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PARTE I DEFINICOES E DISTINCOES — ACIUFS CAPITULO I LITERATURA E ESTUDO DA LITERATURA EVEMOS comecar por estabelecer uma distingdo entre literatura D e estudo da literatura. Trata-se de duas actividades distintas: ma é criadora, uma arte; a outra, embora nao precisamente uma ciéncia, é no entanto uma modalidade do conhecer ou do aprender. Téem-se verificado, evidentemente, tentativas para obliterar esta dis- tingao. Ja se alegou, por exemplo, que uma pessoa néo conseguiré compreender a literatura sendo escrevendo-a; que nao poderiamos nem deveriamos estudar Pope sem primeiramente tentarmos compor dis- ticos herdicos, nem um drama isabelino sem antes termos escrito um drama em verso néo rimado *. Todavia, por muito util que a experiéncia adquirida na criacao literéria seja para o estudioso, a tarefa deste é completamente diferente, Deve é transpor para termos intelectuais a sua experiéncia da literatura, assimila-la num esquema coerente, © qual, para constituir conhecimento, tem de ser racional. Pode set verdade que a matéria do seu estudo seja irracional ou, pelo menos, contenha elementos fortemente nao racionais; mas o estudioso nao ficaré por isso em posicao diferente da do historiador da pintura, ou do musicblogo, ou mesmo do socidlogo ou do anatomista. E claro que desta relacionacao dificeis problemas decorrem. Varias tém sido as solugdes propostas, Alguns tebricos negariam mesmo, pura e simplesmente, que o estudo da literatura seja conhe- * Propugnado por Stephen Potter em The Muse in Chaing, Londres, 1937 418 RENE WELLEK E AUSTIN WARREN cimento, e aconselhariam a escrevé-lo como «segunda criagios, com resultados que hoje parecem futeis a quase todos nés—-como desericéo da Mona Lisa por Pater ou as passagens floridas que encontramos em Symonds ou Symons. Esse , ibid, pp. 147-182. R. G. Colitngwood, «Are History and Sctence Different Kinds of Know? ledge?», Mind, xxXI' (1922), pp. 449-456, e Pitirim Sorokin, Social and Owitural Dynamics, Cincinattl, 1937, vol. 1, pp. 168-174, ete. 18 TEORIA DA LITERATURA xées acerca da literatura. Mas néo passam de condigdes prévias. Afirmar que o estudo da literatura 6 serve a arte da leitura é conceber erréneamente 0 ideal do conhecimento organizado, por mais indispensavel que essa arte seja para o estudante da literatura. Ainda que se empregue a expressao «leituras num sentido suficientemente lato para abranger a compreensio critica e a sensibilidade, a arte da leitura nao passa de um ideal para uma cultura puramente pessoal. Como tal, € altamente desejavel, e serve, de resto, de base a uma cultura literaria largamente espalhada, Nao consegue, no entanto, substituir a concepcéo da einvestigacao literaria», concebida como uma tradig&o suprapessoal. 19 CAPITULO IT NATUREZA DA LITERATURA primeiro problema que se nos depara 6, dbviamente, o da matéria que constitui o objecto da investigacao literdria. Que obras sao literatura? Que obras no 0 si0? Qual é a natureza da literatura? Embora parecam simples, tais perguntas raramente séo respondidas com clareza. ; Uma das maneiras de responder consiste em definir a ), ou si0 toscos e induzem em erro (como «belles lettres» ou «literatura imaginativa»). Uma das objeccdes palavra «literatura» consiste na sugestao, que esta encerra (na sua etimologia de litera), de se limitar a literatura escrita ou impressa, porquanto qualquer’ concep¢ao coerente deve iteratura oral». A este respeito, o termo alemao Wortkunst € 0 russo slovesnost sio mais idéneos que o seu equivalente inglés. * Mark Van Doren, Liberal Education, Nova Torque, 1943, 23 RENB& WELLEK E AUSTIN WARREN ‘A maneira mais simples de resolver o problema é a de pér em evidéncia o modo particular de utilizagao da linguagem na literatura, i agem 6 o material da literatura, tal como a pedra ou o bronze © séo da escultura, as tintas da pintura, os sons da musica, Mas importa ter presente que a linguagem nao é uma matéria meramente inerte como a pedra, mas ja em si propria uma criacéo do homem e, como tal, pejada da heranca cultural de um grupo linguistico, As principais distingdes a estabelecer devem destacar 0 uso lite- rario, o uso‘diario e 0 uso cientifico da linguagem. Um recente exame deste assunto por Thomas Clark Pollock, The Nature of Literature?, embora no conjunto seja verdadeiro, nao parece inteiramente satis, fatério, em especial ao definir os termos da distincdo entre 08 usos literario e diario da linguagem. O problema é crucial, mas esta Jonge de ser simples na pratica, uma vez que a literatura, diferentemente das outras artes, nao tem um meio de expresso proprio, e uma vez que indubitavelmente existem muitas formas mistas e muitas tran- sigdes subtis desses usos. E bastante facil diferencar a linguagem da ciéncia da linguagem da literatura. O simples contraste entre «pensamento» e , © qual podera disfarcar e quase esconder a atitude do escritor, do que num poema lirico de expressio «pessoal», O elemento pragmatico, ténue na poesia «pura», pode ser abundante num romance de intencao ou num poema satirico ou didactico. Além disso, pode variar conside- ravelmente o grau até ao qual a linguagem é intelectualizada: existem poemas filos6ficos e didicticos e romances de tese que se aproximam, pelo menos ocasionalmente, do emprego cientifico da linguagem. Con- tudo, sejam quais forem os modos mistos que transparecam do exame de obras de arte literaria concretas, parecem claras as diferencas entre 0 uso literario e o uso cientifico: a linguagem literaria esté muito mais profundamente ligada & estrutura histérica da linguagem; acentua o grau de consciente realce do proprio signo; possui um lado expressivo e pragmatico, que a linguagem cientifica, inversamente, procurara sempre minimizar tanto quanto possivel. Mais dificil de formular é a distingaéo entre linguagem diaria e linguagem literdria. O conceito da linguagem didria nao é uniforme: inclui largas variedades, como a linguagem coloquial, a linguagem do comércio, a Jinguagem oficial, a linguagem da religido, 0 calao dos estudantes.{B, contudo, evidente que muito do que ficou dito acerca da linguagem literaria é aplicdvel também aos outros usos da linguagem, excepto ao cientifico, Assim, a linguagem de todos os dias também tem a sua funcdo expressiva, embora esta possa variar — desde uma incolor comunicacéo oficial até a uma apaixonada veeméncia suscitada por um momento de crise emocional. A linguagem diaria esta repleta dos irracionalismos e das mudancas coniextuais da linguagem histérica, embora momentos existam em que visa atingir quase a perfeicdo da descricdo cientifica. Apenas ocasionalmente ha a consciéncia dos proprios signos no falar de todos os dias. E todavia tal consciéncia transparece —no simbolismo sonoro de nomes e de acgoes. Sem diivida que a linguagem diria pretende, na maior parte das vezes, atingir resultados, influenciar accGes e atitudes. Mas seria 25 RENB& WELLEK E AUSTIN WARREN 2 & comunicagéo. Uma crianca tagarelando sézinha uma conversacao mundana e quase sem significado tram que existem muitos meios de utilizar a lingua- ou pelo menos primariamente, comu- falso_limité-l durante horas ou de um adulto mostram gem que nao sao estritamente, nicativos. aaa i %, assim, quantitativamente que antes de mais nada se pode diferenciar a linguagem literaria das diferentes utilizagdes de todos os dias. Na literatura, os recursos da linguagem sao explorados muito mais deliberadamente e sistematicamente. Na producdo de um poeta subjectivista manifesta-se-nos uma «personalidade» muito mais coe- rente e impregnante do que nas pessoas tais como as vemos em situacdes quotidianas. Certos tipos de poesia chegam a utilizar-se do paradoxo, da ambiguidade, da modificacao contextual do sentido, até da associacao irracional de categorias gramaticais como o género ou © tempo, com plena deliberacdo. A linguagem poética estrutura, torna mais cerrados, os recursos da linguagem corrente e as vezes chega a violent4-los num esforco para que demos por eles e neles atentemos. Um escritor encontrara muitos desses recursos ja formados e pré- -formados pela silenciosa e anénima obra de muitas geragées. Nalgu- mas literaturas altamente desenvolvidas, e especialmente em certas épocas, o poeta limita-se a usar uma convencao estabelecida: a lin- guagem, por assim dizer, faz poesia por ele. Todavia, todas as obras de arte impdem ordem, organizacao e unidade aos materiais de que se servem, Esta unidade parece por vezes muito frouxa, como sucede em numerosos apontamentos e histérias de aventuras; mas vai-se estrei- tando até atingir a organizacdo complexa e cerrada de certos poemas, nos quais pode ser quase impossivel alterar uma palavra ou a sua posigéo sem prejudicar o efeito de conjunto. ‘A distincdo pragmatica entre a linguagem literdria e a linguagem diaria é muito mais clara. Segundo essa distingao, rejeitamos como sendo poesia, ou rotulamos como simples retérica, tudo quanto nos persuada a cometer uma accdo exterior definida. A poesia genuina afectar-nos-ia, porém, de um modo mais subtil. A arte proporciona uma espécie de enquadramento que coloca fora do mundo da realidade a afirmacéo contida na obra. Na nossa andlise semantica podemos, assim, reintroduzir algumas das concepgdes comuns da esteétic: «contemplagao desinteressada», «distancia estéticas, «enquadrar- Novamente se deve ter em vista, todavia, que é fluida a distingao entre arte e nao arte, entre a literatura e a afirmacdo linguistica DA? literéria, Este critério estético poderia levar a condenacoes linguis- ticas das mais variadas espéeies, Constituiria uma limitads concepeio diddetice pe © dela excluir toda a arte de propaganda ou & Po a ca e satirica. Por outro lado, ha que reconhecer como literatu 26 TEORIA DA LITERATURA algumas formas intermédias, como o ensaio, a biografia e grande parte da retorica. Nos diferentes periodos da histéria, o reino da fungao estética parece expandir-se ou contrair-se: a epistolografia foi, por vezes, uma forma de arte, assim como o foi o sermao, ao passo que hoje em dia, de acordo com a tendéncia geral de os géneros se confundirem, nos surge uma compressio da funcio estética, uma énfase nitida na pureza da arte, uma reaccdo contra o pan-esteticismo e as suas pretensdes tais como elas eram defendidas pelos estetas de fins do século passado. Afigura-se melhor, no entanto, considerar apenas como literatura as obras nas quais é dominante a fungio estética, embora reconhecamos que existem também elementos estéticos — 0 estilo e a composicao, por exemplo— em obras com um objectivo completamente diferente, um objectivo nao estético, como sejam os tratados cientificos, as’ dissertacoes filoséficas, os panfletos politicos, os sermoes. Mas é no aspecto da «referéncia» que a natureza da literatura transparece mais claramente. O cerne da arte literaria encontrar-se-a, Obviamente, nos géneros tradicionais: lirico, épico, dramatico. Em todos eles existe uma «referéncia>, um relacionar com um mundo de ficgdo, de imaginacao. As afirmagées contidas num romance, num. poema ou num drama nao representam a verdade literal; nado sio proposicdes légicas. Existe uma diferenca central e importante entre uma afirmacao, mesmo a produzida num romance histérico ou num romance de Balzac que pareca comunicar uma «informacdo» acerca de sucessos reais, e a mesma informagao quando publicada num livro de historia ou de sociologia. Até na lirica subjectiva, 0 «eu» do poeta é um «eu» dramitico, ficticio. Uma personagem de romance é diferente de uma figura historica ou de uma figura da vida real. # formada meramente pelas frases que a descrevem ou pelas que foram postas na sua boca pelo autor. Nao possui nem passado, nem futuro, nem, as vezes, continuidade de vida. Esta reflexao elementar basta para responder a muito criticismo dedicado a questdes como a de Hamlet em Wittenberg, a da influéncia exercida sobre Hamlet por seu pai, a de um Falstaff esbelto e jovem, a da «adolescéncia das heroinas de Shakespeare», a de saber «quantos filhos teve Lady Macbeth» *. O tempo e 0 espaco num romance no sio 0 tempo e 0 * Tem interesse, a este respeito, a maior parte da obra de E. E. também L. L. Schilcking, Charakterprobleme bei Shakespeare, Leipzig, aa ae dugao inglesa, Londres, 1922) e L. C. Knights, How Many Children Had Lad Macbeth?, Cambridge, 1933 (reproduzido em Explorations, Londres, 1046, pp. 12 -54). Estudos recentes acerca do convencionalismo contra o naturalisme no drama: S. L. Bethell, Shakespeare and the Popular Dramatic Tradition Durhan N. C, 1944, © Eric Bentley, The Playwright as Thinker, Nova Torque, 1946, 27 RENB WELLEK E AUSTIN WARREN espaco reais. Até mesmo o mais aparentemente realista dos ro) oe exemplo, as proprias «talhadas de vida» dos naturalistes nao deixa de ser construido de acordo com certas convencées artis. ticas. Especialmente encarando-os de um angulo histérico mais recente, apercebemo-nos de como sao idénticos entre si os romances nature’ listas — pela escolha do tema, pelo tipo de caracterizacdo das perso- nagens, pelos sucessos escolhidos ou admitidos, pelos modos de con. duzir 0 dialogo. Descortinamos, do mesmo modo, o extremo conven- cionalismo do drama, até mesmo do mais naturalistico, nado s6 pela sua assungéo do enquadramento cénico, mas pelo modo por que o espaco e o tempo sao tratados, pelo modo por que o didlogo — mesmo do supostamente realista — é seleccionado e conduzido e Pela maneira por que as personagens entram e saem de cena *. Por muito diferentes que sejam, «The Tempest» e «Uma Casa de Bonecas» compartilham, no entanto, deste convencionalismo dramatico. Se reconhecermos que a «ficcionalidade», a «invengdo» ou a cima- ginacdo» sdo os tracos caracteristicos de literatura, concebemos a literatura mais em funcéo de Homero, Dante, Shakespeare, Balzac, Keats, do que propriamente de Cicero ou Montaigne, Bossuet ou f£merson. Concedemos que existirao casos «fronteiricos», obras como 2 Repiblica de Platéo, nas quais se ndo podem ignorar passagens de cinvencdo» ou de «ficcionalidade», pelo menos nos grandes mitos, nao obstante serem simultaneamente, e primordialmente, obras de filosofia, Esta concepedo de literatura é descritiva, e nao valorativa. Nao se cometerd grande injustica para com uma obra grande e exemplar pelo mero facto de a relegar para o campo da retérica, ou da filosofia, ou do panfletarismo politico, porque em todos esses campos se podem pér problemas de analise estética, de estilistica e de composicao, semelhantes ou idénticos aos postos em literatura, Para observacdes acerca do tempo no romance, ef. Edwin Mulr, The Structure of the Novel, Londres, 1928. Acerca do tratamento do tempo noutros géneros, cf. T, Zielinski, «Die Behandlung gleichzeitiger Vorgange im antiken Epos», In Philologue, Supplementband, Vill (1899-1901), pp. 405-409; Leo Spitzer, qUber zeltliche Perspective in der neueren franzdsischen Lyriks, in Die neueren Sprachen, xxx (1923), pp. 241-266 (reproduzido em Stilstudien, 11, Munique, 1928, pp P0783); Oskar Walzel, «Zeitform im lyrischen Gedicht>, in Das Wortkunst- inter atlP2ig, 1926, pp. 277-296. Nos anos mais recentes tem-se consagrado multo fowstin o4problema do tempo em literatura, em parte devido & influéncla 48 Poulet, sesgencialtsta, Cr. Jean Pouillon, Temps et Roman, Paris, 1946; Georges ieee ieeee wur le temps humain, Paris, 1952, tradugSo inglesa, Balti Londres, 19527 ce Interieure, Paris, 1932; A. A. Mendilow, Time and the Novel beme wrens Meyerhorf, Time in Literature, Berkeley, California, 1955. 1030, 2" ed, 195g, Steger, Dic’ Zest ale Einbildungskrast der Dichters, Zurique, Bona, 1946.” | Glnther Mller. Die Bedeutung der Zeit in der Eraahikunst, 28 TEORIA DA LITERATURA s6 com a diferenca de que naqueles faltara a qualidade central da «ficcionalidade». Esta coacepcdo de literatura incluiria nela, assim, todas as espécies de ficcdo, ainda que se tratasse do pior romance, do pior poema, do pior drama. Segundo ela, a classificacao como arte ou nao arte deveria constituir questao distinta da valoracio. Ha que dissipar, a este propésito, um equivoco bastante corrente. A literatura , e , os teéricos modernos, de diversas escolas (por exemplo Bergson, Gilby, Ransom, Stace), todos eles sublinham a particularidade da poesia. Diz Stace que a peca Othello nao versa o citime, mas sim 0 citime de Othello, a particular espécie de citime que poderia sentir um mouro casado com uma veneziana *. ‘Tipicidade da literatura ou sua particularidade: a teoria literaria e a apologética literaria podem acentuar uma ou a outra; porque a literatura, pode bem dizer-se, é mais geral do que a histéria e do que a biografia, mas mais particular do que a psicologia ou a socio- logia. Todavia, estas mudancas de angulo de visdo nao se verificam apenas no dominio da teoria literéria. Na pratica literaria, o gran especifico de generalidade ou de particularidade varia de obra para obra e de época para época. Pilgrim e Everyman propdem-se repre- sentar a humanidade. Mas Morose, a personagem «humoral» da Epicoene de Jonson, é uma pessoa especialissima e idiossincratica. Sempre se definiu o principio da caracterizacdo em literatura como consistindo em combinar o «tipo» com o «individuo» — mostrando © tipo no individuo ou o individuo no tipo. Nao tém sido muito frutuosas as tentativas de interpretar este principio ou os dogmas especificos dele derivados. As tipologias literarias remontam a dou- trina horaciana do decoro e ao repertério de tipos da comédia romana (or exemplo o soldado fanfarréo, o avaro, o filho gastador e roman- ico, 0 criado confidente). Voltamos a reconhecer o tipolégico nos ‘'W. T. Stace, The Meaning of Beauty, Londres, 1929, p. 161. 35 RENB WELLEK E AUSTIN WARREN livros de caracteres do século xvi e nas comédias de Molie como aplicar o conceito mais genéricamente? Representa 7, Mas a aia de Romeu ¢ Julieta? No caso afirmativo, qual? Bigot 3 tipo? Aparentemente, seria considerado Pelo publico isabeli gl melancélico, mais ou menos conforme é descrito pelo Dr. Tim a Bright; mas & também muitas outras coisas, ¢ 8 sua mame reveste-se de um contexto e de uma génese particular, Em cay sentido, a personagem que é tanto um individuo como um tipo é constituida, como tal, pelo processo de se apresentar como varios tipos: Hamlet é também um amante —ou foi-o —, um erudito, um Os chamados tipos caracteristicos sio personagens «planas» come todos nés encaramos as pessoas com as quais s6 temos relagdes de uma dada indole; as personagens «redondas» combinam concepeses e relacdes, sio mostradas em diferentes contextos —na vida publica, na vida intima, no estrangeiro 5, Um dos valores cognitivos no teatro e no romance parece ser Psicolégico, «Os romancistas podem ensinar-te mais sobre a natu- Teza humana do que os psicdlogos», é uma afirmacdo corrente. Horney recomenda Dostoievsky, Shakespeare, Ibsen e Balzac como fontes inesgotaveis. E. M. Forster (em Aspects of the Novel) referé o dimi- nuto numero de pessoas cuja vida interior e motivacdo psicolégica conhecemos e atribui o grande valor do romance ao facto de este nos revelar a vida introspectiva das personagens°. Presumivelmente, as vidas interiores que ele surpreende nas suas personagens derivam da sua propria introspecedo vigilante. Poder-se-ia sustentar que os grandes romences sao livros de referéncia para os psicologistas ou que sao repositérios de casos clinicos (isto é, exemplos demonstra- tivos e tipiccs). Mas isso leva-nos novamente a verificagdo de que os psicologistas recorrem ao romance apenas pelo seu valor tipico gene- ralizado: deduziréo o caracter do Pére Goriot do ambiente geral (a Maison Vauquer) e do contexto das personagens. Max Eastman — que é um poeta menor — negaria que o , como Platao impulsivamente lhe chamou. A literatura imaginativa é uma ; a poesia é tao séria e tao importante como a filosofia (ciéncia, conhecimento, sabedoria) e possul a equiva- léncia da verdade, é semelhante a verdade. ‘A Sr Langer, na sua tese segundo a qual o simbolismo apre- sentativo 6 uma forma de conhecimento, baseia-se mais nas artes plasticas, e mais ainda na musica, do que na literatura. Parece considerar a literatura de certo modo uma mistura dos elementos sdiscursivo» e «apresentativo». O elemento mitico —ou imagens arquetipicas — da literatura é que corresponderia, porém, ao elemento apresentativo da Sr.* Langer ™. Das concepedes segundo as quais a arte é a descoberta ou a intuicéo da verdade, devemos distinguir uma outra cuncepcao, que afirma que a arte — especificamente a literatura — é propaganda; ou seja que o artista, em vez de descobrir a verdade, a fornece per- suasivamente. O termo «propaganda» é vago e necessita de ser exa- minado, Na linguagem corrente, é aplicado apenas a doutrinas con- sideradas perniciosas e espalhadas por homens de quem desconfiamos. Nessa acepcao, implica calculo, intengdo, e é usualmente empregue a propésito de doutrinas ou programas especificos e bastante restri- tos *. Delimitando dessa forma o sentido do termo, poderiamos dizer que uma certa arte (a espécie mais baixa da arte) é propaganda, mas que nao pode sé-lo a grande arte (ou Arte). Se, contudo, dermos ao termo maior latitude, de modo a abranger o no fim daquela experiéncia estética '*. - Mas libertar-nos-4 a literatura das emocées, ou, pelo contrario. incita-las-A? Platao pensava que a tragédia e a comédia «alimentam © regam as nossas emocoes, quando o que é preciso € seca-las>. Ou —se a literatura nos alivia das nossas emocgdes— nao sao estas descarregadas numa direccdo errada quando as despendemos em fic- cées poéticas? Santo Agostinho confessa que em jovem vivia em pecado mortal: e, contudo, «eu nao chorava esse facto, embora cho- rasse com a morte de Dido...». Sera que alguma literatura é incitativa e outra catartica, ou a diferenca estard em grupos de leitores e na natureza da sua reaccdo’? Mais ainda: deve toda a arte ser catar- tica? O estudo destes problemas caberia nas epigrafes «Relagio da Literatura com a Psicologia» e «Relacdo da Literatura com a Socie- dade»; contudo, havia que levanta-los agora, preliminarmente. ‘A nossa resposta hipotética 6 a de que, em relacdo a leitores léneos, a literatura nao estimula rem deve estimular emocées, As emocoes representadas na literatura néo séo, nem em relacdo ao escritor, nem em relacao ao leitor, iguais 4s experimentadas na «vida real»; so emocdes «recordadas com tranquilidade»; sao «expressa- das» — isto é, libertadas — pela andlise; so sentimentos de emogées, percepgdes de emogées. Para concluir: é remota a histéria da questao relativa 4 fungao da literatura no mundo ocidental, desde Platao até hoje. Nao se trata de uma questdo suscitada instintivamente pelo poeta ou por aqueles que apreciem poesia; para esses, «a Beleza é em si propria a justifi- cacao da sua existéncia», como uma vez Emerson foi levado a dizer. ‘A questao € posta, sim, por utilitaristas e por moralistas, ou por homens de Estado e filésofos, ou seja pelos representantes de outros valores especiais ou pelos arbitros especulativos de todos os valores. Perguntam eles: afinal, qual é a utilidade da poesia —cui bono? E formulam a pergunta em toda a sua dimensdo social ou humana. Goethe, Dichtung und Wahrheit, tiv. xi, Collingwood (op. cit., pp. 121-124) distingue entre «expressar emocdo» (arte) e «trair emocdo» (forma nao artistica) * Platéo, Republica, X, § 606 D; Santo Agostinho, Confissdes, 1, p. 21 A. Warren, «Literature and Societys, in Twentieth Century English (org. W. S. Knickerbocker), Nova Torque, 1946, pp. 304-314, 41 RENE WELLEK E AUSTIN WARREN iados, 0 poeta e 0 leitor instintivo da poesia sentem-ge a oa cidadaos moralmente e intelectualmente respon. saveis — a dar uma resposta razodvel & comunidade. E fazem-no numa passagem de uma Ars Poctica; e fazem-no numa Defesa ou Apologia da Poesia: equivalente literario daquilo que em teologia Se chama «Apologética» ". Escrevendo com esse fito espara esse pre- sumivel ptblico, acentuam naturalmente mais a «utilidade» do que o «deleite» da literatura; e daqui resulta que hoje seria semantica- mente facil equacionar a «funcao» da literatura com as relacdes extrinsecas desta. Mas desde 0 movimento romantico tem o poeta frequentemente dado — quando desafiado pela comunidade — uma outra resposta: a resposta a que A. C. Bradley chama a «poesia pela poesia» ""; e os tedricos fazem bem em deixar que o termo «funcao» | sirva toda a gama «apologética». Empregando neste sentido a palavra, diremos que a poesia tem muitas funcoes possiveis, A sua funcdo primordial e principal é a da fidelidade A sua propria natureza.~ “ Spingarn, na Torque, ed, rev. 1924) eaerY of Literary Criticism in the Renaissance (Now ‘dustificacéor da poesia“ "® S8t® tpico sob as rubricas da «fungaor © ds “A.C. Bradley, ¢ Oxford, 1909, pp agi, POetY for Poetry's Sake», Oxford Lectures on Postry, 42 CAPITULO IV TEORIA LITERARIA, CRITICISMO LITERARIO E HISTORIA LITERARIA OMO contemplamos urna base racional para o estudo da litera- C tura, devemos concluir no sentido da possibilidade de um estudo sistematico e integrado da literatura. A lingua inglesa nao contém nenhum nome satisfatério para o definir. As expressdes mais comummente usadas sao «erudicdo literaria» e «filologia». A primeira é criticavel apenas devido ao facto de parecer excluir o «criticismo» e de sublinhar a natureza académica de tal estudo; é, porém, acei- tavel se o termo «erudito» for interpretado num sentido tao lato como aquele em que Emerson 0 tomou, A segunda expressio — «filo- logia» — é susceptivel de muitos equivocos. Historicamente, tem sido utilizada com inclusdo nao s6 de todos os estudos literarios e linguis- ticos, mas também do estudo de todos os produtos do espirito humano. Embora tenha conhecido a sua maior voga na Alemanha do século passado, sobrevive ainda nos titulos de revistas como Modern Philology, Philological Quarterly e Studies in Philology. Boeckh, que escreveu uma fundamental Encyklopddie und Methodologie der philo- logischen Wissenschaften (publicada em 1877 mas baseada em con- feréncias anteriores, algumas delas proferidas em 1809) ', definia a +filologia» como o «conhecimento do conhecido» — e, daqui, como o * Philip August Boeckh, £1 ncyklopéidie un Wissenachajten, Leipz, ykloptidie und Methodologie der philologischen 1877 (2. ed., 1886). 43 RENE WELLEK E AUSTIN WARREN 1m e das literaturas, das artes e da politica, da | filologia de Boeckh — pratica- \ umes sociais. A folcTeenlaw — foi dbviamente | ria literaria> eenl aL motivada pelas necessidades dos estudos, classic Fria € Sis. jeularmente necessario 0 aux io da hi - af ear art poeekh o estudo da literatura é apenas um ramo da | Splegia. f Jobal da civilizagao, | i a ciéncia 8! filologia, comprendida esta como um: e om particular uma ciéncia inserta naquilo a que ele, de acordo com mo alemao, chamava 0 «Espirito Nacional». Hoje, devido | 3 coe do termo e a muito do trabalho concreto elect por especialistas, entende-se frequentemente que @ filologia Siem ba a Iinguistica, sobretudo a gramatica histOrica ‘0 estudo de passadas formas de linguagem. Atendendo a que © termo tem tantos e tao Givergentes sigmficados, é melhor ndo o adoptar- Gatro termo alternativamente usado para descrever © trabalho do estudioso literario é o de «pesquisa». Mas este afigura-se extremamente infeliz, por isso mesmo que acentua a busca meramente preliminar dos materiais e estabelece, ou parece estabelecer, uma insustentavel distincao entre os materiais que tém de ser «procurados» e os de que podemos dispor com facilidade. Por exemplo, fariamos «pesquisa» quando féssemos a0 Museu Britanico consultar um livro raro, mas ao lermos em casa, sentados numa poltrona, uma reedicao desse mesmo livro, estariamos a empregar um outro processo mental. Quando muito, o termo «pesquisa» sugere certas operacdes prelimi- nares, cuja natureza e amplitude variam grandemente consoante 2 natureza do problema. Mas nao consegue sugerir devidamente aquelas subtis preocupacées com a interpretacdo, a caracterizacao e a valo- Tago que sio peculiarmente caracteristicas dos estudos literdrios. Dentro do nosso dominio especifico, as distincdes mais impor- tantes sio as estabelecidas entre a teoria literdria, 0 criticismo litera- , Tio e a historia literaria. Temos, em primeiro lugar, a distingdo entre uma concepcao da literatura como ordem simultanea e uma concep¢ao da literatura que a encara primordialmente como uma série de obras dispostas numa ordem cronolégica e como partes integrantes do pro- Seat hist6rico, Temos, depois, outra distin¢io — entre o estudg dos eee cee da literatura e o estudo das obras de arte lite- 1 retas, quer as estudemos isoladas, quer numa série crono- gica. Achamos preferivel chamar a atenca istincd mediante a descricao como «teoria lit atengdo para estas distingdes da literatura e das suas categori: ston 2 eee ioe princfpios semelhantes, € mediante a diferenciaeke, dee ealeanr de obras de arte coneretas em «criticismo li renciagéo dos estudos de obras de 4 londemertaieerey suse iterario» (cujo método de observacéo ico) e em chistéria literaria>. Evidente- estudd da linguage religido e dos cost mente idéntica @ hist 44 TEORIA DA LITERATURA ssa «criticismo literario» 6 muitas vezes usada num toda a teoria literaria; essa pratica, ma util distingao. Aristételes era um uve, essencialmente, um critico. Kenneth Burke é prineipaimente um teorista literario, ao passo que R. P. Leave é um critico literario. ‘A expressao «teoria da literatura» bem pot ate incluir —e isto fa-lo este volume — as téo necessarias «teoria do criticismo literario» e «teoria da historia literaria». : . Estas distingdes sao bastante ébvias e largamente aceites. Ja menos comum é, porém, o reconhecimento de que os métodos assim | descritos nao podem ser utilizados isoladamente e de que tém mutuas | | implicagdes tao completas que a teoria literaria € inconcebivel sem © criticismo ou a histéria, assim como 0 criticismo sem a teoria € & historia, ou a historia sem a teoria e o criticismo. B manifesto que” a teoria da literatura so se torna possivel com base no estudo de obras literarias concretas. Nao se podem alcancar in vacuo criterios, categorias ¢ esquemas. Mas, reciprocamente, também o criticismo ou a historia nao sao possiveis sem um conjunto de questGes, um con- junto de conceitos, alguns pontos de referéncia, algumas generaliza- ges, Nao ha aqui, é claro, qualquer dilema intransponivel: nao ha quem leia sem quaisquer preconceitos, assim como nao ha quem nao mude ou modifique esses preconceitos 4 medida que vai aumentando o ntimero de obras lidas. O processo é dialéctico, ¢ uma interpene- tracao mutua da teoria e da pratica. ‘Tem havido tentativas de isolar da teoria e do criticismo a hist6- ria literaria. Por exemplo, F. W. Bateson? sustentou que a histéria literaria mostra que A deriva de B, ao passo que o criticismo afirma que A é melhor do que B. De acordo com esta concepcao, o primeiro ae epee mca, Man cate eritério’ & tnteiramente insustentével, ET cpr es hue rer eles inteiramente insustentavel. stem quaisquer dados que sejam «factos» completamente neutros. Os juizos de valor estéo implicitos na pré pria escolha dos materiais: na simples e preliminar distinedo entre livros e literatura, no maior ou menor espago consagrado a. © olen aquele autor) Até mesmo a verificagéo de uma data ‘ou de um titulo Dressupde uma certa espécie de juizo, um juizo que sel livro on este sucesso de entre os milhges de outrog livros ¢ sucesene E [ : Ses de outros livros e suce: B anda que concedamos que hi actos relativamente nevtros, tain a conceder a passibilidade de compiler os ornia ae Maca emtamos pilar os anais da literatura. Mas mente, a expres todavia, teorista; Sainte-Be oF Ww. B « fateson, «Correspondence», Scrutiny, 1V (1935), pp. 181-185. 45 RENE WELLEK & AUSTIN WARREN i juestac qualquer questéo um pouco mais avancada = faa uma questi Be de critica textual ou de fontes e de influéncias jui: i 4o como, por exemplo, «Pope actos de juizo de valor. Uma afirmaca Dy cuonat Daven ye a je o acto a de Dryden» nao s6 pressupoe eee de entre os intimeros vereiicede nee oo oe -acteristicas requer um conhecimento das cari eet i nderar, compara} @, depois, uma constante actividade de ponder r r * getividade essa que 6 essé neialmente critica. A questao eee boracdo entre Beaumont e Fletcher € insoltivel, a menos ce an mos um principio tao importante como € 0 de que certos ree pe tao mais relacionados com um escritor do expedientes) estilisticos es 1 que com 0 outro; de outra maneira, temos de aceitar as diferencas de estilo como mera questao de farto. ee Mas normalmente a tese de que a historia literaria deve ser independente do criticismo literario apoia-se noutras razdes. Nao se nega que sejam necessirios actos de juizo, mas alega-se que a historia literaria tem padroes e critérios peculiares, isto é, os das outras épocas. Sustentam esses reconstrutores literarios que devemos pene- trar no espirito e nas atitudes dos periodos passados e aceitar os seus padrées, deliberadamente excluindo a intrusio das nossas_proprias opinides prévias, Esta concepedo, chamada *. B. E, Stoll, ao estudar as convencées da cena isabelina eo . ‘ r que o seu pitblico desejava, baseia-se na teoria de que a reconstituicdo da inten. cao do autor € 0 objectivo central da histéria literaria ». Conceped andlogas esto contidas nas numerosas tentativas de estudar ac ten rias psicoldgicas da literatura isabelina, tais como o estudo da, dow. trina dos humores ou o das teorias cientificas ou pseudocientifices » Ernst Troeltsch, Der Historismus . nd Der Historiemus und seine Uderwindung, Bertim, 194m" Wash., Taito Fn Tae Study and the Scholarly Profession, Seattle, mente, que hi-de descobrir 0 sentido ¢ os Cals Gecialu, bastante inesperada- © POs @ sua f6 na concepcdo, por exemple de mee proPrios autores antigos, Tubinga, 1922; shakespearianos» (pp. 126-127) poright Joyce, Nova Torque, Tera, Minneapolis, 1930, p. 217; & 46 TEORIA DA LITERATURA dos poetas “ Rosen.ond Tuve tentou explicar a origem e o significado jas imagens metafisicas recorrendo ao facto de Donne e os seus “onternporaneos terem aprendido a légica ramista *. Como semelhantes estudos nao podem deixar de convencer-nos de que nessas diferentes épocas prevaleciam diferentes concepcdes criticas e conveng6es, dai haver-se concluido que cada época é uma unidade contida em si propria, que se expressa através de um tipo proprio de poesia, o qual nao pode medir-se em relagéo a qualquer outro. Essa conclusao foi propugnada com simplicidade e persuasio por Frederick A. Pottle no seu Idiom of Poetry *. Chama & sua posi- cio «relativismo critico» e menciona as profundas «alteracées da sensibilidade» e uma «descontinuidade total» na histéria da poesia. ‘A sua exposicao torna-se tanto mais valiosa quanto ele a combina com uma aceitacio de padrdes absolutos éticos e religiosos. Nas suas melhores manifestacdes, esta concepedo da chistéria literéria» exige um esforco da imaginacdo, uma «, in Yate Review, xxxi1 (1942), pp. 309-822. Stoll adere a uma outra variedade de historicismo, que insiste em Teconstituir as convencées cénicas © em atacar a reconstituigao de teorias psicolégicas. Ver «Jacques and the Anti- duaries», From Shakespeare to Joyce, pp. 138-145. the wigk™8erY_ and Logic: Ramus and Metaphysical Poetics», in Journal of @ History of Ideas, 11 (1942), pp. 365-400, "F.A. Pottle, The Idiom of Poetry, Ithacs Nova Jorque, 1941 (2. ed., 1946) 47 REN& WELLEK E AUSTIN WARREN mado o problema da critica. O autor serviu um objectivo seu contem. porfneo; e nao ha necessidade, ou sequer Possibilidade, de criticar mais extensamente a sua obra. Esse método leva, assim, ao reconhe- cimento de um unico padrao critico: 0 do éxito contemporaneo. Existiriam, portanto, néo apenas uma ou duas, mas literalmente cen, tenas de concepgdes da literatura, independentes, diversas e que mituamente se excluem —.e todas elas, de uma ou outra maneira, «certas». O ideal da poesia é fragmentado em tantas aparas que dele nada resta: o resultado devera ser uma anarquia geral ou, mais exac- tamente, um nivelamento de todos os valores. A histéria da literatura fica reduzida a uma série de fragmentos desagregados e. consequen- temente, incompreensiveis em ultima instancia. Ja mais moderada é @ concepeao segundo a qual existem ideais poéticos tao diametralmente opostos que entre eles nao ha qualquer denominador comum: o Classi- vismo e o Romantismo; o ideal de Pope e o de Wordsworth; a poesia de afirmacdo e a poesia de implicacio, Afigura-se, porém, inteiramente errénea a concepcao de que a «intencao» do autor devia ser matéria propria da histéria literéria, O significado de uma obra de arte nao esta limitado & sua intencao, nem é o equivalente desta. Como sistema de valores, tem uma vida independente. O significado de uma obra de arte nao pode ser definido meramente em funcio do seu significado para o autor.e para os contemporaneos deste. B, sim, o resultado de um processo cumula- tivo, ou_seja a histéria das criticas de que foi objecto em muitas épocas. Parece-nos desnecessario e verdadeiramente impossivel decla- rar, como fazem os reconstitucionistas histéricos, que todo esse pro- cesso 6 irrelevante e que apenas aos comecos devemos remontar. E-nos pura e simplesmente impossivel deixar de sermos homens do século Xx ao empreendermos a apreciacéo do passado: nao podemos esquecer-nos das associacdes das palavras que usamos, das atitudes recentemente adquiridas, do impacto e da heranca dos tltimos séculos. Nao podemos transformar-nos em leitores contemporaneos de Homero ou de Chaucer ou em espectadores no teatro de Dionysus em Atenas ou no Globe de Londres. Existiré sempre uma diferenca decisiva entre um acto imaginativo de reconstituicdo e uma participacao real num ponto de vista passado. Nao conseguimos, na verdade, crer em Dionysus e rir-nos dele ao mesmo tempo, como parece que acontecia a0 publico que assistia A representacdo dos Bacchae de Euripides‘; eee * © exemplo @ tirado de Harold Cherniss, de igualdade e imutabilidade que um classicismo concebia como ideal. Tanto 0 absolutismo como 0 rela. tivismo sao falsos; mas o perigo hoje mais insidioso, pelo Menos nos Estados Unidos da América, é o de um relativismo que equivaic a uma anarquia de valores e rendigac da funco criticista, Nenhuma historia literaria foi, na pratica, escrita sem que a orientassem alguns principios de selecgdo e alguns esforgos de carac- terizacdo e de valoracao. Os historiadores que negam a importancia do criticismo nao deixam por isso de ser inconscientemente criticos, em geral criticos derivativos que se limitaram a herdar padrées e reputacdes tradicionais. Também em regra sao romanticos atrasados, que fecharam o espirito a todos os outros tipos de arte e especial- mente a literatura moderna. Todavia, como muito pertinentemente disse R, G. Collingwood, um homem «que declara saber o que é que torna Shakespeare poeta esta tacitamente a declarar que sabe se Gertrude Stein é ou nao poeta e, no caso negativo, por que nao» ”. A exclusac da literatura recente desta investigacdo séria tem sido uma consequéncia especialmente nociva desta atitude «eruditay. A expressdo «literatura moderna» costumava ser interpretada pelos académicos com uma imprecisio téo grande que poucas eram as obras ulteriores a Milton consideradas dignas de estudo. Mas 0 século XvIM acabou também por ser aceite com boa reputacdo como objecto da historia literaria convencional e até chegou a estar na moda, uma vez que parece oferecer evasio para um mundo mais gracioso, mais estavel e mais hierarquizado. O periodo romantico e a segunda metade do século xIxX tamhém comecam agora a receber a atencao dos eruditos, e existem até alguns homens ousados em posigdes académicas que defendem e exercem o estudo erudito da literatura contemporanea. Woe argumento possivel contra o estudo de autores ainda completas poder oscorudants Tenuncia 4 perspectiva que sd as obras trazer as implica Sent ai explicacdo que as obras posteriores pee aeee tack me S jas anteriores. Mas essa desvantagem, alii mento, parece de earls em relacdo a autores em desenvolvi advém de eonheoreass monta comparada com as vantagens que me de contastarmos eee ambiente e a época e das oportunida i ou, quando mais has enti com o autor para o interroga eer + Por correspondéncia. Se merecem @: Allen Tate so entender Emily an anterior Collingwood, Pr a erudito, ue nee ate of Art, Oxford, 1938, p. 4. Como, observ! Hopkins o1 que compreende Dryden mas que nao consee’ d the Biblogrents,<8t4 @ dizer-nos que nao compreende Dryden> («Miss Pher», in Reason im Madness, Nova Torque, 1941, P- 115! 50 TEORIA DA LITERATURA muitos escritores passados de segunda —ou mesmo décima — cate- goria, entao nao ha duvida de que um autor nosso contemporaneo de primeira ou segunda grandeza também merece ser estudado. O que oria nos académicos a relutancia de julgarem por si proprios é nor- malmente a falta de percepeao ou a timidez. Sustentam eles que pre- ferem esperar 0 , podemos admitir que a literatura cccrita das classes superiores afectou profundamente a literatura oral- £ um facto indiscutivel a incorporacio no folclore do romance de cavalaria e da lirica trovadoresca. Embora isto possa certamente Checar os romanticos crentes na criatividade do povo e na remota antiguidade da arte popular, é inegavel que as baladas populares, os contos de fadas e as lendas, tais como hoje os conhecemos, sa frequentemente de origem mais recente e derivam das classes supe- riores./Todavia, o estudo da literatura oral deve constituir Pree” cupacdo importante de todo o investigador literrio que queira com: preender os processos de desenvolvimento literario, as origens € © Rdvento dos nossos géneros e técnicas literarios. B de lamentar ait, até agora, o estudo da literatura oral se tenha preocupado tao exclu- sivamente com os temas e suas migracées de pais para pais, isto é eo as matérias-primas das literaturas modernas '. Recentemente, porénl, Os foleloristas tem gradualmente dirigido a sua atencéo para °° embora um li ‘F.C. Green, Minuet, Londres, 1935. > Hans Naumann, Primitive Gemeinschaftskultur, Tena, 102% rate “Nao tém qualquer relevancia para os estudos de Shakespear’ 08 Porn Lismos mundiais da histéria de Hamlet que Schick coligiu em Corpus Hamlet » vols., Berlim, 1912-1938. 54 eee TEORIA DA LITERATURA tudo da tessitura, das formas e das técnicas, para uma morfologia das composicées literarias, para os problemas do narrador e do auditério de um conto, e assim preparam o caminho para uma intima integracdo dos seus estudos num conceito geral da investigagao lite- raria *. Conquanto o estudo da literatura oral apresente problemas seus peculiares —os da transmissao e da localizagao social‘, por exemplo —, nao ha dtivida de que os que lhe sao fundamentais dizem igualmente respeito a literatura escrita; e existe uma continuidade entre a literatura oral e a escrita que nunca foi interrompida. Os investigadures nas modernas literaturas europeias tém menosprezado estas quest6es, em seu detrimento, ao passo que os historiadores lite- rarios dos paises eslavos e escandinavos — onde o folclore ainda esta vivo, ou esteve até ha pouco tempo— tém mantido um contacto muito mais intimo com estes estudos, Mas «literatura comparada» nao 6, realmente, a expressio adequada para designar a literatura oral. Noutra acepcao, a literatura «comparada> esta confinada ao estudo das relacdes entre duas ou mais literaturas. E este o sentido estabelecido pela florescente escola dos comparatistas franceses, che- fiada por Fernand Baldensperger e reunida a volta da Revue de litié- rature comparée *. Esta escola tem particularmente prestado atencdo —por vezes mecanicamente, por vezes com consieravel finura — a questées como as da reputacdo e da penetracdo, da influéncia e da fama, de Goethe em Franca e em Inglaterra, de Ossian e Carlyle e Schiller em Franca. Aperfeicoou uma metodologia que, passando além do mero coligir de informacées relativas 4s notas criticas, traducdes e influéncias, examina cuidadosamente a imagem, o conceito em que € tido um dado autor num dado momento, diversos factores de trans- miss4o, como os jornais, os tradutores, os saldes literarios e os via- jantes, e 0 «factor de recepcao»: a atmosfera especial e a situacdo liter4ria predominante aquando da importacao do autor estrangeiro. * Isto € exacto em relagdo & obra de Alexander Veselovsky, que remonta & década de 1870; aos tltimos estudos de J. Polivka sobre os contos de fadas Tussos, e aos escritos que Gerhard Gesemann consagrou a épica jugoslava (por exemplo Studien zur sudslavischen Volksepik, Reichenberg, 1926). Ver o instru tivo balango de Margaret Schlauch, «Folklore in the Soviet Union». in Science and Society, vin (1944), pp. 205-222. * Cf. P. Bogatyrev e Roman Jakobsor, «Die Folklore als eine besondere Form des Schaffens:, in Donum Natalicium Schrijnen, Nijmegen, Utrecht, 1929, pp. 900-913. Este ensaio parece acentuar exageradamente a distingdo entre literatura Popular e lteratura superior. "Cf. bibliografia. 55 REN# WELLEK E AUSTIN WARREN acumularam-se muitas provas da intima unidade Ao todo, scetjalmente das do Ocidente europeu; aumenton lt }....suravelmente © 10850 conhecimento do «comércio externgs age Le eee concepgao da «literatura comparada> tem também — reconhecamo-lo — as suas dificuldades especiais *. Afigura-se que da acumulagéo de tais estudos nao pode emergir nenhum sistema distinto. Nao existe qualquer distingao metodolégica entre um estudo de «Shakespeare em Franca» e um estudo de «Shakespeare na Ingla- terra do século XVIu», ou entre um estudo acerca da influéncia de Poe sobre Baudelaire e um outro que investigue a de Dryden sobre Pope. As comparacées entre literaturas, quando alheadas de se preo- cuparem com as literaturas nacionais totais, tendem a restringirse acs problemas externos referentes a fontes, influéncias, reputagées, femas, Semelhantes estudos no nos permitem analisar e julgar uma obra de arte individual, ou sequer examinar o complicado conjunto da sua génese; em vez disso, incidem principalmente ou sobre os ecos das obras-primas — como 0 sao as suas traduges e imitacées, frequentemente feitas por autores de segunda ordem —, ou sobre a pré-histria de uma obra-prima — as migragdes dos seus temas e formas e a 4rea por eles coberta. A énfase de «literatura compa- rada», assim entendida, recai sobre elementos externos; e 0 declinio de «literatura comparada» nas ultimas décadas reflecte bem o aban- dono geral dessa énfase centrada em meros «factos», fontes e in- fluéncias. Uma terceira concepedo evita, contudo, todos estes reparos, iden- tificando a ¢literatura comparada» com o estudo da literatura na sua totalidade, com a eliteratura mundial», com a literatura «geral> ou suniversal». Note-se que algumas dificuldades se prendem a estas sugeridas equagées, A expressdo «literatura mundial» — tradugéo da Weltliteratur de Goethe®— é talvez desnecessariamente gran- diosa, subentendendo que a literatura devia ser estudada em relacao aos cinco continentes, da Nova Zelandia a Islandia. Ora, na verdade, nao era isso que Goethe queria dizer. A expressdo «literatura mun- Bari, ayy Benedetto Croce, «La Letteratura Comparatas, in Problemi di £stes@e Fash 0. pp. 78:79, ensaio originalmente motivado pelo primeiro Bumers auurnal of Comparative Literature de George Woodberry (Nova Torque, 1953) | eae ali4s, pouco tempo durou. the: Gesprache mit Bckermann, 31 de Janetro de 1821; Kunst, wnt Altertum (182 Ge Duvgy (1827): Werke, Jubitaumsausgabe. vol. XxxVIM, p. 97 (critica & Le Tasse 56 TEORIA DA LITKKATURA dial» foi por ele empregue para indicar o tempo em fiteraturas se uniriam numa so. Traduz 0 ideal de unifieagae ae todas as literaturas numa grande sintese, em que cada nacao desem. penhasse 0 seu. papel num concerto universal, Mas o proprio Goethe viu que este ideal é muito distante, que nenhuma nagdo esta dis. posta @ renunciar & sua individualidade. Hoje encontramo-nos, possi velmente, ainda mais afastados dessa eventual amalgamacao, ¢ sus. tentaremos mesmo que nem sequer podemos sériamente desejar que sejam obliteradas as diversidades das literaturas nacionais. A ex- pressdo «literatura mundial» frequentemente usada numa terceira acepcdo. Pode significar o grande tesouro dos classicos, tais como Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe, cuja fama se es- praiou por todo o mundo e tem durado um tempo consideravel. Tornou-se assim um sinénimo de «obras-primas», de uma seleccéo que pode ter uma justificacdo critica e pedagdgica mas que dificil- mente podera satisfazer o investigador, que nao pode confinar-se aos altos cumes uma vez que pretenda compreender toda a cordilheira ou —abandonando 0 simile — toda a historia e evolucao. ‘A expresséo «literatura geral» — possivelmente preferivel — tem outras desvantagens. Originalmente era utilizada para significar a poética ou teoria e principios de literatura, e, ha umas escassas décadas, Paul Van Tieghem*® tentou apossar-se dela para exprimir uma concepgao especial em contraste com a «literatura comparada». Segundo ele, a «literatura geral» estuda aqueles movimentos e modas da literatura que transcendem a linha nacional, enquanto a «litera- tura comparada» estuda as inter-relagdes entre duas ou mais lite raturas, Mas como poderemos nés determinar se, por exemplo, o ossianismo é um tépico da literatura «geral» ou da «comparada»? E impossivel fazer uma distincao valida entre a influéncia de Walter Scott no estrangeiro e a voga internacional do romance histérico. As literaturas , in Philosophie der Litera- furwissenschaft (org. por E. Ermatinger), Berlim, 1930, pp. 43-49— ama Inter- Pretagéo nebulosa, 61 RENB WELLEK E AUSTIN WARREN discernir os tragos e as caracteristicas 4 le sustenta ser capaz de nit tribo e de cada regido germanica € os seus reflexos na liter; cada, ie ve encarar estes problemas, que raramente teat Sido nos deve impe’ investigados com. qualqu coerente, Muito do que se ‘er dominio dos factos e com \ fom eserito sobre o papel a Wer metodo coerente, Medio Oriente e do Sul na bistéria da literatura omer e a maioria do que se escreveu sobre o regionalismo, tudo itso nan passa da expressao de piedosas esperangas, orgulho local e ressent passe Grontra 0 poder centralizador. Uma andlise objectiva tera de mente ir as questoes relativas origem racial dos autores e a questées sociologicas do ambiente daqueloutras respeitantes 4 influén. air real da perspectiva ou atinentes a tradicao e ds modas literarias ‘Os problemas da «nacionalidade» tornam-se especialmente com- hhouvermos de reconhecer que podem existir diferentes ‘onais com a mesma lingua, como é indubitavelmente o caso da literatura americana e da irlandesa moderna. E 0 problema de saber porque é que Goldsmith, Sterne e Sheridan nao pertencem SS feratura irlandesa, 20 passo que Yeats e Joyce a ela pertencem, tem de ser investigado. E as literaturas belga, suica austriaca serao literaturas independentes? Nao é muito facil determinar o momento em que a literatura escrita na América do Norte deixou de ser «inglesa colonial e passou a ser uma literatura nacional independente, ‘Terd sido pelo simples facto da obtencdo da independéncia politica? Teré sido a tomada de uma consciéncia nacional pelos préprios autores? Tera sido a utilizacdo de temas nacionais € de «cor local»? Ou tet sido o aparecimento de um estilo literdrio nacional bem definido? S6 quando tivermos atingido conclusdes sobre esses problemas seremos capazes de escrever historias de literaturas nacionais que nao se limitem-a ter a natureza de obras geograficas ou linguisticas ¢ de analisar a maneira exacta por que cada literatura nacional ingress na tradicao europeia. A literatura universal e as nacionais tem miutuas implicacées. Em cada pais é modificada uma convencao europeia dominante: nos paises individuais existem também centros de ira- diagdo e figuras excéntricas e individualmente grandes, que destacet® mais uma convengao do que outra, Poder descrever a parte exact que pertence a cada contributo corresponderia a conhecer muito quilo que vale a pena ser conhecido no conjunto da histéria literéri® plicados se literaturas naci 62

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