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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO

Silvia Maria Silva Barbosa

O PODER DE ZEFERINA NO QUILOMBO DO URUBU: UMA

RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA POLÍTICO-SOCIAL

São Bernardo do Campo, SP, 2003


UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

O PODER DE ZEFERINA NO QUILOMBO DO URUBU

UMA RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA POLÍTICO-SOCIAL

Silvia Maria Silva Barbosa

Dissertação apresentada em cumprimento


às exigências do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião para a
obtenção do grau de Mestre, sob a
orientação da Prof. Dra. Lieve Troch.

São Bernardo do Campo, SP, 2003


BANCA EXAMINADORA

______________________________________

_______________________________________

_______________________________________
RESUMO

BARBOSA, Silvia Maria Silva. O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu: uma


reconstrução histórica político-social. 2003. 192 p. Dissertação (Mestrado em Ciências
da Religião) Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2003.

Os ideais de liberdade exigiram do povo negro diferenciadas práticas para


romper com o sistema escravista. Eram as rebeliões em navios, os atos de infanticídio,
os justiçamentos dos feitores, as revoltas, além de participações em movimentos
libertários e formações de quilombos. Dentre estas formas de organização, o quilombo
foi fenômeno essencial nos mais de 300 anos de escravismo no Brasil. Em cada região
existiam quilombos, pois para a população negra, cativa ou não, esse era o melhor meio
de alcançar a liberdade, um meio coletivo para enfrentar o sistema. O Quilombo do
Urubu representou a insistência em garantir a condição humana que o regime escravista
negava, sobretudo às mulheres, aos homens e às crianças negras. Essa era uma força que
saía de suas entranhas como grito de liberdade, configurada nas fugas em busca de um
lugar que lhes assegurasse aproximação de uma vida digna e que pudessem orgulhar-se
do seu porte físico e da sua cultura. Todo esse desprendimento, além de uma força
física, exigia um completo conhecimento histórico e espiritual, resguardado pela
religiosidade que fortalecia seus espíritos para lutar contra toda negação de humanidade
do século XIX no subúrbio da capital baiana. A líder Zeferina, inconformada com a
exclusão social de seu povo negro, e entusiasmada pelo poder de herança de
ancestralidade, pelo conhecimento de raiz da cultura matrilinear angolana, pelo
profundo conhecimento histórico de resistência da rainha Nzinga Mbandi e pela
tradição de quilombolas e guerreiras, viveu e lutou pelo sonho de liberdade. Hoje, a
chama desse poder é mantida acesa na caminhada de celebração do 20 de novembro
pela comunidade de Pirajá e arredores, enquanto referencial de resistência negra na luta
contra as exclusões sociais vigentes.

PALAVRAS–CHAVE: Quilombos, Quilombo do Urubu, Zeferina, Escravidão,

Mulher-Poder.
BARBOSA, Silvia Maria Silva. The Power of Zeferina in the Quilombo of Urubu. An
historical, political-social reconstruction. 2003. 192 p. Master Theses on Science of
Religion. Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2003.

ABSTRACT

The ideals of liberty demanded differentiated practices from blacks in order to


break with the system of slavery. They were shipboard rebellions, the killing of infants,
judgments of chiefs, revolts, besides participation in libertarian movements and the
formation of quilombos. Within these, the quilombo was an essential phenomenon in
the more than 300 years of slavery in Brazil. Quilombos could be found in each region,
since for the black population, captive or not, this was the best means of attaining
freedom, a collective means of confronting the system.The Quilombo of Urubu
represented resistance by guaranteeing humane conditions that the slave regime denied
black men, children, and above all women. It was a force that came from the very
bowels as a cry for liberty, given form through flights in search of a place that provided
at least an approximation of a life with dignity, and where they could be proud of their
physical bearing, and culture. This quest for freedom demanded, beyond physical force,
an apparatus of resistance that had its source in historical and spiritual knowledge,
maintained by a religiosity that provided the spiritual strength necessary to fight against
the negation of humanity of the XIX century in the periphery of the region of Bahia.
The leader, Zeferina, moved by the social exclusion of blacks, and given impetus by the
power of ancestral legacy, by the knowledge of the roots of matrilineal Angolan culture,
by a profound knowledge of the historical resistance of queen Nzinga Mbandi, and by
the tradition of quilombolas and warrior women lived and fought for the dream of
freedom. Today, the flame of this power is continued in the celebrative walk of the 20th
of November by the community of Pirajá and the surrounding region as a reference to
black resistance in the fight against current social exclusions.

Key Words: Quilombos, Quilombo of Urubu, Zeferina, Slavery, Woman’s Power.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................13

I. SALVADOR ENTRE 1822 - 1826: ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA...................24

1.1 Situação de Escravidão: Travessia e Desembarque da População Negra ...................26

1.2 Situação Econômica, Política e Social Local ................................................................29

1.3 Situação das Mulheres Negras............................................................................................41

1.4 Táticas de Resistência Negra...............................................................................................48

1.4.1 Resistência das mulheres negras................................................................................................51

1.4.2 Resistência da população de rua ...............................................................................................53

1.4.3 Resistência sincrética nas Irmandades .....................................................................................55

1.4.4 Rebeliões, fugas e suicídios .......................................................................................58

II. QUILOMBO DO URUBU E O LEVANTE EM 1826............................................67

2.1 Quilombo: Problematização................................................................................................68

2.2 Etimologia ............................................................................................................................78

2.3 Concepção de Quilombo......................................................................................................79

2.4 Quilombo na África..............................................................................................................81

2.5 Quilombo no Brasil ..............................................................................................................82

2.6 Quilombo do Urubu.............................................................................................................84

2 .6.1 Localização...................................................................................................................................85

2.6.2 Composição histórica..................................................................................................................87

2.6.3 Organização social.......................................................................................................................90

2.6.4 Religião.........................................................................................................................................93
2.6.5 Mitologia dos Orixás em Urubu...............................................................................................102

2.6.5.1 Exu..............................................................................................................................................104

2.6.5.2 Ogum......................................................................................................................................... 104

2.6.5.3 Oxóssi........................................................................................................................................ 105

2.6.5.4 Ossain ........................................................................................................................................ 105

2.6.5.5 Oxum.......................................................................................................................................... 106

2.6.5.6 Xangô ..........................................................................................................................................107

2.6.5.7 Iansã ............................................................................................................................................107

2.6.5.8 Oxalá.............................................................................................................................................108

2.6.5.9 Oxumaré.....................................................................................................................................108

2.6.5.10 Nanã............................................................................................................................................109

2.7 Relação entre Candomblé e Quilombo................................................................110

2.8 Levante do Urubu em 1826...................................................................................115

III O PODER DE ZEFERINA NO QUILOMBO DO URUBU.................................122

3.1 Identidade de Zeferina..........................................................................................126

3.2 Conceito de Poder..................................................................................................132

3.2.1. Análise descritiva...............................................................................................134

3.3.Sistema de poder no Quilombo do Urubu...........................................................139

3.4.Uma reconstrução do poder de Zeferina.............................................................145

3.4.1. Sistema matrilinear de Angola.................................................................................................... 147

3.4.2. Saber de raiz matrilinear..............................................................................................................151

3.4.3. Herança ancestral..........................................................................................................................155

3.4.4. Tradição de quilombolas e guerreiras..........................................................................................159

3.4.4.1. Nzinga Mbandi..............................................................................................................................161


3.4.4.2Aqualtune........................................................................................................................................165

.4.4.3.Dandara............................................................................................................................................165

3.4.4.4. Tereza............................................................................................................................................166

3.4.4.5 Felipa Maria Aranha......................................................................................................................167

3.4.4.6 Mariana..........................................................................................................................................168

3.4.4.7 As anônimas...................................................................................................................................168

3.5 O poder de Zeferina..............................................................................................169

CONCLUSÃO..............................................................................................................175

REFERÊNCIAS...........................................................................................................181

APÊNDICE .................................................................................................................192
À minha ancestralidade e herança histórica de resistência acesa na convivência com
Marlene Moreira da Silva.
Reconhecimento

À Sabedoria, aquela que desde o principio é;


À Associação Quilombo Zeferina;
À Dulce Lopes Barbosa, minha avó paterna;
À minha mãe, Maria de Lourdes Silva;
Ao meu pai, Joel Petronílio Barbosa;
Á Igreja Presbiteriana Unida de Valério Silva;
Ao casal June e Bill Rogers;
Ao Ile Ase Ogum Omimkaje;
Á yalorixá Dulce e família;
Ao Demontier, Pedro Piani, Samuel de Souza, Fabiano, Alberth, Hebert, Maurício
Rodrigues, Carlos Ferreira, Bruno, Silvio, Junior e Rev. Áureo;
Á Universidade Metodista de São Paulo – UMESP;
Ao ITEBA;
A Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos;
Á Faculdade Batista Brasileira;
Á Elisabeth Schüssler Fiorenza;
Á minha orientadora, Lieve Troch;
Ao CNPq;
Á Aguinelza, Lurdinha, Marlene, Sandra, Elisabete, Elinaide, Jaci, Georgina, Maria de

Jesus, Cátia Gomes, Cátia Cardoso, Rosemary, Vitória, Tatiana Barbosa, Ana Emília,

Sara, Eliad, Aninha, Estela, Adriana, Maria do Carmo, Lucinha, Marli, Avelina, Lea,

Edna, Cacilda, Luzmila, Kelly, Meive, Andréa, Alba e às outras protagonistas históricas

da resistência, mulheres da Vida!


ENCONTREI MINHAS ORIGENS

Oliveira Silveira1

Encontrei minhas origens em velhos arquivos

Encontrei minhas origens nos livros

Encontrei minhas origens em malditos objetos

Encontrei minhas origens em troncos e grilhetas

Encontrei minhas origens no leste

Encontrei minhas origens no mar em imundos tumbeiros

Encontrei minhas origens em doces palavras

Encontrei minhas origens em cantos

Encontrei minhas origens em furiosos tambores

Encontrei minhas origens nos ritos

Encontrei minhas origens na cor de minha pele

Encontrei minhas origens nos lanhos de minha alma

Encontrei minhas origens em mim

Encontrei minhas origens em minha gente escura

Encontrei minhas origens em meus heróis altivos

Encontrei-as enfim

ME ENCONTREI!!!

1
SILVEIRA, Oliveira Ferreira. In: Pêlo Escuro, Porto Alegre: S/ed., 1977.
Mahin Amanhã
Miriam Alves2

Ouve-se nos cantos a conspiração


vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmuna das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta.
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“- é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanhã”
A cidade toda se prepara
Malês
Bantus
Geges
Nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma -se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
“- é aminhã, aminhã”
sussurram

Malês
Geges
Bantus
Nagôs

“- é aminhã, Luiza Mahin falô”

2
ALVES, Miriam. Estrelas no Dedo, São Paulo: S/ed., 1985.
INTRODUÇÃO

Desde os primórdios, sempre se afirmou que a mulher exerceu um papel de

poder, e esta foi a sua colaboração na construção histórica político-social brasileira. Mas

nunca se diz: ‘essa mulher tem poder’. Zeferina teve poder que se traduziu na luta de

sobrevivência, organização e resistência no Quilombo do Urubu. A fundamentação

desse poder passa pela herança de ancestralidade, pelo conhecimento de raiz da cultura

matrilinear ango lana, pelo profundo conhecimento histórico de resistência da rainha

Nzinga Mbandi e pela sua inserção na tradição de quilombolas guerreiras. O poder

dessa líder angolana foi legitimado pelos quilombolas na luta de efetiva participação

contra a escravidão colonial e é, anualmente, ritualizado, enquanto memória subversiva

de resistência, na caminhada celebrativa do 20 de Novembro pela comunidade

suburbana de Salvador, culminando com uma grande concentração no Parque São

Bartolomeu, local onde abrigou o principal quilombo baiano do século XIX.

O ato de ritualização da luta nesse espaço de resistência permite com que as (os)

atuais quilombolas mantenham acesa a memória histórica de resistência e o desejo de

reconstruir suas histórias e identidades. Este exercício se dá a partir da rememoração do

poder representativo de si mesma e da comunidade quilombola dessa extraordinária

guerreira. No ponto extremo desta caminhada encontra-se a falta de identidade que cria

subordinação, mas, quando a memória se faz presente, existe a possibilidade de criar, de

recriar. Celebrar a memória da luta subversiva dos quilombolas em Urubu, a partir da

visibilização de Zeferina, é vislumbrar um poder que emana do saber guardado,


salvaguardado pelo “povo de santo” e revivido na memória individual e coletiva do

bairro de Pirajá e arredores através da história oral.

Infelizmente, até agora, na historiografia oficial, Zeferina foi esquecida e Zumbi

não. Entretanto, resgatar a história das mulheres negras, no tempo da escravidão, não é

tarefa impossível, e se passos mais arrojados não foram dados, isto se deve ao

desinteresse da historiografia brasileira, até recentemente, em relação às mulheres e de

maneira geral às minorias sociais (SOARES, 1994, p.2). Por que os historiadores

comprome tidos com a questão racial mencionam apenas superficialmente as mulheres

que tiveram participação efetiva na luta de resistência escravista colonial?

No período da escravidão, as mulheres negras foram protagonistas históricas da

resistência (a exemplo, entre outras, de Zeferina, Aqualtune, Felipa, Dandara,

Anastácia, Luiza Mahin). Mas os textos que descrevem essa luta ainda são resultado de

uma luta sociopolítica de perspectiva androcêntrica, pois quando estes mencionam a luta

das mulheres negras claramente expressam uma visão que as essencializa no silêncio

das entrelinhas da historiografia oficial.

Para desconstruir essa visão androcêntrica, essencialista e branca de poder nos

textos oficiais, partimos da suspeita de que a realidade é social e culturalmente

construída. Escrever a história de resistência do Quilombo do Urubu numa perspectiva

negra feminista de reconstrução histórica político-social significa construir uma nova

história, escrita na ótica das maiorias excluídas. Tal reconstrução é possível porque
“tudo tem uma história, que pode em princípio ser reconstruída e relacionada ao restante

do passado” (BURKE, 1992, p.11).

A identidade histórica de Zeferina tem sido resgatada pela boca de homens,

mulheres, jovens, crianças, adolescentes, idosas (os) do atual quilombo suburbano. No

bairro de Pirajá e arredores, sobretudo, as mulheres negras vivem, lutam, têm poder. E é

este poder de tradição que as coloca na condição de protagonistas sociais de uma

história de exclusão e resistência e que vai servir para reconstruir o passado e contribuir

para o futuro da comunidade. Portanto, resgatar essa luta hoje significa nos

apropriarmos da memória de insistente resistência das (os) atuais quilombolas, a fim de,

nas entrelinhas dos textos históricos, desvelar o “inarticulado, a maioria silenciosa dos

mortos” (BURKE, 1992, p.26).

Escrever a luta histórica do Quilombo do Urubu enquanto sujeito dinâmico de

reajustamento social brasileiro significa, de forma inacabada, “apropriar-se de uma

memória, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (SUESS, 1993-94, p.2).

Reconstruir, criativamente, essa memória de resistência negra na perspectiva negra

feminista significa “abrir caminhos por entre os silêncios e prejuízos da memória

histórica para reapropriar-se do passado das mulheres que participaram como agentes

históricos de transformação social, cultural/religiosa” (FIORENZA, 1996, p.110).

Esta dissertação de mestrado é fruto de minha inserção pastoral ecumênica em

Pirajá. Neste bairro de característica afro- indígena, pude perceber que no imaginário

popular e nos candomblés ali localizados, esfera de destaque das mães-de-santo,


recontar a história de Zeferina significa resgatar uma força que confere capacidade de

superar os riscos e de dar resistência na luta do cotidiano.

Em 20 de novembro de 1997, participei da caminhada de celebração do Dia

Nacional da Consciência Negra. Neste ato político e de celebração criativa da

imortalidade de Zumbi e Zeferina, compreendi que se tratava de uma reconstrução

imaginativa do poder dessas lideranças quilombolas enquanto referencial de resistência,

de afirmação de identidade e do resgate da auto-estima dessa população excluída. Esta

história tornou-me sensível, levando a pesquisar sobre o remanescente do quilombo e

sobre Zeferina.

Em 1998, parte de minha identidade multifacetada reclamou pela busca de um

vivenciar de espiritualidade de herança ancestral, levando- me à inserção no terreiro de

candomblé. Ao mesmo tempo, aumentava a minha paixão pela transformação das

relações de dominação e pelo compromisso de trabalhar pela reestruturação histórica da

comunidade de Pirajá. No ano seguinte, participei da inauguração da Associação

Quilombo Zeferina, exercendo atividades com mulheres, adolescentes e crianças, que

priorizavam a valorização e a reconstrução da auto-imagem da pessoa humana,

buscando reintegrá- las no contexto social.

Movida pelo desafio de um balbuciar de um fazer teológico com cara, cheiro e

jeito de mulher negra nordestina, eu trouxe para a Academia este tema, disposta a

registrar aspectos da luta desse quilombo a partir de uma perspectiva feminista, evitando

a perda de informações substanciais à sobrevivência cultural/religiosa dos atuais

quilombolas e às gerações vindouras.


Reconhecemos que tal sistematização teórico-acadêmica tem a ver com as

aberturas e limites de minha subjetividade, minha história pessoal, minhas opções de

vida, meus valores. Portanto, é minha percepção do mundo enquanto mulher, negra,

soteropolitana, de origem pobre, filósofa, teóloga, de formação protestante, pastora,

inserida na religião dos orixás que dá a forma à minha reflexão que, por sua vez, é

limitada e parcial.

Possíveis esclarecimentos

Queremos esclarecer aqui alguns termos que foram utilizados e não

conceituados no decorrer desse trabalho dissertativo, por exemplo: feminismo,

androcentrismo, patriarcalismo, tradição, essencialismo e Candomblé de Caboclo.

O feminismo se entende a si mesmo como um movimento social que pretende

substituir as relações patriarcais de dominação e subordinação social. O termo

androcentrismo é entendido enquanto construções lingüísticas históricas que pretendem

excluir as mulheres de uma participação ativa na sociedade. O patriarcalismo é visto

como um sistema de estruturas opressoras. Usar esses termos contribui para identificar e

denunciar a legitimação de estruturas que oprimem as pessoas excluídas socialmente do

poder.

A tradição é o resultado das reflexões e lutas de um povo. A tradição pode ser

diferente no tempo e espaço, visto que tempo e espaço são coisas diferentes. Se eu

recrio, na verdade eu estou criando as tradições para as gerações vindouras. O

essencialismo é um movimento que procura naturalizar as mulheres, descrevendo suas


participações históricas de forma negativa, pejorativas e frágeis por natureza enquanto

segundo sexo. Portanto, essencializar é sinônimo de naturalizar a mulher.

O Candomblé de Caboclo se originou enquanto resultado de mistura das práticas

religiosas entre africanos, descendentes e autóctones que habitavam na floresta do

Urubu. O culto aos orixás africanos, que no Brasil passou a denominar Candomblé,

encontrou, sobretudo no Quilombo do Urubu, um outro culto praticado pelos nativos

tupinambás, com o nome de Pajelança. Tanto entre os cultos indígenas quanto entre as

celebrações negras havia a comunicação de espíritos ancestrais, gerando uma fusão

desses ritos religiosos. Portanto, a mistura dos rituais do Candomblé com os da

Pajelança deu origem a um outro culto chamado Candomblé de Caboclo, fortemente

praticado no bairro de Pirajá e arredores.

Objetivos

Com a intenção de visibilizar o poder de Zeferina no Quilombo do Urubu numa

perspectiva negra feminista de reconstrução histórica, os objetivos serão divididos em

geral e específicos, a saber:

Geral

1. Visibilizar o poder da líder Zeferina enquanto referencial de resistência no

Quilombo do Urubu a partir da tradição histórica e de ancestralidade de mulheres

guerreiras, rainhas, quilombolas, objetivando a recuperação de uma memória

subversiva em favor da luta dos atuais quilombolas.


Específicos

1. Resgatar as raízes históricas de Zeferina.

2. Averiguar em que tradição o poder de Zeferina se fundamentou.

3. Verificar como o poder dessa líder quilombola serviu como elemento que facilitou na

organização e na luta de resistência escravista no Quilombo do Urubu.

4. Analisar até que ponto esse poder confere força na luta dos atuais quilombolas.

5. Reconstruir a história desse quilombo numa perspectiva negra feminista.

Hipóteses

Nossa pesquisa se orienta a partir das seguintes suspeitas básicas:

1. Suspeitamos que Zeferina teve poder;

2. Que este poder é reconstruído pela comunidade de Pirajá e suburbana como

referencial de resistência na luta de sobrevivência cotidiana;

3. Que este poder não foi visibilizado pela historiografia oficial e nem pelos

historiadores comprometidos com a questão negra;

4. Que este poder precisa ser sistematizado enquanto herança de sobrevivência

histórica/cultural aos atuais quilombolas.

Referencial teórico

Faremos uso da concepção de poder de Michel Foucault e de Hannah Arendt,

enquanto referencial teórico para reconstruir a história do Quilombo do Urubu, a partir

do poder de luta da líder Zeferina.


Para Michel Foucault, o poder é elemento central de qualquer sistema social

vigente, enquanto capacidade de se impor em meio à ação estratégica. Para ele, a função

produtiva do poder em relação ao saber é, ao contrário de impedir, a criação do mesmo.

O paradigma social é a luta. Uma luta que, enquanto ação social, comporta sempre o

caráter de ação estratégica dentro de uma relação dinâmica, presente em todo lugar.

Essa compreensão de poder abre novas possibilidades de compreensão social,

justamente por se fixar em grupos que estão em correlação de forças.

Para Hannah Arendt, a origem do poder se localiza na resolução de juntar-se e

agir em comum. O poder está na posse do grupo e continua existindo enquanto o grupo

se mantiver coeso. A existência do poder é legitimada através do apelo ao passado. O

poder é exercido de forma representativa e autorizada pela comunidade. Este poder

corresponde à condição humana da pluralidade. A autoridade do poder é marcada de

forma decisiva pelo reconhecimento comunitário, e o fundamento da autoridade é o

respeito manifesto.

Portanto, a concepção de poder de Foucault e Arendt possibilita referendar

teoricamente o tipo de poder representativo que a líder Zeferina detinha no Quilombo

do Urubu, que lhe permitia meter cunha na supremacia colonial escravista enquanto

sujeito histórico.

Método
Partindo da suspeita de que o exercício do poder pode ser usado para quebrar

estruturas ou reforçar estruturas e de que o poder da líder Zeferina foi usado para

quebrar estrutura de opressão do sistema escravista, o nosso referencial metodológico já

fica sinalizado: é o método de leitura crítico- feminista 3 que visa, sobretudo,

protagonizar as lutas das mulheres para a transformação das estruturas patriarcais.

Este método parte da constatação que a sociedade e a religião patriarcal

invisibilizam mulheres, sobretudo negras e empobrecidas. A partir de um olhar

diferente, ele tenta desconstruir, criativamente, essa invisibilização a partir dos textos

patriarcais androcêntricos. Sendo assim, busca-se reconstruir essa realidade na busca de

novos significados que provoquem mudanças efetivas da realidade que focaliza

mulheres enquanto protagonistas sociais.

Este método de leitura crítica feminista consiste em análise sistêmica da

realidade, análise sistêmica da opressão, hermenêutica da suspeita ou análise crítica do

texto; de hermenêutica de avaliação crítica da proclamação, lembrança histórica,

momento da reconstrução de um outro discurso, diferentemente do que o texto fala, de

hermenêutica da imaginação criativa, atualizando as nossas possibilidades, maneiras de

exprimir a luta e a vida atual.

Portanto, para descrever a história político-social de luta de resistência escravista

desse quilombo, centrando o poder representativo da líder Zeferina dentro de uma

perspectiva negra feminista de reconstrução, propomos o método de leitura crítica

3
Sobre o método crítico-feminista da libertação vide Elisabeth Schüssler FIORENZA, Pero ela dijo –
Práticas feministas de interpretación bíblica, Madrid: Frotta, 1996.
feminista da Dra. Elisabeth Schüssler Fiorenza, visto que este método possibilita a

compreensão e a recriação da realidade e das relações de poder a partir da maioria

excluída e de transformação social.

Fontes

As fontes bibliográficas que abordam a realidade de quilombos são vistas, em

sua maioria, como grande armadilha, pois, esquecendo a situação particular de cada

quilombo, elas contam a história dentro de uma visão universalizante. Muitos

quilombos brasileiros foram liderados por mulheres, mas essa história ainda carece de

ser sistematizada a partir de suas lutas de resistência.

No seu livro intitulado Bahia: Terra de Quilombo, o pesquisador baiano Valter

de Oliveira Passos, ao estudar mais profundamente sobre o quilombo em questão,

chama atenção para o fato de que a história da líder Zeferina precisa ser sistematizada,

afirmando que seu “objetivo é abrir a discussão e o interesse em estudos sobre a

participação das mulheres negras nas lutas dos escravizados” (PASSOS, 1996, p.40).

No livro Submissão e Resistência – A mulher na luta contra a escravidão, a

pesquisadora Maria Lúcia de Barros Mott diz que “a falta de informações e escassas

pesquisas sobre os quilombos fazem com que se saiba muito pouco sobre a participação

das mulheres quilombolas e o que se tem são fragmentos” (MOTT, 1988, p.45).

Diante do número reduzido de publicações científicas sobre o tema em questão,

optamos por fazer uma reconstrução histórica, a partir de uma fonte bibliográfica mista,

usando material contido nos livros Liberdade por um fio, Dossiê povo negro, Dossiê
mulher negra, livros de João José Reis, Kátia Maria de Queiroz Mattoso, Clóvis Moura,

Pierre Verger, Sônia Maria Giacomini, Maria Lúcia Mott, além de monografias dos

estudantes africanos do curso de teologia da Universidade Metodista de São Paulo e das

dissertações de mestrado e doutorado dos cursos de Arquitetura, História e Sociologia

da Universidade Federal da Bahia. Usaremos, também, os textos de Silvia Egydio e

Kiussam Regina de Oliveira, Carlos Rodrigues Brandão, Hampatê Ba A, Maria Salete

Joaquim, Maria de Lourdes Siqueira, Edson Carneiro, Carlos Serrano, Maria Inês

Cortez de Oliveira, Clóvis Moura, dentre outros. A Coleção Memorial Pirajá, alguns

historiadores africanos, os jornais da época e as entrevistas complementares realizadas

com 20 lideranças e moradores locais, sobretudo religiosos e pertencentes ao

Candomblé, serão de suma relevância na sistematização dessa reconstrução.

Sobre os capítulos

Procuramos dividir esta dissertação em três capítulos. O primeiro tratará de

descrever, de forma crítica, o contexto histórico, sociopolítico da escravidão e as táticas

de resistência, sobretudo das mulheres negras a partir da realidade dos porões nos

navios negreiros e entre 1822-1826, na cidade de Salvador. No segundo capítulo,

abordaremos o fenômeno quilombo enquanto espaço plural de resistência social,

cultural/religiosa. Este capítulo vai desde a conceituação do termo em estudo até sua

relação com o Candomblé, culminando com o levante de 1826. Finalmente, no terceiro

capítulo, faremos uma reconstrução do poder de Zeferina a partir da tradição histórica e

da ancestralidade, sobretudo do sistema matrilinear africano, terminando com uma

breve conclusão.
I. SALVADOR ENTRE 1822-1826: ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA

No período da luta de resistência dos quilombolas em Urubu contra o regime de

escravidão, em 17 de dezembro de 1826, no bairro de Pirajá, subúrbio de Salvador, o

Brasil experimentava a década do primeiro reinado (1822-1831). O país, neste

momento, tinha rompido com Portugal, passando a depender economicamente da

Inglaterra, submetendo-se às imposições dos mercados externos.

O significado da palavra escravidão traduz, em si mesmo, a falta de liberdade e a

dominação sofrida pela população africana - e seus descendentes - trazida à força à

cidade de Salvador. Apesar de sua longa vida naquela que foi a primeira capital do

Brasil, a escravidão não existiu sem uma imensa resistência negra que ia do sarcasmo,

roubo, sabotagem, assassinato, suicídio, aborto, sincretismo, rebelião, fuga à formação

de quilombos.

As investigações realizadas até agora na Bahia caminham para a superação dos

enfoques tradicionais sobre a população negra: busca-se conhecê- la, discutindo aspectos

do seu dia a dia na escravidão, desenvolvendo estratégia de sobrevivência, resistindo à

opressão. A nova história do povo negro - e da escravidão em particular - beneficiou-se

dos movimentos negros nas Américas e dos movimentos de descolonização na África

(SOARES, 1994, p.10).


Para descreve r de forma imaginativa e criativa o contexto em que se inseriu o

Quilombo do Urubu, deve-se destacar o fato de Rui Barbosa, numa atitude de

apagamento das lembranças e dos traços da escravidão brasileira, destruiu, em 1891,

uma quantidade significativa de documentos sobre os escravos e o tráfico negro. Mas,

ainda assim, para tal reconstrução, utilizaremos dados inexatos, disponíveis na

historiografia.

A tentativa de reconstruir o contexto de Salvador na época do Levante em Urubu

é objetivada pelo desejo de colocar em evidência esta história de luta, de forma que nos

re-apropriemos do poder de Zeferina enquanto herança e referencial de resistência aos

atuais quilombolas no bairro de Pirajá e arredores. Para isto, fez-se necessário um

levantamento bibliográfico laborioso, mencionando livros, artigos, dissertações e jornais

da época.

Portanto, neste capítulo, faremos uma reconstrução sistematizada da situação de

escravidão negra e suas táticas de resistência entre 1822-1826, na cidade de Salvador.

Frisaremos a travessia no navio negreiro como ponto de partida do processo da

escravização negra baiana, sendo acentuado com a sofrível experiência do desembarque

na capital portuária. Destacaremos a situação econômica, política e social de Salvador,

enfatizando aspectos relevantes da população negra, mestiça e branca, culminando com

uma abordagem da situação das mulheres negras. Ainda neste capítulo, apontaremos as

táticas de resistência negra, destacando as promovidas pela população de rua, além do

sincretismo nas irmandades, das rebeliões, dos suicídios, das fugas enquanto aspectos

introdutórios às estratégias de formação de quilombo, na Bahia.


1.1 Situação de escravidão: Travessia e desembarque da população africana

A escravidão baiana teve origem dentro dos navios negreiros ainda em

continente africano. O embarque e a travessia da população africana para Salvador se

constituíam, muitas vezes, numa viagem sem volta. Essa travessia se dava num

ambiente sórdido dos navios negreiros e muitos escravos (as) morriam durante o

percurso. Do “cativeiro à escravidão, dentro dos porões úmidos, amontoados de

homens, mulheres, crianças negras, uns por cima dos outros, com péssimas condições

higiênicas, sem espaço para a latrina, num ambiente propício para a proliferação de

doenças, a viagem durava meses” (CHIAVENATO, 1987, p.126).

Dentro do navio negreiro, durante a viagem, o povo africano escravizado recebia

uma ração alimentar escassa à base de feijão, milho e farinha de mandioca que, muitas

vezes, estava deteriorada. Alé m de sofrer elevado índice de morbidade, era acometido

pela mortalidade (MATTOSO, 1982, p.46-48).

O tráfico de escravos, concentrados nas mãos de poucos negociantes, era a

atividade comercial mais lucrativa da época, apesar das proibições e perseguições

inglesas. Tal comércio assumia uma extrema importância na medida em que dele

dependia o suprimento de mão-de-obra para a cultura do açúcar. O período da travessia

do Oceano Atlântico da população escravizada da África para o Brasil tinha uma

duração média de 120 dias (SILVA, 1987, p.10).

A grande questão do tráfico negreiro era que o montante do lucro de cada

viagem era proporcional ao número de escravos transportados. Tal argumento explica a


ocupação máxima de todo espaço possível nos navios, eliminando, com isto, toda carga

considerada sem tanta utilidade, supérflua. Como se pode suspeitar, até o alimento e a

água faziam parte da lista dos supérfluos e, como tal, a população africana dominada

não tinha garantido estes elementos em quantidade suficie nte para suprir as suas

necessidades. Os capitães dos tumbeiros descobriram que era suficiente apenas um

copo d’água, a cada três dias, para que um negro não morresse de sede. Portanto, para

os 120 dias de travessia dos primeiros tempos de tráfico, a quantidade d’água era de

quarenta copos para cada negro e/ou negra. Segundo Júlio José Chiavenato (1987, p.26),

“a relação entre o espaço ganho com a redução dos tonéis d’água e os negros que

morriam por falta de beber era favorável ao comércio escravo”.

Esse trajeto da África até Salvador era feito de forma desumana, permitindo que

a população escravizada contraísse moléstias que se transformavam em epidemias. “Os

doentes iam sendo jogados ao mar para não contaminarem o resto da ‘mercadoria’.

Atirava-se ao mar os negros vivos” (MAESTRI, 1986, p.32). Cada carregamento

quebrava no mínimo de 20%, chegando, outras ocasiões, a atingir um percentual de

50% da “quebra” de carregamento de escravos (CHIAVENATO, 1987, p.125).

Conforme o tráfico ia se estruturando, fazendo parte de um grande

empreendimento comercial, as condições de transporte melhoraram. Os negociantes, em

substituição à perda de 50% dos negros (as), com a superlotação dos tumbeiros,

buscaram uma forma mais racional de trazer uma quantidade menor de africanos (as) e,

com esta avaliação, perder entre 10 e 20% somente. Ainda assim, não havendo grande

alívio para a população escrava, “os doentes e mortos continuaram sendo alimento de

tubarão” (CHIAVENATO, 1987, p.125).


A população africana escravizada que sobrevivia à fome, às doenças e ao

amontoamento da travessia era desembarcada em farrapos, pele e osso. Conduzida à

praça pública, ficava exposta para a comercialização. Quando chegavam na cidade

portuária, alguns escravos (as) enfraquecidos (as) podiam ser engordados nos depósitos

antes que fossem exibidos aos compradores. Entretanto, “os (as) enfermos (as)

deixavam-se morrer nos cais” (GALEANO, 1979, p.93s). O historiador Oliveira

Martins apresenta uma descrição demasiadamente dramática sobre a condição de

desembarque da população escrava, resultado de três ou quatro meses de travessia.

À luz clara do sol dos trópicos aparecia uma coluna de esqueletos cheios de
pústulas, com o ventre protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada,
comida de bicho, com o ar parvo e esgazeado de idiotas. Muitos não só
tinham de pé; tropeçavam, caíam e eram levados aos ombros como fardos.
Despejada a carga na praia, entregues os conhecimentos das peças -da-índia
ao caixeiro do negreiro, a fúnebre procissão partia a internar-se nas moitas da
costa, para aí começarem as peregrinações sertanejas (MARTINS apud
FREITAS, 1984, p.18) .

Quando o capitão do navio negreiro finalizava a entrega da ‘mercadoria’,

retornava a bordo para a limpeza do porão, encontrando, então, “os restos, a quebra da

carga que trouxera; havia por vezes cinqüenta e mais cadáveres sobre quatrocentos

escravos” (FREITAS, 1984, p.18).

Esta população escravizada, sobretudo de Angola, ao chegar no porto de

Salvador, era redistribuída para outras regiões, através da figura dos revendedores. Este

comércio mobilizava uma imensa quantia de capitais e auferia lucros tais que

compensava o pagamento por seus altos impostos, os quais eram mais elevados do que

transações com imóveis (VERGER, 1987, p.489). A maioria compunha, na capital

baiana, a base de produção econômica do modelo colonial - agrária, monocultura,

escravista e exportadora.
1.2 Situação econômica, política e social

A cidade de Salvador vivia uma situação de escravidão. Era composta por uma

aristocracia rural de mentalidade escravista de ideologia conservadora. A base de sua

produção econômica era o modelo colonial, agrário, monocultor, escravista e

exportador. Dialeticamente, oposta ao contexto de escravidão, a classe escrava atuava

enquanto sujeito coletivo, no processo contraditório de lutas e reajustes sociais. Desde a

travessia de África para Salvador, primeira cidade portuária brasileira, a população

negra vivia uma situação de escravidão.

A cidade começava a industrializar-se, o comércio era rico e a população muito

mais ativa que a do Rio de Janeiro. Essa onda de prosperidade, animada pela abertura

dos portos e pelas leis que libertaram as atividades econômicas das antigas restrições,

não iria durar muito. O encarecimento dos escravos, devido às dificuldades e finalmente

à proibição do tráfico negreiro, a queda das cotações do açúcar pela concorrência de

outros centros produtores e do açúcar de beterraba, a irregularidade das estações, a crise

política da regência, os conflitos no Prata, a revolução no Sul, a febre amarela, a varíola,

mais tarde o cólera e uma série variada de fatores passariam a forçar o declínio da

economia baiana (AZEVEDO, 1969, p.232-233).

De 1820 até 1840, boa parte do Brasil viveu um período de grande instabilidade

política e social. Após a guerra pela independência e a conseqüente expulsão das tropas

portuguesas de vários pontos do país, a tarefa que se imponha naquele momento era a da

organização do Estado Nacional Brasileiro, atendendo aos interesses da classe

dominante brasileira e do imperador D. Pedro I (ANDRADE, 1988, p.49).


A Bahia não foi exceção. De 1820 a 1840 essa província viveu um período de

grande agitação. Embora as tropas portuguesas só tenham abandonado Salvador em 2 de

julho de 1823, ainda neste período a província foi palco de revoltas militares, motins

contra portugueses, rebeliões federativas, “desordens populares” e rebeliões escravistas

(ANDRADE, 1988, p. 50).

A cidade de Salvador, ou simplesmente a Bahia, como era denominada pelos

habitantes, contava, no início do século XIX, com dez freguesias urbanas, que eram,

segundo a ordem de criação, Sé ou São Salvador, Nossa Senhora da Vitória, Nossa

Senhora da Conceição da Praia, Santo Antonio do Carmo, São Pedro Velho, Santana do

Sacramento, Santíssimo Sacramento da Rua do Paço, Nossa Senhora de Brotas,

Santíssimo Sacramento Pilar e Nossa Senhora da Penha (ANDRADE, 1988, p.58).

De fato, poucas cidades pode haver, tão originalmente, povoadas como a


Bahia. Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia tomá-la, sem
muita imaginação, por uma capital africana, residência de poderoso príncipe
negro, na qual passa, inteiramente, despercebida uma população de
forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na praia, negros na
cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros altos. Tudo que corre grita,
trabalha, tudo que transporta e carrega é negro; até os cavalos dos carros na
Bahia são negros (AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.20).

De 1822 a 1826, o funcionamento da cidade de Salvador estava pautado na mão-

de-obra escrava. Graças à sustentação da mão-de-obra negra, esta capital pôde assumir,

desde sua fundação, grande importância como centro político, administrativo, comercial

importador-exportador e redistribuidor de mercadorias. De fato, foi com base no braço

escravo que foram estruturadas a economia e as sociedades brasileiras e a

soteropolitana. A ocupação efetiva e a colonização baiana tiveram como sustentáculo a

agroindústria do açúcar, organizada em grandes unidades monoculturas, com a

utilização da mão-de-obra escrava (COSTA, 1989, p.17).


A economia baiana, depois de viver um período de relativa prosperidade no final

do século XVIII e primeira década do século XIX, vai declinar a partir de 1821, em

razão de vários fatores, sendo os mais importantes a guerra pela Independência na

Bahia, os conflitos que se seguiram e as mudanças na conjuntura internacional que

marcariam o final da trajetória ascendente, desorganizando a vida econômica

(SOARES, 1994, p.18).

Assim, segundo MATTOSO (1978, p.201ss), os habitantes de Salvador estavam

divididos em quatro categorias sócio-ocupacionais principais: no ápice, ficavam os

senhores de engenho, grandes negociantes, altos funcionários civis e eclesiásticos e

oficiais militares acima da patente de sargento- mor. Em seguida, estava a categoria

formada pelos funcionários intermediários do Estado e da Igreja, profissionais liberais,

oficiais militares, comerciantes, mestres artesãos e pessoas que viviam de renda. Havia

outra categoria constituída por funcionários públicos de menor poder aquisitivo,

profissionais liberais de reduzido prestígio social, quitandeiras (os), taberneiras (os),

artesãos e vendedores ambulantes. E na base da pirâmide social estavam os escravos,

mendigos e desocupados.

A Bahia (além de Pernambuco), por causa de sua posição geográfica, foi o

núcleo principal de comunicação com os mercados europeus, onde se consumia o

açúcar brasileiro. Nesta região, a produção tomaria tamanhas dimensões que não seria

superada por nenhum outro setor da colônia, constituindo-se no maior centro produtor,

com a principal área de cultivo, situando-se nos contornos da Baía de Todos os Santos,

no chamado Recôncavo Baiano (PRADO, 1983, p.32).


É difícil precisar o tamanho da população de Salvador no século XIX, mas as

estimativas existentes ressaltam a representatividade numérica da população “de cor”.

Mais difícil é avaliar a proporção de mulheres negras. Reis (apud SOARES, 1994,

p.16), utilizando os dados coligidos por Andrade nos inventários pós- morte entre 1811-

1860, encontrou 128 homens para cada 100 mulheres, ou seja, 56% dos escravos

urbanos eram do sexo masculino. Ele concluiu que esses números revelam também a

presença dos africanos, responsável pelo desequilíbrio numérico entre os sexos. Ou seja,

quanto ma ior a taxa de africanidade, maior a taxa de masculinidade.

A historiadora Kátia de Queirós Mattoso diz que a população negra baiana era

maioria durante os anos de 1822 a 1826. Contradizendo o percentual estatístico acima,

ela afirma que o número de mulhe res era relativamente elevado entre a população

escrava, apesar da constante renovação do elemento africano. A maior parte da

população de Salvador fora composta quase sempre de mestiços e, posteriormente, de

negros, cabendo à mulher africana melhor resistência do que a crioula ao processo de

branqueamento mais assimilador que a alforria e a liberdade. (MATTOSO, 1988, p.30).

Pode-se especificar os períodos de crise e recuperação econômica na seguinte

ordem: 1787 a 1821 - prosperidade. De 1822 a 1842/45 - depressão. Durante os anos

entre 1820-1830, a economia de açúcar passou a competir com o açúcar de beterraba da

Europa (SOARES, 1994, p.18).

Em Salvador, além do comércio importador/exportador e interprovincial,

desenvolvia-se um comércio local bastante intenso, dele se abastecendo a cidade e seus

subúrbios, como também as cidades e povoados do Recôncavo. Inúmeros eram os


comerciantes retalhistas com suas tabernas, quitandas, padarias, lojas, perfumarias,

boticas, além de todo um comércio ambulante. Este comércio local aglutinava um

número considerável da população livre da cidade que dependia dele para a sua

sobrevivência, além do que representava um mercado de trabalho para uma camada

escrava conhecida como os negros “ganhadores” ou escravos de ganho.

A população livre que se localizava entre os dois extremos da cadeia social era

mais ou menos mestiça. Os livres aglutinavam uma multidão de homens e mulheres de

comportamento menos rígido do que a população escravizada. Os elos encadeados no

centro dessa corrente serviam para humanizar as relações sociais, aproximando suas

extremidades além de tornar seus costumes mais flexíveis. Faziam parte dessa

conjuntura social os agregados.

Os chamados agregados eram irmãos e irmãs, parentes distantes, viúvas ou mães

solteiras com filhos ou afilhados, cujo parentesco é exclusivamente espiritual (na

atualidade, a família de “santo” se constitui exemplo vivo!). Os agregados faziam o

papel de confidente dos jovens e dos senhores. Quando se tinha necessidade material,

estes se encarregavam da manutenção da casa, se transformando em vendedor (a)

ambulante, oferecendo nas ruas os quitutes que foram preparados em casa. As agregadas

(os) eram encontradas/os nas diversas camadas sociais da população livre branca,

mulata ou negra (VERGER, 1987, p.485-486).

A organização familiar soteropolitana do branco também se caracterizava pela

presença dos grupos domésticos “extensivos” ou “complexos”. Estes grupos domésticos

assumiam formas de organizações familiares mais simples, mais flexíveis, mais


adaptadas à cidade; sem, contudo, abandonar as práticas sociais herdadas da família

patriarcal (a exemplo dos agregados).

A pequena população branca existente formava a elite local, vivendo quase que

exclusivamente dos engenhos de açúc ar, do grande comércio (inclusive o de escravos),

dos cargos administrativos ou em plena ociosidade, sustentados pelos seus “escravos de

ganho”, numa batalha contínua contra a pobreza (e o endividamento) e em busca do

enriquecimento rápido e fácil.

Os mestiços, os negros e até os brancos pobres, embora formassem a maioria da

população, compunham o seu lado mais fraco. Vivendo do comércio pequeno,

sobretudo o de alimentos e da prestação de serviços, conseguiam sustentar-se com duras

penas. Em contrapartida, os cidadãos livres, porém, que não tinham aptidão para o

comércio, não conseguia um cargo público, uma posição nas tropas regulares ou mesmo

careciam de talento para exercer algum ofício, acabavam recorrendo aos escravos “de

ganho” para o seu sustento. Portanto, como bem atesta o historiador baiano João José

Reis:

O escravo é o servidor não-assalariado. Além disso, o escravo é


freqüentemente fonte de renda para seu proprietário que o emprega fora de
casa, aluga seus serviços a terceiros; escravo alugado, por vezes submetido a
penosos trabalhos braçais ou de carregador, mas às vezes expertos no
exercício de um ofício, ou de um artesanato, nos casos em que seu senhor se
tiver preocupado com torná-lo barbeiro, músico alfaiate, pedreiro, pintor...
Alguns escravos chegam à condição de pau para toda obra, capazes em mais
de um mister, artesão, vendedor ambulante, barbeiro e músico (REIS, 1986,
p.118).

A população negra que, devido a circunstâncias de ordem institucional,

econômica e de mentalidade, desenvolveu prática maior de uniões livres do que legais

(MATTOSO, 1988, p.116), na tentativa de criar espaços de autonomia econômica,


social e cultural, interagiu com a sociedade e com o regime de trabalho a que estava

submetida, respondendo tanto com uma atitude de acomodação como de resistência.

Múltiplas foram as estratégias de sobrevivência que permitiram estabelecer laços de

mediações com o branco. Se, por um lado, não foi possível a existência de uma vida

afro-baiana pura ou independente no contexto global, por outro, deve-se destacar o

comportamento da raça negra como fator de pressão permanente, o que possibilitou a

sobrevivência de muitos costumes de origem africana.

A cidade de Salvador, nos anos de 1822 a 1826, apresentou poucas alterações

nas condições de vida da população, em comparação com o século anterior. A Bahia,

animada pelo último e verdadeiro período de prosperidade de sua economia

(MATTOSO, 1988, p.181s), mantinha praticamente intactas suas estruturas sociais e

econômicas (principalmente sua enorme dependência do comércio internacional do

açúcar e da mão-de-obra escrava, importada da África ainda em grandes números).

A população branca, durante este período, não pôde apresentar um crescimento -

ou mesmo uma renovação - equivalente ao ocorrido nas camadas mais pobres da

população formada por negros e mulatos, maioria residente em Salvador. Mas, nestas

“camadas médias e populares da sociedade”, a renovação contínua (e o crescimento em

termos quantitativos) era garantida pelas sucessivas levas de escravos africanos que

chegavam nos portos baianos, e aliada às alforrias, aumentava em número com o passar

do tempo (VERGER, 1987, p.496).

Este enorme contingente de moradores, pobres e remediados, ajudava a ampliar

os limites da cidade, com suas pequenas casas térreas, de “porta e janela” ou mesmo “de
porta e duas janelas”, instaladas nas freguesias menos povoadas, ou mesmo adensando a

região central da cidade, dividindo o espaço com os imponentes sobrados. Eram

famílias cujo “passadio era de carne-seca, de farinha, de bolacha, de bacalhau, de vinho

de jenipapo ou de caju” (FREIRE, 1968, p.164), em contraste com a carne fresca, o

azeite de oliva, os vinhos finos e frutas secas importadas da Europa consumidos nos

grandes e ricos sobrados.

Como de costume, “cabia à cultura portuguesa o papel dominante. Ela

representava o poder. Ela conformava o tipo de vida. Papel dominante, por certo, porém

de maneira alguma exclusivo” (MATTOSO, 1988, p.37). À minoria branca, então, eram

destinado os principais cargos públicos, o grande comércio ou mesmo a produção do

açúcar. Aqueles que sobreviviam dos modestos ganhos de seus escravos passavam os

dias percorrendo a cidade atrás de clientes interessados nos seus serviços (carregadores,

carpinteiros, barbeiros, aguadeiros etc) ou produtos (alimentos e miudezas em geral).

Mas os “senhores” e “senhoras” ficavam reclusos em casa sem ter muito a fazer, atentos

ao serviço dos escravos domésticos, descansando nas varandas e alpendres e rezando o

terço.

As classes mais favorecidas, onde havia a “enervante ociosidade”

(VANHOLTHE, 2002, p.58), era o símbolo máximo de poder e prestígio. Apenas os

pobres, portanto, corriam o risco de serem tomados por “vadios”, sendo obrigados a

exercer (ou aparentar exercer) alguma ocupação que lhes desse algum tipo de

“reconhecimento entre seus pares: reconhecimento da vingança, os mais humildes e

numerosos; de prestígio junto aos grandes, os que logravam ascender economicamente”

(VANHOLTHE, 2002, p.58).


Neste contexto, em contraste com o padrão de vida aceito e adotado pelas elites

soteropolitanas, durante o período escravista, no qual o trabalho torna-se símbolo de

dependência e pobreza e o ócio torna-se o símbolo maior de poder e prestígio social,

tem-se os considerados vadios, os sem-ofício, o vagabundo sem morada certa, a

prostituta, o mendigo – as “classes perigosas” que, compondo a base piramidal, vivem

em constante luta de resistência social. Vejamos o que nos diz João José Reis:

A cidade de Salvador no século XIX distingue quatro categorias básicas: no


topo, os senhores de engenho, grandes negociantes, altos funcionários do
Estado e da Igreja, e finalmente os oficiais militares acima da patente de
sargento-mor. Essas pessoas tinham poder, riqueza e aspiravam, às vezes com
sucesso, aos títulos de nobreza distribuídos pelo governo imperial a partir de
1822. A segunda categoria era formada pelos funcionários intermediários do
Estado e da Igreja, os profissionais liberais, oficiais militares, comerciantes,
mestres – artesãos enriquecidos e um número razoável de baianos que viviam
de rendas geradas pelo aluguel de casas e escravo ou pela agiotagem. Um
terceiro escalão era constituído de funcionários públicos menores, militares,
profissionais liberais de reduzido prestígio social, quitandeiros, taverneiros,
artesãos e vendedores ambulantes. Na base da pirâmide social, estavam os
escravos, mendigos e vagabundos – as “classes perigosas” baianas da época
(REIS, 1986, p.19).

Neste ambiente baiano, se atribuía ao poder familiar um papel dominante na vida

social e política que era contrabalançado através de inúmeras expressões de

solidariedade e submissão presentes nos laços de parentesco e parentela, fortalecendo

e/ou criando a sua vontade nas mobilidades e imobilidades da população escrava. Dessa

relação se podia tecer toda uma trama de relações sociais nas quais, e sempre, o coletivo

leva a palma ao individual. A comunidade negra baiana, aprisionada numa estrutura

social fortemente hierarquizada e não igualitária, “perpetua involuntariamente, até

nossos dias, as formas de convivência social herdadas de um passado colonial que a

sociedade escravista no século XIX antes fortaleceram que eliminaram” (MATTOSO,

1988, p.21).
Na cidade baiana, em detrimento, sobretudo das influências culturais africanas,

se tornou visível a presença de cultos aos antigos orixás. E, de forma mais material, as

especialidades culinárias. Portanto, no período que vai de 1822 a 1826, a população

negra de Salvador, sobretudo escrava, desenvolveu relevantes e diversas funções

sociais, econômicas, culturais, políticas e de resistência na conjuntura local, indo da

revolta aberta à aparente aceitação sem reservas, conservando, zelosamente, sua língua,

suas tradições, suas crenças.

Nesta década, a situação de escravidão soteropolitana foi resultado da história de

dominação entre Portugal e Europa. No início do século XIX, Inglaterra e França

passaram por profundas transformações econômicas, sociais e políticas causadas,

principalmente, pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa. E Portugal, neste

período, dependia política e economicamente dessas duas potências. Entretanto,

enquanto esses países europeus buscavam o desenvolvimento capitalista, Portugal

prendia-se aos princípios mercantilistas e absolutistas.

A Família Real portuguesa, diante dos conflitos de dominação entre França e

Inglaterra, resolveu, de forma estratégica, se transferir para o Brasil, aportando em

Salvador em 22 de janeiro de 1808. Com isto, o país passa de colônia à sede do governo

português, dando continuidade ao regime monárquico, de governo centralizado e de

forte herança colonial. Em 1810, através de tratados políticos, o Brasil já era

economicamente dependente da Inglaterra. Já nesta época, Salvador vive uma situação

calamitosa: déficit econômico, carestia, decadência do comércio, descontentamento

popular, sobretudo por causa da fome e miséria. A situação política era marcada pela
tirania regencial e manipulação da Inglaterra (SILVA & BASTOS, 1977, p.88-9). Este

contexto se estende até o ano de 1826, período do Levante em Urubu.

A escravidão negra africana foi uma das formas mais eficientes e eficazes que

Portugal encontrou para resolver o problema de imposição do mercado interno e da

lavoura açucareira na Bahia. A cultura do açúcar necessitava de grande quantidade de

braços e a população de Portugal era pequena demais para abastecer sua colônia de

mão-de-obra. Por isto, após tentativas frustradas de utilização do trabalho indígena,

Portugal buscou no continente africano a base de sustentação de sua economia colonial.

Na Região Nordeste, a presença de escravos (as) africanos (as) está associada à

própria formação da colônia e, posteriormente, do império. Na Bahia, a economia

colonial, além de consolidar o cultivo da cana-de-açúcar, intensificou o tráfico de

africanos (MOURA, 1989, p.8).

No Brasil, em 1822, foi criado o Estado Brasileiro de acordo com os interesses

da elite aristocrática, que detinha o poder econômico e político. Neste caso, a monarquia

brasileira foi uma conseqüência do escravismo, onde a mão-de-obra escrava negra

constituiu a base de sua estrutura social e econômica. Embora tenham ocorrido algumas

medidas liberais, permaneceu o conservadorismo imperial (SILVA & BASTOS, 1977,

p.94).

Os dirigentes brasileiros, após a proclamação da Independência, em 7 de

setembro de 1822, achavam relevante conquistar a soberania da nova ordem por todo o

território nacional. Havia, na cidade de Salvador, uma grande concentração de


resistência à nova ordem, representada pelo brigadeiro português Madeira de Melo. A

elite baiana, apoiada pelas tropas do general Labatut, pela esquadrilha de Delamare e

com a presença massiva negra e dos excluídos, travara a batalha pela independência da

Bahia, no bairro de Pirajá, em 1823. Os portugueses de Madeira de Melo foram,

juntamente com ele, derrotados e obrigados a voltar para Portugal (REIS, 1998, p.105).

A lógica era liberdade. Portanto, se era para libertar o país da escravidão, por

que não os escravos brasileiros? O povo não venceu em 1823. De fato, essa vitória

favoreceu, sobretudo, aos senhores dos engenhos baianos, pois os que comungavam

com as idéias democráticas, os patriotas republicanos, os mestiços, negros e livres,

continuaram discriminados. Os escravos e as escravas permaneceram na escravidão. Daí

em diante, em Salvador, houve inúmeros protestos, sobretudo da comunidade negra,

culminando com o levante em 1826 em Pirajá, mesmo local onde, três anos antes,

ocorreu uma batalha pela independência da Bahia.

Na cidade de Salvador a situação de escravidão persistia. A população

escravizada era um elemento de capital relevância para o assentamento e

desenvolvimento da cultura de cana-de-açúcar. O sistema de escravidão era apoiado

pela Igreja e legitimado pelo Estado. Este último reconhecia a escravidão como uma

instituição historicamente necessária (KLEIN, 1987, p.209).

Os escravos edificaram as casas de seus amos, abriram as matas, cultivaram a

cana-de-açúcar, o algodão, o cacau, o café, o tabaco, trabalharam na mineração, no

comércio (GALEANO, 1979, p.91). O Brasil tem uma dívida histórica com a

comunidade africana e seus descendentes porque tudo que foi construído e produzido
durante três séculos e meio de colonialismo foi às custas da escravidão de povos

africanos.

No contexto soteropolitano, os brancos sempre detiveram uma grande parcela de

poder, criando diversas formas de subestimar a história da população negra. Segundo

Moura, “embora muitos historiadores procurem branquear a nossa população, a

apuração de nossa realidade étnica excluiria o branco como representativo do nosso

homem” e da mulher (MOURA, 1989, p.9).

Ao longo dos séculos, até a extinção do tráfico em 1850, desembarcaram, na

primeira capital portuária, levas enormes de escravos africanos para a lavoura do açúcar

e outras atividades do campo e para as funções básicas de infra-estrutura e

funcionamento da cidade (VERGER, 1992, p.9).

A sociedade senhorial, com a finalidade de se defender dos movimentos de luta

de resistência negra, criou vários mecanismos de defesa contra leva ntes, fugas e outras

atitudes de insurreições negras. Os mecanismos iam desde estrutura de legislação

repressiva e violenta, à criação de milícias, contratação de capitães-do-mato e ao

estabelecimento de todo um arsenal de instrumentos de tortura (MOURA, 1981, p.11).

1.3 Situação das mulheres negras

As mulheres negras, na cidade de Salvador, tiveram uma participação política,

econômica e cultural que se expressava na medida de suas explorações e dos


preconceitos que as atingiam dentro da sociedade patriarcal no período colonial e na

historiografia oficial.

A vida destas mulheres, principalmente no período do primeiro reinado, era

marcada por muito sofrimento, pois a elas cabiam as funções de escrava e também de

reprodutora. Quando as mulheres negras engravidavam e amamentavam seus filhos não

eram isentas do trabalho. Acometidas por esse tratamento desumano,

conseqüentemente, as escravas eram impedidas de garantir o desenvolvimento regular

de seus filhos, ainda em seus ventres. Além de terem seu leite minguado e experimentar

o desmaio, elas sofriam com doenças e morte de suas crianças.

Durante o tráfico escravista, os senhores feudais não se interessavam pelas

crianças das mulheres negras que, porventura, nascessem neste “novo mundo”, pois era

mais rentável adquirir “ferramenta’’ pronta para o uso (homem/mulher negro/a adulto/a)

do que ainda prepará- la (criança negra). Diante destes fatos, é possível afirmar que a

reprodução escrava esteve profundamente associada à questão do tráfico, na medida em

que a possibilidade de adquirir novos escravos era, pura e simplesmente, antieconômica

para o proprietário individual (GIACOMINI, 1988, p.21). Principalmente depois que o

tráfico foi proibido, os senhores passaram a se interessar pelo fruto da escrava. Em

alguns lugares do Brasil passou-se até mesmo a ter criadores de escravo.

Além da situação de reprodutora biológica, a escrava, dada à condição de coisa e

em parceria com o homem escravo, produzia o seu próprio sustento, trabalhando no

plantio e colheita de seu alimento, originário da terra, sem direito a nem mesmo uma

família. Isto porque a possível relação de parentesco entre escravos passava, quase
exclusivamente, pela figura da mãe e, nos primeiros anos de vida da criança, pela

relação mãe-filho (a). Neste caso, o ventre materno é que designa a condição de seus

frutos. Logo, sobretudo entre 1822 e 1826, é quase inexistente a paternidade na família

escrava. Segundo Reis:

Nas cartas de alforrias pudemos observar que as mulheres aparecem mais


freqüentemente do que os homens como protagonistas da libertação de seus
filhos. Este dado reforça a idéia de que as mulheres tiveram mais
oportunidade de conviver com os seus filhos, não excluindo a possibilidade
de elas terem contado com o apoio dos pais das crianças para libertá-las
(REIS, I 1998, p.89).

Havia, por parte dos senhores, um desencorajamento de uniões permanentes dos

escravos e das escravas, visto que o casamento significava uma limitação à mobilidade

de sua “mercadoria escrava”. Como se pode observar, se existiu uma vida familiar entre

os cativos e as cativas, essas relações se consolidaram, forçosamente, distintas das

características do homem livre e branco, por sua própria condição imposta pelo sistema

de escravidão.

O poder, o papel de proteção, a sustentação econômica e a autoridade absoluta

eram “privilégios” de homens brancos, não sendo estendidos aos homens negros muito

menos às mulheres sujeitas à escravidão.

No exercício dos “privilégios patriarcais” dos senhores, os escravos eram,

indiretamente, atingidos. Eles não tinham o direito, sequer, de queixar-se dos muitos

abusos, sobretudo sexuais, que as suas mulheres eram diretamente vítimas, tampouco

se vingar de seu sedutor. Os escravos, portanto, muitas vezes, também eram atingidos

quando as suas mulheres caiam “nas graças” de seus senhores, cabendo a eles a

decidirem, ainda que indiretamente, qual o tipo de relação subjetiva e sexual possível à
população escravizada. Como nos diz Sonia Maria: “A negação dos escravos, enquanto

ser humano, implicou necessariamente na negação de sua subjetividade, que foi violada,

negada, ignorada, principalmente nas relações entre eles: mãe escrava -filhos (as), pai

escravo - filhos (as) e homem- mulher escravo” (GIACOMINI, 1988, p.23).

As mulheres escravas, além de serem envolvidas nos serviços das casas

patriarcais, eram incorporadas no ciclo reprodutivo da família branca, exercendo a

função de “amas-de- leite” e ‘’mãe-preta’’. Essas reafirmavam, pela escravidão, a

impossibilidade, sobretudo para a escrava, de constituir seu próprio espaço reprodutivo

(BEOZZO, 1992, p.61).

Quando nascia uma criança branca, a escrava tinha funções reprodutivas no

interior da família, e sua “cria” era levada ao espaço ausente da esfera privada numa

espécie de abrigo infantil, a Casa da Roda, ou seja, Casa dos Enjeitados, dando origem,

com isto, aos alarmantes índices de mortalidade dos enjeitados, crimes de infanticídios e

abandono das crianças negras em Salvador. A condição de escrava, enquanto coisa,

permitia afirmar a maternidade na sua negação através do afastamento de seus filhos

(as) (REIS, I, 1998, p.47ss).

Como se não bastasse a fragilidade que experimentava nas relações entre mãe

escrava- filhas (os), para esta mulher era permitido, tão-somente, ser “mãe-preta”, “ama-

de-leite” da criança do senhor e da senhora branca. É fácil perceber que a presença de

mães-pretas revela uma das facetas de expropriação da senzala pela casa-grande, tendo

como inevitável conseqüência a negação de maternidade escrava e mortandade de suas

crianças. Por isto, a possibilidade de a escrava ser mãe de seu filho preto foi lhe
arrancada ao ser transformada em mãe-preta da criança branca. Então, o preço da

proliferação dos senhorzinhos (as) era o abandono e a morte da população negra infantil

(VALENTE, 1987, p.16).

A mãe-preta, acrescida à sua condição de mulher negra, sofre dupla violência

dentro da casa- grande: na frente das crianças e da ama lhe dá o seu leite, os senhores e

senhoras agridem fisicamente sua escrava. Desta forma, a criança, filho/a do senhor e

da senhora branca, aprende desde cedo o seu papel nesta cadeia de violência e,

conforme vai crescendo, o/a senhorzinho (a) desenvolvia a prática de esbofetear a cara

de sua ama-de-leite. E ao crescerem e tornarem-se senhores e senhoras, castigam com

cruéis açoites aquelas mulheres negras que os carregaram, alimentaram e embalaram

quando crianças (VALENTE, 1987, p.15-16).

Nesta época, era notória na sociedade soteropolitana uma ideologia dominante

que atribuía à maternidade negra o papel, tão-somente, social básico, ou seja, de escrava

transformada em ama-de-leite. Na negação de sua maternidade, as negras conheciam a

não afirmação de sua condição de mulher, servindo, apenas, como um instrumento

amamentador. Elas eram alugadas, vendidas sozinhas e/ou acompanhadas de sua “cria”,

pois o que importava era somente o lucro que esta “mercadoria” daria ao seu dono ou

dona. Quando a escrava doméstica era comercializada acompanhada de filho ou filha,

ela era tida como uma “mercadoria desvalorizada” (HAHNER, 1978, p.119ss).

As mães negras eram obrigadas a se separar de suas crianças, sobretudo no

período pós-parto, exceto quando quem comprava se interessava em levar “as duas

mercadorias”. Daí concluir que “a possibilidade de mãe e filho viverem sob o mesmo
teto parece ter estado intimamente ligada ao destino reservado à mercadoria-escrava-

leiteira” (GIACOMINI, 1988, p.53). Neste contexto, era importante que o leite da

escrava não se estancasse, pois este constituía numa valiosa fonte de renda para o

comércio de muitas famílias coloniais. As crianças negras, em detrimento do

atendimento da criança da senhora e mãe branca, foram impedidas de nutrir-se com seu

alimento natural. A amamentação da criança escrava é destinada à preservação da

“mercadoria escrava- leiteira”, sendo beneficiados apenas o filho e a filha da senhora.

Numa época em que o preço do escravo aumentava, o comércio das amas-de-

leite visava diretamente a proteção dos interesses econômicos e sexuais dos senhores.

Além de terem seus corpos vendidos pelos senhores (as) a fim de suprir a necessidade

do “comércio de leite”, as mulheres negras sofriam tamanha violência por ocasião da

retirada de seus filhos e filhas para serem levados aos orfanatos baianos. Em

conseqüência de agressões físicas praticadas por seus senhores e senhorzinhos, as

mulheres também eram vítimas de doenças venéreas (sífilis, gonorréia, etc), resultado

da apropriação de seu corpo como objeto sexual do homem branco (VALENTE, 1987,

p.16).

A mulher negra era vista pelos senhores como objeto sexual, por isso eles se

sentiam isentos de qualquer compromisso de procriação e livres do dever de cunho

moral e religioso, assim como das séries de funções que tinham por obrigação observar

quando casados com mulheres brancas. As mulheres negras eram impossibilitadas de se

guardarem virgens, pois quando não eram usadas pelo senhor, tornavam-se iniciadoras

sexuais dos filhos do mesmo (GIACOMINI, 1988, p.65-66).


Na sociedade patriarcal escravista baiana, a condição da mulher negra se dava de

forma antagônica à mulher branca. A negra era vista como objeto sexual do branco,

escrava, infanticida, sensual, lasciva, imoral, sem religião, negada no direito de

maternidade e a possibilidade de desenvolver relações familiares. A branca era senhora,

mãe, casta, pura e reduzida à procriação através de relações de parentesco.

Em uma sofisticada inversão de papéis, passando de vítima a culpada, por causa

de seus atributos físicos, as negras são acusadas, sobretudo pelas senhoras brancas, de

despertar o desejo sexual no macho branco, a ponto de cometerem o ato de violência

sexual com as escravas. Em conseqüência das acusações infundadas e do ciúme das

senhoras brancas, as mulheres negras sofreram torturas, amputações e todo tipo de

violência (GIACOMINI, 1988, p.73).

Na esfera doméstica, espaço privilegiado das senhoras brancas, as negras

atuavam como mucamas, amas-de- leite, cozinheiras, bordadeiras, lavadeiras,

engomadeiras, entre outras atribuições a elas reservadas. Daí dizer que os escravos e

mais ainda as escravas, além de proporcionarem às senhoras, sobretudo às abastadas,

ociosidade, garantiram o funcionamento da casa e da estrutura econômica patriarcal. É

provável que as senhoras pouco abastadas, juntamente com as escravas, exercessem

algumas funções domésticas. Na esfera familiar, as escravas produziam, entre outras

mercadorias, velas, banhas e demais produtos que eram comercializados pelos negros e

negras de ganho. Neste caso, caberia à senhora branca gerenciar a unidade doméstica,

sendo que a tarefa mais pesada era exercida pelos escravos e escravas domésticas

(GIACOMINI, 1988, p.73).


No espaço caseiro, a senhora, versão doméstica e feminina do feitor, exercia a

função de controle sobre o trabalho forçado, embora, algumas vezes, a senhora branca

buscasse o prazer, entregando, sem restrições, o lar às escravas, muitas delas eram

bastante violentas e autoritárias com suas escravas. A rivalidade da senhora branca

contra a negra ocorria num clima de total impunidade através das mutilações,

extirpações, deformações físicas e outras atrocidades (GIACOMINI, 1988, p.73ss). De

fato, houve um grande descaso, fruto de diversas formas de discriminação existente em

relação ao trabalho escravo, sobretudo doméstico, que ocupava a maioria das mulheres

negras baianas entre 1822 a 1826.

A lógica da sociedade patriarcal e escravista atingiu mais direta e brutalmente a

mulher escrava através da exploração sexual do seu corpo pertencente, pela própria

lógica da escravidão, ao seu senhor ou senhora branca. A possibilidade da utilização dos

cativos como objeto sexual só se concretizava para a escrava, visto que recaía sobre ela,

enquanto mulher, a dominação masculina. Esta dominação do macho sobre a mulher

estava respaldada nas determinações patriarcais que definia e legitimava tal ato absurdo.

Portanto, o fato de ser “propriedade privada” e de ser mulher justificaria para a

sociedade patriarcal baiana, no período do primeiro reinado, a opressão específica da

escrava, que não ocorreu sem constantes resistências, sobretudo negra.

1.4 Táticas de resistência negra

Apesar de sua longa existência, a escravidão não existiu sem uma intensa

resistência por parte da comunidade escravizada, traduzida pelas muitas formas de

enfrentamento, desde a denominada resistência do dia a dia – sarcasmos, roubos,


sabotagens, assassinatos, suicídios, abortos – até aspectos menos visíveis, porém

profundos, de uma ampla resistência cultural (REIS & SILVA, 1989, p.62). Em

Salvador, mesmo diante de toda opressão sofrida, o povo de origem africano encontrou

nos valores de sua cultura, que deixaram transparecer no cotidiano, o referencial de

resistência escravista. Por onde houve escravidão, o desejo de liberdade dos (as)

escravos (as), “aves altivas por natureza”, fez eclodir táticas de resistência negra.

Estas estratégias tinham a finalidade de acabar com o sistema de escravidão. E

elas eram postas em prática já na travessia nos navios negreiros que faziam a rota do

Brasil e do Caribe, como bem expressa a palavra malungo, que significa “irmãos de

viagem”. Nos navios encontravam-se pessoas de povos, línguas e famílias diferentes

que não se podiam comunicar. Apesar dessas diferenças, irmanados pelo suplício

comum, estes grupos formavam um novo povo, uma nova família: os irmãos de viagem

(SANTOS, 1985, p.29).

Na cidade de Salvador, os valores culturais africanos, desde os primórdios, vêm

se dando por meio da natural união de cor, autodenominado-se parentes; os que servem

na mesma casa, considerando-se parceiros (as) e, por último, já os que embarcavam no

mesmo navio, iam se reconhecendo malungos, ou seja, irmãos (ãs) de viagem. De fato,

os africanos foram parceiros e parentes de viagem, souberam refazer os laços de

solidariedade que a escravidão teimava em romper (BEOZZO & LURSCHEIDER,

1992, P.64).

As cartas de alforria mostram como homens e mulheres escravos (as), livres e

libertos formaram redes de solidariedade e ajuda mútua para livrar do cativeiro seus
pais, mães, filhos, filhas, irmãos, irmãs, etc. Portanto, para os que optaram em

permanecer vivos e deixaram seus filhos viver tiveram que desenvolver múltiplas

estratégias pela liberdade da família e parentes (REIS, I, 1998, p.83).

Kátia Mattoso (1992, p.163) diz que “a etnia também estava presente quando os

escravos se organizavam nas ‘juntas de alforrias’, tendo em vista conseguir a liberdade”.

Fazia parte da tática de libertação por solidariedade entre famílias, apoio de “parentes”

étnicos. Essa expressão apresenta uma indicação de que os africanos na Bahia do

século XIX se relacionavam entre os pertencentes da mesma nação – os malungos ou

parentes (OLIVEIRA, 1989, p.174s). Cabe mencionar que, ampliando os laços étnicos

de solidariedade, surge a figura do compadrio, enquanto forma consagrada de

parentesco, de recriação simbólica.

Durante o período de escravidão (1822-1826), a população negra, contradizendo

a visão mítica do escravo dócil e passivo, contribuiu para criar um clima de permanente

tensão no trivial caseiro das famílias e no âmbito público patriarcal da sociedade baiana.

As táticas de resistência negra foram desde as revoltas à formação de quilombos. É

notório que, por meio de versatilidade e inteligência, os escravos e as escravas, ao

infernizarem a vida de seus senhores, transcendiam à situação de “coisa” (SANTOS,

1988, p.16).

Todas estas iniciativas de resistência visavam desestruturar e acabar com o

sistema escravista por dentro, o que inclui a organização e demonstrações visíveis de

resistência cultural nas manifestações de protesto como suicídio, fugas e insurreições.

Na cidade de Salvador, a religião, sobretudo dos orixás (presente nos candomblés e nos
quilombos) serviu como referencial de luta de resistência da população afro-

descendente, salvaguardando, criativamente, todo um arcabouço cultural africano.

A partir daí, os elementos culturais que foram recriados, durante a escravidão,

serviram enquanto cultura de resistência político-social. Exemplo disso foram as

diversas revoltas organizadas na Bahia, no início do século XIX, em áreas onde se

concentraram negros islamizados e praticantes de religião de origem africana (SILVA,

1987, p.18-19). Entre as várias táticas de resistência ao sistema escravista merecem

destaque as praticadas por mulheres negras, pela população de rua, sincretismo, e ações

de rebeliões, de suicídio e fuga.

1.4.1 Resistência das mulheres negras

Apesar de a escravidão atingir fortemente as mulheres negras, a participação

política deste segmento foi evidenciada nas várias lutas e movimentos de revolução,

aparecendo como protagonistas de uma história de resistência (como, por exemplo,

entre outros, o Levante do Urubu (1826), com Zeferina, e a Revolta de Malês (1835),

com Luiza Mahim.

É evidente que a maioria dessas mulheres ficou no anonimato, mas houve quem

conseguisse marcar seu lugar na sociedade, trilhando a trajetória da alforria e da

ascensão social, superando obstáculos, personificando modelos de resistência e

independência da estrutura patriarcal e escravista (SOARES, 1994, p.3).


As mulheres negras resistiram economicamente, ajudando a construir as riquezas

da sociedade da época, trabalhando na casa e no campo dos senhores e também como

escravas de ganho. Culturalmente, a mulher foi a principal responsável pela preservação

dos costumes e da religião afro em solo baiano.

A participação política da mulher negra na Bahia se deu desde a chegada das

primeiras africanas escravizadas. A colaboração delas ficou evidenciada nas lutas de

resistência, no apoio moral e material aos homens negros, na recriação das tradições

africanas e afro-brasileiras, assim como na defesa de idéias, posições em favor do povo

negro e marginalizado (APN’s, 1990, p.29).

No processo de luta de resistência de uma raça e de uma classe, elas, além de

criarem estratégias de resistência nas senzalas, nas casas de seus senhores e senhoras

brancas estiveram, politicamente, ativas nas ruas, nos cantos da cidade, nas irmandades,

nos candomblés, nos quilombos, articulando, juntamente com os escravos, livres e

parentes, as possíveis manobras de resistência ao sistema escravista dominante.

As mulheres negras de ganho desfrutavam de certa mobilidade social, passando

de serviço doméstico à vendedora de rua. É possível suspeitar que esta mobilidade

social fosse utilizada por elas para passar informação, amp liar a articulação entre os

demais componentes da população negra: fossem os livres, os fugitivos, os escravizados

e todos os excluídos que formavam a base da pirâmide social baiana escravista.

Em Salvador, as mulheres de ganho, negras, escravas ou livres, faziam de seus

pontos-de-venda verdadeiros espaços de articulação política de resistência. As mulheres


escravas e libertas, através da monopolização e comercialização de seus produtos

alimentícios, de origem africana, nas feiras, nas ruas como táticas de resistência,

“transportavam” também suas culturas, crenças, seus sentimentos e suas atitudes de

transformação social (VERGER, 1987, p.11).

Nas praças públicas, essas vendedoras de quitutes (as atuais baianas de acarajé)

contribuíram, diretamente, na criação de táticas de resistência que se traduziam em

redes de solidariedade, articulações políticas, intercâmbios e em manutenção de toda

uma luta de libertação do sistema escravista (JOAQUIM, 2001, p.24-25). Não é difícil

imaginar que as negras libertas abriram suas casas para reuniões conspiratórias, já que

algumas delas podiam se movimentar facilmente e “passar adiante” as informações,

deliberações e outros encaminhamentos oriundos, sobretudo, dessas reuniões caseiras.

Muitas dessas mulheres, além de prosperarem no comércio, se constituíam em

lideranças (a exemplos de algumas mães-de-santo e líderes quilombolas).

1.4.2 Resistência da população de rua

A população de ganho desfrutava de certa “liberdade”. Na rua, reunia-se quando

desejava, dançava e tocava seus instrumentos de percussão, fazendo batuques, a

qualquer hora, por toda a cidade. No subúrbio e no campo, estes negros festejavam

sozinhos, monopolizavam a situação além de interromperem toda outra função. Estes

escravos de ganho detestavam, sobretudo, os senhores que os oprimiam de assim agir,

chegando até ameaçá- los de morte.


Enquanto os senhores e as senhoras brancas desfrutavam do ócio quase total em

suas casas simples, saíam os escravos e as escravas pelas ruas de Salvador com a

obrigação de entregar, ao final de um período preestabelecido, uma quantia mínima que

garantisse a subsistência de seus donos e suas donas – e invariavelmente algo mais que

pudesse sustentá- los também. Por sua vez, com “liberdade” para percorrer todas as ruas,

praças e becos da cidade, a população negra, aos milhares, dava a Salvador um caráter

próprio, aproveitando para arquitetar, ali, suas táticas de resistência ao sistema

escravista. Sobre os (as) escravos (as) de ganho, Pierre Fatumbi Verger (1987, p.504)

afirma que:

A escravidão consistia geralmente em empregar seus serviços durante o dia: à


noite, tinham plena liberdade. Retribuindo aos seus senhores com 08 ou até
12 vinténs, procurando, livremente, os meios para ganhá-los e aqueles para os
quais os senhores empregavam no serviço diurno, eles gozavam à noite de
plena liberdade para os divertimentos e reuniões de que gostavam.

A população negra de ganho carregava pequena e grande coisa na cabeça. Os

tonéis que eram objetos mais volumosos eram suspensos em varas que carregavam nos

ombros. Transportava também em conjunto blocos imensos de madeira. E enquanto

transportava nas ruas, o canto servia para dar resignação, força de resistência negra. O

silêncio foi um dos maiores vestígios de sutil resistência da população escravizada, pois

através dele os africanos conseguiram a sobrevivência de sua raça e cultura primeira. A

oralidade, instrumento de maior eficácia, foi (e ainda é) a grande e predominante arma

dos africanos e descendentes de transmissão cultural que se manteve entre os povos da

diáspora, sobretudo na Bahia (VERGER, 1987, p.505-506).

A população negra usava o sorriso como uma das táticas de resistência ao

sistema escravista, sinalizando, muitas vezes, que os sorrisos que acompanhavam as


palavras podem ser sinal de discordância, de camuflar suas articulações de ataque

social, de embaraço e, poucas vezes, de autêntica alegria.

1.4.3 Resistência sincrética nas Irmandades

Desde os primórdios, a população escrava demonstrou uma grande habilidade

para cultuar a religião dos dominantes sem abrir mão de suas crenças ancestrais. Nas

irmandades e confrarias, na Bahia, alguns da população negra, como tática de

resistência, aderiram à prática do catolicismo como forma de burlar as perseguições do

sistema escravocrata (COSTA, 2002, p.9). Com isto, ao se aproximarem mais do ideal

estético do senhor, vislumbrando a possibilidade de uma certa aceitação, puderam, além

do aparente, cultuar seus deuses (as) africanos (as).

As irmandades foram, pelo viés do religioso, espaços estratégicos de resistência

cultural da população negra. Muitos destes locais eram oferecidos pelos brancos

portugueses à população negra, que alimentavam um jogo duplo: aparentemente, com

este ato os senhores brancos estimulavam a integração dos negros na sociedade

dominante através de uma atitude paternalista de proteção e de ensinamento do modelo

europeu de cultura (SILVA, 1987, p.19). Mas, por outro lado, publicamente, as

irmandades nunca se posicionaram contrárias ao sistema escravista, assumindo uma

atitude de plena aceitação da dominação vigente, pois reconheciam a escravidão e nunca

se posicionaram contrárias aos direitos do senhor. E é neste ambiente que os (as) negros

(as) vão criar táticas de resistência, burlando a lógica escravista legitimada pela Igreja

Católica.
As irmandades tiveram, desde as origens, um sentido social. Foram de expressão

interétnica, com obrigações de colaboração mútua entre os seus membros. Tudo isso

seria para fins múltiplos: desde a compra de alforria, festejos, pagamentos de missas,

caridade, vestuário, até a possibilidade de um funeral decente à população negra

(REZENDE, 1987, p.144-145).

A comunidade negra, sobretudo pertencente à religião de origem africana,

aproveitou o espaço das irmandades para estruturar-se por etnia, tornando-se um dos

veículos de sua organização. A população de cor na Bahia era uma variedade, e isto

estabeleceu um quadro heterogêneo e conflitante, visto que dividia entre si os africanos

de várias etnias e brasileiros de várias cores. Entretanto, a comunidade negra aproveitou

esse espaço étnico para, a partir daí, se organizar no trabalho, no lazer, na religião.

Nas irmandades, a religião católica manifestava-se apenas na sua forma exterior

de culto. Neste caso, a legitimação das práticas religiosas africanas, ali dentro, foi

facilitada graças ao descaso da Igreja Católica de comportamentos rigorosamente

enquadrados dentro da religião oficial. A Irmandade da Boa Morte é um exemplo disso.

Dirigida por mulheres nagôs, teve o seu núc leo central constituído por uma variada

procedência étnica, sobretudo jejes; começou no início do século XIX, em Salvador, na

Igreja da Barroquinha, em torno de 1820 (COSTA, 2002, p.7).

Essa irmandade tinha o objetivo de louvar Nossa Senhora da Boa Morte e da

Glória (pois a festa tem como base litúrgica a Assunção de Maria aos céus) e, ao mesmo

tempo, levantar fundos para a compra de cartas de alforria e dar proteção e

encaminhamento aos negros (as) fugidos (VERGER, 1981, p.21). As mulheres da


Irmandade da Boa Morte são possuídas de um arcabouço de sutil resistência, que vai

desde os ritos aos segredos da religião dos Orixás. Essa persistência cultural de origem

africana se dá dentro de uma manifestação de origem católica, o que se pode traduzir

por experiência sincrética.

Foi dentro desses espaços que a comunidade negra conseguiu construir seu

espaço físico de caráter cultural legítimo dentro da sociedade, embora, por estratégia

política, solicitasse, muitas vezes, permissão ao próprio governo. O uso das práticas

religiosas de origem africana nas irmandades, com o respaldo do governo, é evidenciado

em um documento enviado a D. Maria, rainha de Portugal, em 1786, por negras

angolanas da Irmandade do Rosário da Igreja do Pelourinho, solicitando permissão para

celebrar as festas de Nossa Senhora do Rosário, com máscaras, danças e cantos na

língua africana. De fato, “foi no interior das confrarias e Irmandades que se fizeram as

assimilações e o próprio sincretismo” (BASTIDE, 1981, p.357).

Como se pode perceber, a população negra assumiu dentro dessas irmandades

um tipo de relação que lhe possibilitou também um jogo duplo: sob o manto dessas

instituições, articulou as relações sociais de integração na sociedade do branco e, ao

mesmo tempo, desenvolveu formas de preservação e sobrevivência de seus cultos, com

aparente submissão à religião católica.

As confrarias foram as primeiras associações religiosas de negros que

apareceram na cidade, criadas segundo modelo importado de Portugal, em que uma

maioria negra desenvolveu uma prática sincrética como forma de sobrevivência e

resistência cultural. Neste contexto baiano de perseguição e legitimação da Igreja


Católica, fruto do sistema escravista, as (os) negras (os) se apropriaram de táticas de

camuflagem, escondendo seus orixás atrás das máscaras dos santos católicos e

cultuavam seus ancestrais e orixás sem sofrer os mais violentos castigos. Portanto,

através do fingimento, à vista dos senhores, os negros seguiam os rituais da Igreja

Católica, mas mantinham resguardadas as crenças e os seus próprios valores de fé

(VALENTE, 1987, p.18).

Na cidade de Salvador, as confrarias ajudaram a organizar o catolicismo popular

e, ao mesmo tempo, foram impulsionadas por este catolicismo. As confrarias e

irmandades foram espaços catalisadores e de agregação de cultura da população negra.

Nelas, as tradições africanas começaram a se adaptar à nova realidade que se lhes

impunha e, desse modo, foi- lhes permitida a conservação das suas tradições,

representando, muitas vezes, ameaça social e religiosa.

1.4.4 Rebeliões, fugas e suicídios

No cenário baiano entre 1822-1826, constata-se as práticas de rebeliões negras,

tendo como causa o aumento nas importações de africanos (as), as intensificações do

trabalho, o clima de divisão entre os setores livres da população, entre outras. Os

rebeldes atuaram em várias regiões da Bahia (cidade, subúrbio, campo). Muitas vezes,

tiveram seus planos frustrados, outras vezes foram vitoriosos. Como coloca Klein

Herbert (1987, p.224s):

A capacidade de fugir do sistema através da fuga, seja por curto período ou


por períodos mais longos entre escravos urbanos ou comunidades de cor
livre, ou em comunidades fronteiriças escondidas, era essencialmente uma
válvula de escape das sociedades de plantação. As pressões internas que
normalmente se desenvolviam num regime escravo podiam ser contidas
desde que a opção da fuga estivesse disponível. Mas esta fuga era, com
freqüência, impossível, ou o pretexto era muito imediato e muito dramático.
Nestes casos, os escravos reprimiam sua violência. O resultado era a rebelião
geral. Estas rebeliões eram de muitos tipos – das mais espontâneas às mais
planejadas, de guerras estritamente raciais contra todos os brancos a ataques
complexos a elementos selecionados da classe dos senhores. Algumas
rebeliões encorajaram governos a declarar mais cedo a abolição, e uma delas
teve êxito total em todos os seus objetivos.

O número de participantes nas fugas variava muito: algumas vezes, estas

iniciativas contavam com uma quantidade significativa, outras vezes não passavam de

algumas dezenas destes. Na cidade de Salvador, em 1826, as relações escravistas e

étnicas foram impregnadas pelo espírito de audácia decorrente da tradição de

insubmissão permanente. Segundo análise sobre rebeliões de Herbert S. Klein (1987,

p.226), cabe citar que:

Às vezes estas guerras eram apenas contra os brancos, mas em outras, se


opunham também a elementos dentro da classe servil. Existiram mesmo
casos, nas sociedades escravas mais maduras, de homens livres e escravos
conspirando juntos com a esperança de formarem uma república negra e
mulata. Na maioria dos casos, a reação contra a escravização era instintiva e
baseada em crenças universais de justiça e humanidade. Em outras ocasiões,
porém, estas rebeliões evoluíam a partir de sistemas de crenças religiosas
alternativas e desenvolviam uma cosmologia elaborada, por vezes, com
matizes milenares.

As rebeliões de massa contra o sistema escravocrata eram traduzidas nas fugas

dos escravos entre os enge nhos dos senhores pobres para aqueles dos senhores mais

ricos, moradores de casas-grandes e sobrados, quase sempre mais liberais em suas

relações com os escravos e suas exigências a respeito de trabalho que aquele menos

opulento (VERGER, 1987, p.496).

Como bem atesta Clóvis Moura (1981, p.7) “a população escrava exerceu um

papel de fundamental importância como participante do processo contraditório de lutas

e reajustes que caracterizou o sistema escravista”. O fato de considerar a violência


enquanto uma categoria econômica pode-se inferir que a população escrava existiu no

sistema escravista como sujeito coletivo atuando na dinâmica social.

Na sociedade escravista o escravo e a escrava, pela sua posição no espaço social,

para dinamizá- la tiveram de negá- la, já que não lhes ofereceram possibilidades de

ascensão capaz de modificá- la. Esta necessidade é que leva essa população escrava a se

organizar em movimentos e/ou em grupos de negação ao sistema e, entre tantas outras

táticas de resistência, a prática da fuga e do suicídio. As fugas foram unidade básica de

resistência no sistema escravista, seu aspecto típico (MOURA, 1981, p.62).

Era comum a fuga de escravos (as) das casas de seus senhores na cidade,

voltando para seus antigos senhores no campo e/ou do campo para a cidade. Isto se

dava, muitas vezes, porque não se acostumavam com a nova vida que iriam ter, seja por

fidelidade ao antigo senhor (a) ou pela lembrança da vida menos sofrida dos campos.

Lá, algumas vezes, após o horário de trabalho destinado ao patrão, a comunidade

escrava podia dispor de um pequeno terreno para o cultivo de horta comunitária.

A fuga, em sua maioria, ocorria por parte dos escravos e das negras que viviam

da venda nas ruas por conta de seus senhores. Estes escravos (as) de ganho vendiam

água em barril, vendiam frutas de suas roças em tabuleiros, transportavam pessoas em

cadeiras a longa distância, vendiam pão e bolo de milho, limpavam carros,

comercializavam folhas para remédio caseiro em tabuleiro. Estas atividades, entre

outras, proporcionavam os encontros na cidade, decorrendo daí as articulações políticas

e possíveis fugas dessa população negra (VERGER, 1987, p.505).


Muitos escravizados (as), embora soubessem da existência de leis que garantiam

direito e proteção costumeira e percebendo numa mercê incondicional de seus senhores

e supervisores, usam o único recurso aberto ao comportamento arbitrário, ou seja, a fuga

e a violência, buscando refúgio nas plantações e nas matas próximas. De fato, os (as)

escravos (as) fugiam para longe da casa de seu senhor ou senhora, não importando se

suas personalidades fossem melancólicas ou alegres. Os escravos (as) fugitivos faziam

elaboradas exigências, recusando retornar ao serviço até que lhes fosse concedido mais

tempo para utilizar no seu próprio trabalho.

As fugas, associadas a arranjos informais de mediação, eram ocorrências

comuns. Quando as negociações não eram possíveis e se os termos da negociação

fossem violados, os escravos e as escravas deixavam a vizinhança da plantação e se

dirigiam para os quilombos, caracterizado fuga permanente. A população africana

recém-chegada era mais voltada às rebeliões contra seus senhores e senhoras brancas.

Entre essa raça o desequilíbrio sexual criava menos laços de famílias e laços locais

(KLEIN, 1987, p.225).

Na maioria dos casos, a revolta era espontânea e envolvia apenas um pequeno

número de escravos. O tipo mais comum de revolta registrada era, provavelmente, a de

um escravo injustiçado que matava seu senhor ou superior. Um grupo de escravos que

premeditava tal ato tentava geralmente envolver toda a plantação e também planejar

uma fuga última (KLEIN, 1987, p.225). As fugas de escravos (as) eram uma prática

cotidiana e a caça destes (as) pelos seus senhores intensa. Um (a) escravo (a) fugido (a),

mesmo após ser capturado (a) e freqüentemente castigado (a) com rigor, podia fugir

outras vezes, numa atitude destemida ou às vezes desesperada (MOTT, 1986, p.3s).
Desde muito cedo, crianças escravas desapareciam sozinhas do cativeiro. Era só

encontrar uma oportunidade, um descuido das pessoas encarregadas de vigiá- las e

começavam a perambular pelos campos ou pelas ruas das cidades. Podia tratar-se,

muitas vezes, de escapadelas efêmeras, travessuras de meninos e meninas, mas

certamente estava explícito neste ato de escapulir o desejo de liberdade (REIS, I, 1998,

p.58).

Quando uma criança negra desacompanhada despertava a desconfiança de

alguém, era apreendida, sendo muitas vezes entregue aos Inspetores de Quarteirão

quando se tratava de área urbana, ou ficava sob a guarda de quem a encontrava, até

aparecer o seu proprietário ou pessoa que provasse ser o responsável por ela. O

denunciante quase sempre visava as recompensas oferecidas pelos proprietários dos

escravos (as), no caso de informações ou captura do fujão:

No dia 14 do corrente appareceo em casa do abaixo assignado, á ladeira da


Palma, nº 104, uma criancinha de 10 a 12 anos de idade, dizendo se forra:
quem for o seu dono dirija se ao annunciante, q dando os sgnaes competentes
lhe será entregue – Luiz Olegaro Alves (BNRJ -CORREIO MERCANTIL,
1841, p.5).

Pelo juiso de Paz do 2º Distrito da Freuezia de S. Pedro Velho, se faz publico


que foi achada na loja de um sobrado onde pernoitou uma mulatinha que terá
12 annos pouco menos, a qual declara ser captiva; portanto as pessoas que se
julgarem com direito á ella compareção para lhes ser entregue com as
formalidades legaes, a qual se acha recolhida às cadeias da Relação desta
cidade. Bahia 23 de julho de 1838 (BNRJ -CORREIO MERCANTIL, 1838,
p.4).

Nos jornais eram publicados, muito freqüentemente, anúncios informando à

população sobre o desaparecimento de escravos, fossem homens, mulheres ou crianças,

o que facilitava a captura. Foi também uma prática corrente daquele que encontrasse um

escravo fugido valer-se dos jornais a fim de informar à pessoa interessada sobre o seu
paradeiro. Um (a) escravo (a) podia sozinho buscar liberdade ou acompanhado de um

ou mais parceiros.

As fugas em grupo eram realizadas por escravos de um mesmo engenho, mas

também eram realizadas por membros de uma mesma família escrava (pai, mãe, filhos,

irmãos, parentes, ou casais de escravos casados legalmente ou que mantinham relação

consensual entre parceiros afetivos). Eram, freqüentemente, denominadas de “amásios”,

“camaradas”, que juntos decidiam conquistar a liberdade. Tais fugas têm um sentido

muito especial: representavam o desejo de viver em liberdade e a liberdade incluía a

companhia dos seus (REIS, I, 1998, p.61).

Nos centros urbanos, a mobilidade escrava era maior. Isto graças ao

envolvimento afetivo de escravos (as) com libertos e livres que ali ocorria com

freqüência. Quase sempre o escravo (a) se encontrava, ocasionando uma maior

interação entre escravos (as) e não escravos (as). Além dos contatos que estabeleciam

por meio das prestações dos serviços, vendendo ou carregando coisas a mando de seus

senhores (as), a fuga, freqüentemente, se dava para promover a reunião de famílias e

amizades escravas separadas pela venda, mudança de domicilio senhorial e outras

circunstâncias. Segundo Isabel Cristina dos Reis:

As fugas, seu aspecto típico, foram unidade básica de resistência no sistema


escravista. Estas iam desde as pequenas “escapadelas” para divertimento,
prática religiosa, visita a parentes, ou encontros amorosos, à fuga definitiva,
preferencialmente um caminho sem volta, em que se buscava a construção de
uma nova vida em liberdade, fosse em quilombos, fosse misturando-se com a
população negra livre dos pequenos ou grandes centros urbanos (REIS, I,
1998, p.57).

Houve casos de pessoas que, pensando estarem, definitivamente, livres do

cativeiro, foram obrigadas a ele retornar depois de muitos anos em liberdade.


Experimentando, certamente, uma profunda desilusão ao ver acabar seus projetos e

esperança de viver em liberdade, sobretudo em família. E neste caso, houve quem

preferiu optar pelo suicídio, enquanto tática de libertação. Vejamos:

Que barbaridade! – em um desses últimos dias apparecerão em um tanque do


engenho Preguiça, cinco dos quaes se achavão amarrados. Referem-nos que
erão mãe e filhos, e contão-nos o facto pela maneira seguinte: Essa preta
homisiara-se no engenho do Brejo, quando propriedade do capitão José
Francisco de Pinho, ahi passando sempre por forra, tivera esses filhos. Agora,
porém, chegando ao seu conhecimento, que o senhor fora sabedor de achar-se
ella alli, e que de certo a viria buscar, não querendo mais sugeitar-se ao
captiveiro, manietara os filhos e os lançara a afogar no tanque, e depois se
atirara também. Accrescentão, que a preta tivera cúmplice no seu horrível
attentado, visto como os filhos já tinhão edade e forças para resistir a esse
acto contra suas existencias. A policia tendo noticia de similhante
acontecimento, para lá seguiu a proceder corpo de delicto, cujo resultado
ainda ignoramos! (DIÁRIO DA BAHIA, 1962, f.02).

Para o escravo (a), sobretudo que tinha laços familiares, não bastava liberdade

individual. Ele (a) buscava persistentemente e de variados jeitos, por meios legais,

ilícitos ou até desesperados, livrar a si e aos seus do cativeiro. O suicídio praticado por

essa preta, entre tantas mulheres negras, revela o que significava para a população negra

a impossibilidade de viver em liberdade com os seus filhos (as).

As crianças da citação anterior nasceram após a fuga de sua mãe do cativeiro.

Tendo elas sempre vivido livres, a mãe preferiu praticar suicídio coletivo a voltar,

juntamente com seus filhos (as), à condição servil. Diante de tanta humilhação e sem

demonstrar qualquer passividade, a população negra utilizou o suicídio, desde a

travessia da África para o Brasil, como forma de protesto e resistência, afirmando, com

isso, que a vida lhe pertencia e, por isto, tirava esse “privilégio” de seus donos. Muitos

escravizados (as) se deixaram morrer de tristeza e outros (as) faziam o caminho da fuga.
Na luta por liberdade, o suicídio deve ter sido o último recurso da população

escravizada, sendo freqüentes entre homens e mulheres. Geralmente, os homens

praticaram o enforcamento, enquanto que as mulheres o afogamento. As mulheres

negras escravizadas, muitas vezes, decidiram se fazer acompanhar pelos filhos,

assegurando-se de que, assim sendo, eles também estariam para todo o sempre livres

das mazelas do cativeiro, ou, quem sabe, acreditando na possibilidade de ficarem juntos

e livres na eternidade.

Na condição de negra, pobre e mulher, a escrava, não raramente, desistiu da

maternidade, visando evitar a possibilidade de viver situações como a descrita acima, de

ver a si e a seus filhos completamente sujeitos às infelicidades, conseqüente do “mal do

cativeiro”, sendo submetidos a maus-tratos e toda sorte de exploração, sem, quase

sempre, não ter a quem recorrer. Os abortos, sobretudo no século XIX, surgem em

decorrência dessa situação que constitui numa negativa de gerar filhos (as) para a

escravidão.

Cabe ressaltar que o “banzo”, espécie de tristeza profunda e saudade da África,

pátria- mãe, serviu, enquanto resistência escravista, para que muitos negros (as), em

decorrência dessa profunda tristeza, fossem acometidos (as) pela morte. Com essa

prática de “tirar a própria vida”, os (as) escravos (as) tiravam do colonizador fracassado

o direito sobre suas vidas, acreditando juntar-se aos seus parentes ancestrais africanos

na luta de transgressão, extrapolando tempo e espaço (BASTIDE, 1978, p.65).

A população negra foi marginalizada ao longo de todo um processo histórico.

Desde a escravidão ela foi alijada da riqueza que produziu. Mas, apesar da repressão
que a marginalizou, nada conseguiu eliminar suas forças de lutar pela liberdade. Mesmo

em meio à escravidão colonialista, os negros sempre demonstraram uma vitalidade que

permaneceu incubada, tornando visível, muitas vezes, através das rebeliões, dos

suicídios, fugas, dos quilombos.

A soma de todas as formas de resistência desembocou, no período escravista, em

ações concretas de busca de liberdade. A melhor expressão dessa busca foi a formação

de quilombos. E o Quilombo do Urubu fez parte desse processo de resistência e no

desejo de mudar a situação de escravidão, implantando a liberdade. O que são

quilombos? Em que consistiu a formação e o levante do quilombo do Urubu?


II. QUILOMBO DO URUBU E O LEVANTE EM 1826

O quilombo foi uma das formas que a população escrava encontrou para se

contrapor ao Brasil escravocrata do século XVI. No Brasil colônia, a formação de

quilombos foi um dos exemplos eficazes de resistência negra que surgiu como

sociedade multirracial e pluricultural, e assim perdurou por muitos anos, sob liderança

negra, representando uma alternativa à exploração e desumanização a que estava

submetida a população negra brasileira.

A democracia quilombola exerceu dentro e fora de seus limites o mais amplo

processo de liberdade com dignidade, construindo uma sociedade renovada, sem

opressão de raça, nem de gênero, na qual a exclusão do processo de desigualdade foi

uma realidade (SILVA, B, 1996, p.127).

Urubu foi o principal quilombo baiano (MOURA, 1986, p.26). Celebrar,

anualmente, a história de luta de resistência dessa comunidade quilombola, no atual

Parque São Bartolomeu, em Pirajá e arredores, se constitui uma referência de

democracia racial, de luta por dignidade e de capacidade de superação das

desigualdades.

Este capítulo trata-se de reconstruir a história de formação e de lutas de

sobrevivência do Quilombo do Urubu, que, no período das revoltas baianas e, sobretudo

na história do levante em 1826, atuou, incisivamente, contra o sistema de escravidão,


enquanto comunidade alternativa de resistência, na condição de agente histórico de

transformação social, cultural e religiosa, salvaguardando a tradição oral e o modelo de

família extensa de herança africana.

Para reconstruir, criativamente, essa história de memória subversiva e de

apropriação histórica de resistência negra atual, apresentaremos, a partir de uma

discussão teórica diversificada sobre o termo quilombo, a possibilidade de reconstrução

do conceito. Discorreremos sobre o aspecto etimológico, além de procurar responder a

questão sobre o que são quilombos na África e no Brasil. Optaremos por uma

concepção que mais se adapta à realidade do Quilombo do Urubu. A seguir,

destacaremos sua localização, sua formação histórica, sua religião, aspectos mitológicos

e uma relação entre candomblé-quilombo enquanto espaço de resistência quilombola.

Por último, reconstruiremos o levante ocorrido em 1826.

2.1 Quilombo: Problematização

O conceito de quilombo ainda é algo aberto, não se esgotando em si mesmo.

Assim como foi sua forma de adaptação no Brasil, a compreensão do conceito de

quilombo carrega em seu bojo uma gama de dinamicidade que ainda não foi explorada

amplamente pelas pessoas especialistas no assunto, e que poderá ser aprofundado se

levarmos em consideração os registros orais e a multiplicidade de situações de

aquilombamento e suas variadas conformações organizacionais.


Os registros sobre os quilombos foram produzidos com base nos textos de

militares e de autoridades coloniais que participaram diretamente da campanha de

destruição dos mesmos (PRICE, 1996, p.53). As próprias pesquisas documentais sobre

os quilombos ainda não conseguiram resolver certos impasses e contradições, e

Palmares é exemplo disso (RODRIGUES, 1988, p.80-7).

Embora muitas histórias de quilombos ainda não tenham sido escritas, houve

muito mais quilombos do que foram mencionados pela historiografia oficial e que

persistem até hoje (a exemplo, entre outros, de Lages dos Negros e Rio das Rãs, na

Bahia). No Brasil, existem quilombos com histórias e singularidades próprias. O caráter

universal dos quilombos é a variada resistência à escravidão. Portanto, partindo da

suspeita de que os poucos escritos sobre quilombos foram realizados a partir de uma

visão unilateral, patriarcal, colonial, escravista, pretendendo ser universalizante, propõe-

se, neste item, uma discussão teórica sobre a noção de quilombo, numa perspectiva

desconstrutivista.

O autor Genovese defende a equívoca tese de que “os palmarenses, ao que

parece, tentaram reconstruir uma sociedade africana em seus aspectos essenciais”

(GENOVESE, 1983, p.71). Este autor não considera o fato de que a “cultura africana” é

plural. A África é um continente que engloba povos e etnias com histórias e

constituições próprias. É, assim, uma visão etnocêntrica não levar em consideração essa

diversidade.
Ainda mais, contraditoriamente à sua referência genérica a uma “sociedade

africana”, que teria predominado os povos congo-angolanos na constituição dos

quilombos no Brasil. Entretanto, mais adiante, afirmamos que evidências fragmentárias

indicam uma organização econômica baseada na família, que seria uma instituição mais

da África Ocidental. É um equívoco desse autor em pensar que os africanos que

trouxeram a experiência dos quilombos para o Brasil não seriam capazes de aprender as

novas condições e adaptar-se criativamente ao aquilombamento.

Todos os quilombos de que se tem notícia (inclusive Palmares) não foram

construídos exclusivamente por africanos, o que já está provado pela historiografia.

Então é falsa a generalização de que “as comunidades quilombolas refletiam fortemente

a cultura dos africanos transplantados, e freqüentemente elas significavam para os

crioulos um poder hostil, estranho e culturalmente ameaçador” (GENOVESE, 1983,

p.19).

Portanto, se, do ponto de vista étnico, a experiência quilombola no Brasil

comportou africanos de diferentes regiões, negros (e negras) aqui nascidos, índios e, em

alguns casos, brancos empobrecidos descendentes, sobretudo de Portugal, é lógico que

essa composição racial teria que repercutir no tipo de organização, na cultura desses

grupos e nas estratégias de ocupação do espaço territorial.

Às novas condições raciais de conformação combinaram-se as variáveis,

envolvendo conjuntura e forças políticas e militares contrárias, no momento de se

empreender as ações. Isso que dizer que cada quilombo tem uma experiência particular
de formação, em que os mencionados fatores, e outros, foram com certeza avaliados

pelos que desejavam se aquilombar. Num quadro, de onde os africanos vinham de

diferentes regiões da África, e foram deliberadamente “misturados”, é compreensível a

associação destes com outros grupos étnicos locais, já que os quilombos no Brasil

teriam se transformado numa instituição “transcultural” (MUNANGA, 1989, p.63).

Suspeita-se, portanto, que o que até agora foi escrito sobre a história dos

quilombos no Brasil, ainda, poderá sofrer profunda modificação se o critério de seleção

dos materiais empíricos for alterado e, principalmente, se houver, da mesma forma,

alteração no enfoque dos dados selecionados. Um exemplo é a noção pretensamente

universalizante, em Clóvis Moura, de que os quilombos no Brasil foram instituições

“tribais”, fechadas, estruturadas militarmente e chefiadas por reis “despóticos” em

estado permanente de guerra, ou, como diz o autor: “Não havia trégua possível”

(MOURA, 1981, p. 87, 93, 16).

Este enfoque desconsidera justamente a multiplicidade de situações de

aquilombamento e suas variadas conformações organizacionais. Por conseqüência,

quilombo não pode ser reduzido ao que se convencionou atribuir para o modelo de

Palmares, que foi cristalizado, através dessas características apontadas por Moura, visto

que elas próprias são passíveis de questionamentos.

O processo de aquilombamento, para ter êxito em cada situação conjuntural em

que foi experimentado ou tentado, combinou variáveis, concernentes ao momento, ao

local e às forças sociais em jogo. Ou seja, não havia quilombo em geral: havia quilombo
concretamente, com história, e, portanto, singularidade própria. O seu caráter universal

foi resistência, variadíssima, à escravidão.

Partindo desse pressuposto, é discutível também a afirmação de João Reis, que

considerou que “o quilombo foi um movimento típico dos escravos”, enquanto que as

revoltas englobaram outros subalternos - escravos, livres, negros, mulatos, etc (REIS,

1996, p.15). Esta idéia unívoca dos quilombos dificulta a análise das variáveis que

formaram a sua constituição. Há situações, por exemplo, em que os quilombos se

organizaram em fazendas abandonadas ou desativadas por refluxo de preços da cana ou

algodão nos mercados mundiais. Em outros casos, tanto os escravos como outras

categorias sociais se aproveitaram dessa contingência para se aquilombarem

(ALMEIDA, 1997, p.6).

Em virtude de os quilombolas não terem produzido material escrito sobre suas

vivências e modos de constituição, o mais comum tem sido o historiador - refiro- me

àquele que considera apenas as fontes escritas - transportar para a atualidade as notícias

e conceitos produzidos pelos próprios agentes da administração colonial e imperial, que

se referiram às formações quilombolas, inclusive suas estratégias de repressão.

Para LARA (1996, p.97), o conceito de quilombo criado pelos agentes da

administração colonial sempre foi manipulado com a finalidade de preservação de seus

próprios interesses: “Trata-se de uma definição operacional, diretamente ligada ao

estabelecimento dos salários do capitão-do-mato, mas que é, sobretudo, uma definição

política”. O mesmo sentido manipulatório é observado por João Reis, ao comentar o


elevado número de habitantes atribuído a Palmares em todos os estudos clássicos sobre

esse grande quilombo:

Na década de 1670, provavelmente, para justificar diante da metrópole seu


fracasso contra o quilombo, o governador de Pernambuco Pedro de Almeida
estabeleceu a cifra de 20 mil. As mesmas razões podem ter levado um outro
governador, Francisco Brito, a declarar trinta reis (REIS, 1996, p.16).

Na introdução do livro “Frechal Terra de Preto”, Wagner Almeida faz crítica

análoga à de João Reis, ao identificar que as formulações jurídicas se baseiam numa

idéia anacrônica de quilombos, e assim foi difundida pela historiografia:

As fontes secundárias compulsadas, quer sejam de natureza científica ou


historiográfica, quer sejam produzidas a partir de disciplinas militares ou de
dis cursos triunfalistas parecem se contentar em enunciar obviamente as
características reputadas judicialmente como as mais evidentes (ALMEIDA,
1996, p.11).

Alguns historiadores modernos têm chamado a atenção para o fato de que os

relatos orais são essenciais para dirimir as dúvidas e lacunas existentes nos documentos

oficiais. Richard Price, por exemplo, alerta-nos para o fato de que o total conhecimento

histórico até aqui registrado sobre Palmares foi produzido com base nos textos de

militares e das autoridades coloniais que participaram diretamente da campanha de

destruição deste quilombo (PRICE, 1996, p.53). Importante, também, é considerar que

os registros oficiais referem-se apenas àqueles quilombos que foram atacados pelas

forças militares ou capitães-do-mato contratados. Fato constatado pelos pesquisadores

do Arquivo Público de Maranhão:

Ao estudar-se os quilombos do Maranhão como forma das mais significativas


de resistência do negro ao sistema escravista, verifica-se que as informações,
recuperadas, passíveis de uma análise mais aprofundada, provêm,
unicamente, daqueles mocambos que foram invadidos (Arquivo Público do
Maranhão, A invasão do Quilombo Limoeiro, 1878. Nota Introdutória, 1992).
A constatação do Arquivo Público do Maranhão é importante porque confirma

uma suspeita subentendida nas argumentações jurídicas atuais: os quilombos no Brasil

terão sido apenas aqueles registrados oficialmente e que foram reprimidos? Por

inferência para os que assim raciocinam, os quilombos foram um fenômeno social que,

de fato vigiu no passado sendo, devidamente, identificados pelas forças repressivas e

destruídos. Dessa forma, para acreditar nessa hipótese, as autoridades coloniais e

imperiais exerceram um controle estrito e absoluto sobre o aquilombamento no Brasil.

Esta suposição, todavia, cai por terra ao se constatar a existência, no presente, de

comunidades que descendem de quilombos, inclusive daqueles mencionados pela

historiografia oficial, o que prova a inveracidade da afirmação de que todos os

quilombos foram identificados e destruídos. Assim, o relato dos descendentes tem sido

uma válida contribuição para suprir as lacunas da documentação oficial e mesmo

alterar, por completo, as interpretações, que se acreditava definitivas.

O Quilombo do Urubu, por ser um grupo que se constituía como expressão de

insatisfação variada às restrições de liberdade, assumiu feição organizacional que levou

em conta os fatores geográficos, ecológicos e o campo de forças sociais próprio ao

momento da insubordinação e ocupação do espaço territorial.

Como bem atesta Clovis Moura, referindo-se à organização de quilombos, nem

sempre se tratava de uma decisão aleatória ou intempestiva de “fugir para o mato” e

aquilombar-se. Ele lembra que os quilombolas das cercanias de Salvador - Campinas e

Santo Amaro de Ipitanga - vinham, furtivamente, à noite, à cidade para se abastecer de


pólvora, chumbo e outros utensílios de defesa. Em outras regiões do país, a tática de luta

dos quilombos variará de acordo com certas circunstâncias e condições (MOURA,

1981, p.111-3). A antropóloga Leinad Ayer de Oliveira pondera que as transformações

sociais, que dão significado à História, dificilmente têm um começo definível, e as

datas, na compreensão dos processos históricos, têm uma função meramente didática

(OLIVEIRA, 2001, p.32).

Dessa forma, a centralização, típica característica de uma monarquia, pode ter

sido uma impressão falsa dos relatórios oficiais que observaram o quilombo por uma

ótica exclusiva dos períodos de guerra, que exigiam, certamente, a coordenação de

ações violentas. E ainda persiste porque sabemos que a Lei Áurea não elevou a

população escrava à condição de cidadã, pois toda uma hierarquia econômica se

reproduzia e ainda se reproduz na forma de uma hierarquia racial. Embora pela Le i

todos fossem cidadãos iguais, na prática e em termos ideológicos o branco continuava

sendo o paradigma da elite, do senhor, e o negro o paradigma do pobre, da ralé. E, neste

caso, é ainda preciso rever o que significou o processo abolicionista para os ne gros e as

negras, ex-escravos. Com isto, mostra que:

a data de 1888, embora seja um marco formal para os negros no Brasil, não
tem importância central no que diz respeito aos quilombos. Eles se formaram
por escravos libertos e insurretos e negros livres antes e depois da abolição.
Enquanto vigora a escravidão, os quilombos cumprem a função de abrigar as
populações negras, configurando um tipo de resistência. Finda a escravidão, e
sabemos que a Lei Áurea só vem formalizar uma realidade conquistada pelas
populações negras, uma vez que quase todos os escravos já se haviam liberto
quando da assinatura da Lei, os quilombos serão o único espaço onde muito
negro excluído pela nova ordem que se configura, poderá sobreviver física e
culturalmente. Os quilombos continuam representando a resistência negra. E,
portanto, perfeitamente lógico falar-se em quilombos mesmo após 1888
(OLIVEIRA, 2001, p.31).
O conjunto de ensaios publicados no livro “Liberdade por um fio”, sobre

diversas experiências de quilombos no Norte, Nordeste, Centro Sul e Oeste do Brasil, é

uma prova de que é possível desconstruir as visões conservadoras sobre a noção de

quilombos brasileiros enquanto uma implantação da sociedade africana em seus

aspectos essenciais: de que os quilombolas representavam para os crioulos um poder

hostil, estranho e culturalmente ameaçador; instituições tribais, fechadas, estruturadas

militarmente e chefiadas por reis “despóticos” em estado de permanente guerra;

Palmares enquanto modelo cristalizado; movimento típico de escravos; e sua formação

vista, apenas, por âmbito de guerra.

Em variados exemplos refuta-se as idéias de isolamento dos quilombos; ausência

de interação destes com a sociedade envolvente, inclusive grupos e camadas sociais não

escravizadas; incapacidade produtiva e organizacional; alheamento sobre mudanças

conjunturais e utilização de fatos eventuais para ações políticas de aquilombamento e

tantos outros elementos não observados pela historiografia oficial brasileira, incluindo a

concepção cristalizada de que os quilombos foram apenas redutos de escravos fugidos

(REIS & GOMES, 1996).

Estas revisões abrem possibilidade para novas leituras de como a população

negra (os negros – escravos e livres) utilizara-se de múltiplas formas políticas, em

alianças com outros grupos sociais, para ocupar terras, de diferentes maneiras, e, assim,

estabelecer o contraditório com o sistema escravista (GOMES, 1995, p.30 -35). Por

isto, não há um comportamento linear dos quilombolas, nem suas conformações

obedeceram a regras únicas e válidas para todos os lugares. Assim, as concepções


unidimensionais sobre os quilombos não percebem a possibilidade de homens e

mulheres negras submetidas à escravidão terem atitudes originais em diferentes

momentos da luta contra o escravismo.

Do mesmo modo, circunstâncias históricas vinculadas à defesa das comunidades

quilombolas obrigaram as lideranças locais, por alguns momentos, a centralizar as

decisões, nos períodos de guerra contra os colonizadores. Porém, isso não representava

uma regra permanente de organização, conforme constatou Richard Price em suas

pesquisas junto a alguns quilombos:

Agora sabemos, no entanto, que a real autoridade política era bem mais
dispersa do que acreditavam os brancos, existindo diversos líderes rivais de
comunidades (ou grupos de comunidade) geograficamente dispersos,
constantemente manobrando para aumentar o seu poder (PRICE, 1996, p.54).

Por analogia às influências características do sistema organizacional dos atuais

descendentes do Quilombo do Urubu, cabe, numa possível relação comportamental dos

moradores do atual bairro de Pirajá e arredores, mencionar que Eurípedes Funes

observou no Pacoval, comunidade quilombola contemporânea do Baixo Amazonas, que

o modo de vida atual do grupo tem vínculos com a tradição passada:

Origens, mas bem expressas não apenas na cor da pele de sua gente,
sobretudo na memória, nas lembranças dos velhos, de histórias contadas por
seus avós, que nos remetem sempre a um outro passado: o dos mucambos. A
história dos avós é história vivida (FUNES, 1996, p.467).

A tradição oral, desde lá, continua sendo, até hoje, uma das grandes fontes de

informações da história da África negra na diáspora, predominando o sistema de

parentesco matrilinear relacionado à descendência, ao estrato social, à sucessão e à

herança, visto que a maioria dos povos da África central praticava este sistema de
parentesco matrilinear (MUNANGA, 1989, p.61). E este modelo, no Brasil, buscou-se

se adaptar e, ao mesmo, recriar-se a partir da realidade social, política, racial

multifacetada. Portanto, a possibilidade de se conhecer melhor a organização política, e

outras características das formações quilombolas no passado, é efetiva se a pesquisa

histórica, além de compreender que o quilombo é uma experiência africana, recriada no

Brasil a partir do contexto de diversidade cultural, estender seu olhar para os

descendentes desses quilombos.

2.2 Etimologia

O termo quilombo é de origem bantu e significa habitação. A palavra é um

aportuguesamento do quibundo mutambo, “significativo de talheiro ou cameeira da

casa” (SILVA, 1995, p.32).

Segundo Munanga, quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos

de línguas bantu dos grupos lunda, ovibundo, mbundo, kongo, imbagala (kilombo,

aportuguesado: quilombo). Seu significado, no Brasil, tem a ver com alguns ramos

desses povos bantu, cujos membros foram trazidos escravizados nesta terra

(MUNANGA, 1989, p.58). Este mesmo autor observa que, no início da sua constituição

na África, entre os séculos XVI e XVII, o quilombo era uma instituição bantu,

entretanto, no decorrer da migração desse povo para várias regiões africanas, o

quilombo se transformou numa formação “transétnica”. “A história do quilombo, como

a dos povos bantu, envolveu povos das regiões diferentes entre Zaire e Angola”
(MUNANGA, 1989, p.58). É possível que Zeferina, a líder do Quilombo do Urubu,

tivesse conhecido a história de luta de resistência dos quilombos africanos.

2.3 Concepção de Quilombo

É fácil, dentro de uma imaginação criativa, identificar que quilombo foi um

fenômeno histórico essencial de resistência ao escravismo brasileiro. Em meados do

século XVI chegaram os primeiros escravizados à colônia lusitana. Nestes recuados

anos, cativos escapando de seus senhores embrenhavam-se matas e sertões adentro,

formando, ali, pequenas, médias ou grandes comunidades de produtos independentes. O

conceito de quilombo está associado ao caráter político de resistência, mas também uma

concepção de etnia. Os quilombos, inicialmente locais de esconderijo de escravos

fugidos, transformou-se em comunidade alternativa de solidariedade e de vivência

democrática, da liberdade para negros, brancos, índios, mulheres, homens, crianças,

idosos.

No Brasil, os quilombos surgiram como uma forma de luta persistente para fazer

surgir uma nova sociedade na qual, de fato, a prática da justiça e o direito à participação

fossem para os negros, as negras, índios, índias, brancos marginalizados do sistema

colonial uma realidade a ser construída (SILVA, 1987, p.21).

Era característica fundamental dos quilombos a formação de aldeia, onde a

prática da liberdade era um imperativo para sua manutenção e sobrevivência. A


organização nos quilombos tinha a finalidade de mostrar o protesto negro contra o

sistema escravista imposto sobre a raça ne gra. Mas, sobretudo, mostrar a revolta contra

os maus-tratos que sofriam todos os negros, negras, crianças, idosos, além de revelar a

busca do povo negro por um espaço próprio para celebrar a sua fé e viver os seus

costumes e de afirmar que a identidade ne gra estava sendo recuperada, após o genocídio

nos navios negreiros, nas senzalas e nos trabalhos forçados (SILVA, 1987, p.20).

O quilombo é espaço multifacetado, de alteridade, aberto, local de vivenciar a

liberdade, lugar de concretização da luta de sobrevivência e resistência escravista, de

sonho, realização e solidariedade plural. Lugar que comportou índios, africanos de

diversas regiões da África, brancos empobrecidos e ali desenvolveram uma organização

econômica baseada na família extensa de herança, sobretudo africana.

O quilombo foi uma instituição mista que se refletiu no tipo de organização, na

cultura e nas estratégias de ocupação do espaço territorial, envolvendo conjuntura e as

forças políticas e militares contrárias no momento de se empreender as ações e que se

transformou numa instituição transcultural.

O quilombo localizou-se nas matas, visto que o mato foi espaço possível de

sobrevivência de aquilombamento. Mas houve também organização em fazendas

abandonadas ou desativadas por refluxo de preços da cana de açúcar ou algodão nos

mercados mundiais. Isto beneficiou tanto escravos como outras categorias sociais que se

aproveitaram dessa contingência para se aquilombarem. Houve valorização da tradição

oral, da criança, da mulher, do idoso. No processo formativo de quilombos procurou-se,


na medida do possível, levar em conta os fatores geográficos, ecológicos e campo de

forças sociais existentes.

2.4 Quilombo na África

O quilombo na África era uma associação aberta, sem distinção de filiação e

linhagem e tinha a finalidade de resistir à longa história de escravidão africana. Com o

decorrer dos anos, o quilombo africano passou a ser uma instituição de caráter social,

política e militar, envolvendo regiões e povos pertencentes aos grupos Lunda,

Ovimbundu, Mbundu, Kongo, Imbangala (MUNANGA, 1989, p.58).

Para se tornar membro do quilombo africano era necessário passar por

submetidos e dramáticos rituais de iniciação que o retirava do âmbito protetor de sua

linhagem e o integrava como co-guerreiro, num regimento de grande pessoa

invulnerável às armas de inimigos. A pessoa iniciada tinha que ser brava e disponível

para, se preciso fosse, vagar extensamente pelo território (MUNANGA, 1989, p.60).

Na África, no século XVII, há registros de inclusão da especificidade de gênero,

traduzida na presença ativa da líder quilombola, angolana, guerreira conhecida de

Rainha Nzinga que, em resistência à ocupação portuguesa, renuncia a fé católica, “se

fazendo iniciar nos ritos da máquina de guerra que constituía o quilombo africano”

(SERRANO, 1989, p.138). De fato, Nzinga não se deu por vencida pelos portugueses

em Matamba e Angola, fundiu-se ao grupo de resistência kimbundu, submeteu-se ao


rito de iniciação de quilombo em táticas de guerras, permanecendo até sua morte ao

lado de seu povo guerreiro, quilombola na luta de resistência e de libertação negra

(SERRANO, 1989, p.139-41).

A transformação étnica sofrida pelo modelo original de quilombo, na África,

certamente repercutiria mais ainda quando da transposição da experiência para o Brasil.

Os africanos que deslocaram a experiência para o continente americano adaptaram- na às

condições aqui encontradas. Isso explica porque as formações quilombolas absorveram

índios e brancos em várias regiões, a exemplo, entre outros, do Quilombo do Urubu.

2.5 Quilombo no Brasil

No Brasil, o quilombo corresponde ao movimento de fugas de plantações e

minas, verdadeiras migrações para espaços de liberdade. O quilombo, paralela à história

da escravidão, corresponde à história de luta de resistência cotidiana da população

escrava para sobreviver, resistir e, sempre que possível, fugir do sistema colonial

escravista (BEOZZO, 1992, p.63).

Este fenômeno de escravos (as) fugidos (as) se espalhou por todo o Brasil, e boa

parte dele s conseguia manter uma vida relativamente mansa e pacífica, formando

núcleos de comunidade negra que subsistem até hoje em áreas isoladas (a exemplo das

cercanias das abandonadas minas de ouro às margens de Guaporé). Sobretudo nas


minas, se resolveu a falta de mulheres misturando-se aos grupos indígenas da região

(BEOZZO, 1992, p.64).

Até o momento, o mais conhecido exemplo de liberdade é o do Quilombo de

Palmares, que se formou na Serra da Barriga, nas matas de Alagoas. Através do registro

da luta de Zumbi se inaugurou, na historiografia oficial, uma longa história de um povo

negro que lutou e acreditou na liberdade dos oprimidos, em plena vigência da sociedade

escravista do século XVII. Como se deu o processo de formação de Palmares? Como

bem atesta Oscar Beozzo:

Os ataques holandeses ao recôncavo baiano em 1621, a ocupação de


Pernambuco a partir de 1630, desorganizou o sistema produtivo português e a
situação de guerra afrouxou a vigilância sobre o quartel de escravo. As fugas
se multiplicaram e muitos núcleos de escravos fugidos se instalaram na
região a meio caminho dos engenhos de Pernambuco e dos da Bahia. Do
litoral de Alagoas fugiam também escravos para a região serrana dos
Palmares. Os diferentes povoados de escravos fugidos formaram entre si uma
rede de apoio mútuo e de defesa. Palmares impressiona pelo número, pela
permanência ao longo de quase sete décadas (1630-1695), pela coragem e
resistência que ofereceu à repressão e às investidas de tropas despachadas de
Pernambuco, da Bahia e até de São Paulo para desbaratá-los (BEOZZO,
1992, p.64-5).

Além do quilombo de Palmares, considerado o maior e o que mais sobreviveu

aos ataques da repressão colonial, o Quilombo do Pará, entre 1820, concentrou um

número significativo de escravos (as). O Quilombo do Cabula, nos arredores de

Salvador, proporcionou, com facilidade, a fuga de escravos (as) dos engenhos para a

comunidade quilombola (SILVA, M, 1987, p.22). Outro quilombo célebre foi o de

Jabaquara, que se formou no morro em Santos, ao final da escravidão, quando se

multiplicaram as fugas das fazendas de café do oeste paulista (BEOZZO, 1992, p.65).
Os muitos quilombos brasileiros deixaram pelos caminhos as trilhas da liberdade

ainda que, muitas vezes, as fugas desembocassem na captura de muitos fugitivos, na

destruição de suas plantações, no humilhante retorno ao cativeiro sob castigos e

represálias. Mas, nem castigos, nem capitães-do-mato, nem represálias, nem cachorros

deram conta de reprimir as constantes e nunca interrompidas fugas da população negra.

Vejamos alguns quilombos brasileiros:

Em São Paulo: quilombos de Piracicaba, Itapetinga, Jundiaí, Mojiguaçu,


Jabaquara, Atibaia, Santos, Campinas, Morro de Araraquara, Aldeia de
Pinheiros, Fazenda Monjolinho. Na Bahia: quilombos do Cabula, Nossa
Senhora dos Mares, Cachoeira, Buraco do Tatu, Xiquexique, Andaraí,
Tupim, Orobó, Campos de Cachoeira, Muritiba, Maragojipe, Jaguaribe,
Jacuípe, Urubu. No Maranhão: quilombos Lagoa Amarela ou do Preto
Cosme, Turiaçu, São Benedito, Maracassumé. Em Sergipe: quilombos Vila
Nova, Laranjeiras, Engenho Brejo, Rosário, Itaporanga, Divina Pastora,
Itaberana, Capela. No Pará: quilombos de Arajás, Marajó, Gurupi, Marajubá,
Caxuí, Cametá, Alcabaça, Óbidos, Aleques. No Amapá: quilombos Mazagão,
Oiapoque-Calçone (SILVA, M, 1987, p.22).

Historicamente, com os quilombos surge um novo modo de ser, enquanto negro,

recuperando a tradição e fortalecendo o profundo gesto de fraternidade que simboliza o

“modo de ser” da comunidade negra. “Distribuídos pelos estados brasileiros, se

destacaram pela força na aglutinação dos ex-escravos (as), sob a perspectiva de

fortalecer a esperança de uma convivência entre as pessoas livres” (SILVA, M, 1987,

p.22).

2.6 Quilombo do Urubu

No período da escravidão, bandos de negros e negras de origem, sobretudo

angolana, buscam refúgio nas matas do atual Parque São Bartolomeu, dando início ao

Quilombo do Urubu. Esta população fugitiva pôde contar com a acolhida e a


solidariedade dos índios Tupinambás. Aproveitando-se da impenetrabilidade da floresta

e da fertilidade da terra, da abundância de madeira, caça, facilidade de água e meios de

defesa da região, foram-se aglomerando, reunindo os escravizados, fugitivos de um

modo geral e elementos de todas as demais etnias que se sentiam oprimidos pelo

sistema escravista, aumentando, com isto, a população desse quilombo.

A vida na Floresta Urubu era para todas as pessoas que buscavam a condição

humana, um modelo de sociedade plural e, ao mesmo tempo, igualitária aos índios,

mulatos, cafuzos, cabras, sararás, brancos, morenos e loiros. Como a proposta dos

quilombos era acabar com o sistema escravista, assim, os (as) quilombolas do Urubu

estavam sempre organizando ataques para ajudar a libertar outros negros e negras. O

Quilombo do Urubu era uma comunidade de cumplicidade de rejeitados socialmente.

Lá, como em outros quilombos, havia o amancebamento de negras com brancos e

constituição de família. A comunidade se tornou um local desejado por escravos da

região que fugiam com o objetivo de viverem no dito "paraíso" e possuírem um pedaço

de terra onde pudessem trabalhar livremente. A terra era cobiçada por fazendeiros que

pela grilagem desejavam usufruí- la, pois a mesma era fértil e já trabalhada.

2.6.1 Localização

O Quilombo do Urubu estava localizado nas imediações da lagoa do Orobu, em

Cajazeiras, na cidade de Salvador. Possuía uma estrutura baseada no culto aos ancestrais

africanos (Orixás, Nkísis ou Vodunsis). Os negros (as) escravizados (as) reuniam-se em

uma casa de candomblé, sendo dirigida por Antonio de Tal, que recebia negros (as)
forros de diversas localidades de Salvador: Queimadinho, São Caetano, Misericórdia,

entre outras (PASSOS, 1996, p.27).

Embora não se tenha encontrado registro sobre a data de origem desse quilombo,

pois a historiografia oficial enfocou, apenas, um lado dessa história de resistência negra,

parte-se da suspeita de que pelo fato de terem os quilombos surgidos a partir do século

XVI e que o relato do levante desse quilombo tenha ocorrido no século XIX, torna

possível imaginar que este, também, tenha existido num século anterior ao XIX.

O local onde abrigou o Quilombo do Urubu, durante o período de resistência

negra, recebe, hoje, o nome de Parque Metropolitano de Pirajá, contíguo ao bairro, e

possui área de 1.550 hectares. Seu valor ecológico é elevado, pois é uma das últimas

áreas verdes do Salvador. Esta floresta apresenta uma grande variedade de ambientes:

floresta ombrófila densa (Mata Atlântica, com aproximadamente 900 ha), ecossistemas

fluviais e marinhos, pântanos e manguezais; contém um subespaço de 75 ha, conhecido

como Parque São Bartolomeu (ANGEOLETTO, 2000, p.77).

Parte da Bacia do Rio do Cobre também compõe esse bioma. A Embasa

(Empresa Baiana de Águas e Saneamento) mantém uma estação de tratamento no

interior do Parque, sendo responsável pelo abastecimento diário de cerca de 110.000

pessoas. É a mais importante reserva de água potável do Subúrbio Ferroviário, de cuja

existência depende, evidentemente, a preservação do Parque. Representantes do culto

afro lutam para preservar o que consideram um local sagrado para suas práticas
religiosas, chegando, em 1982, a assinar um convênio que daria condições para que

fosse construído o tempo (ANGEOLETTO, 2000 p.78-82).

Nas proximidades da parte baixa do bairro de Pirajá localizou-se este quilombo.

O termo ‘Pirajá’ significa chuva miúda, em linguagem indígena. No século XVI, já

existiam engenhos de cana na região, onde hoje está situado o bairro de Pirajá, e foi ali

travada a batalha de Pirajá, ganha pelo exército dos libertadores em 1823. A história do

bairro é marcada pela exclusão sócio-espacial comum às periferias brasileiras. Falta de

arborização, de equipamentos de consumo coletivo, de emprego e de saneamento básico

são problemas que resistem aos anos. À segregação espacial e às carências somam-se o

grande índice de violência, prostituição, drogas, poucas opções de lazer, exclusão e

injustiça social.

2.6.2 Composição histórica

Os primeiros habitantes e usuários dessa floresta foram os índios Tupinambás,

grupo dissidente das tribos Tupi-Guarani. Este último compunha o número de um

milhão de habitantes, tornando, no século XVI, responsável pela povoação brasileira.

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, encontraram os Tupi-Guarani que,

recentemente tinham chegado na região costeira, vindos do interior da futura colônia

portuguesa. O que motivou a saída dos autóctones do local foi a crença de que o mundo

estava no fim e, por isto, migraram para a costa e, lá chegando, encontraram os

portugueses recém-chegados em terra brasileira (SERPA, 1998, p.67).


Tudo leva a crer que os Tupinambás se conformaram com a faixa de terra

encontrada na floresta do Urubu, renunciando à travessia marítima. Ainda mais,

suspeita-se que a beleza especial do lugar, com suas cachoeiras, florestas, pântanos,

morros, a fartura de recursos naturais, favorecia a pesca e a caça fartas, exercendo um

fascínio e um poder de persuasão irresistível aos "donos da terra" que, "abrindo mão" de

sua vida nômade, fincaram raízes, construindo uma grande aldeia nesta floresta. É

possível que ali os autóctones tenham achado aquilo que expresse o significado concreto

de seus mitos, ou seja, a existência de uma terra prometida, sem males.

No Brasil, a colonização aconteceu, contemporaneamente, à chegada dos

portugueses e da ordem dos jesuítas, sob a liderança do padre Manoel da Nóbrega, em

1549. A missão dos jesuítas tinha por objetivo "domesticar" e adequar os autóctones ao

sistema de dominação escravista através do discurso religioso. Os jesuítas colonizadores

julgaram os hábitos indígenas (poligamia e antropofagia, entre outros) como algo

bárbaro. E isto se tornou um pretexto para que os jesuítas fundassem aldeias dentro

daquela tribo indígena, ensinando aos autóctones os princípios do cristianismo, assim

como a indução de abandono à vida nômade. Dialeticamente, a presença dos jesuítas

funcionou como proteção aos indígenas dos futuros ataques organizados pelos

comerciantes de escravos. A luta desses padres, sobretudo contra a antropofagia, tornou

algo sem sucesso, visto que, para os Tupinambás, consumir carne humana tinha um

caráter ritualístico, algo indissociável à sua cultura (SERPA 1998, p.67-8).


Nesta ocasião, o Brasil experimentava a monocultura da cana-de-açúcar, com

seus latifundiários e engenhos que o tempo todo visavam a acumulação de riqueza. Para

essa cultura ser rentável, em conseqüência da grande quantidade de fornecimento do

produto ao mercado europeu, tornou-se necessário introduzir a mão-de-obra escrava de

origem africana (conforme capítulo anterior). Parte da floresta do Urubu serviu como

espaço para implantação dos engenhos de cana-de-açúcar e que, ainda hoje, se pode

observar ruínas de uma construção que muitos moradores do Parque afirmam ser de um

velho engenho de cana e que depois serviu para abrigar o Quilombo do Urubu.

Contrário à prática dos grandes latifundiários, nessa comunidade aberta e

liderada por uma mulher angolana de nome Zeferina, composta de pessoas idosas,

crianças, homens, mulheres, indígenas, representantes da raça negra fugitiva e dos

mestiços miseráveis e brancos empobrecidos favoráveis à libertação da escravatura,

plantava-se cana, mangueiras, jaqueiras e tudo que servisse para o consumo interno

desses ex-escravos, organizados naquela região periférica de Salvador. O excesso da

produção servia como fonte de renda, sendo partilhada com a “tribo vizinha” e trocada

por outra mercadoria. Na consciência desses quilombolas, independência e a autonomia

eram idéias que faziam parte da história de suas vidas (SERPA, 1998, p.68).

O Quilombo do Urubu possuía [e ainda possui] grande quantidade de terra fértil

à agricultura, local de ricos recursos hidrográficos, de vegetação, fauna regional, super

grau de pluviosidade, cachoeiras, contribuindo para uma boa base física nesse espaço

(FORMIGLI, 1998, p.12). Mas ainda alguns elementos de ordem social, econômica e
cultural irão contribuir para o conteúdo dinâmico da realidade desse quilombo, atual

bairro de Pirajá, que se localiza numa área bastante fértil do subúrbio baiano.

Nesta comunidade negra de resistência escravista reinava a fartura que oferecia

um vivo contraste com a perene miséria alimentar da população de Salvador, sobretudo

da primeira década do século XIX. Cabe destacar a abundância da mão-de-obra, o

trabalho cooperativo e a solidariedade social neste espaço. O Quilombo do Urubu era

uma negação do modelo econômico, político e social da estrutura escravista-

colonialista. O seu exemplo era um desafio permanente e um incentivo às lutas contra o

sistema colonial no seu conjunto.

2.6.3 Organização social

O Quilombo do Urubu, como a maioria dos quilombos, se organizou de forma

sistemática, criando uma estrutura para a comunidade. No início, quando o quilombo

era pequeno e apenas se iniciava, tinha necessidade de uma vida predatória para a sua

subsistência e continuidade. À medida que ele crescia, procurava organizar-se

internamente para poder pôr em funcionamento os grupos populacionais quilombolas,

surgindo uma forma de governo, religião, propriedade, família e economia (MOURA,

1981, p.340).

As principais atividades econômicas eram a agricultura, a agropecuária e os

serviços urbanos. Seu sistema produtivo, que conheceu uma fase basicamente
recoletora, se manteve através da caça, da pesca, dos vegetais medicinais, extração do

óleo de palmeira, cultivo e colheita de frutos como jaca, manga, laranja, fruta-pão,

coco, abacate, laranja-cravo, cajá, jenipapo, banana e outras frutas nativas, servindo

para a alimentação da comunidade autóctone e quilombola (FREITAS, 1984, p.43-44).

A caça era facilitada pela abundância de animais na região: diversos gêneros de

onça, anta, raposas, veados, pacas, cutias, coelhos, preás, tatus, tamanduás, quatis,

cobras e inúmeras outras espécies que davam base de alimentação, capaz de suprir a

população local. Além desse setor de economia simples recoletora, cabe-nos destacar o

setor artesanal que produzia cestos, pilões, tecidos, potes de argila e vasilhas de um

modo geral. Dali, também, saía grande parte do material bélico usado: facas, flechas,

arcos e outros instrumentos de guerra. Havia ainda a produção de instrumentos

musicais, cachimbos de barro, além de objetos de uso cotidiano (MOURA, 1988,

p.169).

A base do trabalho agrícola era a policultura. Plantavam principalmente o milho,

que era colhido duas vezes por ano. Depois da colheita, os quilombolas descansavam

duas semanas e em seguida plantavam ainda feijão, mandioca, batata-doce, banana e

cana-de-açúcar. Estes produtos constituíam a produção básica da agricultura local,

sendo o excedente distribuído entre os membros da comunidade, para as épocas de

festas religiosas ou lazer, tempos de guerrilhas ou trocados com vizinhos, pequenos

sitiantes e pequenos produtores, por artigos de que os autóctones e quilombolas

precisavam. A forma de cultura da terra introduzida ganhou consistência definitiva e

afirmou-se como característica social local (SERPA, 1998, p.67).


Os quilombolas em Urubu, ao repudiar o sistema latifundiário, adotam a forma

do uso útil de pequenos tratos, roçados, base econômica da família livre. A

solidariedade e a cooperação eram praticadas desde o início ali. A “sociedade livre” era

regida por leis consagradas pelos usos e costumes, não permitindo a existência de

vadios nem exploradores no quilombo, mas uma ativa fiscalização social que se forma

no meio de lutas contra formas ultrapassadas de relações de produção (MOURA, 1988,

p.179).

Nos quilombos de longa duração sempre houve menção à criança, compondo a

organização social destes núcleos de resistência. Na África, para se tornar um (uma)

quilombola era necessário que o candidato se submetesse ao rito de iniciação de caráter

religioso e militar. Neste ato de renúncia e inserção, a criança também passava por um

processo de aprendizagem e, conseqüentemente, se tornava uma pessoa conhecedora

das táticas de guerra (SERRANO, 1989, 139-41). Imagina-se que em Urubu não tenha

sido tão diferente.

De certo, embora não se tenha encontrado registro, as crianças compunham este

espaço alternativo de resistência. Não é difícil imaginar que Zeferina, a líder do

Quilombo do Urubu, tenha tido uma infância desenvolvida dentro e a partir de um

núcleo de resistência quilombola. Por analogia, podemos observar que no Quilombo de

Palmares, uma das filhas da líder Aqualtune deu- lhe um neto, portanto uma criança

quilombola, que foi o grande Zumbi dos Palmares (MOTT, 1988, p.45). Tal afirmação

possui relevância por causa do fato de que alguns quilombos não chegaram a ser
destruídos nem mesmo descobertos pelas autoridades e, sobrevivendo à abolição,

constituíram em povoados cujos habitantes mantêm-se unidos, até hoje, por laços

culturais e de parentesco (MOTT, 1988, p.43-4). Na Bahia, podemos citar o Quilombo

de Lages dos Negros e do Rio das Rãs, exemplo vivo dessa realidade.

A população deste quilombo teve o poder de celebrar a resistência através de

suas danças, suas persistentes orações e fantásticas invocações aos deuses ancestrais.

Esta população negra, como forma de levantar sua auto-estima, vestia-se imponente e

caprichosamente. Quando alguém ficava doente, os “pacientes” eram medicados com

seus próprios remédios caseiros. Estes quilombolas folgavam, comiam e se alegravam,

escandalizando e ofendendo os direitos, as leis, as ordens e o silêncio público. O

Quilombo do Urubu teve grande importância e foi conhecido por seu alto grau de

solidariedade e resistência (DUARTE, 1998, p.19-20).

2.6.4 Religião

A religião no Quilombo do Urubu se formou por um sincretismo através do qual

se fizeram presentes as crenças africanas e indígenas, acrescidas de quase nenhuma

influência do catolicismo popular (influência jesuíta). Dessa mistura de crenças surge o

culto do caboclo que, apesar de toda a sua simbologia indígena, é uma reelaboração

nacional do culto negro aos ancestrais (SODRÉ, 1988, p.57). Segundo Oliveira, o

sincretismo indo-africano é uma conseqüência do contato estreito entre os povos

indígenas e os negros Bantu, vindos de Angola e do Congo:


Chegou angoleiro no Brasil, do início ao fim do tráfico.O povo Bantu teve
desde o principio contato com o dono da terra, e ele tinha consciência de que
nem ele era o dono da terra, nem o branco. O dono da terra era o índio. E
muitas vezes o índio ajudou o negro na fuga, na formação de quilombos.
Então esse culto que ficou aos caboclos é o culto aos ancestrais indígenas e
que ficou muito forte para nós do candomblé de Angola (Oliveira apud
SERPA, 1998, p.77).

A religião nesse quilombo se compõe pela crença na divindade, sobretudo

africana, que pode se traduzir pelo termo candomblé – palavra já assimilada ao

português do Brasil, mas de origem bantu, precisamente do kimbundo, um dos falares

de Angola (LIMA, 1998, p.62). Urubu, posteriormente, foi lugar onde as pessoas aflitas

e gratificadas que, sozinhas ou em grupos, iam banhar-se nas fontes e nas cachoeiras de

cujos nomes evocam sua s crenças. Nas pedras e nas árvores consagradas a seus orixás,

seus voduns, seus encantados, seus inquices, seus caboclos “arriam ebôs”, eram

colocadas as oferendas.

O Quilombo do Urubu foi lugar tradicional da cultura indígena e afro-brasileira,

que significou [e ainda significa] espaço capaz de conferir identidade. Os atuais

quilombolas conseguiram preservar, de uma forma extraordinária, a memória de uma

origem que, em espírito, existe no atual Parque São Bartolomeu. Essa ancestralidade

está nas pessoas, na memória delas, mas também assentada em lugares na reserva

florestal (ESPINHEIRA, 1998, p.27).

A concepção teológica dessa comunidade compreendia acreditar num criador

único ou divindade suprema: Zambi, Kalunga, Lessa, Mvidie, entre outras divindades.

Esse ser criador é longínquo que, após ter criado o mundo, se distanciou dele, deixando

a administração nas mãos de seus filhos e filhas divinizadas, que são os ancestrais
fundadores de linhagens. Os espíritos desses ancestrais fazem o elo entre as pessoas e o

Deus único, criador de tudo que existe no mundo bantu (Angola, Congo, Moçambique,

Quelimane e Proto-bantu). Embora existisse um Panteão religioso estruturado,

costumava-se reduzir e simplificar as religiões bantu pelo culto dos ancestrais. E, neste

culto, o mundo é visto como um conjunto de forças hierarquizadas por uma relação de

energia ou força vital, cuja fonte é o próprio Deus criador (MUNANGA, 1989, p.62).

Na religião dos orixás presente ali, essa energia ou força vital é distribuída em

ordem decrescente aos ancestrais e defuntos que fazem parte do mundo divino,

seguindo ao mundo dos vivos, numa relação hierárquica, iniciando pelos reis, chefes de

aldeias, de linhagens, pais, mães e filhos, finalizando pelo mundo animal, vegetal e

mineral (JOAQUIM, 2001, P.78-9). E esta estrutura é, de certa forma, refletida no modo

de organização desse quilombo.

Segundo o candomblé de Angola, portanto de origem bantu, o ser humano

constitui o centro e o interesse maior de toda a obra de Deus. Neste universo, a força

vital servirá para explicar a existência da vida, da doença, da morte do sofrimento, da

depressão ou fadiga de qualquer injustiça ou fracasso, da felicidade, da riqueza da

pobreza, da miséria. A visão de mundo e as noções de “ser” e de “força” são

inseparáveis e interligadas (MUNANGA, 1989, p.62-3).

Como se pode inferir, um ser é por definição uma força; daí o caráter dinâmico

do ser e da pessoa humana. Uma força reforça ou enfraquece outra força. A relação

entre o criador e a criatura é uma constante porque o primeiro é por sua natureza
dependente do segundo quanto a sua existência e sua substância. O ser humano passa a

ser receptáculo do sagrado. Portanto, a força primogênita domina sempre a força última

e continua a exercer sua influência vital sobre ela. Todo ser humano é colocado dentro

de forças vitais, algumas mais desenvolvidas do que a sua própria força. Essas forças

mais desenvolvidas são o próprio devir, os antepassados (as), os defuntos (os) da

linhagem, da família, são as mães e os pais fe iticeiros (as), bruxas (os), etc. Essas forças

podem influenciar a vida positivamente (através da bênção da saúde, riqueza, poder,

promoção na profissão, etc), aumentando sua força vital, ou em mau sentido (doença,

morte, pobreza, insucesso na profissão, etc), diminuindo a força vital (MUNANGA,

1989, p.63).

A religião dos ancestrais tem como pano de fundo a busca da conservação e do

crescimento constante da força vital, enquanto fonte inesgotável da vida e de todas as

felicidades. Os mitos de origem africana nos ensinam que todos esses povos, hoje com

identidades diferentes, foram no início grupos criados por irmãos. Não é difícil perceber

que em Urubu:

Candomblé, nação angola, de origem bantu, adotou o panteão dos orixás


iorubás (embora os chame pelos nomes de seus esquecidos inquices
divindades bantos), assim como incorporou muitas das práticas iniciáticas da
nação queto. Sua linguagem ritual, também intraduzível, originou-se
predominantemente das línguas quimbundo e quicongo. Nessa"nação", tem
fundamental importância o culto dos caboclos, espíritos de índios,
considerados pelos antigos africanos como sendo os verdadeiros ancestrais
brasileiros, portanto os que são dignos de culto no novo território em que
foram confinados pela escravidão. O candomblé de caboclo é uma
modalidade angola centrado no culto exclusivo dos antepassados indígenas
(PRANDI, 1989, p.66).

Nesta floresta, a constituição teológica se dá pelo que se compõe o espaço, ou

seja, pelo que ele contém ou por sua identificação com o sagrado existente nesta
comunidade. Desse modo, podemos avançar mais no sentido de entender o Quilombo

do Urubu como local sagrado e de presença de rituais do candomblé ali. Segundo o

"povo de santo", na natureza tudo tem uma razão de ser. O canto da cigarra fora de hora

pode significar um sinal, bem como o piar da coruja.

O religioso contemplativo do candomblé, sobretudo angola, se fez imprimir

neste lugar de resistência, enquanto espaço capaz de conferir identidade cultural. Por

isto, o florir de uma árvore que extrapola características rotineiras pode revelar coisa

extraordinária e comum aos adeptos dessa religião. O cair de uma fruta pode significar

uma mensagem, solicitação, formulação aos não leigos. Portanto, segundo compreensão

teológica quilombola, onde existir os sinais naturais da criação, as árvores, os rios nas

suas nascentes, os lagos e a fauna em plena liberdade, aí está, harmoniosamente, as

representações do Sagrado (DUARTE, 1998, p.22).

Segundo Maria Salete Joaquim, a base do universo simbólico da religião dos

orixás é a mitologia que consiste numa fase necessária do desenvolvimento do

pensamento humano e representa a forma mais antiga de conceitualização e

conservação do universo de que temos conhecimento. Assim, a mitologia é uma

concepção da realidade que postula a contínua penetração do mundo, da experiência

cotidiana, por forças sagradas (JOAQUIM, 1998, p.41). Além dos mitos, têm-se as

lendas. A lenda da criação do mundo, contada pelos fiéis de Bessen, divindade Jêje que

os orienta e se faz representar pela Serpente ou pelo Arco-Íris, é a seguinte:

No princípio era o nada, além de Mawu-Lissa e Dan; a Serpente ou Ayudu-


Wedo. Mawu criou o universo e a terra. Dan se enrolou a terra com seu corpo
comprido, dando voltas ao redor. Daí a terra adquiriu vida e movimentos
próprios. Depois Dan se desenrolou e se transformou num arco-íris, fazendo
chover sobre a terra, criando os rios, os lagos, os mares e as florestas. Coube
a Mawu-Lissa povoar a terra com seus filhos (DUARTE, 1998, p19).

Com o processo de sincretismo, decorrente do costume e da necessidade de

perseguição, sobretudo policial e da religião católica, o povo negro fiel à religião dos

orixás sob este sistema de intolerância religiosa teve de andar escondido, camuflando

suas divindades. Neste período, foi determinado que Bessen, entidade do candomblé,

fosse identificado com São Bartolomeu, santo da Igreja Católica. Ora, feliz ou

infelizmente, os fiéis de São Bartolomeu, no mundo afro, são os fiéis a Bessen

(DUARTE, 1998, p.19-20).

Cabe-nos ressaltar que, nesta tentativa de anulação do simbólico por parte da

cultura hegemônica, na forma de imposição sincrética, de abandono administrativo e

urbanístico do atual Parque São Bartolomeu, também há, implicitamente, uma sutil

camuflagem de seu esquecimento como lugar sagrado, de luta de resistência quilombola

e de vivenciação da religiosidade afro-brasileira. Nesta floresta atlântica, o atual Parque

São Bartolomeu, pela sua composição, se identifica como local sagrado que, além de

oferecer um ambiente calmo e acolhedor ao povo de candomblé, também se identifica

como local de retiro e meditação para outras religiões. Neste local, além da cachoeira

que se destacava como monumento:

O Arco-Íris ali se mostrava e permanecia pleno de cores e de vida.


Movimentava-se entre a folhagem que pendia dos arbustos de forma tal que
envolvia o espectador em qualquer lugar que ele procurasse se esconder.
Aquilo era manifestação de Bessen aos nossos olhos. Cada árvore se portava
de modo diferente, silenciosa, como sendo porta-voz de outros Voduns,
reverenciasse aquele que, antes serpente, impulsionou o mundo e o fez
dotado de movimentos. Aquele que agora Arco-Íris iluminava e embevecia os
filhos, o produto do mundo por ele criado (DUARTE, 1998, p.20).
Urubu, além do lado contemplativo, possui, também, o seu espaço físico

evocativo, que pode se traduzir por espaço útil e reservado aos rituais do povo de

candomblé. Ainda hoje é local de várias invocações e de vários ebós e oferendas das

várias nações de santo que por ali acorrem, nas crises de emergência ou da aflição, ou

na romaria de gratidão, de reconhecimento. Lá estão as cachoeiras de Oxum e de Nanã;

a cachoeira de Oxumaré; a bacia de Oxum, que reúne as águas que descem das duas

cachoeiras, de Oxum e Nanã. A pedra de Omolu. A pedra de Tempo e o mato, igbô, que

ainda envolve tudo – mato de Ossanha, mas também de Ogun e de Ossóxi e reino

encantado dos caboclos brasileiros (LIMA, 1998, p.62).

Conforme atesta Ângelo Serpa, há predominância de terreiros no Parque São

Bartolomeu e arredores, sendo que cinco deles é angola, nos quais se constata a

presença das divindades indígenas, portanto, de culto aos caboclos (SERPA, 1998,

p.76). Muitos terreiros levavam às cachoeiras as pessoas que acabavam de ser iniciadas

na religião dos orixás para seu primeiro contato com a rua, após seu processo interno de

iniciação. Este costume teve uma longa duração até que, devido o desmatamento, a

sujeira e a insegurança de se estar nas proximidades das cachoeiras, tornou-se inviável

uma freqüência maior para tal prática ali. Por isto, no atual Parque São Bartolomeu, é de

suma relevância a defesa da flora, dos rios, das águas e a recomposição e manutenção

da fauna (DUARTE, 1998, p.18).

A religião do "povo de santo" não se resume ao espaço do terreiro: algumas

"obrigações" devem ser realizadas à margem de rios, lagos, nascentes, etc. Os orixás,

Voduns, Caboclos, Inquissis e outras divindades não vivem enclausurados, são


onipresentes. Muitos têm locais prediletos, adequados a serem cultuados. Estes espaços

que estão espalhados pela cidade são conhecidos pelo "povo de santo". A cachoeira de

Bessen ou de São Bartolomeu e adjacências representam muito para a sobrevivência da

cultura dos remanescentes do Quilombo do Urubu e da tradição religiosa afro-

descendente na cidade de Salvador (DUARTE, 1998, p.20).

O centro desse quilombo, em torno do santuário afro, foi o local onde surgiu

uma constituição teológica, consolidando um dos mais antigos terreiros de Candomblé

Angola, apoiado por todo o suporte natural composto da lagoa, de cachoeiras, das

árvores e rio. A fé nos Orixás serviu como referencial de luta de resistência à escravidão

negra. Infelizmente, hoje, a flora e a fauna desse ambiente natural vêm sofrendo

gravíssima agressão, podendo, certamente, comprometer, definitivamente, o bom

andamento dos rituais da religião do Candomblé. De fato, corre-se o risco de não poder

contar mais com a mata que abarcou o Quilombo do Urubu como reserva para o

presente e o futuro da manifestação da cultura do povo negro e habitação dos orixás.

Há um costume antigo do "povo de santo" de fazer caminhada ao santuário

sagrado. Esta prática vem sendo preservada, até nossos dias, pelos movimentos políticos

de esquerda, sobretudo da periferia. As saídas para as visitas de caráter estritamente

religioso ao Parque São Bartolomeu tinham início no final da noite. A caminhada era

acompanhada por cantos, orações aos presentes e aos deuses africanos. Ao chegar neste

local sagrado, o "povo de santo" saudava, reverentemente, os donos e as donas do lugar,

da mata, das águas, enquanto ia se acomodando para os rituais. Imagina-se o quanto


devia ser deslumbrante o encontro com o Arco-Íris de Bessen. Felizes as pessoas que

eram escolhidas a vê- lo de dentro das águas frias da cachoeira (DUARTE, 1998, p.22).

Hoje, essa caminhada possui caráter político-religioso e é retomada pelos

diversos movimentos de resistência do subúrbio, acontecendo sempre no dia 20 de

novembro, ocasião em que se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra. Neste

espaço, Zeferina, entre outras personagens negras, é invocada e revivida como

referencial de luta de transgressão pela vida e de justiça quilombola contra as atuais

táticas de exclusão negra localizadas.

Nas águas das cachoeiras de Bessen, de Oxum e de Nanã habitam os mistérios e

as forças encantadas do axé, a energia vital. Desde os primórdios, durante as

"obrigações" o "povo de santo" permanecia em pleno silêncio e completa admiração a

tudo que ocorria ao seu redor. As folhas que formam quadros, presas nos galhos, os

passarinhos que revoam e cantam em sinal de resposta às indagações do povo que ali

está. Os animais do chão daquele lugar, que tentados pelo cheiro do "nosso de comer",

se aproximam a comer conosco. Existem as pessoas que vêem os Caboclos espreitando

ou até as figuras de Oxum e Nanã (donas das águas doces) no alto das pedras

observando, ora sorrindo, ora temerosa, ou até zangada diante da rebeldia de seus filhos

e filhas naquele lugar sagrado (DUARTE, 1998, p.22).

No fim do dia, após fazer a limpeza do ambiente, o povo, encantado com o

passar do dia, se retirava daquele lugar sagrado, levando uma ansiedade coletiva de

retorno ao Parque dos Orixás. Os participantes do Candomblé sabiam que na próxima


"obrigação" ali contaria com um número maior, assim como a fé que cada um

carregava. Tal ritual aconteceu, piamente, até os anos sessenta (DUARTE, 1998, p.22).

Hoje, graças à violência, ainda acontece, mas de forma meio que parcial. Cabe ressaltar

que para os atuais quilombolas e o "povo de santo" a essência dessa cultura religiosa é

princípio e a conservação de tudo. E este lugar sagrado se constitui parte primordial de

sua essência.

Para o "povo de santo", a crença na divindade expressa por elaborados rituais,

inclusive e, sobretudo pelo sacrifício, é natural, tão entranhada em sua consciência

mítica que não necessita de termos generalizados ou indicadores de filiação ou de

origem. Estes termos são particulares de cada filiação (LIMA, 1998, p.62). Na Bahia,

ser do Candomblé vem acompanhado, a propósito, de um certo "pertencimento" à

floresta do Urubu.

O local que acolheu o Quilombo do Urubu, atual floresta de São Bartolomeu, é

local sagrado de muitas maneiras. Consagrado por tantos vários ritos. Mas, segundo

Vivaldo Costa Lima (1998, p.62), “é o ato, é o ritual que sacraliza o espaço. E isto

precisa ser lembrado quando se pensa em preservação de sítios históricos e religiosos”.

Os africanos souberam muito bem fazer isto, recriando os seus mundos, suas

esperanças, sua religião, sua cultura de resistência, sobretudo nos quilombos e nos

candomblés.

2.6.5 Mitologia: Orixás em Urubu


As religiões africanas constroem o saber místico a partir de mitos fundantes, que

explicam a criação do mundo, da natureza, dos seres humanos e suas relações. O

seguinte mito explica a origem dos orixás, que são os encantados das religiões africanas,

os que fazem a intermediação entre Deus Supremo e os seres humanos e receberam a

incumbência de governar o mundo e participar da mística enquanto referencial de

resistência na luta por constante libertação e justiça da população empobrecida em

Urubu.

Olorum, o ser supremo generoso, o criador, era inicialmente uma massa infinita

de ar que pairava sobre o abismo. Um dia, ele começou a respirar e a se movimentar.

Sua respiração criou o ar. O movimento desse ar gerou a água. Da dança da água com o

ar resultou a lama. Olorum se encantou e continuou a dançar, quando viu surgir uma

bolha vermelha linda que ia crescendo. Tanto Olorum se encantou que soprou para

dentro dela seu hálito: era seu espírito dando- lhe vida. Assim surge, desta relação

apaixonada, o primeiro vivente. Um ser em permanente expansão e movimento: Exu.

Exu – é o ser vivente individual, a força vital, o princípio de todas as coisas

criadas. Significa movimento, dinâmica, expansão, vida.

Depois de Exu, surgiram os outros orixás. Todos juntos receberam de Olorum a

incumbência de governar o mundo. Cada um dos orixás ficou responsável por um

aspecto da natureza e da vida humana. O número de orixás conhecidos pode variar de

acordo com as tradições das comunidades e de acordo com as preferências na tradição

iorubana. Nas Américas, o panteão é constituído por cerca de uma vintena de orixás
(PRANDI, 2001, p.20). Maria de Lourdes Siqueira constatou que os fundadores de

terreiros têm uma preferência por sete orixás. Todavia, há a existência de um panteão de

dezoito orixás (SIQUEIRA, 1998, p.56). Destacaremos, abaixo, apenas os que

imaginamos fazer parte da luta dos quilombolas em Urubu.

2.6.5.1 Exu (ou Legda, ou Bará, ou Eleguá)

Este orixá desempenha o papel de mensageiro, possibilitando a comunicação

entre os orixás e os humanos. Leva os pedidos de ajuda e traz as respostas. Por isso,

“despachar” significa “enviar exu”. Está sempre presente nos cultos, pois cada um dos

demais orixás depende de sua função. É o primeiro a receber as oferendas. Exu come de

todos os alimentos oferecidos aos outros orixás (PRANDI, 2001, p.21, 46, 54, 56, 60,

83).

2.6.5.2 Ogum

Este orixá recebeu de Olorum a incumbência de criar e governar o ferro e a

metalurgia. Dono da forja e de todos os utensílios, criou as ferramentas para a

agricultura e detém a chave da sobrevivência do ser humano através do trabalho. É

também dono da música e do ritmo, porque criou os instrumentos. Criou o facão para

abrir os caminhos da vida e a espada para se defender. Como forjador do ferro, é o orixá

da força, capaz de reverter situações. Seu símbolo é a espada, assumindo também a

marca de um guerreiro valente. A mitologia apresenta relatos em que Ogum, ao criar as

ferramentas, pôs fim à fome, proporcionando fartura e abundância para todas as


pessoas, e em que este orixá livra uma pessoa pobre de seus exploradores (PRANDI,

2001, p.91-100).

2.6.5.3 Oxóssi

É o senhor da caça, o orixá das matas e florestas. Recebeu o arco e a flecha para

prover a sua comunidade com alimentos. Como aquele que, no retorno de sua atividade,

colocava-se a descrever para seus irmãos e suas irmãs a caça que havia avistado e o

modo de como a aprisionara, recebeu o título de primeiro historiador do mundo. É um

orixá alegre, mas que não teme a luta. Seu mito conta que, ao caçar, viu a sua presa,

olhou-a, mediu-a, mirou e disparou contra ela a flecha certeira que acabou acertando o

seu próprio coração. É o caçador de si mesmo. Vale conferir os mitos em que Oxóssi,

diante da grande fome que assolava a terra, pôs-se a caçar e providenciar alimentos para

todos os famintos de sua tribo (PRANDI, 2001, p.118 e 125).

2.6.5.4 Ossaim (ou ossanyn)

Coube- lhe assumir o governo sobre as folhas. Cuida da mata, que guarda o

segredo das folhas. Com elas, ele soube criar todos os remédios e todas as porções

mágicas para curar as pessoas. As folhas são os elementos da natureza que, de modo

especial, contêm o axé, a força vital. Como conhecedor dos mistérios do poder curativo

das plantas e folhas, Ossaim é cultuado em todos os templos de orixá no Brasil e em

Cuba. A partir do mito em que o criador entrega a um orixá o cuidado das florestas, das

plantas, das folhas, afirma-se que a religião africana é a primeira a conferir à natureza
um caráter sagrado. Tudo é criação de Olorum e por isso cada folha, por menor que

seja, deve ser tratada com respeito. Num mito, Ossaim desobedece à ordem de

Orunmilá, de roçar o mato de suas terras para fazer uma grande plantação; nega-se a

cortar as plantas com propriedades medicinais. Num outro, este orixá recusa grandes

pagamentos pelas curas que realiza; insiste em receber apenas os honorários justos

(PRANDI, 2001, p.152).

2.6.5.5 Oxum

Mãe das águas doces. Com sua doçura tomou para si o cuidado das crianças e a

preservação das águas doces (rios, lagos, lagoas, diques, cachoeiras), sem as quais os

seres humanos não poderiam viver. Bela, é dona do ouro e da vaidade, mas também da

abundância. Preside o amor e a fertilidade. Protege a mulher grávida e está presente no

líquido uterino, onde a criança se aconchega. As crianças têm a sua proteção até que

possam caminhar e falar, quando ele as entrega aos cuidados de outro orixá.

Conta o mito que, logo que o mundo foi criado, todos os orixás vieram para a

Terra e começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles, em conciliábulos nos

quais somente os homens podiam participar. Oxum não se conformava com essa

situação. Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos: condenou

todas as mulheres à esterilidade, de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido

da fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar Olodumaré.

Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem filhos para criar nem herdeiros

para quem deixar suas posses, sem novos braços para criar novas riquezas e fazer as
guerras e sem descendentes para não deixar morrer suas memórias. Olodumaré soube,

então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os orixás a convidá- la, e às

outras mulheres, pois sem Oxum e seu poder nada poderia ir adiante. Os orixás

seguiram os sábios conselhos de Olodumaré e assim suas iniciativas voltaram a ter

sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos e filhas, e a vida na terra prosperou

(PRANDI, 2001, p.345).

2.6.5.6 Xangô

No ato da criação do universo, Xangô tornou-se o senhor do raio e do trovão. É

fogo, poderoso, majestoso e vaidoso; grande amante, tem prazer em estar rodeado de

mulheres belas. É marido de Oiá, Oba e Oxum, sendo esta última a sua preferida. Adora

festas. Seu alimento predileto é o amalá, preparado à base de quiabo. Teme e odeia a

morte. Recebeu a responsabilidade sobre a justiça que busca constantemente. Seu

símbolo é o machado de duas pedras, com o qual executa seus julgamentos,

caracterizando-se por uma postura tranqüila, mas firme. Os mitos contam histórias em

que Xangô é reconhecido como o guardião da justiça. Num episódio, derrota o monstro

que devorava homens, mulheres, pessoas idosas, adultas e crianças. Noutro, inventa o

fogo, para que os orixás e os humanos pudessem comer alimentos cozidos (PRANDI,

2001, p.245, 250, 265).

2.6.5.7 Iansã (ou Oiá)


Mulher dona dos ventos e das tempestades, Iansã se caracteriza por ser

transgressora, questionadora de todas as formas dogmáticas e ortodoxas de vida.

Protege sempre, mas desafia e afronta. Brava, arrebatadora em sua paixão, dirige a

sensualidade. Cria a música e o ritmo para possibilitar a dança, a cadência, o

encantamento. Sua alimentação é o acarajé, que significa “bolo de fogo”. Nos mitos,

Iansã conquista o mesmo poder que possuía seu companheiro Xangô, extrapolando-o

(PRANDI, 2001, p.308).

2.6.5.8 Oxalá (ou Obatalá, ou Orixanlá, ou Oxalufã ou Oxaguian)

Encabeça o panteão da criação formado por divindades que criaram o mundo

natural, a humanidade e o universo social. Oxalá é senhor absoluto do princípio da vida,

da respiração, do ar. É o ancião branco, calmo e bondoso que tem a sabedoria, rege o

conflito entre os povos e semeia a paz entre as pessoas. Inventor do pilão, usa-o para

pilar o milho branco ou esmagar o inhame e alimentar seus filhos e suas filhas. Seu

prato predileto é o acaçá e/ou à base de milho branco. Num dos mitos, Oxalá é

apresentado como aquele que criou a superfície sólida da terra, denominada Ifé, que

quer dizer “ampla morada”, na qual plantou árvores para alimentar os seres humanos.

Num outro mito, Oxalá livra a população de uma cidade da cruel mortandade de

homens, mulheres e crianças. E ainda num outro, este orixá expulsa de sua casa o filho

chamado Dinheiro, pois carrega a Morte (PRANDI, 2001, p.502, 518).

2.6.5.9 Oxumaré
Orixá do arco- íris, que cruza o céu e a terra, ligando-os. O Candomblé, assim

como as religiões africanas em geral, tem uma visão holística do cosmos: todo o

universo é uma coisa só, uma totalidade, não existindo divisões, fragmentações. O que

existe é uma diferença entre o mundo visível e o invisível. Responsável pelo equilíbrio

cósmico, Oxumaré rege a chuva, a fertilidade da terra e as boas colheitas, que afastam a

fome (PRANDI, 2001, p.398).

2.6.5.10 Nanã

Orixá dona da lama. Conta o mito que quando Olorum encarregou Oxalá de

fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o

homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer

de pau, mas a criatura ficou dura. De pedra, ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o

homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi então que

Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu

cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o

barro do fundo da lagoa onde ela morava, a lama sob as águas, que é Nanã (PRANDI,

2001, p.196).

Durante séculos, diversos grupos étnicos e de diferentes partes da África, mesmo

sob o peso da proibição oficial, foram “imprimindo” nas senzalas, nas matas, nos rios,

nos quilombos, como forma de resistência ao sistema de opressão, suas profundas

marcas de ordem cosmológicas e culturais.


O espaço físico da floresta do Urubu foi (e ainda é!) abastecido do espaço

místico e ideológico das vertentes da tradicionalidade ou da emergência próximo das

camadas historicamente mais resistentes e conscientes (REIS, 1998, p.76). O Quilombo

do Urubu foi lugar de construção e reconstrução de realidade simbólica e, neste caso, a

fé, sobretudo nos orixás, serviu como referencial de sobrevivência e de resistência

durante longo período de escravidão negra.

2.7 Relação entre Candomblé e Quilombo

O ponto de encontro dessas duas realidades consis te no conceito de terreiro. No

centro desse espaço de resistência havia um terreiro de candomblé de angola e/ou de

caboclo existente até hoje, no bairro da Mata Escura, com o nome de Bate Folha.

“Urubu foi uma tentativa de recriação, adaptada, das relações sociais angola-congolesas

na Bahia, estruturada na prática dos cultos aos ancestrais africanos no candomblé ali

instalado”. Este é o único caso descoberto, até agora, pela documentação de reações

armadas contra a escravidão baseada no culto aos Nkisis, Orixás (PASSOS, 1996, p.30).

O Candomblé é um espaço sem preconceito, acolhedor e que visa proteger toda

pessoa que acredita nos seus mistérios e que tem ligação com o terreiro e que exige das

pessoas participantes reverencia e respeito à liderança, zeladora de orixá (CARNEIRO,

1977, p.108-9).
Era desejo dos quilombolas encontrar um chão onde fosse possível, depois de

tanta opressão, viver em paz para reorganizar a vida a seu modo, ao jeito de herança

africana, assim como a memória cultural o permitia reconstruir. Um território livre, em

que uma família extensa pudesse cuidar coletivamente de suas necessidades materiais,

sociais, culturais e religiosas. O espaço do terreiro, elo de ligação entre Candomblé-

quilombo, e as comunidades remanescentes de quilombos são demonstrações do

empenho pela realização desse desejo, dentro de um contexto de pluralidade, “expressão

da continuidade cultural e religiosa da África no Brasil” (SIQUEIRA, 1998, p.176).

A população africana, “antes de vir escrava para a América, era um ser inteiro:

corpo e alma livres. Os escravistas não tinham interesse na sua alma – ou na sua cultura,

se preferir. Queriam apenas o seu corpo. A religião, a língua, a arte, a ciência, os

costumes, nada disso interessava” (SANTOS, 1985, p.8). A relação entre fé e luta de

resistência, representada na práxis teológica do quilombo-terreiro, representou para os

(as) negros (as) em Urubu a força em romper as barreiras da opressão, da ausência da

dignidade, da negação da vida e luta por justiça.

A convivênc ia no espaço do terreiro, elo de ligação entre Candomblé-quilombo,

conferia poder de resistência aos quilombolas. Essa força reunida de homens, mulheres,

crianças, idosos, jovens não deixou suas almas se abaterem diante da monstruosidade de

um regime baseado na coisificação de pessoas humanas. A fé era um elemento relevante

na luta do dia a dia ali.


Urubu representou a resistência em garantir a condição humana que a escravidão

negou à raça, sobretudo negra. Essa força que saía das entranhas, de homens e mulheres,

crianças negras, como grito de liberdade, configurada em ação de fuga em busca de um

lugar que lhes assegurassem aproximação de uma vida digna e que pudessem orgulhar-

se do seu porte físico, da sua cultura, além de uma força física, exigia todo aparato de

resistência espiritual, resguardada pela religiosidade que fortalecia seus espíritos para

lutar contra toda negação de humanidade.

No imaginário dos remanescentes quilombolas há uma lenda sobre o urubu,

enquanto pássaro que embeleza, ainda hoje, esta floresta e que deu nome ao quilombo

em questão. Conta-se, os mais antigos, que no momento agonizante de luta de

resistência dos quilombolas em Urubu, o povo de candomblé, em transe, invocava esse

pássaro preto, que possuía poder místico, despachando-o até a África. A rapidez do

urubu fazia com que, num longo e rápido vôo, levasse até a África os clamores, as

orações e os pedidos de ajuda, de misericórdia junto aos seus ancestrais divinizados.

Nesta dinâmica que transcendia um tempo lógico, o urubu trazia as respostas das

súplicas, os axés da terra- mãe, conferindo-o poder às muitas lutas de transgressão em

prol da vida.

Esse “pássaro correio” abria os caminhos, despachava as tristezas e invocava os

guerreiros (as) africanos (as) à luta de sobrevivência, alimentando o sonho de liberdade

e fortalecendo, com isto, a comunidade daquele quilombo de um grande terreiro. O

urubu além do movimento de significação simbólica de resistência servia (e ainda

serve!) para limpar as carniças humanas e animais daquele ambiente. Se pode,


analogamente, relacionar as características de exu (dinâmica, movimento, expansão,

vida) com que são atribuídas ao urubu na lenda, salvaguardada pelo “povo de santo” até

hoje.

A solidariedade, atributo que compunha a base de sustentação dessa comunidade

quilombo-candomblé, era algo que estava profundamente ligado com a força vital do

axé, cujos princípios fundamentais estão [e são] na própria natureza. O mato da floresta

Urubu, elemento vegetal, assim como os minerais e os animais serviram como lugar de

sobrevivência e resistência ativa ao sistema de exclusão colonialista que imperou sobre

os quilombolas.

As práticas místicas de solidariedades presentes neste espaço plural de

resistência eram decorrentes das lições aprendidas naquele cotidiano, onde a lógica do

uso coletivo da terra estendia na partilha do grão, da água, no trabalho cooperativo em

multidões, nas organizações políticas, nas festividades pela fartura do alimento que a

terra produzia, nas constantes resistências.

Nos terreiros se procura, dentro de uma realidade cultural multifacetada,

reproduzir o modo de vida africano. As frentes das casas desses espaços tornam-se

espaços de encontro e de convivência das famílias, dos vizinhos, das crianças, da

juventude, onde se costuma reunir para descansar, dialogar e se informar das novidades,

dos fuxicos etc. Quase tudo iniciava num grande terreiro, fosse terreiro de frente das

casas ou de Candomblé. E essa prática ainda é comum nos subúrbios e interiores

baianos.
O Nordeste herdou fortemente essa prática. É possível que tal herança seja

advinha do fato de que nesta região concentra-se maior número da população de origem

africana, portanto negra. No período junino, os terreiros transformam-se em lugares

onde se celebra, às noites, as festas de Santo Antonio, de João e de São Pedro, ocasião

em que, em volta de uma grande fogueira, vestido a caráter, se come (entre outros

alimentos típicos da região) milho e batata assada na brasa e se bebe muito licor. Ao

som de fogos e de muita música festiva regional (mais especificamente o forró), após

uma dança realiza-se batizado entre as pessoas ali presentes.

Nesta celebração é retomado um tipo de compromisso simbólico que fez parte

do período da escravidão. A figura do padrinho, da madrinha, afilhado e da afilhada

aumenta os laços de parentesco, de tal modo que de simbólico vira real no cotidiano da

comunidade, formando, dessa forma, uma nova família. Esse compromisso que surge ao

pular da fogueira é respeitado por toda a existência desse grupo.

Dentro das casas dos terreiros, sendo ela de Candomblé ou não, os adeptos de

uma religião sincrética, antes de reviverem as festas das colheitas em frente dos terreiros

das casas, fazem rezas e orações para os santos e/ou orixás “aniversariantes”. O terreiro

era (e ainda é!) o espaço onde as pessoas vivenciam momentos em família. Todos se

conhecem nominalmente: lugar comum de recriação de valores e simbólicos. Essa

realidade está presente, hoje, no bairro de Pirajá e arredores, na capital, estendendo-se

por toda a cultura no interior baiano, seja nos quilombos, nos candomblés e nas famílias

extensas.
O terreiro é lugar de festas religiosas das famílias extensas. Espaço de

celebração das lutas do cotidiano. Lugar de unificação entre quilombo e candomblé,

conferindo poder de resistência física e espiritual à comunidade escravizada. Lugar

idealizado, consagrado. O quilombo e o candomblé foram um dos principais focos de

resistência da raça negra na sociedade brasileira. Construiu-se um espaço de

preservação das tradições e afirmação da sua identidade e a “mulher de santo” foi o

elemento fundamental nesse processo (Martins apud JOAQUIM, 2001, p.44).

O Quilombo do Urubu foi uma revolta religiosa contra a escravidão negra e que

buscou na fé e na história de seus antepassados e ancestrais seu maior referencial de luta

de resistência. Por isto, a fé nos orixás, no interior dos atuais terreiros, sobretudo angola

e localizados na região onde abrigou o Quilombo do Urubu e arredores, tem sido uma

continuidade cultural africana, recriada dentro de uma dinamicidade, a partir da

sociedade brasileira, salvaguardando em sua organização uma base de família negra

africana extensa.

2.8 Levante do Urubu em 1826

O Levante do Urubu se insere no contexto das revoltas baianas entre 1807-1835.

Neste período, a cidade de Salvador torna-se cenário de inúmeras revoltas e rebeliões

contra o sistema escravista, e as que mais se destacaram foram as rebeliões de 1807, de

1809, 1810, 1814, 1816; os incidentes, levantes de 1822 e 1826 em Urubu; as rebeliões

de 1827, 1828, 1830, culminando com a Revolta de Malês, em 1835 (VERGER, 1987,

p.329-341).
O Levante do Urubu foi um enfrentamento dos (as) negros (as) aquilombados

(as) nas matas de Pirajá contra ataque das tropas policiais, quando um grupo de escravos

fugitivos levava alimento para outro grupo de quilombola situado na periferia da cidade.

Na periferia de Salvador, 17 de dezembro de 1826, uma tropa de 30 homens, com a

suspeita de que os quilombolas planejavam uma revolução, unindo-se aos nagôs da

cidade, seguem em direção às matas do Urubu, no Sítio Cajazeiras, com objetivo de

destruir um quilombo (FRISOTTI, 1992, p.99).

Que significado os liberais atribuíam aos levantes e às revoltas? “Viam nas

insurreições dos negros uma revolta nobre de seres oprimidos contra a usurpação de sua

liberdade, que eles reivindicavam por este corajoso e heróico exemplo” (VERGER,

1987, p.330).

O elemento religioso foi algo fortemente presente nas revoltas sociais

(BASTIDE, 1971, p.145). Costumeiramente, a população negra, urbana e rural juntava-

se para reivindicar melhores condições de vida. Tratava-se, portanto, de um protesto

sociorracial por melhores condições de vida (VERGER, 1987, p.330). A líder do

quilombo do Urubu, inconformada com a exclusão social de seu povo escravizado e

com o entusiasmo originário da fé em seus orixás e, no sonho de liberdade, liderou o

levante de 1826.

A guerra de independência do Brasil, em 1822, pôde contar com significativa

participação popular, com a presença de escravos e libertos nos combates. Este foi um

movimento de grandes esperanças e de intensa atividade política das camadas


populares. Entretanto, a política de D. Pedro I ocasionou muitas desilusões, ficando

evidenciado, sobretudo para este grupo, que a mudança do estatuto político do país não

mudaria em nada a ordem social. Os poderosos eram os mesmos de sempre e não

alterariam os fundamentos de uma sociedade caracteristicamente escravista e patriarcal

(SILVEIRA, 2000, p.99).

Em 1824, a reforma institucional tentou apaziguar absolutismo com liberalismo

e, de forma sofisticada, manteve a escravidão, gerando uma situação de desesperança

para a população afro-brasileira. O catolicismo continuava a ser a religião oficial, com

tolerância ao protestantismo. Portanto, a religião dos afro-descendentes ainda viviam na

marginalidade.

Nesta época, em que a produção econômica se estruturava na grande

propriedade, monocultura, mão-de-obra escrava, dependência do capital externo, na

comercialização e reprodução econômica, na preservação dos privilégios das castas e a

valorização da pele branca, a cidade de Salvador assiste a vários levantamentos

populares. Não tardou para aparecer neste cenário mais uma insurreição negra. Foi

assim que, na madrugada de 17 de dezembro de 1826, nas imediações de Pirajá, os

quilombolas de Urubu “cometeram as maiores e mais perversas tropelias. Nas investidas

que fazia a tropa, encontrou um capitão de assaltos e mais dois crioulos gravemente

feridos pelos negros que se achavam na baixa do Urubu” (FERREIRA, J, 1903, p.95).
O coronel Francisco da Costa Branco, após suspeita de que os capitães-do-mato

Antonio Neves e José Corrêa foram assassinados pelos quilombolas de Urubu, comanda

20 soldados do Batalhão Pirajá que se juntam com mais 12 soldados e um cabo da

Divisão Militar, chefiados por José Baltazar da Silveira, dirigem-se para o Quilombo do

Urubu a fim de travarem guerra contra estes quilombolas. Entretanto, os quilombolas

foram avisados pelos vigias, dando tempo de se organizarem para o levante.

Aproximadamente, 50 quilombolas enfrentaram os soldados somente com facas, facões,

lazarinas, lanças e mais outros instrumentos curtos (PEDREIRA, 1993, p.2).

De fato, alguns capitães-do-mato já tinham tentado tomar o quilombo de assalto

e, inicialmente, foram derrotados. Com essa acusação do capitão-do-mato à polícia e da

Divisão Militar, de que este quilombo arquitetava uma revolução, ainda, no final desse

ano, forças militares e de cavalaria foram enviadas ao quilombo. Após uma longa e

violenta batalha, os escravos foram derrotados, mas muitos conseguiram fugir por

dentro da Mata Atlântica (VERGER, 1987, p.337).

Este levante foi liderado pela líder Zeferina, que lutou com armas de fogo, arco e

flechas. Os registros policiais afirmam que eram 50 negros e algumas pretas contra mais

de 200 homens armados com armas de fogo e cavalos e, mesmo assim, só conseguiram

prender um homem e uma mulher (FRISOTTI, 1992, p.99-100).

Depois de algumas resistências, ferimentos e mortes dos negros em combates

contra os invasores, em 1826, a expedição comandada pelo general francês Labatut

provocou uma chacina significativa na história desse quilombo: foram apreendidos


vários objetos de cultos do Candomblé, expressando bem a discriminação, sobretudo

religiosa que estes habitantes da floresta Urubu sofriam. Alguns integrantes do

quilombo foram aprisionados, entre eles escravos, forros e as principais lideranças

quilombolas. Os pretos que foram encontrados nestes quilombos foram levados ao

arsenal a fim de serem empregados nas obras reais e as mulheres enviadas às cadeias da

cidade, ficando sob a responsabilidade e destino do desembargador ouvidor geral do

crime de devassa (NASCIMENTO, apud SERPA, 1998, p.68).

Durante a luta, havia o grito de guerra: “Morra branco! Mata, mata!”. Segundo

o depoimento do comandante das tropas, Zeferina enfrentou os soldados, armada apenas

de arco e flechas; durante a luta, teve um comportamento de um verdadeiro líder,

animando os guerreiros quilombolas, insistindo para que não se dispersassem, muito

menos recuassem. Ela, sendo presa por vários soldados, foi última a desistir. O

presidente da província, maior autoridade da época na Bahia, reconheceu nela

capacidade, chamando-a de rainha (REIS, 1986, p.75).

Segue abaixo lista de no mes de quilombolas, segundo material colhido nos

registros policiais pelo historiador Valter de Oliveira Passos, por ocasião do levante em

1826, além das que fugiram, incluindo crianças, idosos, homens e mulheres, jovens e as

diversas raças que ali compunha aquele quilombo.

Antonio – pai de santo do candomblé, atual Bate Folha, Conrado, Camilo,


André, Roque Paulo, Fabé, Vitório, Rafael, Mathias, Inácio, Vicente e
Antonio, escravos do padre; Luís Dias, Caetano, José, Geraldo, Antonio Soca
e negro vestido de crioula com saia e renda no pescoço. Joaquim Duarte,
Thomas José, Miguel Valentim, Critovão Vieira, Germano, João Bertolomes
Gonçalves, Manuel, Pedro e Júlio Gonçalves de Moraes. Claudina, Angélica,
Joanna, Angélica, Joseja, Maria, Roza, Adelácia, Esperança, Efigênia,
Ignácia, Maria, Joanna, Raquel, Zeferina – a rainha, líder do quilombo,
Adriana Pires, Joaquina Rodrigues, Maria Feliz, Maria de Santa Isabel,
Leonor de Deus e Andreza, entre outros quilombolas (PASSOS, 1996, p.29).

Ainda nos elementos que compunha o Candomblé Angola e que foram

aprendidos pela polícia na ocasião do levante, há uma forte predominância do vermelho

encarnado, o que nos leva a suspeitar que este terreiro fosse regido pelos orixás Iansã e

Xangô (JOAQUIM, 2001, p.92), enquanto elemento religioso destes quilombolas.

Tabaques, duas vasilhas armadas com piaçaba; chapéu de sol grande coberto
com panos de cores diferentes, tendo uma figura com chifre; um ferro de
ponta com 4 palmas e meio de cumprimento; uma patrona de couro cru com
8 cartuchos de pólvora dentro de um pão; algumas figuras de madeira, um
caixão com vários artífices como que possuidores de ventura. Um balaio com
vários búzios enfeitados, uma cauda de cavalo enfeitada, pão com espigão de
ferro na ponta, uma coroa encarnada, um vestido de veludo encarnado, um
pau com bandeiras de papelão encarnado, um chapéu encarnado com três
pontas, uma manta de tonquim encarnado, paus com bandeiras de papelão
verde, branco com fitas encarnadas, chocalhos, cascavéis, paus pequenos
pintados de encarnado enfeitados com fitas, coroas de papelão com alguns
enfeites de búzios, contas de vidros de diferentes cores, mesas de varas
pintadas forrada com um colchão de damasco, pratos, coroas e vestimentas
(Passos, 1996, p.29-30).

É possível imagina r que os que resistiram aos ataques militares tenham se

reencontrado no candomblé do Bate Folha, no bairro da Mata Escura, reconstituindo,

assim, os laços de família extensa, a preservação dessa história de luta de resistência

através da tradição oral, da prática de solidariedade e do segredo do axé.

Este fato não caiu no silêncio histórico; ao contrário, fez acordar no subúrbio

desta capital e dentro do mato de que toda ela era cercada inumeráveis ajuntamentos de

quilombolas que, imbuídos pelo desejo de absoluta liberdade, lutavam contra a

escravidão. Esse marco histórico de resistência negra é presente, hoje, no imaginário da

comunidade de Pirajá e arredores enquanto memória subversiva de resistência. Este

episódio também é celebrado, anualmente, quando se comemora também o aniversário


da imortalidade de Zumbi, na caminhada do 20 de Novembro, onde se invoca o poder

que Zeferina e outras tantas e tantos tiveram neste espaço “ainda sagrado para as

pessoas da luta atual” (LIMA, 1998, p.57-8).

A mata do Urubu foi um espaço onde a comunidade negra pôde, realmente, ser

negra. Ela foi negra no seu jeito de se organizar, na sua maneira de lutar, na sua forma

de invocar seus nkisis, seus orixás, seus ancestrais e seus antepassados (as), sobretudo

africanos. E é dessa experiência que foi transformado em um lugar sagrado a partir da

prática (VALDINA, apud SERPA, 1998, p.68).

Em 17 de dezembro de 1826 aconteceu o Levante em Urubu, data em que se

pode comemorar, sobretudo em Matamba e Angola, na África, o “dia da imortalidade”

da líder quilombola, Rainha Nzinga. No Quilombo do Urubu, atual Parque São

Bartolomeu, a comunidade do subúrbio celebra, anualmente, a luta de resistência desse

quilombo, evidenciando a atuação de Zeferina como referencial de herança de

resistência negra. Portanto, rememorar essa tradição de resistência quilombola, trazendo

a mulher negra para o centro da discussão, constitui, a partir do subúrbio de Salvador,

aquilo que evidencia a novidade dessa reconstrução histórica.


III. O PODER DE ZEFERINA NO QUILOMBO DO URUBU

Na cultura brasileira e, sobretudo nordestina, as mulheres de tradição africana,

do campo e das periferias, são depositárias de poderes extraordinários. Os dons que

essas mulheres expressam através de seu poder escapam das análises racionalistas e se

impõem como autoridades no meio das massas empobrecidas (GEBARA, 1991, p.6). E

é nesta tradição de poder que surge Zeferina. Mas, quem foi essa mulher? Que tipo de

poder exerceu? De onde esse poder se originou? Até que ponto esse poder foi um

elemento que facilitou na luta em Urubu?

Na atualidade, a história de poder de Zeferina no Quilombo do Urubu,

legitimado no confronto com os policiais, que ocorreu em 1826, tem sido reconstruída

pelos moradores do subúrbio de Salvador, enquanto referencial de poder de resistência

criativa às muitas práticas de exclusão social de herança imperialista, racista, sexista,

patriarcal.

Hoje, assim como no passado, as práticas de exclusão social neste subúrbio

atingem mais diretamente as mulheres negras, expressas até na localização de suas

moradias. Mas são essas mulheres excluídas pela sua condição de gênero, pela sua raça,

pela sua condição social, pela localização residencial, pelo seu baixo nível educacional e

pela prática de espiritualid ade de origem africana que buscam reconstruir, com a

participação efetiva dos homens, jovens e crianças, a história de resistência de seu povo,

a partir do resgate criativo do poder e atuação de Zeferina. Ela foi a mulher que teve
poder de desenvolver práticas de enfrentamento, resistência, transgressão e de superação

alternativa ao sistema escravista a partir de sua liderança no Quilombo do Urubu.

A história de Zeferina se constitui num referencial de luta de resistência

escravista, que foi salvaguardada pela tradição oral, sobretudo nos espaços de atuação

das “mulheres de santo”, e é revivida no imaginário da comunidade de Pirajá e

arredores enquanto elemento que confere elevação da auto-estima das pessoas

moradoras neste subúrbio, assim como, das gerações vindouras.

O levante de 17 de dezembro de 1826 é fortemente rememorado no ato da

celebração anual do 20 de Novembro - Dia Nacional da Consciência Negra.

Criativamente ali, em parceria com a celebração do Dia da Imortalidade de Zumbi, a

população negra de herança guerreira recupera a memória de luta da líder do Quilombo

do Urubu, ressignificando a luta de resistência negra contra as práticas excludentes

dentro de uma especificidade de gênero localizada.

Como atesta a tradição oral, a líder Zeferina teve participação efetiva na luta de

resistência escravista colonial. A história dessa guerreira e quilombola é algo vivo no

imaginário da comunidade local, que tem o poder de registrar a memória de luta desse

quilombo representado por Zeferina como lembrança de uma herança subversiva e de

um referencial de superação das injustiças e exclusões sociais atuais. Mas, até agora,

essa história de luta foi apenas incluída nas entrelinhas da historiografia oficial e é
superficialmente mencionada pelos historiadores comprometidos com as questões

raciais.

A história de luta dos quilombolas em Urubu não aconteceu no vazio. Ainda

hoje, ela está viva na memória individual e coletiva do bairro de Pirajá e arredores.

Graças ao poder da história oral, o registro de luta dos quilombolas em Urubu,

protagonizada pela atuação da líder Zeferina, tem sido importante fator na reconstrução

histórica político-social, sobretudo para as gerações atuais, que já ultrapassa a quarta

geração e as vindouras.

Entretanto, a falta de significativo registro desse marco histórico torna-se numa

dificuldade na elaboração desse capítulo, além de não serem claras as informações

sobre o Levante de Urubu nos textos oficiais. A destruição quase total dessa

comunidade, por ocasião do levante em 1826, apagou também muitos fatos. Esse

“apagamento histórico” impede uma apuração mais consistente a respeito da

organização de poder e da líder nesse espaço de resistência negra.

Mas, persistindo no desejo de devolver essa reconstrução histórica para a

população negra do subúrbio soteropolitano, escrita na ótica dos verdadeiros sujeitos da

resistência escravista enquanto sistematização de aspecto de uma memória de tradição

guerreira e quilombola, tem-se um forte objetivo de salvaguardar esse retalho de muitas

histórias e contribuir por meio desse trabalho científico.


Por isto, a elaboração deste capítulo parte do pressuposto de que a luta é mais

importante do que o texto; de que todo texto é, intencionalmente, escrito com a

finalidade de defender a luta de um povo; de que todo texto é resultado de uma luta

ideológica; de que a luta dos quilombolas em Urubu, representada pela liderança local,

foi a favor da vida do seu povo escravizado; de que essa história foi parcialmente

mencionada nos registros dos dominadores colonialistas e superficialmente visitada

pelos historiadores comprometidos com as questões raciais; de que tudo tem uma

história que pode ser reconstruída e de que essa história urge por ser escrita na

perspectiva dos quilombolas em Urubu.

Prosseguindo, para reconstruir esse capítulo dentro de uma imaginação criativa,

e respondendo às questões relativas à identidade de Zeferina, ao tipo de poder exercido,

sua organização e importância desse poder em Urubu, desenvolveremos uma breve

conceituação de poder, e nos aproximaremos de alguns aspectos do sistema matrilinear

de Angola, a fim de enraizá- la enquanto herança e formação cultural a partir daí. Além

de inseri- la enquanto possuída de um poder oriundo do conhecimento histórico e de

ancestralidade, buscaremos reconstruir seu poder na tradição de lideranças quilombolas

guerreiras, que vai da rainha Nzinga, em Angola, até às “anônimas brasileiras”.

Ainda mais, para reconstruir a organização de poder em Urubu partimos do

pressuposto de que a matriz de organização de quilombo, no Brasil, foi transplantada de

algumas regiões do continente africano e que se adaptou, de forma criativa, ao contexto

de pluralidade local (MUNANGA, 1989, p.62). Não é difícil imaginar que a estrutura

organizacional do Quilombo do Urubu tenha sido transplantada de Angola, sobretudo


dos povos Kimbundu4 , sendo, criativamente, transplantada pelos quilombolas ali e para

outros espaços de resistência quilombola, a exemplo do Quilombo de Palmares.

Neste caso, também, nos apoiaremos, analogamente, em textos, sobretudo

aqueles escritos por Clóvis Moura, que menciona a organização do Quilombo de

Palmares. Assim procederemos respaldados no fato de que o Quilombo de Palmares era

nordestino, de característica agrícola, por ser o mais conhecido e pesquisado pelos

especialistas do assunto e que contou com a liderança das mulheres negras Agualtune e

Dandara. Ainda que essas lideranças quilombolas sejam ainda superficialmente

incluídas nas entrelinhas de escritores comprometidos em escrever a história dos

quilombolas na perspectiva da comunidade excluída.

Portanto, a elaboração desse capítulo sobre o poder de Zeferina no Quilombo do

Urubu, na verdade, é uma reconstrução histórica e político-social dessa comunidade

quilombola. E esta tarefa só será possível a partir da leitura, com imaginação criativa e

algumas suspeitas, dos textos patriarcais que mencionam a história desse quilombo e de

suas entrelinhas, tentando desconstruir visões essencialistas sobre a atuação dessa

mulher, líder quilombola. De outra forma, seria quase que impossível reconstruir

historicamente o poder dos negros em Urubu a partir da atuação da líder Zeferina. Mas,

quem foi Zeferina?

3.1. Identidade de Zeferina

4
Sobre os povos Kimbundu vide PEGADO, Ana Maria. In: Revista Angolana de Cultura Mensagem 5.
Portugal: Editorial Caminho, 1990, p.3-9.
A identidade de Zeferina tem sido resgatada nas bocas dos (as) militantes

políticos da resistência do subúrbio baiano. Sobretudo nos terreiros, a identidade dessa

líder guerreira foi salvaguardada e, hoje, essa história de luta contra o sistema escravista

travada em 1826 no Quilombo do Urubu é relembrada enquanto elemento que confere

poder e reconstrução de identidade individual e coletiva dos atuais quilombolas a partir

de suas origens guerreiras e de ancestralidade.

No dia 20 de novembro, acontece, em celebração ao Dia Nacional da

Consciência Negra, o Arrastão Zumbi, da Suburbana até o Parque São Bartolomeu.

Neste dia, celebra-se a imortalidade de Zumbi e o espírito guerreiro de Zeferina, a líder

quilombola, é invocado enquanto referencial na luta de resistência, e todos os

participantes exigem reparação na saúde, educação, atitudes contra a discriminação de

ordem racial, de gênero enquanto direito, dos cidadãos negros brasileiros.

Mas, o que o Dia Nacional da Consciência Negra tem a ver com a luta de

Zeferina? Do ponto de vista histórico, sabe-se que esse dia refere-se à morte do grande

herói Zumbi de Palmares. Por isto, acredita-se que a comunidade afro-descendente da

Suburbana tem ligação direta com tais festividades, e, em se tratando de uma heroína

como Zeferina, essa identificação é mais forte ainda.

No Arrastão Zumbi da Suburbana, Zeferina é vista como a líder negra que se

destacou na organização de lutas em defesa da comunidade quilombola e é convocada a

alimentar a caminhada atual. O Arrastão Zumbi representa um elo histórico e político

que nos une à África e à diáspora negra. Zumbi, Zeferina, Luiza Mahin, os

revolucionários de Búzios, os Malês, os negreiros e suas sacerdotisas e sacerdotes, os


blocos afro e suas lideranças - os quilombolas de hoje e de ontem - são a base de nossa

resistência negra.

No bairro de Pirajá e arredores, celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra, a

partir da rememoração da luta de Zumbi, de Zeferina e tantas outras pessoas negras que

lutaram pela libertação e respeito aos seus direitos se constitui num momento de

reafirmação de uma consciência negra, valorização de talentos da juventude suburbana,

promoção da auto-estima e ocasião de denúncias contra qualquer distinção, exclusão,

restrições ou preferências baseadas na raça, cor e descendência.

O Arrastão Zumbi faz um trajeto que vai do bairro de Escada (Suburbana) ao

Parque São Bartolomeu, área de localização de um antigo quilombo conhecido pelo

nome de Urubu, que contou com a liderança de Zeferina e tem sua história marcada por

resistências às várias tentativas de destruição por ordens do Estado baiano (início do

século XIX).

O Arrastão do 20 de Novembro é o ponto alto da comemoração ao Dia Nacional

de Consciência Negra, mas, excepcionalmente, no ano de 2002, aconteceu em 21 de

março, em atenção ao dia que marca a Luta Internacional pela Eliminação da

Discriminação Racial. A organização do evento tem a participação dos Agentes de

Pastoral Negros - APN’s de Salvador, do Mocambo Dandara, do Grupo Cultural Malês,

do Movimento Artístico Capoeira de Raízes, do Grupo Pastoral, das Igrejas

Presbiterianas Unidas e Católicas, da Associação Quilombo Zeferina, do Partido dos

Trabalhadores - PT, do Grupo de Sacerdotisas do Parque, das escolas públicas, dos

grupos ecológicos do Parque São Bartolomeu, dos estudantes universitários, do Pré-


Vestibular Quilombo do Urubu, de cantores, políticos, lideranças religiosas e outras

representações.

Partindo do pressuposto de que no imaginário da comunidade de Pirajá e

arredores Zeferina exerceu a liderança no Quilombo do Urubu e de que essa história de

luta de resistência vem sendo reconstruída e re-significada enquanto referencial de

resistência às exclusões sociais atuais, pergunta-se: o que os textos históricos dizem

sobre ela? E a tradição oral?

Na historiografia oficial, Zeferina é trazida para o centro das atenções dos

escritores escravistas coloniais e dos comprometidos com as questões negras, sendo

mencionada superficialmente enquanto líder do Quilombo do Urubu. Zeferina recebe

títulos de rainha, chefe, quilombola, guerreira, ligada a uma casa de candomblé

localizada no centro desse quilombo e que por ocasião do levante foi presa e obrigada a

exercer trabalho forçado (como, por exemplo, as citações de Clovis Moura, Maria Lúcia

de Barros Mott, Walter Passos, Kátia Mattoso, Heitor Frisotti, entre outros).

Na maioria dos relatos que mencionam a líder Zeferina, é comum encontrar

partes que afirmam que ela enfrentou os soldados até o fim, armada com arco e flecha.

O presidente da província, maior autoridade da época na Bahia, reconheceu nela

capacidade de liderança, chamando-a de rainha (REIS, 1986, p.75).

Segundo Maria Inês Cortes de Oliveira, Zeferina é de origem angolana que, na

primeira metade do século XIX, foi trazida ainda criança nos braços de sua mãe Amália,

e já na condição de escrava (OLIVEIRA, 1989, p.178).


Segundo a história oral5 , Zeferina faz parte de uma passagem da história da

Bahia, foi uma descendente direta de escravos e fundou o Quilombo do Urubu para

proteger a si e seu povo da escravidão. Ali, junto com os índios, organizou os escravos

fugitivos, sendo uma grande liderança de um quilombo situado na região do Cabula e

que, ali, foi uma grande guerreira que, bravamente e com habilidade, lutou com as

tropas policiais para libertar “sua gente” da submissão e opressão. Por ser líder, ela foi

levada presa e morreu na carceragem local. Os seus restos mortais foram sepultados em

algum lugar do Cabula.

A tradição oral conta que ela foi uma escrava, guerreira e que com seu arco e

flecha fez a revolução do povo escravizado, contando com a proteção dos seus

antepassados e orixás. E ainda afirma-se que as redondezas onde foi fundado o

quilombo serviam de resistência para as tropas portuguesas que ali sempre tentavam

invadir sem sucesso. Ela tem uma história de luta e resistência que é exemplo para todos

nós e de que há uma música que se refere a ela como uma líder negra e quilombola.

A líder Zeferina foi uma escrava, quilombola que, ao persistir seu ideal de

liberdade, protagonizou a história de resistência quilombola dentro de uma

especificidade de gênero em Urubu. Hoje, a comunidade da Suburbana luta para manter

viva a memória de resistência dessa líder guerreira como meio de se apropriar de uma

herança enquanto referencial de resistência na luta contra a exclusão social atual.

5
O conteúdo dos dois parágrafos a seguir tem a finalidade de contribuir de forma complementar na
reconstrução da identidade da líder Zeferina e é resultado de entrevistas feitas em 22/01 a 08/03 do
corrente ano, com 20 lideranças negras e moradores locais, sobretudo religiosas, pertencentes ao
candomblé. Os entrevistados eram de ambos os sexos e com idade entre 30 a 63 anos conforme apêndice.
Portanto, é fácil compreender que, sobretudo para comunidade suburbana,

rememorar essa história de resistência, de organização, de liderança e de luta

quilombola a partir da negra Zeferina é também exercer um poder de resistência,

traduzido no desejo e na busca de capacidade para desenvolver uma relação comunitária

de solidariedade, de transgressão e pela vida, por justiça e de táticas de sobrevivência,

diante da situação de exclusão social vigente nessa periferia baiana.

É possível suspeitar que essa mulher africana, devido a sua prática

revolucionária, a favor do seu povo, sobretudo no levante de 1826, através da tradição

oral, tenha recebido conhecimento, desde criança, do sistema matrilinear de origem

banto, presente na cultura tradicional africana.

Tudo leva a crer que o poder de Zeferina, visível na sua atuação como sujeito

participante do processo contraditório ao sistema escravista, teve raiz histórica na

cultura africana. Esse saber herdado chegou até Zeferina através do processo de

educação informal materna. Essa tradição oral de resistência cultural serviu para

salvaguardar um arcabouço que envolveu conhecimento histórico, mítico e místico de

resistência de matriz do sistema matrilinear de Angola. Ainda mais, suspeita-se que o

poder de Zeferina tenha vindo da herança de sua ancestralidade e de que tenha sido uma

das sacerdotisas do Candomblé de Caboclo que se localizou no centro desse quilombo.

Mas, antes de iniciar o exercício de imaginação criativa a fim de reconstruir o

poder de Zeferina com base nas suspeitas acima, cabe apresentar uma breve discussão

teórico-reflexiva do termo poder, enquanto possibilidades conceituais que melhor


aproximem ao tipo de poder que se imagina ter sido exercido por Zeferina no Quilombo

do Urubu.

3.2. Conceito de Poder

A palavra poder é de fundamental relevância para as ciências sociais. Entretanto,

percebemos algumas dificuldades e diferenças conceituais, sobretudo entre os

sociólogos e cientistas políticos. A seguir, conceituaremos poder, a partir de alguns

teóricos (as).

Conforme compreensão de Michele Perrot, "poder no singular tem uma

conotação política e designa, basicamente, a figura central do poder, mas no singular ele

se estilhaça em fragmentos múltiplos e é equivalente a influências onde as mulheres têm

sua parcela" (PERROT, 1992, p.167).

Conforme Heleieth Saffioti, em todas as sociedades conhecidas as mulheres

detêm parcelas de poder "que lhes permitem meter cunhas na supremacia masculina e

que a subalternidade da mulher não significa ausência absoluta de poder" (SAFFIOTI,

1992, p.184).

Concorda-se com Elisabeth Schüssler Fiorenza de que "no âmago da busca

espiritual feminista está a busca de poder, liberdade e independência das mulheres,

podendo evidenciar-se em termos político-sociais" (FIORENZA, 1992, p.44).


Na compreensão de Ivone Gebara, o poder é visto como capacidade de organizar

a vida, de encontrar novas formas de organização em vista de uma melhor qualidade de

vida. Tudo isto é poder como capacidade de viver, como possibilidade de

transformação, mesmo que de forma ainda limitada (GEBARA, 1991, p.17).

Para a filósofa Hannah Arendt o poder é algo que corresponde à capacidade

humana de agir, fazer algo, de associar-se a outros indivíduos e de agir de acordo com

estas pessoas. O poder está na posse de um grupo e contínua existindo enquanto o grupo

se mantiver coeso (ARENDT, 1990, p.212).

Segundo o filósofo Michel Foucault, "poder é o nome dado a uma situação

estratégia complexa numa sociedade determinada, ele é relacional e não

necessariamente é exercido de cima para baixo" (FOUCAULT, 1992, p.182).

A palavra poder é de origem latim e significa posse, ser capaz de (PRIMAVESI,

1994, p.479). No grego, a palavra Hypomoné, poder se traduz por “resistência” visto

que Hypomoné significa uma resistência ativa, implicando em práticas históricas de

resistências (RICHARD, 1996, p.20).

O conceito de poder significativo de capacidade ou resistência de e da

compreensão de poder enquanto algo relacional, que tem a capacidade de agir de acordo

em concordância com o grupo e encontrar novas formas de organização que vise

qualidade de vida, que faz parte do desejo que está intrínseco ao âmago da luta
espiritual feminista, de que é algo inerente à mulher, se estilhaçando em múltiplos

fragmentos dá conta de melhor visibilizar, dentro de uma imaginação criativa de

reconstrução, ao tipo de poder exercido pela líder Zeferina na luta representativa no

quilombo enquanto espaço de resistência escravista colonial. A seguir, a partir de uma

análise descritiva, buscaremos problematizá- lo.

3.2.1. Análise descritiva

Max Weber conceitua poder, associando, este fenômeno, a qualquer

oportunidade de impor à própria vontade ao comportamento de outras pessoas, mesmo

que para isto encontre resistência alheia (WEBER, 1991, p.34). Para Weber, só existirá

dominação como poder estabilizado institucionalmente quando houver a chance de

encontrar obediência para ordens de qualquer espécie, por parte de determinado grupo

de pessoas.

Na concepção deste teórico, a legitimação e a organização são os dois fatores

decisivos para a transformação de poder em dominação e sua estabilização. Neste caso,

a dominação só pode conseguir uma base confiável se houver um crédito de

legitimidade. Mas, ainda assim, o cotidiano da dominação só funciona enquanto

organização, administração social. Por último, para este teórico positivista, a

carismatização e a estratégia da tradicionalização funcionam como forma de garantir a

legitimação, em meio a condições, fundamentalmente mudadas nas sociedades

modernas.
A lógica weberiana, referente ao conceito de poder, é impositiva e pretende ser

imperativa no senso comum, através das táticas punitivas contra certas resistências, a

exemplo do colonizador branco contra a população empobrecida. Dentro dessa

concepção unilateral de conceituar poder, quanto maior a capacidade de impor tal

vontade e atingir o seu correspondente objetivo, maior será o poder de um grupo sobre

outro (GABRIEL, 1988, p.38).

E neste caso, “as mulheres foram e ainda são vítimas de uma forma autoritária e

excludente de participarem do poder, uma vez que lhes é negada qualquer participação

nas esferas de decisão política-societária que toque os interesses da maioria”

(GEBARA, 1991, p.11).

Mas, para Michel Foucault, filósofo da reconstrução, “o poder não é uma

instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados”

(FOUCAULT, 1990, p.89). O poder é visto como uma relação dinâmica de estratégia,

presente em todo lugar.

Este filósofo contemporâneo da reconstrução apresenta interesse pela análise de

estruturas e técnicas modernas de poder. Sua tônica é defender a idéia de que poder e

dominação adotam modernamente a forma do disciplinamento; neste sentido, as

sociedades modernas podem ser caracterizadas como sociedades discip linares. Mas,

Foucault, contornando o problema da institucionalização do poder, enfoca,


detalhadamente, a análise histórica do desenvolvimento das técnicas modernas de poder

e da relação entre saber e poder (GABRIEL, 1988, p.39).

Segundo compreensão de Foucault, o paradigma social é a luta, visto que a luta

enquanto ação social comporta sempre o caráter de ação estratégica. O poder é

considerado, por ele, como elemento central de qualquer sistema social vigente. Ou

melhor, como a capacidade de se impor em meio à ação estratégica. E neste caso, este

considera que o poder é um fenômeno mais profundo do que o poder estatal, visto que,

este segundo só funciona como o instrumento de um sistema de poderes, acentuando a

função produtiva do poder em relação ao saber, enfatizando que o forte poder ocorre

quando este poder, ao contrário de impedir o saber, o produz.

Continuando, ele acentua sua análise das técnicas modernas de poder em torno

de conceitos, normas, corpo e saber. Para o lugar de normas morais de ação inclui-se a

norma como obrigatória normalmente social e realidade social atual. Lugar primário do

moderno exercício de poder são os corpos físicos e suas exteriorizações de vida. Como

“microfísica”, as modernas técnicas de poder se voltam sobre a padronização e

disciplinamento dos processos de movimento do corpo, para adestrar os movimentos

motores e gesticulares dos indivíduos em direção a atividades produtivas

automaticamente requisitáveis. E as modernas técnicas de poder desdobram toda sua

eficiência quando se associam com o saber (FOUCAULT, 1990, p.40).


Segundo compressão de Foucault, o poder é algo humanamente corpóreo, se dá

e se desenvolve dentro de um jeito relacional, sobretudo entre saber e poder, está

imbuído de estratégia dinamizada, possuindo a capacidade de estar universalmente.

Considerando que os sujeitos do exercício de poder estão em todos lugares, e

que o lugar primário da transformação de saber em poder e vice-versa são espaços

sociais, cabe, dentro de uma imaginação criativa de reconstrução, afirmar que a

comunidade quilombola detinha parcela de poder que lhe permitia meter cunha na

supremacia do sistema escravista. Essa compreensão de poder abre novas possibilidades

de compreensão social, justamente por não se fixar somente no instituc ional ou num

núcleo determinado, mas em grupos que estão em correlação de forças, a exemplo do

Quilombo do Urubu e o sistema escravista baiano do século XIX.

Conforme compreensão do pensamento da filósofa Arendt, o poder é visto como

autorização da comunidade e este poder só poderá ser efetivado quando não houver

divórcio entre as palavras e os atos da comunidade a que se pertence. Portanto, neste

caso, o poder é representativo e que só pode estar a serviço de práticas não brutais e em

benefício da comunidade. E isto só se evidencia “quando as palavras não são

empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados

para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades” (ARENDT, 1990,

p.212).

Segundo Arendt, o poder da minoria pode ser superior ao da maioria, e que a

revolta popular contra governantes materialmente fortes pode gerar um poder


praticamente irresistível, mesmo quando se renuncia à violência face às forças materiais

vastamente superiores. Compactua-se com a idéia da autora que diz:

dar a isto o nome de resistência passiva é uma ironia, pois “se trata de um dos
meios mais ativos e eficazes de ação já concebidos, uma vez que não se lhe
pode opor um combate que termine em vitória ou derrota, mas somente uma
chacina em massa da qual o próprio vencedor sairia derrotado e de mãos
vazias, visto como ninguém se pode governar mortos” (ARENDT, 1990,
p.212).

Por último, fica compreendido que o poder humano corresponde, de forma

intrínseca, à condição humana da pluralidade. A origem do poder se localiza na

resolução de juntar-se e agir em comum. A existência do poder legitima-se através do

apelo ao passado. A autoridade do poder é marcada de forma decisiva pelo

inquestionável reconhecimento da parte de quem se exige obediência (ARENDT, 1990,

p. 212-3).

Imagina-se que o conceito de poder, sobretudo em Foucault e Arendt, tenha a

ver com o exercício de poder de Zeferina, na qual a luta pelo desejo de transformação

social escravista baiana superou qualquer limite de concepção teórica em relação à

comunidade escravizada. Respaldada na extrapolação dos limites impostos pelo

contexto local, em analogia ao conceito de poder de Arendt, a ação estratégica e

autorizada por si mesma e pela comunidade em Urubu tornou a líder desse espaço de

resistência num referencial de poder nas lutas atuais.

Portanto, não podemos, a partir dos pressupostos acima, olhar a comunidade do

Quilombo do Urubu, bem representada no extraordinário poder da líder Zeferina,

apenas como vítima e totalmente destituída do poder. Neste espaço de resistência, o

poder de Zeferina e a autorização desse poder pela comunidade quilombola se


manifestam dentro de um contexto relacional de forças, de luta, de resistência, de

violência, de poderes, de memória coletiva de resistência negra e que persiste até hoje

no imaginário da população local enquanto referencial de resistência dentro de uma

especificidade de gênero, raça e classe.

3.3. Sistema de poder no Quilombo do Urubu

O poder nos quilombos africanos era representado pelas lideranças constituídas

por indicação dos membros das aldeias. Todos eles compunham a chefia encabeçada

por um ser pertencente, preferencialmente, à linhagem chefial mais velha. O rei e/ou a

rainha simbolizava a chefia e tinha obrigações religiosas. Seu poder não era absoluto,

contrabalançado pelo conselho composto dos (e das) chefes de aldeias, chefes de

linhagens e outros notáveis da corte (SILVA, 1998, p.44-45). È possível imaginar que a

comunidade que se organizou no Quilombo do Urubu foi influenciada por este sistema

de poder.

Ademais, no centro dos quilombos africanos havia uma aldeia que, constituindo

a menor unidade territorial, representava a pedra angular de estruturação política desse

espaço de resistência negra (MUNANGA, 1989, p.61). Tudo leva a crer que essa matriz

de organização conhecida pela população escravizada foi, criativamente, implantada no

Quilombo do Urubu representado pelo Terreiro de Angola, localizado no centro desse

espaço de resistência negra. Neste caso, o exercício da fé e da ação política de

resistência escravista era algo indissociável neste sistema organizacional em Urubu.


Desde os primórdios, na floresta do Urubu, a constituição de poder se deu de

forma bastante solidária, expressa já, inicialmente, pela acolhida dos autóctones

Tupinambás aos escravos (as) fugitivos (as) ali. A partir daquele momento, foi possível

a organização e a partilha de poder e da riqueza ambiental e/ou religiosa e cultural entre

ambas as raças.

Assim como nos outros espaços de resistência negra, a organização social de

poder no Quilombo do Urubu estava circunscrita à localidade constituída pelo “tronco

familiar respeitável”. Os critérios de escolha das lideranças locais baseavam-se na

respeitabilidade dos chefes de famílias mais “incorporadas” na comunidade local. O

consenso do grupo, quanto à escolha do (e da) líder, obedecia a tradições morais que

reportavam às pessoas mais velhas, dando- lhes direito de exercer a autoridade. O

momento de celebração desse poder acontecia quando um (ou uma) chefe era escolhido

(a) para organizar um festejo religioso ou profano. Cada líder local era considerado

“conselheiro”. Todos lhe deviam obediência, seja pela idade ou pela respeitabilidade

(SILVA, 1998, p.45).

O Quilombo do Urubu se estruturou baseado no modelo de família extensa. A

presença do Candomblé de Angola e dos índios tupinambás expressa bem essa base de

organização social local. Na lógica de que "todos são parentes", e assim se consideram,

é notável a importância do parentesco real e simbólico nesta comunidade plural

(MEILLASSOUX, 1995, p.20).


O Quilombo do Urubu, enquanto modelo de comunidade negra de resistência

escravista, foi capaz de desenvolver a capacidade de implantar e gerir possibilidades

próprias de organização econômica e social no período histórico de sua existência. A

terra pertencia à povoação como um todo. E essa tradição de propriedade coletiva da

terra foi aprendida com o povo autóctone e por herança da cultura do sistema

matrilinear africano.

É possível pensar uma reconstrução de organização social do Quilombo do Urubu,

tendo por modelo influenciável a organização de Palmares, assim como o sistema

matrilinear de Angola, visto que tanto um quanto outro Zeferina e os quilombolas em

Urubu deviam conhecer bem. Neste caso, pode-se imaginar a presença de um conselho,

com a representação de diversas lideranças locais, as quais tomavam as decisões, nos

seus respectivos grupos e em conjunto de forma democrática, quando o assunto

envolvia problemas de relevância para o destino da comunidade em Urubu, como a

guerra e a paz. A escolha da liderança era eletiva.

Nos quilombos, sobretudo em Palmares, toda a dinâmica da estratificação era feita

por nível de segurança e estabilidade dos seus membros e segmentos em relação à sua

situação no conjunto da comunidade. Por isso, este modelo fugia de qualquer

semelhança com os tipos de mobilidade existente em uma sociedade competitiva.

Entretanto, não se pode negar a existência de momentos de conflito, sendo o mais

freqüente o enfrentamento militar. Os choques militares, as guerrilhas, as batalhas

defensivas, as escaramuças para o roubo de víveres essenciais e não produzidos ali,

rapto de negros ou mulheres, tudo isso foi uma constante neste nível de interação
(MOURA, 1988, p.179-81). Imagina-se que em Urubu, também, os seus componentes

se empenharam em se aproximar desse modelo organizacional.

No centro desse quilombo foi implantada uma casa de candomblé que foi

recuperada recentemente. Suspeita-se que os diversos candomblés existentes em torno

do atual Parque São Bartolomeu podem representar o modelo de aldeias dos quilombos

africanos e em algumas regiões de Palmares, sendo representadas por linhagem e/ou

linhagens que refletia/am a autoridade ancestral, sobretudo feminina, e a herança do

sistema matrilinear.

Este espaço de democratização de poder, que se expressou na capacidade de

acolhida, partilha e organização de luta de resistência teve a finalidade de garantir

acesso ao desejo de liberdade. Para os escravos (as) fugitivos (as) ali, a formação de

quilombo foi a melhor e eficaz expressão dessa capacidade de reconstrução de

identidades. A base desse quilombo foi essencialmente agrícola, e, apesar de certa

clandestinidade, podia-se viver com suas táticas de sobrevivência e resistência,

tornando-se fornecedor de produtos agrícolas, caça, lenha, da venda de serviços e de

frutas, hortaliças, aves etc. Imagina-se que, assim como em Palmares e outros

quilombos, nessa comunidade implantou-se uma economia de subsistência de modo

quase autônomo: por causa de suas condições especiais, pôde se tornar num primeiro,

grande e poderoso quilombo baiano. O padrão médio destes quilombolas ultrapassava o

número de algumas poucas dezenas de famílias e com forte participação de mulheres e

crianças (MOURA, 1988, p.80-81).


A relação do mundo oficial com os Quilombos do Urubu foi sempre

contraditória. As grandes expedições militares armadas contra os arraiais negros

mostram bem tal conflito (MOURA, 1988, p. 07 e 107). Por outro lado, entre a

sociedade local travaram-se, também, relações econômicas e sociais pacíficas, de

solidariedade e partilha. A organização de poder em Urubu se deu a partir do confronto

e da inserção nos processos nítidos de rebelião (como nos casos tratados por Moura,

Reis, Abdias Nascimento, entre outros), como a partir da decadência da lavoura

canavieira, no recôncavo e provavelmente em outras faixas do litoral, e da mineração

em toda a área central do estado, sem desconsiderar a possibilidade de outros processos

de formação dessa comunidade negra diferenciada e relativamente autônoma.

Esse quilombo, durante muito tempo, possuiu a capacidade de bem se proteger e

defender-se através de formação de estrepes e armadilhas que ficavam escondidas nos

matos que o circundavam. Tal estratégia dificultava, muitas vezes, a aproximação de

elementos estranhos e das tropas das milícias desta capitania. O pesquisador baiano

afirma que os quilombos brasileiros (inclusive do Urubu), em sua variante histórica e

regional, determinaram, profundamente, alguns aspectos da nossa formação econômica,

política e social. Daí entender que o processo de ocupação e o perfil etnodemográfico de

muitas regiões não podem ser compreendidos se dissociados deste importante fator

histórico (PASSOS, 1996, p.7). Portanto, Pirajá, comunidade remanescente de

quilombo, traz em sua formação histórico-racial, política e sociorreligiosa herança desse

quilombo que existiu no século XIX, em Urubu.


Na atualidade, embora a União Fabril se declarar dona das terras circunvizinhas

ao quilombo, na verdade ela é também invasora, é possível pensar que a lógica da

"posse útil da terra" é presente na concepção daquelas pessoas que se apropriam desse

local. A “posse comunitária” é repartida em pequenas roças familiares, escolhida

periodicamente de modo bastante livre por cada uma das famílias, sobretudo nucleares,

com a instituição de variadas formas de ajuda mútua e de regulamentação interna sobre

a repartição e herança das posses (Silva, apud. ALMEIDA, 1997, p.11). Segundo Décio

Freitas, esta tradição de propriedade coletiva da terra foi trazida da África pela

população negra (FREITAS, 1984, p.44).

Na região do atual Parque São Bartolomeu, trabalho no próprio roçado já não é

possível como modo exclusivo de subsistência, por força da pressão sobre o “território”

disponível e da sua redução, provocando a necessidade da busca do assalariamento.

Nesta circunstância, os membros desta comunidade vêm-se na dupla condição de

“camponeses” e de trabalhadores assalariados, desempregados, migrando,

periodicamente, quando não de modo, definitivo para os grandes centros (a exemplo de

São Paulo).

Naquele local de resistência negra, assim como em todo quilombo brasileiro, a

África surge como um território originário de referência, de modo idealizado. O atual

território comunitário tem também inestimável valor cultural de referência enquanto

espaço por excelência da reconstrução de uma autonomia e da possibilidade de uma

auto-afirmação como povo, como comunidade negra de resistência que se acentua


fortemente na celebração do 20 de Novembro em homenagem à imortalidade de Zumbi

dos Palmares e Zeferina, em Urubu.

O poder na floresta do Urubu emana da força do axé, expresso na natureza.

Portanto, é um poder que vem do mato, das pedras, das árvores consagradas aos orixás.

Este poder é buscado pelos aflitos e pelos gratificados que, sozinhos ou em grupos

votivos, lá vão banhar-se nas fontes e nas cachoeiras que têm os nomes evocadores de

suas crenças, "arriar ebó" nas pedras e nas árvores consagradas a seus orixás, seus

voduns, seus encantados, seus inquices, seus caboclos. Todas essas formas postuladas

de poder estão por ali, naquelas águas, naquelas pedras, naqueles matos. Na floresta do

Urubu, o poder é buscado através de oferendas e sacrifício que é, fundamentalmente,

um ato simbólico, de significação crítica para a personalidade humana e têm

importantes componentes sociais (LIMA, 1998, p.57-58). Imagina-se que este foi um

dos poderes que Zeferina invocou para animar a luta em Urubu.

No Quilombo do Urubu, Zeferina, inconformada com a exclusão social do seu

povo negro escravizado e entusiasmada com o originário do conhecimento histórico,

mítico e místico, viveu e lutou pelo sonho de liberdade. Este fato, acentuado por ocasião

do levante em 1826, até hoje é visto e reconstruído como marco referencial de poder na

luta de resistência a toda forma de discriminação no bairro de Pirajá e arredores -

subúrbios de Salvador.

3.4. Uma reconstrução do poder de Zeferina


A história do poder de Zeferina faz parte das muitas histórias das mulheres

negras atuais, que são retalhos de histórias. Uma cocha de retalhos, retalhos de uma

mesma história! A mulher negra, para resgatar sua identidade, vem encontrando apoio

em grupos organizados por mulheres negras que abrigam, dentro de um corpo, várias

personalidades resgatadas a partir de uma tradição primordial africana. Mulheres negras,

heroínas, guerreiras; personalidades multifacetadas que se confundem e se completam a

fim de fazer realçar o glamour e a nobreza do seu povo (EGYDIO & OLIVEIRA, 1999,

p.40).

Por isto, é fácil imaginar que o exercício de poder de Zeferina enquanto líder do

Quilombo do Urubu se deu dentro de uma relação dinâmica de estratégia, de partilha, de

conflito, de democracia, de representação. Imagina-se também que esta prática de

poder, a partir de sua luta por justiça e de ação representativa de si mesma e da

comunidade, questionou as relações hierárquicas patriarcais colonialistas de poder,

escravista e excludente, apresentando, a partir de ação alternativa em Urubu, uma forma

de superação das mesmas.

Portanto, suspeitamos que Zeferina fosse dotada de conhecimento histórico e de

ancestralidade de origem africana, que exerceu um poder revolucionário enquanto líder

no Quilombo do Urubu a favor de si e do seu povo escravizado. Este poder foi resultado

de uma criativa reconstrução do conhecimento histórico, mítico e místico, sobretudo do

sistema matrilinear de Angola, da tradição das guerreiras e quilombolas, indo da rainha

Nzinga até as anônimas brasileiras. De sorte que este poder vem sendo, dinamicamente,
recriado enquanto referencial de resistência pela atual comunidade local. A seguir,

abordaremos sobre o sistema matrilinear de Angola.

3.4.1. Sistema matrilinear de Angola

Na África, sobretudo no período pré-colonial, havia dois sistemas determinantes

na estrutura familiar dos povos bantu e adotados também pelos povos que vieram para o

Brasil: o patrilinear e o matrilinear. Importa-nos mencionar que no sistema matrilinear a

mulher estava associada à agricultura, ocupando um lugar de destaque na sociedade; era

ela quem garantia a subsistência da família, estabilizando a economia do grupo

(GOMES, 1992, p.21-2). Onde quer que fosse possível a adoção desse sistema:

A parentela evidenciava-se pela sucessão de mulheres; a filiação era uterina e


o filho passava para a linhagem materna. Os bens eram herdados por herança
materna. O marido deixava a sua aldeia de origem e passava a habitar na da
mulher. Os filhos pertenciam à família materna e o verdadeiro pai é o tio
materno uterino (irmão da mãe) que detinha a autoridade com o próprio
progenitor (ALTUNA, 1974, p.106-7).

Na organização social matrilinear, a mulher detinha uma grande parcela de poder

expresso na dimensão política, religiosa, educativa, assumindo função de protagonista

histórica da tradição de sua família, seu clã, sua tribo, formando, assim, as aldeias. A

vida era simples. A solidariedade entre as pessoas era o traço mais comum e tão forte a

ponto de reforçar a fraternidade entre as pessoas e intensificar os laços de parentesco

(HAMA & ZERBO, 1982, p.65-67). A comunidade é quem dava o valor da vida social,

onde eram importantes os usos e costumes. A pessoa nascia, desenvolvia-se, realizava-

se dentro deste grupo e, ao mesmo tempo, era a comunidade que dava grandes lições de

vida, desenvolvendo uma dimensão educativa.


O círculo de parentesco era imenso. Todos se consideram irmãos (ãs)

nascidos/as ou descendentes de uma mesma mãe, sendo um só povo. É neste círculo

familiar e comunitário que surge a mulher, desempenha ndo função relevante para o

bem-estar da coletividade, e ao mesmo tempo contribuía na educação das filhas, dos

filhos e de outros membros da comunidade. Em muitas tribos existiam as mulheres

líderes que mantinham a ordem em caso de conflitos, que acontecia m, por exemplo,

entre casais. Após o julgamento, exigia a reconciliação e confissão em público se o

delito fosse grave, para, em seguida, dar os conselhos e a bênção, que garantiam o

futuro tranqüilo das pessoas envolvidas (GOMES, 1992, p.27).

Na atualidade, tal prática é vislumbrada no exercício de autoridade ancestral

pelas ialorixás, zeladoras de Orixás, residentes, sobretudo, nos arredores do antigo

Quilombo do Urubu, periferia de Salvador. Neste sistema, a educação se dava através da

tradição oral. Para a mulher era importante também o círculo de conversas com outras

mulheres que, enquanto trabalhavam na lavoura, no rio ou na aldeia, aproveitavam o

convívio para trocar idéias e aprender umas das outras sobre o cotidiano. Em todo esse

processo, a mulher era respeitada. O marido deveria tratá- la bem a partir do momento

em que se unia a ela em casamento (GOMES, 1992, p.28).

No sistema matrilinear africano, a religião se mostrava em um processo

educativo enquanto algo vivido e praticado (SETILOANE, 1992, p.61). A mulher

ocupava posição de destaque. No geral, era especialista no tratamento de doenças.


As mulheres participavam de vários rituais religiosos fixados pela coletividade,

como as chamadas comunidades secretas femininas, onde praticavam cultos oferecidos

às antepassadas e antepassados. As líderes maiores, revestidas da autoridade herdada de

uma (um) antepassada (o), ajudavam na reconciliação entre pessoas da comunidade, e

ao mesmo tempo tinham a autoridade de conceder a bênção ou a maldição em nome da

(do) antepassada (do) que guardava a pessoa de todos os deslizes, más intenções e

outros males contrários ao bem-estar da comunidade (GOMES, 1992, p.32).

Além do trabalho que a mulher assumia na família, tinha a responsabilidade e o

poder de participar da agricultura, que era uma das fontes principais de alimentação,

vindo a determinar o sistema econômico das comunidades matrilineares. Na cultura

matrilinear prevalecia a economia de subsistência, com métodos de cultivo muito

elaborados de seleção de sementes. As comunidades matrilineares eram,

essencialmente, rurais e estavam fundadas na apropriação coletiva das terras, que

pertenciam ao grupo predominante: família, clã e tribo. A coesão grupal estava

assegurada pela solidariedade imposta pelo trabalho agrícola em comum e pelo culto

dos ancestrais. A terra era considerada sagrada, importante para a sobrevivência onde

eram cultivados produtos para o sustento das comunidades (GOMES, 1992, p.32).

A figura da mulher, neste sistema, era de profunda reverência porque era ela

quem sabia selecionar os alimentos para dar de comer à família. Ela sabia como guardar

os produtos para o sustento e sobrevivência de casa. E essa administração era exercida

pela esperança que nutria a família, clã e tribo, de que nunca fa ltaria o alimento

necessário, tendo-o com fartura. As mulheres se ocupavam do cultivo da terra e da


colheita dos produtos cultivados. A terra era trabalhada com enxada, sendo preparada

para ser semeada. Cultivavam mandioca, milho e outros alimentos. As mulheres ainda

participavam da criação de animais domésticos, artesanato e até na tecelagem de tecidos

que teve um papel determinante na comercialização com outros reinos (GOMES, 1992,

p.33).

Por ocasião de pagamento de tributos, a mulher possuía poder aquisitivo

suficiente para “quitação” da dívida. Caso um filho cometesse um crime perante a

comunidade, era a mulher quem pagava a fiança. Em tempos de crise, problemas

familiares, doenças ou outras situações que afligissem a sobrevivência da família,

recorria-se para a mulher, que tinha sempre uma possível solução. Ela sabia guardar as

economias da família, sendo a pessoa mais parcimoniosa (GOMES, 1992, p.33).

A posição da mulher, em quase todos os povos africanos, tem um importante

significado tradicional. Em toda riqueza da vida em comunidade, a mulher aparece

como o centro da vida cultural comunitária; ela é quem dá e salva a vida, ela é mãe que

nutre a vida, é guerreira que faz a organização da luta de resistência contra a dominação

colonial africana. As mulheres pertencente cultura banto por causa de sua vocação para

a maternidade ocupavam na sociedade um lugar honroso, pois eram que daria

continuidade a tradição da família, do clã e da tribo (GOMES, 1992, p.21).

Existiram, também, mulheres corajosas que participavam de decisões

importantes na vida e estabilidade de seu povo. Na África e, particularmente em

Angola, existiram rainhas, guerreiras que contribuíram para a soberania e defesa de seu
povo, a exemplo do reino de Ngola, onde a conhecida Nzinga Mbande dirigiu seu povo.

Em muitas ocasiões, a mulher era tida como instrumento de paz ao ser dada a uma

determinada tribo para apaziguar conflitos existentes entre elas (MAESTRI, 1988, p.88-

89).

A tradição cultural matrilinear apresenta aspectos de um poder circular e

relacional, tornando possível pensar as mulheres africanas enquanto protagonistas

históricas da resistência. Mas não se pode negar o fato que essas mulheres tiveram de

exercer uma enorme responsabilidade, sobretudo doméstica para manutenção social,

política, religiosa, econômica desse sistema.

Essas mulheres tiveram que partilhar o poder de seus filhos e filhas com o seu

irmão, tio da criança, traduzido na expressão do exercício de um poder parcial das mães

sobre seus (as) filhos (as). Se assim não fosse porque, então, não se escolheu a tia do (a)

mesmo (a) na distribuição relacional desse poder? Mas, apesar da mulher exercer uma

enorme responsabilidade social, política, religiosa, econômica na manutenção desse

sistema matrilinear de resistênc ia, sempre foi vítima direta das táticas sexistas,

autoritária e de opressão do homem a ela. Por isto, embora não seja difícil pensar que

até no sistema matrilinear há forte presença da estrutura patriarcal, se reconhece,

também, que no sistema patrilinear a exclusão da mulher é mais acirrada ainda. Por

isto, optou-se por reconstruir o poder de Zeferina decorrente do saber de raiz matrilinear

de Angola.

3.4.2. Saber de raiz matrilinear


No processo de absorção do saber de raiz matrilinear, a mulher se torna

responsável por dar continuidade à vida comunitária e cultural de sua família, clã e

tribo. E neste processo de adquirir conhecimento de raiz, a mulher adquire autoridade

oriunda de sua vocação como comunicadora da vida maternal e herança ancestral.

Enquanto praticante do ato de perpetuar os ensinamentos tradicionais de suas (e

seus) antepassadas (os), ela faz participar todos os membros da sociedade numa união

vital. Nesta cultura, a criança é de fundamental relevância visto que, ela é o elo de

ligação que dá continuidade e assegura a sobrevivência individual e coletiva; ela é a

expressão viva entre os mortos, os vivos e as futuras gerações (SILVA, 1992, p.17).

Esse poder decorrente do saber de raiz matrilinear se dá pela educação oral;

portanto dentro de um processo de educação informal. Segundo Brandão, esse processo

existe “onde não há escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais de

transferência de saber de uma geração à outra, onde ainda não foi sequer criada a

sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado” (BRANDÃO, 1991, p.18).

É possível conceituar educação como fazendo parte de uma natureza na sua

dupla estrutura corpórea e espiritual que cria condições especiais para a manutenção e

transmissão de sua forma particular e que exigem organizações físicas, espirituais ao

conjunto de uma comunidade (BRANDÃO, 1991, p.13-4).

A educação africana é algo que se processa por toda a vida. A própria existência

é educação que se processa nos indivíduos em seu meio social a partir do seu
nascimento, ocorrendo das mais variadas formas de convivência entre as pessoas e meio

ambiente (SILVA, 1992, p.20).

A transmissão cultural, sobretudo matrilinear africana, se dá dentro de um

processo que exige da mulher grande responsabilidade e profunda eficiência, pelo fato

de que o que está implícito no testemunho dela é o próprio valor do ser humano que faz

o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das

memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade nesta sociedade matrilinear

(HAMPATÊ BÃ, 1980, p.182).

Sobretudo no sistema matrilinear de Angola, a capacidade de resistência é

equivalente ao saber de raiz ancestral e que é aprendida na transmissão dos valores

teóricos e nas pilastras da tradição africana, que são os ofícios artesanais tradicionais.

Neste ambiente matrilinear, a arte é considerada sagrada e mística, os cuidados e as

atenções da liderança para com as iniciantes (os) são minuciosos, exigindo, muitas

vezes, na inserção destas, o banho ritual de purificação, preparado com o cozimento de

certas folhas, cascas ou raízes de árvores escolhidas em função do dia. No decorrer do

aprendizado oral, a liderança transmitirá gradualmente todos os seus conhecimentos,

treinando-a e corrigindo-a até que adquira a maturidade (HAMPATÊ BÃ, 1980, p.197-

8).

A partir da explanação acima, suspeita-se que o saber de Zeferina foi de raiz

africana, originária da herança matrilinear de Angola que se processou através da

tradição oral, tendo sua mãe Amália como educadora, responsável em perpetuar os
conhecimentos de suas ancestrais, guerreiras e quilombolas 6 . E é este poder, originário

do saber de raiz, que esta líder herdou, ainda criança, se encarnou na totalidade do seu

ser, transformando-o em práxis libertária a favor do seu povo em Urubu.

Suspeitamos que todo este processo de saber de raiz no conhecimento da vida

comunitária do povo banto, de estrutura matrilinear, foi transmitido oralmente,

encarregando-se de uma mensagem prática que orientou a vida até a morte dessa

guerreira.

A líder Zeferina, devido a invasão portuguesa em Angola, foi trazida para

Salvador já em condição de escrava. Imagina-se que, por causa do contexto de

escravidão negra brasileira, assim como toda guerreira que no sonho de ver seus direitos

respeitados projeta-se em suas filhas e filhos valores condicionais à luta de

sobrevivência, Amália manteve acesa, no imaginário de sua criança, a história de

resistência em ligação com a África.

É possível imaginar que Zeferina foi iniciada nos valores da tradição africana e

nesta tradição de saber informal e de resistência essa líder em potencial se envolveu, se

nutriu, se alimentou. Tendo herdado um legado significativo de saber do “chão

angolano” - e que se traduziu em poder para lutar e resistir contra a escravidão negra -

que, desde os primórdios, estes ideais perpassam o continente.

6
Sobre processo de formação oriundo da tradição oral africana vide Roger BASTIDE. As Américas
Negras, 1974, p.34ss.
Portanto, Zeferina deve ter sido educada dentro de um processo informal, tendo

adquirido conhecimento de vida comunitária do povo banto de estrutura matrilinear,

inserida no ambiente de família extensa e de parentesco simbólico, recriado em

Salvador no contexto de escravidão. Através da tradição oral, Zeferina deve ter herdado

o saber necessário que lhe conferiu poder expresso na organização dos quilombolas em

Urubu e a luta de resistência, salvaguardando a herança de ancestralidade.

3.4.3. Herança ancestral

A Bahia herdou uma continuidade cultural e religiosa africana que foi

dinamicamente reelaborada. Ali, a partir dos quilombos e dos terreiros, as mulheres

negras tiveram significativas contribuições no processo de reconstrução da sociedade

afro-baiana. Portanto, não é difícil suspeitar que o poder que Zeferina expressou na luta

de organização e nas táticas de resistência escravista em Urubu tenha sido de

ancestralidade, originário da tradição das Yami, da linhagem da princesa Ishedale e do

orixá Iansã.

Mas, afinal de contas, quem são as Yami? As Yami são mulheres incluídas na

sociedade Yorubá e tratadas com respeito e muita consideração. Conforme Pierre

Fatumbi Verger (apud SIQUEIRA, 1995, p.438), o poder das Yami é atribuído às

mulheres velhas e, em alguns casos, às jovens que o teriam recebido como herança da

mãe ou de uma de suas avós. Além disso, ocorre o caso de uma mulher de qualquer

idade tê- lo sem saber e que, após algum trabalho feito por qualquer Yami, acaba

descobrindo.
Na sociedade da Geledés Iyá Agdá, Yami é uma deusa mãe que segura a criança

em seus braços, tendo vínculo com o mito da criação e com os cultos dos orixás. As

Yami-Iyalodé, aquelas que estão à frente de comunidades, possuem um grande poder de

transformação, visto que são muito astuciosas (Verger apud SIQUEIRA, 1995, p.438).

Partimos da suspeita que o poder de Zeferina foi de herança de ancestralidade

que sua mãe Amália procurou mantê- lo acordado em sua filha desde criança. Na Bahia,

ambas mantiveram vínculo com a religião dos orixás, que lhes conferiu poder de

resistência à escravidão colonial. Este poder de herança ancestral conferiu a Zeferina a

capacidade de resistir e liderar a si mesma e a seu povo contra a exclusão social, a partir

do Quilombo do Urubu.

Suspeita-se que o poder que capacitou Zeferina para enfrentar os soldados até o

fim no levante de 1826 em Urubu, armada com arco e flecha, fazendo com que o

presidente da província, maior autoridade da época na Bahia, reconhecesse nela

capacidade de liderança, chamando-a de rainha (REIS, 1986, p.75) foi originário da

linhagem da rainha Ishedale.

A partir dessa linhagem, como eram vistas as mulheres? As mulheres eram

guerreiras e protetoras dos rios, dos bosques, das matas e montes. Elas eram conhecidas

por Ayabas que em iorubá significa rainha, detendo poder de herança ancestral

(SIQUEIRA, 1995, p.348).

Partindo do pressuposto que na linhagem da rainha Ishedale as mulheres eram

conhecidas por Yabas e que no Candomblé elas representam os orixás femininos, é


possível imaginar que o poder dessa rainha angolana tenha sido de origem de seu orixá

feminino. Ainda mais, partindo da associação comportamental de busca e reencontro de

ação política contraditória ao sistema escravista em favor de seu povo, com as

características do orixá Iansã que é de transgredir em prol da justiça, é possível suspeitar

que Zeferina tenha sido filha de Iansã. Na mitologia dos orixás, quem é Iansã?

Iansã é conhecida na África por Oyá e na Bahia é mais denominada Iansã,


embora chamada de Oyá; é muito respeitada e querida pelas pessoas dos
terreiros e da cidade de Salvador. Vestida de vermelho forte, como é a cor
das suas contas rituais, ela se manifesta com um grito agudo dentro do
barracão, onde dança simbolizando a guerra e a luta pelas quais ela tem
responsabilidade no mundo. Muitas pessoas se identificam com ela. A função
mais delicada exercida por Iansã é sua participação no ritual do Axexé,
cerimônia através da qual se celebra a partida de um membro de terreiro do
Ayê para o Orum. Ela enfrenta a morte e acompanha os espíritos nessa
travessia desconhecida. As afinidades rituais de Iansã são, sobretudo bem
marcadas, junto aos Eguns, os espíritos daqueles da comunidade que partiram
para o Orum. Mas é importante lembrar que Iansã é ligada a Xangô por
matrimônio, mesmo se de natureza compartido com Oba e Oxum
(SIQUEIRA, 1995, p.443).

Portanto, assim como ser de Iansã é sentir-se muito respeitada, querida, visto

como símbolo de guerra, de transgressão, de justiça e de transposição de morte em prol

da vida, Zeferina, líder quilombola, demonstrou em sua política de ação libertária em

Urubu uma conduta ética que buscou expressar vários aspectos dos atributos desse

orixá, enquanto líder carismática respeitada e querida, guerreira na luta de justiça a

favor de seu povo oprimido e que, transgredindo as ordens do assassino colonizador,

superou o medo da morte em ligação com a África.

Iansã se manifesta com um grande grito de guerra, simbolizando a guerra e a luta

de responsabilidade com a vida comunitária. Com o grito de guerra (mata branco, viva

negro), Zeferina, de forma transgressora e pela vida, atuou, protagonizando a história

dos quilombolas no levante de 1826, no subúrbio baiano.


No Quilombo do Urubu, Zeferina pertenceu ao Candomblé de Caboclo, atual

Bate Folha. Por ter pertencido à religião dos orixás, Zeferina deve ter tido seu poder

legitimado pelo seu passado de profunda e madura inserção nesse universo místico

constituinte da cultura matrilinear africana. Tal afirmação nos leva a suspeitar que, além

de líder quilombola, Zeferina tenha sido uma das lideranças espirituais do terreiro que

se localizou no centro desse lugar de resistência escravista e de que sua sucessão,

enquanto mãe-de-santo, deu-se por processo de consangüinidade e/ou por ancestralidade

(JOAQUIM, 2001, p.129).

Os quilombolas em Urubu contavam com ajuda dos orixás. A polícia descobriu

uma casa de candomblé no centro desse espaço de resistência escravista. Os elementos

de culto dos orixás possuíam, predominantemente, as cores de vermelho encarnado

(MOTT, 1988, p.50). Essa sutileza de detalhe, numa reconstrução feminista, leva-nos a

suspeitar que Iansã tenha sido a “dona dessa casa” de candomblé, ousando- nos, mais

uma vez, imaginar criativamente que Zeferina fosse, por herança ancestral, “filha de

Iansã”. O grito de guerra que a líder deu na ocasião do levante em 1826 enriquece tal

suspeita, visto que grito é algo que caracteriza a presença e a força de transgressão de

Iansã entre as pessoas freqüentadoras de terreiros de candomblé.

É possível imaginar que deve ter existido uma identificação entre a atitude

comportamental de Zeferina e Iansã. Neste caso, segundo opinião de participantes dessa

religião, o orixá vive na pessoa e a pessoa no orixá. São realidades inseparáveis

(JOAQUIM, 1995, p.163). Entretanto, através da intuição e análise das cores, não se

pode negar a possibilidade de Xangô também ter sido o patrono dessa “casa de santo”

ali localizada.
Mas pela atitude política contraditória e subversiva da líder desse quilombo na

luta contra o sistema escravista e em defesa de seu povo negro, por ocasião do levante

em 1826, subúrbio de Salvador, é fácil caracterizar sua postura de transgressora pela

vida e de justiça associando à “personalidade” de Iansã, além dos orixás Oxum,

Oxumaré, Ossoxi, Ogum, Nanã, espíritos de caboclos que eram (e ainda são) cultuados

naquele lugar sagrado onde residia o quilombo e o Candomblé, conferindo significação

simbólica e política àquela comunidade plural.

3.4.4. Tradição de quilombolas e guerreiras

A luta das mulheres contra a escravidão foi uma dentre as muitas lutas da mulher

brasileira, com o objetivo de resgatar sua participação informal exercida, quase sempre

fora de esferas de poder e dos quadros políticos partidários, mas importante e eficiente.

É neste contexto de escravidão e resistência que surge Zeferina enquanto líder

quilombola e guerreira.

A líder Zeferina fez parte de uma tradição de resistência de mulheres

quilombolas e guerreiras. Mas a falta de informações e pesquisa sobre os quilombos,

acrescida da especificidade de gênero, faz com que se saiba muito pouco sobre tal

poder, sobretudo das mulheres líderes quilombolas.

Mas, na tentativa de desconstruir a idéia colonialista androcêntrica, patriarcal de

mulher submissa, passiva, sexo frágil e mostrar uma outra versão de mulher negra

enquanto protagonista histórica da libertação, é que iremos discorrer a partir de


fragmentos, e nesta colagem de fatos históricos podemos inserir e resgatar a luta da

guerreira e quilombola Zeferina dentro de uma tradição de resistência de mulheres

negras.

A situação de resistência vivida pela mulher negra em relação ao escravo

brasileiro foi mais acirrada. Por causa da diferença de gênero, a mulher negra teve que

resistir à diferença numérica, ao mito da fragilidade e da inferioridade sexual e as

conseqüências de suas cicatrizes corpóreas. Mas essas mulheres negras buscaram em

suas lembranças imagens de mulheres negras sacerdotisas, princesas, rainhas,

adquirindo, assim, resistência através da consciência histórica e espiritual de mulher

africana e seu valor na cultura matrilinear. E essa tradição de consciência mística

histórico- mítica foi necessária para que essas guerreiras pensassem no resgate de uma

possível auto-estima, refletida na luta de resistência por onde existisse escravidão negra.

As mulheres negras e guerreiras eram sabedoras de que nas sociedades

matrilineares as africanas tinham posição de destaque e que até a descendência se

estabelecia pelos laços de parentesco maternos, além de serem responsáveis pelo

trabalho agrícola e pela educação. Elas também detinham poder atribuído pela herança

de ancestralidade. É este conhecimento que tem levado essas mulheres ao campo de

batalha usando, como arma, as marcas de sua ancestralidade que só a sabedoria, aliada

ao poder da tradição oral, pode registrar (EGYDIO & OLIVEIRA, 1999, p.36).

É através do conhecimento da história do seu povo africano que a mulher negra

passa a reconhecer-se como portadora de títulos de nobreza que a qualifica como figura

contraditória e legítima herdeira do trono real, mesmo diante do silêncio da


historiografia oficial que esconde a evidência que se tem da mulher negra como

produtora de cultura e até da simplicidade de suas tarefas.

A partir dos quilombos, as mulheres, sobretudo negras, foram protagonistas

históricas, marcando presença subversiva ao sistema escravista. Tanto na África quanto

no Brasil, encontramos mulheres quilombolas. Algumas delas seguiam de livre e

espontânea vontade, outras foram raptadas para suprir a falta crônica de mulheres nas

zonas rurais e, neste caso, pouco importava se essa fosse escrava, forra ou senhora

(MOTT, 1988, p.42). Muitas delas chegaram mesmo a chefiar alguns espaços de

resistência escravista, a exemplo de Nzinga, em Matamba e Angola, de Zeferina, no

subúrbio de Salvador, de Aqualtune e Dandara em Palmares, de Tereza em Mato

Grosso, de Mariana no Rio de Janeiro, de Felipa Maria Aranha, na Amazônia, além das

“feiticeiras” e anônimas, líderes quilombolas. Discorreremos a seguir sobre algumas

lideranças quilombolas.

3.4.4.1. Nzinga Mbandi

No século XVII, contexto de escravidão negra, sobretudo portuguesa, surge, em

Angola, a guerreira e quilombola Nzinga Mbandi, protagonizando a história de

resistência africana. A rainha Nzinga foi uma mulher corajosa que participou de

negociações e decisões relevantes e, na direção, contribuiu para a soberania e defesa da

vida e estabilidade de seu povo angolano, durante anos (COSME, 1994, p34).

A história de resistência contra a dominação portuguesa teve origem na África,

destacando o reinado de Ngola Kiluanji e sua sucessão composta de linhagem familiar,


ou seja, pai Kiluanji, de Ngola Mbandi, filho do rei e meio- irmão paterno de Nzinga

Mbandi. A rainha Nzinga é sucedida pelas irmãs Mona e Vitória Mbandi e, por último,

seu sobrinho Ngola Kanini. Portanto, a rainha Nzinga Mbandi se insere numa tradição

sucessiva que envolve pai, irmão, irmãs e sobrinho e seu reinado ocupou a terceira

geração dos Ngola. Ela exerceu, em Matamba e Angola, um reinado promissor,

inaugurando uma sucessão dentro da lógica do sistema matrilinear. E é nesta tradição de

resistência que Zeferina, líder de origem angolana, e outras guerreiras e quilombolas se

inserem na busca de poder de ação de resistência escravista brasileira.

A guerreira angolana Nzinga Mbandi, após a morte de seu pai, inaugura seu

poder de ação, já no reinado de seu meio- irmão, o rei Ngola Mbandi, indo negociar,

com apoio de uma delegação enviada pelo rei de então, visando uma possível aliança

entre seu irmão e colonos na cidade de Luanda. Lá chegando, foi recebida com pompa e

conseguiu honrar a memória de seu pai, firmando acordo de paz entre os colonos.

Na visão de luta de resistência contra os invasores, a célebre rainha Nzinga

Mbandi percebeu que a guerra, inicialmente, não era a melhor solução para se alcançar

paz. Para isso, julgou necessário, em primeiro lugar, manter o acordo de paz e, depois,

formar a coligação. Essa guerreira percebeu também que lutar isoladamente significaria

a derrota. Usando de estratégica, inteligência e de coragem, ela atingiu o objetivo de

paz, a ponto de a historia oficial fazer a seguinte afirmação:

A embaixada de Nzinga conseguiu a paz desejada. Os portugueses estiveram


de acordo. E como eles precisavam tanto de paz como Ngola Mbandi, não
puderam exigir condições. A paz foi feita e a única coisa que os portugueses
quiseram exigir foi que o rei entregasse os escravos fugitivos. Nzinga
concordou com essa exigência porque sabia que só assim podia arranjar um
novo exército e libertar muito mais escravos e também os povos dominados
(GOVERNO DE ANGOLA, 1965, p.68).
Depois de consumadas as negociações, essa destemida e corajosa mulher, ao

retornar para casa e para não prejudicar as relações com os portugueses, ordena a morte

de seu meio- irmão, que insistia em atacar os portugueses em forma de guerrilha.

Declarada rainha, Nzinga obteve respeito e prestígio do povo e, em pouco tempo,

conseguiu a união de alguns estados, formando, assim, uma segunda coligação

(COSME, 1994, p.34).

A rainha Nzinga, em 1635, conseguiu formar uma forte coligação composta

pelos estados de Matamba, Ndongo, Congo, Cassanje, Dembos, Kissama, além de

contar com alguns homens do Planalto do Bié. Essa coligação atacou e venceu os

portugueses em várias batalhas, confinando-os à fortaleza de Massangano. Nesta

ocasião, Nzinga foi proclamada rainha pelos jagas (guerreiros). Conseqüentemente, o

estado do Ndongo passou a denominar-se Matamba e Ndongo. A situação dos colonos

se agravou ainda mais com a chegada dos holandeses com suas armas de fogo, aliando-

se à Nzinga a fim de, mais tarde, também eles dominarem o território. Depois de várias

batalhas, os holandeses conseguiram firmar residência em Luanda, subjugando os

portugueses (COSME, 1994, p.34).

Mas, depois de muito tempo, os portugueses puderam contar com o apoio de

alguns sobas (soldados) traidores e de brasileiros, que já dependiam bastante da mão-

de-obra escrava para desenvolver a sua economia. Após várias batalhas que visavam

impedir a saída de escravos para o Brasil e expulsar os portugueses da colônia - embora

conseguissem controlar grande número de escravos -, o exército não conseguiu, dessa

vez, exp ulsar os portugueses porque estes, agora, contavam com o apoio de colonos e
escravistas brasileiros que lhe enviaram navios e milhões de soldados, comandados pelo

capitão do Brasil, Salvador Correia de Sá.

O fracasso do exército comandado por Nzinga se deu por falta de armamento

suficiente. Mas Nzinga, não se dando por vencida, renunciou à fé católica, fundiu-se ao

grupo de resistência kimbundu, submeteu-se ao rito de iniciação de quilombo, se

aperfeiçoou em táticas de guerra e permaneceu até sua morte ao lado de seu povo

guerreiro quilombola na luta de resistência e de libertação negra (SERRANO, 1989,

p.139-41).

Essa luta de resistência escravista que Nzinga participou em defesa do seu povo

oprimido, enquanto sujeito, não foi silenciada no tempo e, depois de 14 anos de luta

armada, Angola, que desde o século XV foi colonizada por Portugal, tornou-se

independente, em 11 de novembro de 1975 (DALAS, 2000, p.12-6).

A rainha, guerreira e quilombola Nzinga, morreu em 17 de dezembro de 1663,

aos 82 anos, deixando registrada sua significante atuação política, sobretudo nas

memórias das gerações seguintes. Na cidade de Angola há uma influência da realeza

mais respeitada e temida pelos portugueses do reino de Ndongo. Nzinga, guerreira

quilombola, é ainda um símbolo de autoridade política entre as linhagens Kimbundu,

tornando-se, através da práxis, uma protagonista da história de resistência de seu povo

africano (HENDERSON, 1991, p.14).

No Brasil, bairro de Pirajá, subúrbio de Salvador, em 17 de dezembro de 1826,

após 163 anos da morte física da rainha quilombola de Angola Nzinga Mbandi, Zeferina
assume, publicamente, a luta contra o sistema escravista, inserindo-se na tradição de

resistência quilombola.

3.4.4.2. Aqualtune

Durante muito tempo, a tradição oral salvaguardou a história de Aqualtune,

mulher negra, pertencente à elite de Palmares, mãe de Ganga Zumba e avó de Zumbi.

Graças à formação do Coletivo de Mulheres Negras (apud MOTT, 1988, p.45), sabe-se

que Aqualtune foi filha do rei do Congo e que essa princesa, por conta das rivalidades

existentes entre os diversos reinos africanos, foi vendida como escrava para o Brasil.

No século XVII, sua história de resistência teve início na África, quando os

Javas (guerreiros) invadiram o Congo. Aqualtune liderou de frente a batalha a fim de

defender o seu reino, comandando um exército de 10 mil guerreiros. Derrotada, foi

levada para Recife, num navio negreiro. Grávida e vendida para um engenho em Porto

Calvo, de onde teve notícias de Palmares e, prestes a dá à luz, organizou uma fuga

coletiva rumo a este espaço de resistência. E lá, ao lado de Ganga Zumba, iniciou a

organização de um Estado negro, abrangendo distintos e confederados povoados.

3.4.4.3. Dandara

Dandara, no século XVII, atuou como uma das lideranças quilombolas, lutando,

ao lado do líder Ganga-Zumba, em Palmares, contra o sistema escravista no Brasil. É

possível que Dandara tenha nascido no Brasil e se estabelecido no quilombo de

Palmares ainda criança. Por ocasião da primeira rebelião contra a escravidão no Brasil e
da formação do Quilombo dos Palmares, a guerreira Dandara esteve partilhando o poder

com Ganga Zumba na Serra da Barriga, Alagoas.

Dandara participou de todos os ataques e defesas de resistência no Quilombo de

Palmares. Na condição de líder quilombola, Dandara questionou os termos do tratado de

paz assinado por Ganga Zumba e o governo português. Colocou-se contra o mesmo,

combateu Ganga Zumba e juntou-se a Zumbi, perseguindo sempre o ideal de liberdade.7

Quando estava em jogo a segurança do Quilombo dos Palmares e a eliminação do

inimigo, a guerreira Dandara desconhecia qualquer limite. E, neste caso, o limite era o

ilimitado.

Próximo da cidade do Recife, estado de Pernambuco, depois de vencer várias

batalhas, Dandara pediu a Zumbi que toma sse a cidade. Sua posição, contrária à atitude

de Ganga Zumba de assinar o tratado de paz com o governo português, levou outras

lideranças a ficarem ao seu lado e de Zumbi dos Palmares. É fácil imaginar que, para

Dandara, a paz em troca de terra no vale de Cucaú era a destruição da República dos

Palmares e o retorno à escravidão. Por ocasião da destruição da Cerca Real dos

Macacos, Dandara, com outros quilombolas, foi assassinada em 6 de fevereiro de 1694.

3.4.4.4. Tereza

No século XVIII, no estado de Mato Grosso, existiu o quilombo Quariterê,

ocupado por negros e índios e liderado por uma mulher chamada Tereza. A rainha

7
Informação da Internet disponível no site www.altavista.com.br no endereço:
http://www.ipit.br/área_pedagógica/tisa/movimentos%20Negros/site/Negro/site/negritude/expoente_dand
ara.htm pesquisado em 07 de agosto de 2003.
Tereza, provavelmente nascida no Brasil, era de procedência de Benguela, distrito de

Angola. Essa mulher liderou um grupo de 79 negros e 30 indígenas instalados próximo

ao Rio Galera, afluente do Rio Guaporé, próximo da fronteira da Bolívia. Segundo

Mott:

Tereza impôs tal organização a Quariterê que o quilombo pôde sobreviver até
1770. Contava com um parlamento, presidido pelo capitão-mor José Cavallo,
um conselheiro da rainha, José Piolho, e um sistema de defesa, organizado
com armas trocadas com os brancos ou roubadas em incursões às vilas das
redondezas. O controle que Tereza exercia sobre a aldeia era férreo. Temendo
deserções, que inevitavelmente desaguariam em traições, punia com a força
ou agressões físicas aqueles que tentavam abandonar Quariterê. Tereza era
vaidosa e se fez assistir por um bom número de negras e índias (MOTT,
1988, p. 46).

Este quilombo, durante o governo dessa líder quilombola, contou com uma

agricultura desenvolvida, produzindo algodão e vários mantimentos. Essa comunidade

possuía teares com os quais fabricava tecidos grosseiros que, juntamente com os

excedentes alimentares, abastecia o comércio externo. Ainda, neste quilombo, havia

duas tendas de ferreiro.

3.4.4.5. Felipa Maria Aranha

No século XVIII, na cabeceira do rio Itapuru, que desemboca no Tocantins,

existiu um quilombo chefiado por uma mulher negra chamada Felipa Maria Aranha.

Este quilombo abarcava mais de 300 quilombolas e Felipa, pela valentia, foi intitulada

Principala. Os portugueses foram obrigados a tratá- la como beligerante e,

posteriormente, a aceitar a sua aliança (MOTT, 1988, p.47).

No início do século XIX, além da liderança de Felipa, nas proximidades do rio

Trombetas, perto de Óbidos, ainda na Amazônia, formou-se um quilombo, chefiado


pelo cafuzo Atanásio, que chegou a possuir mais de 2.000 habitantes que, além de

plantar mandioca e tabaco, vendiam produtos colhidos nas florestas da Guiana

Holandesa. Tudo leva a crer que estes quilombolas eram respeitados pela vizinhança e

isto se justifica pelo fato de levarem suas crianças para serem batizadas nas igrejas

vizinhas (MOTT, 1988, p.47).

3.4.4.6. Mariana

No século XIX, no Rio de Janeiro, nas matas de Santa Catarina, perto de

Vassouras, existiu um quilombo que possuía 200 pessoas que, durante o massacre das

tropas do governo, uma dentre os quilombolas, na linha de frente, gritava: “morrer sim,

entregar não”. Este quilombo foi chefiado pelo ferreiro e rei Manoel Congo e pela

crioula e rainha Mariana. Dentre as escravas presas havia as empregadas domésticas,

enfermeiras de seus parceiros e as que trabalhavam nas roças. Seus nomes eram

Mariana (costureira), Rita (enfermeira), Emília (lavadeira), Lourença (torrava farinha),

Josefa e Joana (trabalhavam na roça). Essas mulheres quilombolas pertenciam,

juntamente com Manoel Congo, a uma rede subversiva que visava pôr fim à escravidão

africana. Após a morte do líder, essa organização secreta continuou ocasionando outras

rebeliões nas redondezas (MOTT, 1988, p.48).

3.4.4.7. As Anônimas

Essa luta que extrapolou continente se fez presente nas cercanias de Salvador, na

primeira metade do século XVIII. Ali, formou-se o quilombo Buraco do Tatu, composto

por 65 adultos, governado por dois chefes, cada qual possuía mulher. Havia dois
“feiticeiros”, um homem mandinga e uma “velha”. Essa indelével informação aflora

nossa imaginação a fim de pensar nas mulheres que compunham esse quilombo, entre

outros, e que se passaram anônimas na historiografia oficial. E ainda assim, quando são

mencionadas, carregam uma identidade de pertença enquanto segundo sexo, portanto

mulher e a sombra do marido.

Segundo Beatriz Nascimento (apud Mott, 1988, p.46), no sudeste de Minas

Gerais, no quilombo do Ambrósio as mulheres trabalhavam na agricultura e se

ocupavam da extração de minérios. Neste mesmo estado, nas cercanias de Passanha,

habitada por uma tribo indígena denominada Malalis, houve um quilombo que foi

chefiado por uma mulher negra, sem nome. Esta, certamente, inclui-se na lista das

anônimas e quilombolas, mas que lutou de frente contra o sistema patriarcal excludente

de então.

Portanto, as mulheres de origem afro-descendente vêem resistindo, em diversos

espaços e formas, contra a escravidão desde o século XV, portanto, antes mesmo da

invasão do Brasil pelos portugueses. E a luta de Zeferina em Urubu está inserida nesta

tradição de resistência de mulheres negras, deixando acordado o poder de herança

dessas guerreiras e quilombolas.

3.5. O Poder de Zeferina

Na Bahia, a experiência de resistência de mulher afro-descendente tem mostrado

a capacidade desta de criar diversas estratégias a fim de burlar e resistir às exclusões


sociais vigentes. Desde o período colonial, a história de resistência das mulheres negras

tem permitido que elas lancem mão de diversas estratégias a fim de saírem da condição

de vítima do sistema escravista, ocupando espaço organizado de resistência e poder.

Esta experiência está evidenciada na luta de sobrevivência e resistência da comunidade

dos quilombolas em Urubu, representada no ato guerreiro da líder Zeferina.

No contexto de escravidão baiana, contamos com o referencial do poder

representativo dessa líder quilombola que foi à luta pela sobrevivência escravista e se

destacou na organização de estratégias em defesa do grupo que participava em Urubu. A

luta de Zeferina representou a si mesma e o desejo da comunidade. Portanto, o

verdadeiro poder dessa líder achava-se na posse do grupo, e a existência de sua duração

se mede pela coesa manutenção da comunidade negra da resistência.

A organização histórica política e sócio-cultural dessa comunidade plural se deu

de forma democrática. E, neste caso, a líder Zeferina não exerceu um poder de cima

para baixo, não liderou sozinha, mas, enquanto uma das representantes desse espaço de

políticas contraditórias ao sistema escravista, organizou a luta de resistência escravista

em conjunto com os demais quilombolas. O poder representativo e relacional que

Zeferina exerceu foi diluído entre as demais lideranças e quilombolas. Ali, a coesão

grupal estava assegurada pela solidariedade imposta em comum e pelo culto dos

ancestrais.

O poder de Zeferina foi de herança do sistema matrilinear de Angola, de

ancestralidade e de resistência das líderes quilombolas e guerreiras numa memória com

a África. Essa história de luta enquanto herança de poder foi salvaguardada nos terreiros
de candomblé do subúrbio baiano, sobretudo pelas “mães de santo”, e sendo recriada e

construída a partir da dinamicidade do processo de resistência individual, coletiva,

efetiva na comunidade de Pirajá e arredores pela tradição oral.

O poder dessa líder guerreira possuiu característica multifacetada que,

dependendo da circunstância política e dentro de uma dinamicidade estratégica,

expressou atributos carismáticos e organizativos, legitimados pela autoridade do

conhecimento de raízes matrilineares africanas e da herança de ancestralidade. Foi um

poder estratégico, relacional, imperativo, democrático, singular e plural. A partir do

subúrbio baiano, na primeira metade do século XIX, essa caracterização de poder de

herança, autorização e representação interna serviu para entusiasmar, organizar e

capacitar a comunidade quilombola na luta de sobrevivência e de resistência escravista

colonial.

O poder de Zeferina foi representativo, legitimado pela herança de

ancestralidade, autorizado no ato do sentar para discutir, planejar estratégias e agir em

comum enquanto comunidade alternativa de resistência escravista. Embora o exercício

desse poder tenha se dado de forma relacional, coeso, entre os membros da comunidade

este mesmo poder buscou respeitar uma certa hierarquia carismática. O que legitimou

tal poder foi o apelo ao passado de resistência, sobretudo das antepassadas e ancestrais.

A eficácia desse poder se expressou na luta por preservação da dignidade, traduzida na

luta pelo direito de cidadania e de visibilidade da comunidade excluída ali.

O poder dessa rainha, filha de Iansã, foi vivenciado e amadurecido no espaço do

Candomblé de Caboclo existente no centro do quilombo. Neste espaço que confere


poder religioso em Urubu, embora tenha contado com a liderança de Antonio de Tal, a

participação das mulheres foi decisiva (CARNEIRO, 1977, p.105). E, neste caso, o

saber de resistência cultural dessa líder guerreira foi também originário daí. Este saber

que se traduziu em poder de resistência que capacitou essa angolana para desenvolver

uma práxis plural de poder e de respeito à alteridade. Neste sentido, a rainha Zeferina,

através das formas organizativas de Quilombo-Terreiro, buscou-se no relacionamento

entre a população autóctone e negra o reencontro de uma democracia de verdade com

dimensões político-religiosas.

No processo de inserção e vivência na religião dos orixás, Zeferina desenvolveu

a plenitude de sua potencialidade, conquistando a confiança e o segredo inviolável que

lhe atribuiu poder de pertencimento e de filiação ao sistema místico dessa tradição

ancestral. A autoridade espiritual dessa possivelmente ialorixá transcendeu o âmbito dos

quilombolas enquanto capacidade administrativa, político-social, humana e religiosa de

participação contraditória ao sistema escravista da primeira metade do século XIX, no

subúrbio baiano.

A organização do poder de Zeferina no Quilombo do Urubu foi resultante de

uma influência e de uma concepção carismática do Candomblé e da expressão de

solidariedade indígena. Neste caso, trata-se, também, de um espaço de resistência

religiosa onde a mulher, sobretudo negra, detinha grande parcela de poder.

A líder Zeferina, enquanto sujeito histórico de transformação, exerceu seu poder

de resistência na luta a favor de si mesma e do seu povo oprimido em Urubu. No dia 17

de dezembro de 1826, justamente no dia em que se pode celebrar, sobretudo em Angola,


163 anos de imortalidade da guerreira, rainha e quilombola, Nzinga Mbandi, Zeferina

executa seu poder de ação contraditória, metendo cunha na supremacia dos escravistas

coloniais, abrindo possibilidade de resistência negra, a partir do subúrbio baiano.

A fonte do poder de Zeferina foi o conhecimento histórico, mítico e místico e de

resistência. No Quilombo do Urubu, este poder, resultante do saber e da capacidade de

si mesma, foi construído na luta de sobrevivência e organização deste espaço

alternativo. Hoje, nos bairros do subúrbio baiano, o poder dessa guerreira vem sendo

reconstruído enquanto protagonista histórica de uma memória subversiva e perigosa.

A autoridade do poder de Zeferina foi legitimada pela aprovação e unidade dos

quilombolas em Urubu e que serviu como instrumento facilitador ao crescimento dessa

comunidade de resistência a qual fazia parte, exercendo um modelo de liderança,

sobretudo carismática, contando com a presença de alguns conflitos e de influências

externas. Seu estilo sócio-político de atuação refletiu o modelo religioso do Candomblé

de Caboclo, onde se experimentava a partilha de conhecimento, de saber, de poder, de

desejo de transgressão e superação da situação de exclusão social.

O poder de Zeferina possuía um dinamismo que passava pela estrutura

organizacional do terreiro cuja finalidade era (é) desenvolver princípios que

promovessem vontade de superar os limites do lugar social que constituiu o contexto de

uma vida pessoal e político-social (SIQUEIRA, 1998, p.426). Este poder se traduziu no

bem-estar, buscando priorizar os direitos das pessoas idosas e das crianças, além de

salvaguardar o modelo de família extensa e simbólica dessa comunidade mista de

resistência escravista em Urubu.


O poder representativo dessa líder quilombola se expressou pela capacidade de

constituição de ameaça ao sistema escravista. A capacidade se fez presente no âmbito

estrutural, enquanto força contraditória. Entretanto, a capacidade de agir dos

quilombolas, representado por Zeferina e apoiados algumas vezes pelos autóctones,

contra o sistema de escravização dependia, muitas vezes, de fatores regional e colonial.

O poder de Zeferina pode ser visto como força social de resistência, que buscou

atuar no centro do sistema escravista enquanto elemento de transformação e

reconstrução social. O poder dessa guerreira foi exercitado de forma, coesa, fora dos

padrões sociais normais e se expressou em meio ao conflito. No exercício de um poder

representativo em Urubu, Zeferina privilegiou a preservação da família extensa, a

solidariedade entre os "parentes" e seu governo foi exemplo de que uma mulher

assumiu função de liderança a partir de base cultural solidamente autônoma (MOURA,

1989, p.36-7).

O poder de Zeferina tem feito parte da memória histórica de resistência da

comunidade suburbana, que tem permitido salvaguardar essa história de luta enquanto

referencial guerreiro de resgate da auto-estima dessa população excluída

economicamente, principalmente. E é nesta compreensão mítica de resistência negra

que a guerreira Zeferina “renasce das cinzas”, conferindo poder de memória subversiva

a cada ato de protesto e luta de libertação no bairro do atual quilombo e arredores

baianos.
CONCLUSÃO

No contexto de escravidão, entre 1822-1826, Salvador foi cenário de guerra pela

Independência de Portugal. Os conflitos que se seguiram e as mudanças na conjuntura

internacional marcaram o final da trajetória ascendente, desorganizando sua vida

econômica. A escravidão atingiu mais diretamente as mulheres negras. Elas eram vistas

como objetos sexuais dos brancos, escravas, infanticidas, sensuais, lascivas, imorais,

sem religião, negadas no direito de maternidade e a possibilidade de desenvolver

relações familiares. As mulheres brancas eram senhoras, mães, castas, puras e reduzidas

à procriação através de relações de parentesco.

A idéia de livrar-se do cativeiro permeava quase sempre o pensamento das

pessoas escravizadas. Poder viver em liberdade significava fazer, em tese, o que bem

quisesse e entendesse de sua vida, apropriar-se do produto de seu trabalho, ter pleno

direito de ir e vir. Desde os primórdios, as mulheres negras foram de fundamental

importância no processo de resistência e de libertação das amarras políticas e culturais

de seu povo. Sobretudo nos quilombos e nos Candomblés, elas foram as principais

protagonistas de nossas muitas histórias de resistência contra a violência que se abatia

sobre sua parentela.

No Brasil, as fugas para os quilombos foram uma das muitas maneiras que a

população escrava encontrou para não se submeter à escravidão, constituindo

comunidade organizada como lugar de liberdade e autonomia. Na cidade de Salvador, a

população escrava que fugiu de engenhos de açúcar dos bairros de Alto do Cabrito e

Pirajá, durante o período da escravidão, fundou na área, que hoje é o Parque São
Bartolomeu, o Quilombo do Urubu. O local tem uma existência ligada à história e à

cultura do nosso povo. No seu interior, encontram-se as áreas onde se travou a famosa

batalha de Pirajá em 1822, durante as lutas pela independência da Bahia. Seu interior

guarda, também, registros da existência do palco da resistência negra na Bahia. Lá

estabelecidos, os (as) quilombolas desenvolveram o Candomblé de Caboclo. A

preservação dessa religiosidade faz com que, até hoje, o parque seja procurado pelos

adeptos do culto.

O Quilombo do Urubu teve (e ainda tem) importância histórica enquanto modelo de

comunidade negra de resistência, capaz de implantar e gerir forma própria de

organização econômica e social, alternativa ao modelo dominante de sociedade local em

seu diferente aspecto. Hoje, a comunidade negra composta dos atuais quilombolas

persiste como segmento social diferente dos demais que o cercam. Também o é com

base na percepção interna e externa de uma cultura e de uma história que lhe é própria,

apesar de marcada por uma longa convivência com relação aos padrões mais

abrangentes da sociedade nacional.

O Candomblé foi um dos principais focos de resistência negra. Neste espaço

alternativo, a fé nos orixás e a luta por libertação andavam juntas. O Quilombo do

Urubu foi uma revolta contra a escravidão de raízes religiosas. Ali, através da oralidade,

sobretudo as mulheres negras souberam defender e preservar os fundamentos de sua

religião. O poder de atuação da líder Zeferina no levante de 1826 foi exemplo vivo de

rebeldia ao status quo.


O poder de Zeferina foi originário do conhecimento histórico mítico e místico de

seu povo africano e que, no subúrbio baiano, se tornou em referencial de resistência

contra a escravização portuguesa. A líder recebeu de sua mãe Amália uma forte

influência cultural do sistema matrilinear de Angola, sendo conhecedora da história de

luta de resistência do quilombo que a rainha Nzinga Mbandi participou em Angola. Essa

tradição de resistência matrilinear foi retomada, posteriormente, por essa líder no

Quilombo do Urubu com o objetivo de manter acesa a história de identidade e

resistência cultural, religiosa e de liberdade da comunidade excluída, numa relação com

a África.

O poder de Zeferina foi legitimado por um passado de resistência de seu povo,

parentes e ancestrais e que, por isto, nunca se encurvou diante da monstruosidade de

tudo que constituía a escravidão. Na força de seus ancestrais, orixás e no poder do raio

de Iansã, “que corta a escuridão do céu”, foi autorizada e reconhecida pela comunidade

de justaposição religiosa, arriscando tornar realidade um sonho ousado de partilha e

solidariedade, provando, sobretudo ao matador colonialista, uma coragem que não tem

limites. Revestida das características de Iansã, Zeferina projeta-se na inserção da luta de

transformação, de alteridade, de plenitude, de superação de situação atual de escravidão,

de justiça social.

O poder de Zeferina serviu como elemento que facilitou a lut a dos quilombolas

em Urubu. A base de sustentação do exercício de um poder animador naquela

comunidade plural foi o saber de herança de ancestralidade, da história de resistência de

seu povo, da cultura matrilinear e de tradição de resistência quilombola. Nos terreiros,

nos espaços de resistência ecológica e cultural do bairro de Pirajá e arredores este poder
tem sido reconstruído dentro de uma continuidade e dinamicidade cultural africana,

salvaguardando em sua organização uma base de família negra extensa.

A identidade da líder Zeferina tem sido resgatada nas bocas das (os) militantes

de Pirajá e bairros arredores enquanto referencial de luta de resistência atual. Portanto,

manter viva a lembrança histórica de Zeferina é cultivar na memória dos atuais

quilombolas o desejo de construir e reconstruir suas histórias de resistência partindo de

nossas raízes africanas.

Uma reconstrução histórica político-social da memória de luta subversiva dessa

líder do Quilombo do Urubu significa, de forma criativa, desconstruir visões

essencialistas, pejorativas e preconceituosas a respeito das mulheres negras, sobretudo

na historiografia oficial, trazendo-as ao centro das discussões de poder no âmbito sócio-

político e acadêmico.

No Parque São Bartolomeu e bairros arredores, ainda hoje, após 177 anos do ato

de poder político de 1826, essa guerreira é relembrada, rememorada, sobretudo nas

celebrações do Dia Nacional da Consciência Negra, por ser uma realidade mítica de

resistência negra. Seu exemplo não foi esquecido, mas continua vivo em cada mulher

negra, em cada homem negro, em cada criança negra, em cada adolescente negro (a)

para os quais a sociedade recusa os direitos mais elementares e que mesmo assim lutam

pela construção de uma nova sociedade justa e igualitária.

Hoje, como no passado, a opressão permanece. E no dia a dia a comunidade

negra demonstra sua capacidade de resistência através das empregadas domésticas,


faxineiras, babás, lavadeiras, mulheres negras que trabalham para o seu sustento e de

seus filhos, apesar da desvalorização que a sociedade impõe a seu trabalho. Operárias de

pouca especialização, serventes, garis, bóias- frias, vendedoras ambulantes, mulheres

negras tentando sobreviver em ocupações de baixa remuneração. A exigência de “boa

aparência”, ainda tão comum nos anúncios de empregos, exclui, sem sutileza, as

trabalhadoras que não correspondem aos padrões de beleza brancos, impostos pela

sociedade.

As histórias de luta de resistência contra a exclusão política e social, sobretudo

das mulheres negras e quilombolas no subúrbio baiano, têm sido resgatadas a partir do

recontar a história de atuação dessa guerreira em Urubu e, conseqüentemente, de uma

empática identificação com a mesma. Essa tradição de poder de resistência negra que

coloca, sobretudo as mulheres, na condição de sujeito histórico da libertação é

inaugurada na Suburbana através do conhecimento da subversiva e guerreira história de

resistência dos quilombolas em Urubu, representada na resistência de sua líder. Celebrar

essa história de resistência, no Dia Nacional da Consciência Negra significa conferir

força, inclusive espiritual, na luta de sobrevivência do dia a dia, elevando a auto-estima

dos atuais quilombolas.

Reconstruir, portanto, o poder de Zeferina enquanto resultado de um saber

originário do processo de formação do conhecimento histórico, mítico, místico de

resistência é propor que se celebre no lugar central onde acolheu o Quilombo do Urubu,

a cada 17 de dezembro - o dia da imortalidade de Zeferina - resgatando seu poder de

memória subversiva na tradição de resistência de quilombolas guerreiras a partir de

Angola, visto que nossa herança é nosso poder.


“Cada ser carrega em si o dom de ser capaz”

(Almir Satter)
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WYLLYS, Jean. São Bartolomeu,rogai por nós.Tribuna da Bahia, Salvador, p.8, 24


agos. 1996.
APÊNDICE

ENTREVISTA

NOME____________________________IDADE _________________SEXO________

RELIGIÃO_______________PROFISSÃO_______________BAIRRO_____________

FUNÇÃO QUE EXERCE NA COMUNIDADE_________________DATA_________

1. O que você conhece da história do atual Parque São Bartolomeu? E esta história
lhe foi contada por quem?

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2. Você já ouviu falar de Zeferina? O que sabe sobre ela?

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3. Você acha que o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) tem
alguma coisa a ver com a luta de Zeferina?

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Pela colaboração, obrigada!

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