.  Ainda assim, em um
momento de bonanza econômica, diminuição do desemprego e desigualdade social, o PT
seguiu vencendo todas as eleições seguintes. Essa situação acirrou a polarização entre o PT e
PSDB, pois por 14 anos não houve alternância de poder no país, frustrando os adversários
políticos do Partido dos Trabalhadores. Nesse cenário, começa a ganhar força política um
candidato pretensamente outsider, que ainda que tivesse 3 décadas de vida pública pregressa,
sustentava o discurso da antipolítica e não se identificava abertamente com nenhum dos dois
partidos que protagonizaram os últimos quatro processos eleitorais para o executivo
brasileiro, o PT e o PSDB: Jair Bolsonaro.
Porém, estar fora da dicotomia PT - PSDB não era a única característica que fazia de
Jair Bolsonaro um candidato singular. Ele é um capitão reformado do Exército Brasileiro, que
foi para a reserva após ter sido acusado pela revista Veja, em artigo de 1987 2, de ter planejado
2
https://veja.abril.com.br/blog/reveja/o-artigo-em-veja-e-a-prisao-de-bolsonaro-nos-anos-1980/ (acesso em 03
de maio de 2020)
colocar bombas em quartéis em protesto por causa dos baixos salários. Em outro episódio
polêmico, em 31 de maio de 1999, Jair Bolsonaro foi entrevistado no programa Câmera
Aberta da TV Bandeirantes, nessa o ocasião o então Deputado Federal sugeriu o fechamento
do congresso, defendeu tortura a Chico Lopes 3 e fuzilamento do, então presidente, Fernando
Henrique Cardoso
“Eu até sou favorável, no caso da CPI do Chico Lopes, que tivesse pau-de-arara
lá. Ele merecia isso, pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura, tu sabe
disso, e o povo é favorável a isso também.”. Entrevistador pergunta <“Se você
fosse hoje o presidente da república, você fecharia o congresso nacional?”> a
resposta de Bolsonaro foi “Não há a menor dúvida, daria golpe no mesmo dia.
No mesmo dia. Não funciona. E tenho certeza que pelo menos 90% da população
ia fazer festa e bater palma (...) Não vai falar de ditadura militar aqui. Só
desapareceram 282, a maioria marginais, assaltantes de banco, sequestradores.
Só no carnaval de São Paulo morreu mais de 300 (...) Através do voto você não
vai mudar nada nesse país. Nada. Absolutamente nada. Você só vai mudar
quando infelizmente nós partirmos para uma guerra cívil aqui dentro, e fazendo o
trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com o
FHC, não vamos deixar para fora não, matando, se vai morrer alguns inocentes?
Tudo bem.”

Vale ressaltar que nessa entrevista o, então deputado, tinha 44 anos de idade. Então
poderíamos pensar que, para se tornar presidente do Brasil, talvez ele tenha refletido e
mudado sua maneira de pensar nos últimos 21 anos até sua eleição como presidente. Porém,
isso não aconteceu. No dia em que o impeachment da Dilma Roussef foi votado pela câmara
dos deputados, em 15 de abril de 2016, o voto de Jair Bolsonaro foi “Pela memória do coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff’’, se referindo ao homem 4 que
torturou a ex-presidente durante a ditadura militar. 
Agora (19 de abril de 2020), como presidente do Brasil, Jair Bolsonaro participou de
manifestações5 contra os outros poderes e a favor da volta do AI-5, ato institucional que
fechou o congresso durante a ditadura militar brasileira. Nesse momento em que temos um
pretenso autocrata como presidente eleito do Brasil, tentando minar os contrapesos da
democracia brasileira, precisamos questionar como chegamos a esse ponto. O que aconteceu?

2. POLARIZAÇÃO E MÍDIA

3
Ex presidente do Banco Central acusado de tráfico de influência para favorecer os bancos Marka e
FonteCindam <https://www.istoedinheiro.com.br/noticias/negocios/20130524/desabafo-chico-
lopes/3013.shtml> (acesso em 03 de maio de 2020)
4
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/08/bolsonaro-chama-coronel-ustra-de-heroi-nacional.ghtml
5
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/19/jair-bolsoanaro-nao-queremos-negociar-nada-
manifestacao-anti-congresso.htm (acesso em 03 de maio de 2020)
Em 2005, no terceiro ano do primeiro mandato de Lula como presidente do Brasil,
veio a tona o escândalo do mensalão. Quando o deputado federal Roberto Jefferson do PTB
denunciou a compra de uma base aliada pelo PT, através do pagamento mensal a deputados
no valor de 30 mil reais. Esse foi o primeiro grande escândalo político envolvendo o Partido
dos Trabalhadores. Miguel e Coutinho (2007) analisaram os editoriais dos 3 maiores jornais
do Brasil (Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo) entre maio e dezembro de 2005 a
fim de compreender como o escândalo do mensalão foi retratado na mídia brasileira. Segundo
os autores a mídia teve papel central na dimensão tomada nessa crise.

Entre os fatores que explicam a importância adquirida pela crise está a ação dos
meios de comunicação de massa. (...) O caso ganhou nova dimensão após a
entrevista bombástica do então deputado Roberto Jefferson ao jornal Folha de S.
Paulo, em 6 de junho de 2005. Nela, Jefferson afirmou que o governo pagava
mesadas para deputados votarem a seu favor e cunhou o termo "mensalão". Daí
em diante, os principais jornais diários e as revistas semanais de informação
passaram a competir por novas denúncias e evidências contra autoridades da
República, repetindo a "dobradinha" mídia/CPI que, em 1992, levou ao
impeachment do presidente Fernando Collor de Melo. (MIGUEL E
COUTINHO, 2007, p.98)

Nesse estudo, os autores observam a construção da crise como um desvio a ser


corrigido pela punição ou exclusão de determinados atores políticos. Eles (p.113), analisaram
1803 editoriais no período de 8 meses, dos quais 472 se referiram à crise e separaram esses
em 2 categorias: as causas da crise e os remédios propostos para debelá-la.  Os personagens
mais citados nesses editoriais foram Lula, em primeiro lugar, citado em 324 editoriais e o PT
em 281 deles. Entre maio e dezembro 82% dos editoriais incluíam elementos de
responsabilização do PT, do Lula e seu governo. Nesse estudo, os autores também separaram
os editoriais em 2 tipos de causas pela crise: causas personalistas, em que a explicação para o
surgimento da crise é dada pelas ações ou omissões de um agente ou grupo de agentes;  e
causas abstratas que deslocam o foco para motivos históricos, culturais ou estruturais,
vinculados à organização política do país ou a comportamentos enraizados das elites ou do
povo brasileiro. Em 90,2% casos os editoriais trataram as causas da crise de forma
personalista.  A cobertura do escândalo do mensalão foi dura e a narrativa da imprensa, no
geral, foi de que se tratou de um escândalo de corrupção em que Lula e o PT foram os
maiores culpados; e que o remédio seria a punição dos mesmos. A crise forçou a renúncia do
Ministro Chefe da Casa Civil José Dirceu em junho de 2005 e depois do Ministro da Fazenda
Antônio Palocci em março de 2006. Em 2013 o ministro do Supremo Tribunal Federal e
relator do caso, Joaquim Barbosa negou6 o pedido de incluir Lula no caso do mensalão
6
http://g1.globo.com/politica/mensalao/noticia/2012/08/stf-volta-rejeitar-inclusao-de-lula-como-reu-no-
processo-do-mensalao.html (acesso em 03 de maio de 2020)
afirmando que “O pedido para que o Supremo Tribunal Federal denuncie o ex-presidente da
República é juridicamente impossível”.  Portanto hoje, passados 13 anos dos estudos de
Miguel e Coutinho, vemos que Lula sequer foi réu no julgamento do mensalão, mesmo tendo
sido o personagem mais citado nos editoriais analisados.

3. MOVIMENTOS DE RUA E AS ELEIÇÕES DE 2014


Em 2013 aconteceram as Jornadas de Junho, quando um grupo chamado Movimento
Passe Livre iniciou manifestações contra um aumento de 20 centavos nas tarifas de transporte
público pelo Governo de São Paulo. Essas manifestações foram duramente reprimidas pela
Polícia Militar do Estado e as imagens chocantes de manifestantes feridos fizeram com que os
movimentos crescessem. Porém aos poucos as reivindicações foram ficando bastante difusas.
De início esses movimentos foram apoiados por políticos da esquerda, pois minavam a
imagem do então Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que havia disputado as
eleições de 2006 contra o Lula. Em 17 de junho, Dilma afirmou 7 que as manifestações eram
legítimas e próprias da democracia. Em pouco tempo, porém, as manifestações foram
cooptadas por grupos de direita como o Movimento Brasil Livre e o Vem Pra Rua, dessa vez
tendo como alvo o PT e Dilma Rousseff. Esse foi início de um forte acentuamento na
radicalização política no Brasil.

Após as manifestações de junho de 2013, a dicotomia na participação política


brasileira ganhou um novo capítulo em sua história. A identificação das pessoas
entre esquerda e direta refloriu(...) Esse pico de polarização entre esquerda e
direita se provou resistente e conseguiu se manter e se desenvolver até as
eleições nacionais de 2014. A declarada esquerda se mobilizou contra o suposto
projeto neoliberal do PSDB, e a direita conservadora desenvolveu sua ideologia
em torno de um forte antipetismo declarado antipartidário, com discussões
radicalizadas para os extremos dos valores considerados da direita. O
radicalismo conservador da direita adquiriu elementos de ódio.”  (BRUGNAGO
e CHAIA, 2014, p.102)

A polarização foi uma marca na campanha eleitoral de 2014 e uma massa de pessoas,
que antes não se interessavam pelo assunto, passou a discutir política pela internet. A
esquerda apelidou a direita de coxinha em alusão ao seu conservadorismo, por sua vez a
direita apelidou a esquerda de petralhas referenciando os Irmãos Metralha da Disney,
inferindo que a esquerda era a formada por bandidos. A polarização extrema pode ser
observada no fato de que, após o resultado das eleições de 2014, em que a Dilma Roussef
venceu no segundo turno, com 51,64% dos votos, seu adversário político Aécio Neves não
7
http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-considera-manifestacoes-legitimas-afirma-
ministra.html (acesso em 03 de maio de 2020)
aceitou o resultado das eleições, pedindo ao TSE que verificasse a lisura do processo
eleitoral8. Em duas afirmações9 do ex candidato à presidência fica clara essa radicalização, a
primeira é “Estamos em pé de guerra para defender nossa vitória. Não vamos permitir fraudes
ao estilo chavista, como na Venezuela.” e a segunda é “Não vamos reconhecer o resultado até
que não se conte cada voto”. Após o pedido de Aécio Neves o TSE realizou a auditoria 10 e
reafirmou a lisura das eleições de 2014. Segundo Levitsky e Ziblatt “Falsas acusações de
fraude podem minar a confiança pública em eleições – e quando cidadãos não confiam no
processo eleitoral, muitas vezes perdem a fé na própria democracia.” (2018, p.118). Então o
que começamos a perceber já em 2014 foi o início de uma erosão democrática, com um
aumento da polarização e uma direita frustrada com a política duvidando do processo
democrático.  Esse cenário de ficou ainda mais crítico quando foi eleito como presidente da
Câmara dos Deputados o deputado federal Eduardo Cunha do PMDB, vencendo Arlindo
Chinaglia do PT. Após sua vitória, Cunha afirmou 11 que “o parlamento soube reagir no voto”
à tentativa do governo de impedir a sua vitória, mas prometeu “não fazer do parlamento um
campo de batalha”. Não foi bem isso que aconteceu.

4. MÍDIA E POLÍCIA
Ainda em 2014 veio à tona outro escândalo envolvendo a administração petista, o
Petrolão. Um suposto esquema de corrupção envolvendo a estatal Petrobras que teria
contratado empreiteiras para grandes obras com valor superfaturado. Através desse esquema,
os empresários teriam pagado propina para políticos e assim seus contratos seriam facilitados.
Esse esquema teria envolvido políticos de diversos partidos em sua maioria do PT e do PP. A
operação Lava Jato é um conjunto de investigações que apurou esse esquema de corrupção e
lavagem do dinheiro. Essa investigação fez emergir uma figura que encarnava os anseios da
direita frustrada com o processo eleitoral de 2014, o juiz federal Sérgio Moro, que julgou o
caso.
A cobertura midiática da operação lava jato foi marcada por vazamentos de
informações sobre as investigações para jornalistas, baseadas em uma colaboração entre
Ministério Público, Polícia Federal e juízes com setores da imprensa. O mais importante
8
http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/10/psdb-pede-ao-tse-auditoria-para-verificar-lisura-da-
eleicao.html (acesso em 04 de maio de 2020)
9
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/04/politica/1415133561_025263.html (acesso em 04 de maio de
2020)
10
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,auditoria-do-psdb-conclui-que-nao-houve-fraude-na-
eleicao--imp-,1777811(acesso em 04 de maio de 2020)
11
http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/02/eduardo-cunha-e-eleito-presidente-da-camara-dos-
deputados.html (acesso em 04 de maio de 2020)
desses vazamentos aconteceu no dia 16 de março de 2016, quando o juiz Federal Sérgio Moro
tirou o sigilo de interceptações gravadas pela Polícia Federal envolvendo Dilma Rousseff e
Lula. Essa gravação daria a entender que Dilma estaria oferecendo um documento ao ex-
presidente que lhe-garantiria o cargo de Ministro da Casa Civil e, por consequência, foro
especial. Segue transcrição abaixo:
Dilma: "Alô."
Lula: "Alô."
Dilma: "Lula, deixa eu te falar uma coisa."
Lula: "Fala, querida. Ahn?"
Dilma: "Seguinte, eu tô mandando o 'Bessias' junto com o papel pra gente ter ele, e só usa em caso de
necessidade, que é o termo de posse, tá?!"
Lula:  "Uhum. Tá bom, tá bom."
Dilma: "Só isso, você espera aí que ele tá indo aí."
Lula: "Tá bom, eu tô aqui, fico aguardando."
Dilma: "Tá?!"
Lula: "Tá bom."
Dilma: "Tchau."
Lula: "Tchau, querida."
A divulgação dessas gravações teve fortes impactos políticos no Brasil. A justificativa
do poder judiciário para fazê-lo foi garantir a transparência e a democracia, mas, para Bruck e
Carvalho (2018), existem outros sentidos que podem ser percebidos. Segundo eles, os
vazamentos na cobertura da Lava Jato constituíram uma modalidade de prática jornalística
que se distancia de princípios tidos como desejáveis ética e legalmente por parte da imprensa;
e que esses vazamentos tinham potencial de alterar os rumos políticos da nação. Os autores
afirmam que em um momento de grande fragilidade institucional da presidenta Dilma
Rousseff, o vazamento cumpriu a função de impedir a posse de Lula como Ministro da Casa
Civil com a justificativa de que a decisão da presidente seria lhe dar esse cargo apenas para
conceder-lhe foro especial (p.10). Segundo os autores trata-se da “vida político-institucional
do País, incluindo-se os media, em arranjos paralelos e cuja orquestração evidencia objetivos
que transcendem a natureza e o próprio sentido de sua existência na sociedade” (p.3), pois o
jornalismo reivindica para sí a legitimidade para expor o mundo para a população de forma
imparcial e, segundo eles, o ato de gravar as conversas e divulgá-las deliberadamente mostra
uma obrigatória articulação com a mídia e o desejo de interferência nos cursos históricos.

“Os vazamentos não nascem de geração espontânea, são, antes, minuciosamente


pensados pelos agentes por eles responsáveis, o que requer tempo político e
demais condições para que sua repercussão seja a ideal, o que pressupõe,
arrogantemente, que não podem significar nada além do seu conteúdo
aparentemente óbvio. Mas cabe aqui uma ressalva (...) Estão também sujeitos ao
vir pragmatista, imersos, a partir do seu vir à luz, nos jogos de poder e nas
disputas de sentido.” ( BRUCK e CARVALHO, 2018, p.7)

O questionamento sobre a posição da mídia nesse episódio foi o interesse da pesquisa


Esther Athanásio (2017) que complementa o artigo de Bruck e Carvalho (2018). A
pesquisadora compara, em editoriais da Gazeta do Povo, a repercussão do vazamento dos
áudios de Lula e Dilma com a das gravações 12 de Sérgio Machado 13com Romero Jucá. À
época, início do governo de Michel Temer, Romero Jucá era ministro do planejamento. Nessa
gravação os interlocutores denunciavam negociações para interromper o avanço da Lava Jato
em “um Grande Acordo Nacional com o supremo com tudo”. Nessa pesquisa, a autora reuniu
treze editoriais da Gazeta do Povo, publicados entre março e junho de 2016. Os editoriais
selecionados foram os que traziam as palavras “vazamento” ou “gravação”. A pesquisadora
utilizou o método análise do discurso e achou 5 formações discursivas mais recorrentes, que
explicitam a posição da empresa sobre o tema:  
A formação discursiva 1 é a de que os vazamentos desmascaram agentes políticos.
Essa formação afirma que considera os vazamentos uma ferramenta de exposição da
verdadeira política, o que é legítimo tanto para investigação quanto vigilância social. Nessa
formação discursiva há uma ênfase na crítica aos petistas e especialmente a Lula. Para a
Gazeta do Povo, as gravações mostram quem o ex-presidente é. Em menor escala, o jornal
aponta outros políticos que tiveram sua essência descoberta.  Essa formação discursiva esteve
presente em 8 dos 13 editoriais.
A formação discursiva 2 é a de que o petismo quer criminalizar os vazamentos. Essa
formação afirma que os prejuízos que os vazamentos trouxeram fez a liderança do PT
desqualificar a Lava Jato e a prática de divulgação das conversas. Segundo a Gazeta do Povo,
trata-se de uma falha estratégia do partido para reduzir o impacto na Opinião Pública. Essa
formação discursiva estava presente em 4 dos 13 editoriais.
A formação discursiva 3 é a de que o Governo usa máquina pública para blindar seus
aliados e que isso é um desrespeito à ordem e a lei. A terceira formação discursiva estava
presente em 4 dos 13 editoriais.
A formação discursiva 4 é a de que os vazamentos são legais e benéficos. Nessa
formação discursiva a polêmica em torno da legalidade da divulgação dos grampos da Lava
Jato está resolvida: são legais. Na situação em que juristas criaram um impasse, quando da

12
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-fala-em-pacto-para-deter-
avanco-da-lava-jato.shtml (acesso em 04 de maio de 2020)
13
Ex-presidente da transpetro e ex-senador pelo PSDB
divulgação dos grampos de Lula, em conversa com a presidente Dilma, o periódico saiu em
defesa de Sérgio Moro e realçou não apenas a legalidade de seus atos, como o interesse
público no conhecimento de tais gravações. A quarta formação discursiva estava presente em
2 dos 13 editoriais.
A formação discursiva 5 é de que o governo Temer precisa vigiar para não se
contaminar. No período analisado que corresponde ao governo Temer, os editoriais se
dedicam a prospectar a atuação do governo interino frente à investigação. O tom é de um voto
de confiança, embora logo nas primeiras semanas de governo já tenham surgido vazamentos
comprometedores. A quinta formação discursiva estava presente em 2 dos 13 editoriais.
Para a pesquisadora houve uma alteração do discurso após o afastamento de Dilma.
“Enquanto a presidenta estava no governo os ataques foram numerosos e muito contundentes,
presumindo sua conivência com a corrupção, ainda que o conteúdo da conversa entre os ex-
presidentes Lula e Dilma não tivesse claro. Já no caso das conversas entre Sérgio Machado e
Romero Jucá, conversas significativamente mais comprometedoras, a Gazeta do Povo foi
mais tolerante, sem questionar a lisura do ex-presidente. Na posição da Gazeta nesses
editoriais, Dilma é culpada, Temer recebe recomendações preventivas” (p.110).
O vazamento das conversas entre Dilma e Lula ficou ainda mais questionável quando
tornaram-se públicas, através de vazamentos por hackers, mensagens do Telegram de
integrantes da Operação Lava Jato, que indicava que no mesmo dia outras conversas do ex-
presidente Lula também foram gravadas e indicavam que ele não estava interessado no foro
especial. Ou seja, o vazamento foi cuidadosamente escolhido para fazer parecer que havia
desvio de finalidade na indicação de Lula como ministro da casa civil.

5. MÍDIA E DEMOCRACIA
Após Moro levantar o sigilo das conversas entre Lula e Dilma, dia 16 de março de
2016, não demorou muito para o afastamento da ex-presidenta Dilma Rousseff acontecer. Dia
17 de abril de 2016, numa sessão tensa na Câmara dos Deputados, 367 parlamentares votaram
a favor do afastamento da ex-presidente, enquanto 137 votaram contra. Nessa sessão o voto14
do atual presidente Jair Bolsonaro chamou atenção ao reverenciar Brilhante Ustra, o primeiro
oficial condenado em ação declaratória por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois dos
fatos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985).

14
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1763027-bolsonaro-fez-apologia-ao-crime-na-votacao-do-
impeachment-diz-oab.shtml (acesso em 05 de maio de 2020)
"Perderam em 64. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das
crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa
liberdade, contra o foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff".

Já a votação do impeachment no Senado Federal ocorreu no dia 31 de agosto de 2016


com 61 senadores votando a favor da cassação do mandato de Dilma e 20 votando contra,
colocando fim a 14 anos de gestão petista no Brasil.
Um artigo de Marques, Montalverne e Mitozo (2018) analisou a cobertura da imprensa
no impeachment de Dilma Rousseff. Os autores examinaram 507 editoriais da Folha de São
Paulo (156) e do Estado de São Paulo (351) publicados entre 2015 e 2016 que continham a
palavra impeachment utilizando-se do método análise de conteúdo. A análise foi feita
primeiramente de forma quantitativa, verificando a frequência com que os periódicos trataram
do assunto levando em consideração os momentos chave do impeachment da ex-presidente: a
formalização do pedido de impeachment em setembro de 2015, passando pela aceitação pelo
então presidente da câmara dos deputados Eduardo Cunha, dia 02 de dezembro de 2015, até o
último dia da votação no Senado dia 31 de agosto de 2016. Os autores mostram que tanto a
Folha de São Paulo como O Estado de São Paulo começaram a tratar do tema em seus
editoriais em fevereiro de 2015 poucos dias após Dilma Rousseff ser empossada para o
segundo mandato.

Ao analisar os casos individualmente, percebe-se que os jornais cobriram o tema


“impeachment” em seus editoriais mesmo quando não havia qualquer
movimentação institucional em torno da proposta – conforme observado
anteriormente neste artigo. Entretanto, os dois periódicos intensificam esse tipo
de publicação quando há maior incidência de acontecimentos oficiais.
(MARQUES, MONTALVERNE e MITOZO, 2018, p.233)

Eles mostram, também, que conforme avançava a expectativa de votação do processo


de afastamento da presidente a frequência dos editoriais tratando do assunto aumentava (p.
231).
Depois foi feita uma análise qualitativa dos editoriais entre março a maio de 2016,
quando avançava a expectativa da votação do processo de afastamento de Dilma na câmara
dos deputados, o período mais crítico do processo. Nesse período foram lançados 50 editoriais
da Folha de São Paulo e 105 do Estado de São Paulo. O objetivo da análise foi compreender
em que argumentos os jornais se ancoraram para construir ou questionar a legitimidade do
afastamento da presidente. Nessa análise os pesquisadores separaram três variáveis que
poderiam existir ou não entre os editoriais.
A primeira é o argumento legitimador do impeachment, ou seja, razões utilizadas
pelos editoriais para justificar (ou não) o afastamento de Dilma Rousseff. Na Folha de São
Paulo 85,7% e no Estado de São Paulo 86,7% dos editoriais do período continham
argumentos legitimadores, o que mostra uma preocupação constante nos periódicos para
construir (ou questionar) a legitimidade do impeachment de Dilma. Em ambos os casos o
argumento legitimador mais utilizado foi a crise econômica, 25,6% dos editoriais da Folha e
21% dos do Estado de São Paulo traziam esse argumento. Argumentos jurídicos são apenas o
segundo apelo mais frequente nos dois jornais; em O Estado de São Paulo, enfatiza-se “crime
de responsabilidade” (15,5%), enquanto na Folha destaca-se “normas legais” (20,5%).
A segunda variável é a exploração de saídas para a solução política. Apresentaram
saídas 28,6% dos editoriais da Folha e 27,6% dos do Estado de São Paulo. Porém eles
divergem bastante entre as saídas apresentadas, a saída mais apresentada pela Folha foi novas
eleições, correspondendo a 33,4%; seguida de perto pela renúncia da presidente, 28,6%.
Dentre os editoriais que apresentavam saídas, o impeachment representava apenas 9,5% das
saídas apresentadas nos editoriais da Folha de São Paulo. Já o Estado de São Paulo apresentou
o impeachment como saída em 72,4% desses editoriais, ou seja, na grande maioria deles. 
A última variável apresentada pelos pesquisadores foi a das consequências do
impeachment. Dos editoriais analisados no período 40% dos do Estado de São Paulo
exploram as possíveis consequências, enquanto apenas 20,4% dos da Folha fazem o mesmo.
A principal consequência do afastamento para O Estado de São Paulo é a melhora da situação
econômica no país, que apareceu em 34% dos editoriais analisados. Já para a Folha de São
Paulo a maior consequência seria a instabilidade política (37,7%), adotando uma posição mais
cautelosa para esta saída. Todavia os pesquisadores chegaram à conclusão que ambos os
periódicos construíram, de forma sincronizada com o desenvolvimento do processo de
impeachment nas esferas institucionais, a ideia de legitimidade do afastamento de Dilma. Para
eles, os dados mostram que os dois jornais, ainda que em graus distintos, deslocam o centro
da discussão do campo político ou jurídico para o campo econômico.

As regras do jogo democrático-constitucional são mobilizadas de forma a


garantir que o impeachment estaria a transcorrer de forma procedimentalmente
correta. No entanto, parte dos argumentos legitimadores acionados, conforme
indicado, diz respeito a fatores externos à esfera política, ainda que se trate de
um processo essencialmente político. Ao conferir importância singular ao
argumento de ordem econômica para sustentar o afastamento da presidente, os
jornais acabam por legitimar a importância dos interesses econômicos no que
tange ao encaminhamento de impasses que, em princípio, seriam típicos do
campo político. (MARQUES, MONTALVERNE e MITOZO, 2018, p.239)
Os dados e análises de Marques, Montalverne e Mitozo são muito ricos para
pensarmos no papel da imprensa no jogo democrático. Parece que o que se viu em 2016 foi
um conluio de diferentes forças com interesses diversos para que houvesse o impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff. Porém, muitos atores desse acontecimento parecem não ter
levado em consideração, ou não ter se importado, com os impactos que o impeachment
poderia ter para a democracia brasileira. Para Levitsky e Ziblatt, os freios e contrapesos do
sistema jurídico numa democracia liberal não são o suficiente para impedir um autocrata de
chegar ao poder. Para a democracia ser mantida é importante que se respeite determinadas
regras não escritas.

Regras escritas e árbitros funcionam melhor, e sobrevivem mais tempo, em


países em que as constituições escritas são fortalecidas por suas próprias regras
não escritas do jogo. Essas regras ou normas servem como grades flexíveis de
proteção da democracia, impedindo que o dia a dia da competição política se
transforme em luta livre. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018, p.117)

Infelizmente no Brasil, principalmente a partir de junho de 2013, a disputa política se


transformou em luta livre, com protagonismo de muitos atores, sendo impossível abordar
todos, mas Ministério Público, Juízes, Deputados, Militares e a imprensa participaram desse
processo. Para Levitsky e Ziblatt existem duas regras não escritas que são fundamentais para a
manutenção de um regime democrático: a tolerância mútua e a reserva institucional. O autor
explica que a tolerância mútua “diz respeito à ideia de que, enquanto nossos rivais jogarem
pelas regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir
pelo poder e governar.” (p.118). Segundo o autor, quando não vemos nossos oponentes como
legítimos, qualquer meio pode ser empregado para derrotá-los. A ignorância à essa regra pode
ser observada de forma muito significativa após as eleições de 2014. Primeiro com Aécio
Neves colocando em xeque a legitimidade do processo eleitoral. Depois com editoriais de
dois dos maiores quality papers do Brasil tratando de impeachment, pouco da depois da posse
de Dilma Rousseff para o segundo mandato. Por fim, com Jair Bolsonaro dizendo que não
aceitaria sua eventual derrota nas eleições de 201815. Ou seja, chegamos a um ponto em que
qualquer um duvidava do processo eleitoral.
A reserva institucional, segunda regra não escrita de que falam Levistky e Ziblatt “é o
ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito”
(p.122). Podemos observar a inaplicação dessa regra na retirada do sigilo, por Sérgio Moro,

15
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/nao-aceito-resultado-diferente-da-minha-eleicao-afirma-
bolsonaro.shtml (acesso em 05 de maio de 2020)
das gravações interceptadas pela Polícia Federal e a forma com que aconteceram as
divulgações pela imprensa. Afinal, por mais que o juiz tivesse essa prerrogativa, não deveria
tomar essa decisão com o objetivo de manipular o cenário político.
Como pudemos observar nos casos do vazamento das conversas entre Lula e Dilma e
no próprio impeachment, mesmo a legalidade dessas ações está opaca, visto que nem os
vazamentos nem o fundamento legal do impeachment trazem um consenso da comunidade
jurídica em favor delas. Além disso, elas violam o espírito da lei, no sentido de se utilizar de
brechas e opacidades na legislação simplesmente para derrubar um adversário político. 

Normas de reserva institucional são especialmente importantes em democracias


presidencialistas. Como sustenta Juan Linz, governos divididos podem facilmente
levar a impasses, disfunções e crises constitucionais Presidentes sem comedimento ou
controle podem aparelhar a Suprema Corte, alterando a sua composição, ou contornar
o Congresso, governando por decretos. E congressos sem comedimento podem
bloquear todos os movimentos do presidente, ameaçando lançar o país no caos ao se
recusarem a financiar o governo ou ao votarem pelo afastamento do presidente com
base em motivos dúbios. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018, p.125)

Essa questão ficou ainda mais evidente quando Sérgio Moro decretou a prisão de Lula,
o pré-candidato pelo PT, com uma sentença que também não obteve consenso do ponto de
vista jurídico, como é possível perceber em um manifesto 16 de 10 renomados17 juristas
estrangeiros chamado “Lula não foi julgado, foi vítima de uma perseguição política”. Juristas
brasileiros também lançaram um livro18 chamado “Comentários a uma sentença anunciada”,
em que se analisam de forma crítica a sentença proferida por Sérgio Moro que condenou Lula
a 9 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. 
Lançou-se muitas dúvidas em relação a lisura da sentença de Sérgio Moro sobre a
prisão de Lula antes do processo eleitoral, pelo fato de que, meses depois, ele veio a se tornar
Ministro da Justiça do presidente Jair Bolsonaro, adversário do PT no segundo turno das
eleições de 2018. Afinal, segundo pesquisas de intenção de voto, Lula estava na frente 19 de

16
https://exame.abril.com.br/brasil/indignados-juristas-estrangeiros-pedem-ao-stf-que-liberte-lula/
(acesso em 05 de maio de 2020)
17
Susan Rose-Ackerman, professora de jurisprudência da Universidade de Yale, nos EUA, uma das
maiores especialistas do mundo em combate à corrupção. Bruce Akerman, Luigi Ferrajoli, referência
do garantismo jurídico no mundo, O ex-juiz espanhol Baltasar Garzón, que condenou o ex-ditador
chileno Augusto Pinochet por crimes contra a humanidade, Alberto Costa, ex-ministro da Justiça de
Portugal, e Herta Daubler-Gmelin, ex-ministra da Justiça da Alemanha. E ainda ex-presidentes e
integrantes de cortes superiores, como Pablo Cáceres, ex-presidente da Suprema Corte de Justiça da
Colômbia, e Diego Valadés, ex-juiz da Suprema Corte de Justiça do México e ex-procurador-geral da
República.
18
https://www.saraiva.com.br/comentarios-a-uma-sentenca-anunciada-o-processo-lula-9755731/p
(acesso em 05 de maio de 2020)
19
https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/08/22/pesquisa-
datafolha-lula-39-bolsonaro-19-marina-8-alckmin-6-ciro-5.ghtml (acesso em 05 de maio de 2020)
Jair Bolsonaro, mas foi substituído por Fernando Haddad por não poder concorrer estando
condenado.

6. MÍDIA E ELEIÇÕES
Lula seria candidato em 2018 e claramente não era o favorito dos atores políticos que
se movimentaram para que o impeachment da Dilma acontecesse. Nesse cenário,
determinadas situações aumentaram a sensação de corrosão da democracia liberal no Brasil.
Uma delas foi quando, às vésperas do julgamento de Lula, o então General Hamilton Mourão,
que veio a ser vice-presidente de Jair Bolsonaro, deu a declaração20 de que as Forças Armadas
poderiam "impor uma solução" caso o Judiciário não solucionasse "o problema político".
Além disso, o General Villas Boas, na véspera do julgamento do pedido de habeas corpus
preventivo de Lula, dia 3 de abril de 2018, tuitou o seguinte
“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao
povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e
quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" e “Asseguro à Nação
que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de
bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à
Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

Ambas as situações podem ser interpretadas como uma pressão do poder militar
sobre o judiciário civil para que a prisão de Lula acontecesse e, depois, que fosse mantida.
Mas essas ambiguidades envolvendo as decisões do juiz Sérgio Moro, e o posicionamento
antidemocrático das forças armadas, foram pouco abordados pela mídia à época da prisão de
Lula, talvez por estarem nublados pela importância midiática da condenação do ex-presidente.
Flávia Clemente de Souza (2019) produziu um artigo analisando as capas das
revistas IstoÉ, Veja, Exame e Carta Capital em dois momentos: quando Lula foi condenado e
quando o ex-presidente foi levado à carceragem da Polícia Federal. A despeito das capas da
revista Carta Capital, que se opunham à condenação de Lula, quase todas demonstraram
trabalho para legitimar a prisão dele. A capa da Veja de 31 de janeiro de 2018 trazia a
manchete “O que falta para Lula ser Preso” com duas imagens de Lula: uma de quando foi
preso a primeira vez durante uma greve de trabalhadores por aumento salarial em 1980, e
outra com uma montagem da mesma foto, mas o rosto era de uma foto recente de Lula
segurando uma placa com os dizeres “condenado”. Já a capa da Veja de 11 de abril de 2018,
quando o habeas corpus preventivo lhe foi negado, não havia nada escrito, apenas uma
ilustração do rosto de Lula atrás das grades. A capa da Istoé de 31 de janeiro de 2018 trazia a

20
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/na-vespera-de-julgamento-sobre-lula-comandante-do-
exercito-diz-repudiar-impunidade.shtml (acesso em 05 de maio de 2020)
imagem do ex presidente sob um filtro vermelho com os dizeres “o cara acabou”. Já a de 11
de abril trazia a imagem da sombra de Lula atrás das grades com os dizeres “Tremei políticos
corruptos, a sua hora também vai chegar”.  A revista Época, no entanto, teve um
posicionamento mais moderado, na capa de 29 de janeiro temos uma foto de Lula de perfil
com o rosto cortado e os dizeres “Lula não acabou”. Já a capa de 11 de abril omite a prisão de
Lula. 
O vale tudo político seguiu no período eleitoral de 2018 no Brasil, em que o
protagonista da extrema direita foi o candidato Jair Bolsonaro. No cenário da época a não
aceitação do outro já estava dada pelo fim da tolerância mútua, então fazia sentido eleger um
candidato que pregava a violência e tinha vieses autoritários, principalmente em um segundo
turno contra um candidato petista: Fernando Haddad.
Levitsky e Ziblatt (2018 p.35) revelam quatro sinais de alerta para verificarmos se
um candidato é autoritário. O primeiro é rejeitar, em palavras ou ações, as regras democráticas
do jogo. Em 28 de setembro de 2018, pouco mais de uma semana do primeiro turno das
21
eleições presidenciais, Jair Bolsonaro deu a seguinte declaração ao jornalista José Luiz
Datena “Não aceito resultado das eleições diferentes da minha eleição”, uma clara evidência
de que não aceitaria as regras do jogo.
O segundo sinal é negar a legitimidade de oponentes; seja, sem fundamentação,
afirmando que seus rivais são subversivos ou opostos à ordem constitucional existente; seja
afirmando que seus rivais constituem uma ameaça à segurança nacional ou ao modo de vida
predominante; ou, sem fundamentação, descrevendo seus rivais partidários como criminosos
cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo) desqualificaria sua participação plena na
22
arena política. No mesmo dia 28 de setembro Bolsonaro deu uma entrevista a Boris Casoy,
jornalista da Rede Tv, em que afirmava o seguinte sobre seu rival Fernando Haddad.

“Nunca conversei com ele, ele é um comunista. É um homem que adora a


política venezuelana e a cubana. É um homem que se consulta com presidiário
para tomar decisões. Ele não é dono dele, ele é um poste, um pau mandado do
Lula. E a meta questão principal dele é, caso seja eleito, indultar o Lula e acabar
com a Lava-Jato. E aí o Brasil se mergulhará num caos. O que penso dele não é
da minha cabeça, é uma realidade. A preocupação existe e é muito grande com
toda essa ideológica do Haddad e do PT”

O terceiro sinal é tolerar a violência dos seus apoiadores ou encorajar a violência


deles; ter ligações com gangues armadas, paramilitares ou milícias; ou ele mesmo estimular
ataques de multidões contra seus oponentes. Sobre ligação com milícias é difícil afirmar
21
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2018/noticia/2018/09/28/bolsonaro-diz-que-nao-aceitara-
resultado-diferente-do-que-seja-a-minha-eleicao.ghtml (acesso em 06 de maio de 2020)
22
https://www.youtube.com/watch?v=XOUeYd9YdjA (acesso em 06 de maio de 2020)
categoricamente, porém existem indícios de que essas ligações existam, como o fato de,
segundo a revista Piauí23, seu filho Flávio Bolsonaro ter homenageado 23 policiais réus ou
condenados pela Justiça pelos mais diversos crimes. Entre eles, dois nomes ligados ao grupo
de extermínio “Escritório do Crime”, envolvido no assassinato da ex-deputada Marielle
Franco, mas, ainda assim, é impossível fazer essa ligação de forma categórica. Agora, sobre
incentivar violência contra seus oponentes, existem alguns episódios significativos na
campanha presidencial. No dia 3 de setembro de 2018, o então candidato, Jair Bolsonaro, em
24
cima de um carro de som, declarou “vamos fuzilar a PTzada, botar esses picaretas para
comer capim na Venezuela” com um claro discurso macartista simbolicamente chamando
seus adversários de comunistas e, literalmente, falando em matá-los.
O último sinal é a indicações de disposição para restringir liberdades civis de
oponentes, inclusive a mídia. Ainda em campanha em 21 de outubro de 2018, uma semana
antes das votações de segundo turno para a presidência, Bolsonaro deu as seguintes
declarações a manifestantes apoiadores seus que estavam em ato na avenida paulista25

A Folha de S.Paulo é a maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba
publicitária do governo"; "Essa turma [os petistas], se quiser ficar aqui, vai ter
que se colocar sob a lei de todos nós. Ou [então] vão para fora ou vão para a
cadeia."; "Senhor Lula da Silva, se você estava esperando o Haddad ser
presidente para assinar o decreto de indulto, vou te dizer uma coisa: você vai
apodrecer na cadeia (…) Brevemente você terá (o senador petista) Lindbergh
Farias para jogar dominó no xadrez. Aguarde, o Haddad vai chegar aí também,
mas não será para visitá-lo não, será para ficar alguns anos ao seu lado."

Ou seja, levando em consideração os sinais de alerta de Levitsky e Ziblatt, apenas


reunindo declarações de Bolsonaro na campanha, já estava claro o viés antidemocrático do
presidente. Ele havia gabaritado o teste de autoritarismo proposto pelos pesquisadores.

7. A MÍDIA E REAGE À MÍDIA


Mas porque elegemos um presidente autoritário? É possível afirmar que foi uma
conjunção de fatores, com diversos atores nesse sentido, um deles a mídia. Mas houve
resistência à cobertura acrítica da mídia em relação aos eventos que nos levaram à situação
atual.

23
https://piaui.folha.uol.com.br/flavio-os-condenados-e-os-condecorados/ (acesso em 06 de maio de
2020)
24
https://exame.abril.com.br/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/
(acesso em 06 de maio de 2020)
25
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/folha-e-a-maior-fake-news-do-brasil-diz-bolsonaro-a-
manifestantes.shtml (acesso em 06 de maio de 2020)
Talvez o maior exemplo disso tenha sido o caso do The Intercept Brasil que noticiou
vazamentos de conversas feitas no aplicativo Telegram que envolviam o juiz Sérgio Moro, o
procurador Deltan Dallagnol e um grupo de procuradores chamado Filhos de Januário. Esses
vazamentos escancararam uma relação de promiscuidade entre a parte acusadora e a julgadora
que reforça a ideia de que os vazamentos e operações da Polícia Federal visavam ter um
impacto midiático e que houve um processo de perseguição político-jurídica ao ex-presidente
Lula. Foram, até o presente momento, 98 matérias lançadas entre 9 de junho de 2019 e 12 de
março de 2020 pelo The Intercept em parceria com alguns veículos de mídia tradicional como
a revista Veja, o jornal Folha de São Paulo, o site UOL e o El País. Chama a atenção, devido
ao claro potencial midiático dessas informações, a não participação da Rede Globo nesse
grupo de veículos de mídia. Em entrevista ao jornalista Juca Kfouri 26, Glenn Greenwald, dono
do The Intercept e vencedor do Pulitzer de 2014, afirma que as informações obtidas pelo The
Intercept foram oferecidas à rede Globo, que não aceitou 27 participar da parceria para veicular
esses vazamentos. Na mesma entrevista ele acusa 28 a Globo de não fazer jornalismo e lucrar
muito com as matérias relacionadas a Lava Jato

“O Jornal Nacional recebia, e vamos reportar muito sobre isso logo,


vazamentos da Lava Jato dizendo que tal político foi acusado em uma delação
(…) A Globo lucrou muito sem fazer jornalismo. O papel do jornalismo era de
parceria com a Lava Jato e Sergio Moro”.

Ainda nessa entrevista, Glenn Greenwald, que havia trabalhado em conjunto com a
Globo anteriormente, afirma que resolveu abrir o The Intercept Brasil ao perceber a cobertura
da grande mídia não mostrava nenhuma dissidência 29, todos aprovavam o impeachment sem
nenhum questionamento e considerava um absurdo esse comportamento, visto que o
impeachment de um presidente é um assunto extremamente importante para qualquer
democracia.
Algumas das matérias veiculadas pelo The Intercept, no conjunto de reportagens 30 que
ficou conhecido como Vaza Jato explicitavam o seguinte: 

a) No dia 09 de junho de 2019 foram lançadas 3 matérias. Uma mostrava conversas entre
os Procuradores da Lava Jato que indica que eles tramaram em segredo para impedir a
entrevista do Lula (direto da prisão) antes das eleições de 2018 por medo que ela
pudesse ajudar a eleger Haddad. Outra do mesmo dia trazia o Procurador Deltan
26
 https://www.youtube.com/watch?v=OTWHMB5G1Ug&t= aos 28’30” (acesso em 06 de maio de 2020)
27
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/06/12/interna_politica,762325/globo-diz-que-
greenwald-a-procurou-para-divulgar-conversas-de-moro.shtml (acesso em 06 de maio de 2020)
28
 https://www.youtube.com/watch?v=OTWHMB5G1Ug&t= aos 27’32” (acesso em 06 de maio de 2020)
29
https://www.youtube.com/watch?v=OTWHMB5G1Ug&t= aos 26’45” (acesso em 06 de maio de 2020)
30
https://theintercept.com/2020/01/20/linha-do-tempo-vaza-jato/ (acesso em 06 de maio de 2020)
Dallagnol dizendo que achava as provas que ligavam Lula ao objeto da denúncia eram
insuficientes. A última matéria desse mesmo dia traz diálogos em que Sérgio Moro
sugere que Deltan Dallagnol troque fases da Lava Jato, cobra agilidade em novas
operações, dá conselhos estratégicos e pistas informais de investigação e antecipa
decisões dele com juiz; extrapolando suas prerrogativas.
b) No dia 14 de junho de 2019 é lançada uma matéria que mostravas conversas que
indicam que Sérgio Moro, enquanto julgava Lula, sugeriu aos Procuradores emitir
uma nota oficial contra a defesa do ex-presidente esclarecendo “as contradições do
depoimento (de Lula) com as provas ou com depoimento anterior”
c) Dia 29 de Junho de 2019 outra matéria, dessa vez mostrando diálogos entre
procuradores reclamando que Sérgio Moro sempre violava o sistema acusatório e que
temiam que a operação perdesse credibilidade com sua ida ao governo Bolsonaro.
d) Em 12 de Julho, em reportagem da revista Veja 31em parceira com o The Intercept
foram divulgadas conversas que mostram que Moro orientava ilegalmente ações da
Lava Jato, indicando que procuradores deveriam incluir determinadas provas em
denúncias; cobrando manifestações públicas do Ministério Público contra pedidos da
defesa do réu; e dando a entender que era contra uma possível delação premiada do
ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, responsável por aceitar o
pedido de impeachment de Dilma Rousseff.
e) Dia 12 de Agosto de 2019 outra matéria trouxe diálogos que mostravam que Deltan
Dallagnol tinha contato com organizadores de movimentos de rua e pautava atos
públicos, publicações em redes sociais e manifestações de movimentos, usando da
capacidade de mobilização deles para pressionar decisões de outros poderes que lhe
interessavam. 
f) Dia 08 de Setembro de 2019 a Folha de São Paulo, em colaboração com o The
Intercept, lançou uma matéria que mostrava que os áudios gravados pela Polícia
Federal, com sigilo levantado pelo Sérgio Moro, não foram transmitidos na íntegra
para a imprensa. Parte complementar dos áudios colocam em xeque a hipótese adotada
na época, de que a nomeação de Lula como ministro tinha a intenção de travar as
investigações sobre ele, como fica evidente nesse trecho da matéria32:
"Os diálogos, que incluem conversas de Lula com políticos, sindicalistas e o
então vice-presidente Michel Temer (MDB), revelam que o petista disse a
diferentes interlocutores naquele dia que relutou em aceitar o convite de Dilma
para ser ministro e só o aceitou após sofrer pressões de aliados. O ex-presidente
só mencionou as investigações em curso uma vez, para orientar um dos seus
advogados a dizer aos jornalistas que o procurassem que o único efeito da
nomeação seria mudar seu caso de jurisdição, graças à garantia de foro especial
para ministros no Supremo"

Há ainda uma importante matéria a ser adicionada nesse contexto, que não se tratou
de uma reportagem da Vaza Jato, mas em entrevista 33 com a jornalista Renata Loprete, o
procurador Carlos Fernando da Lava Jato afirmou que o candidato da força tarefa, pelo menos
no segundo turno das eleições de 2018, era o Jair Bolsonaro, o que agrava a matéria de 19 de

31
https://veja.abril.com.br/politica/dialogos-veja-capa-intercept-moro-dallagnol/ (acesso em 07 de maio de 2020)
32
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/conversas-de-lula-mantidas-sob-sigilo-pela-lava-jato-
enfraquecem-tese-de-moro.shtml (acesso em 07 de maio de 2020)
33
https://reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2019/08/26/ex-chefao-da-lava-jato-agora-admite-bolsonaro-era-
o-candidato-da-operacao/ (acesso em 07 de maio de 2020)
Junho de 2019 publicada pelo The Intercept que trazia diálogos que mostravam os
Procuradores tramando para impedir a entrevista de Lula visando desfavorecer Haddad. 

8. E AGORA?
No caso da Veja, além da reportagem que mencionamos, foi publicado um editorial 34
dia 10 de Julho de 2019 em que reconhecia que havia tratado Sérgio Moro como um herói
nacional por anos, mas que, com acesso a essas novas informações, reconhece que a conduta
do juíz era bastante problemática e que a condução dos processos da Lava Jato não se deu de
acordo com a lei.
“fica evidente que as ordens do então juiz eram cumpridas à risca pelo Ministério
Público e que ele se comportava como parte da equipe de investigação, uma
espécie de técnico do time — não como um magistrado imparcial”.

Nessa mesma edição, a revista Veja afirma que realizou “o mais completo mergulho já
feito nesse conteúdo. Foram analisadas pela reportagem 649 551 mensagens, palavra por
palavra. As comunicações analisadas pela equipe são verdadeiras” atestando a veracidade das
informações obtidas pelo The Intercept. Dentro do cenário em que nos encontramos, com uma
democracia em processo de corrosão, com responsabilidade dividida entre diversos atores
políticos, esse editorial da Veja é importante, porque indica uma saída que, pode ser ingênua,
mas talvez seja a única possível. O impasse em relação à mídia é que sem ela não há
democracia, mas precisa haver algum nível de prestação de contas, senão ela contribui para a
derrocada da democracia, enquadrando suas matérias de acordo com seus interesses, contudo,
se houver controle da mídia ela deixa de ser livre e serve ao governo. Essa prestação de contas
passa, por exemplo por questionamentos como o do artigo de Esther Athanásio: porquê
situações semelhantes tem pesos diferentes dependendo de quem está envolvido? Como
resolver esse impasse? Levistky nos dá uma dica quando fala em regras não escritas, ou seja,
acordos tácitos. É necessário que a mídia, assim como o poder público, se apoie nas premissas
de tolerância mútua e reservas institucionais, ou seja, ainda que, como empresas, os grupos de
mídia tenham interesses políticos, não podem almejar uma eliminação, seja ela real, política
ou simbólica dos adversários. Na democracia não pode haver vitória definitiva, ela se baseia
em alternância de poder.
É necessário que as instituições não caiam no vale tudo político, é necessário que a
mídia não simplesmente solte os vazamentos de forma acrítica. É necessário questionar o
trabalho de juízes, polícia e ministério público e não retratá-los como instituições infalíveis. É
necessário, também, trazer dados jurídicos para corroborar suas decisões, dizer que os
34
https://veja.abril.com.br/politica/carta-ao-leitor-sobre-principios-e-valores/
vazamentos são ilegais, dizer que a decisão do Sérgio Moro tem questionamentos importantes
de juristas relevantes, dizer que as informações da Vaza Jato mostram promiscuidade entre
juiz e procurador. Outra questão importante é mostrar quando as pessoas mentem e deixar isso
bem claro nas matérias, como por exemplo, na matéria35 do Intercept de 29 de agosto que fala
com todas as letras que “O coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, mentiu ao público ao
negar categoricamente que agentes públicos passassem informações da operação” quando as
conversas do Telegram do procurador contradiziam entrevistas que ele dava à imprensa. A
falta de posicionamentos éticos e firmes da imprensa é um fator que nos trouxe para um
cenário em que a verdade é fluida para uma grande parte da população que atualmente
descredibiliza a imprensa e se informa apenas por mensagens de aplicativos.
Inclusive é necessário contextualizar esse problema, agora, dois anos após a eleição do
presidente. Porque as pessoas equiparam as informações que recebem no whatsapp com as
dadas pela mídia tradicional? O psicólogo prêmio Nobel de economia Daniel Kahnemann traz
algumas ideias que podem nos dar respostas. Em Rápido e Devagar (2011) o autor nos
apresenta uma dicotomia simbólica de que nosso cérebro teria dois sistemas, um rápido,
heurístico e intuitivo, e um lento, responsável pelo pensamento laborioso, concentrado e
analítico. Acontece que o sistema lento é menos frequentemente acessado que o rápido, somos
naturalmente preguiçosos e o sistema lento gasta muito mais energia. Então porque nos
informaríamos lendo extensas matérias jornalísticas se podemos simplesmente receber a
informação no whatsapp ou no facebook? Soma-se a esse problema o fato de que poucas
pessoas se importam com a credibilidade da informação que recebem. Kahnemann (p.123)
explica que nosso sistema rápido não costuma a distinguir graus de credibilidade, faz pouca
diferença você receber a informação do New York Times ou de um colega de trabalho, seu
sistema rápido busca apenas histórias que sejam coerentes. Por isso, não surpreende que boa
parte das fake news seja embasada em notícias e acontecimentos reais, como “Brasil vendeu a
Copa do Mundo” ou a “China criou o Coronavírus”, e, com frequência, usam o capital
simbólico de pessoas reais para referendá-las,como Arnaldo Jabor ou Clarice Lispector. As
histórias precisam ser coerentes e isso basta. Como mostra Daniel Kahnemann “A menos que
a mensagem seja imediatamente desaprovada, a associação que ela evoca se espalhará como
se a mensagem fosse verdadeira. O Sistema 2 (Lento) é capaz de duvidar, pois consegue
manter possibilidades incompatíveis ao mesmo tempo. Entretanto, sustentar uma dúvida é um
trabalho mais árduo do que passar suavemente a uma certeza.” (p.123). Além disso tendemos
a acreditar nas informações que recebemos, duvidar dá trabalho, “O Sistema 1 (rápido) é
35
 https://theintercept.com/2019/08/29/lava-jato-vazamentos-imprensa/
crédulo e propenso a acreditar, o Sistema 2 é encarregado de duvidar e descrer, mas o Sistema
2 (lento) às vezes acha-se ocupado, e muitas vezes é preguiçoso” (p.91). Existe também o
efeito Halo que faz com que, quando temos uma simpatia por determinada pessoa, tendemos a
aceitar muito facilmente o que ela fala “Se você gosta da política do presidente,
provavelmente gosta da voz dele e também de sua aparência. A tendência a gostar (ou
desgostar) de tudo que diz respeito a uma pessoa — incluindo coisas que você não observou
— é conhecida como efeito halo.”. Outro víes importante de abordar é a nossa dificuldade de
avaliar a normalidade (p.81) quando acontecimentos estranhos acontecem com frequência
tendemos a achá-los rotineiros.
Temos uma tarefa muito difícil pela frente. As pessoas se informam da forma que da
menos trabalho, ou seja, pelas redes sociais com imagens e mensagens de fácil absorção.
Segundo pesquisa36 da Digital News Report, os brasileiros são alguns dos usuários mais ativos
do mundo nas redes sociais, e o uso dessas plataformas para se informar tem crescido muito,
em 2013, 47% da população se informava por mídias sociais, em 2019, esse número subiu
para 64%, as redes sociais mais utilizadas por brasileiros para se informar são Whatsapp
(53%) e Facebook (54%). Além disso, tendem a não questionar as afirmações que recebem
porque sustentar uma dúvida é bastante trabalhoso. A nossa pobre avaliação da normalidade
faz com que, mesmo tendo um presidente populista de extrema direita que produz absurdos
semanalmente, a maior parte dos seus eleitores já tenham normalizado seus excessos. Soma-
se a isso o efeito Halo que existe sobre ele, uma admiração emocional que seus eleitores tem
por seu carisma e irreverência, deixando-os propensos a gostar de qualquer coisa que ele faça.
Além disso, o esgotamento Temos uma tarefa muito difícil pela frente. As pessoas se
informam da forma que da menos trabalho, ou seja, pelas redes sociais com imagens e
mensagens de fácil absorção. Segundo pesquisa da Digital News Report, os brasileiros são
alguns dos usuários mais ativos do mundo nas redes sociais, e o uso dessas plataformas para
se informar tem crescido muito, em 2013, 47% da população se informava por mídias sociais,
em 2019, esse número subiu para 64%, as redes sociais mais utilizadas por brasileiros para se
informar são Whatsapp (53%) e Facebook (54%). Além disso, tendem a não questionar as
afirmações que recebem porque sustentar uma dúvida é bastante trabalhoso. A nossa pobre
avaliação da normalidade faz com que, mesmo tendo um presidente populista de extrema
direita que produz absurdos semanalmente, a maior parte dos seus eleitores já tenham
normalizado seus excessos. Soma-se a isso o efeito Halo que existe sobre ele, uma admiração
emocional que seus eleitores tem por seu carisma e irreverência, deixando-os propensos a
36
http://www.digitalnewsreport.org/survey/2019/brazil-2019/
gostar de qualquer coisa que ele faça. Além disso, o esgotamento emocional de crises
seguidas cansa ainda mais o sistema cognitivo fazendo com que um cérebro não muito
propenso ao esforço fique ainda mais preguiçoso. 
Em um mundo em que mensagens são repassadas com pouco trabalho, apertar
“compartilhar” no whatsapp ou no facebook, a imprensa precisa reforçar cada vez mais sua
credibilidade e ter métodos que justifiquem suas decisões, isso abre cada vez menos brechas
para se dar ao luxo de enquadrar notícias em favor de um posicionamento político que
favoreça os grandes grupos de mídia como empresas. A confiança do Brasileiro na mídia caiu
11% de 2018 para 2019 segundo artigo de Rodrigo Carro na Digital News Report. 
Precisamos restabelecer a democracia liberal e não será fácil, mas para isso precisamos muito
de uma imprensa forte e responsável. Se a confiança na mídia continuar caindo, será quase
impossível restabelecer a democracia, mas a mídia precisa se ajudar.

9. REFERÊNCIAS

ATHANÁSIO, Esther. Lava jato e espetáculo político: o discurso dos editoriais da Gazeta do
Povo sobre os vazamentos da operação. Ser Jornalista Ruturas e Continuidades: Estudos
de Jornalismo, n.7, p.93-112. Dezembro de 2017
<http://www.revistaej.sopcom.pt/ficheiros/20180201-ej7_2017.pdf>

BRUGNAGO, Fabrício; CHAIA, Vera. A nova polarização política nas eleições de 2014:
radicalização ideológica da direita no mundo contemporâneo do Facebook. Aurora: revista
de arte, mídia e política, São Paulo, v.7, n.21, p. 99-129, out.2014-jan.2015

CARVALHO, Carlos A.; BRUCK, Mohazir S. Vazamentos como acontecimento


jornalístico: notas sobre performatividade mediática de atores sociais. Revista Famecos,
Porto Alegre, v. 25, n. 3, p. 1-20, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2018:
ID29713. DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2018.3.29713.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. São Paulo, Objetiva, 2011.

MARQUES, F. P. J; MONT’ALVERNE, C; MITOZO, I. O Impeachment de Dilma


Rousseff nos Editoriais de Folha e Estadão: Um Estudo Quanti-Qualitativo sobre o
posicionamento político dos jornais. No prelo. Trabalho enviado ao Grupo de Trabalho
Comunicação e Política do XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São
Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017.

MIGUEL, L. F.; COUTINHO, A. A crise e suas fronteiras: oito meses de "mensalão" nos
editoriais dos jornais. Opin. Publica,  Campinas ,  v. 13, n. 1, p. 97-123,  June  2007
Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762007000100004&lng=en&nrm=iso>.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro:
Zahar, 2018.

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