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ENTENDIDOS E MAL ENTENDIDOS DA GESTALT TERAPIA

Conferência de Laura Perls no Congresso da Associação Européia de Análise Transacional


Áustria, julho de 1977

No “Faust” de Goethe Mefistófeles diz a um discípulo zeloso:


Denn eben vo Begriffe fehlen,
Da stellt ein Wort zur rechten Zeit sich ein

Pois, onde há falta de conceitos


Aí, no momento oportuno, uma palavra substitui
Tradução de Therese A. Tellegen Ugarte

O diabo põe a mão em todo empreendimento humano, não apenas em filosofia ou teologia.
Eu o vejo atuando em política e educação, em ciência e arte, e particularmente no nosso próprio
campo, no ensino e a prática de psicoterapia, empenhadíssimo em fornecer não apenas palavras
mas, fórmulas pré-fabricadas, técnicas e macetes, todo um caleidoscópio de truques para quem é
pobre, ignorante e suficientemente crédulo, e disposto a pagar.
O diabo é o mestre do atalho, pretensioso, sedutor e enganador, prometendo, induzindo e
impondo sem parar. Suas ferramentas são simplificação, manipulação e distorção.
Agora vamos do mito ao fato. Durante uma reunião do Instituto de Gestalt-Terapia de Nova
York coloquei a questão: Qual é a sua resposta quando alguém lhe pergunta: o que é Gestalt-
Terapia? O nosso vice-presidente Richard Kitzler, que gosta de bancar o advogado do diabo, falou
baixinho: “o assento quente e a cadeira vazia”. Obviamente, como Mefistófeles, ele falou contendo
o riso. Mas o discípulo ingênuo e impaciente aceita e não questiona; ele sempre tomará aparte pelo
todo.
O estilo desenvolvido por Fritz Perls em seminários de demonstração para profissionais
durante os últimos anos de sua vida se tornaram amplamente conhecidos através de filmes,
videotapes e do livro Gestalt Therapy Verbatim (Gestalt-Terapia Explicada) de 1969, que é uma
transcrição destas gravações. A dramatização de sonhos e fantasias é um excelente método de
demonstração, especialmente em seminários com profissionais que já passaram por análise ou
terapia pessoal e que também já tem experiência como terapeutas. Mas este método só constitui
um aspecto das infinitas possibilidades na abordagem gestáltica. Não serve para trabalhar com
pessoas com distúrbios mais graves e muito menos com pacientes esquizofrênicos ou paranóides.
Fritz Perls sabia disso muito bem e simplesmente não trabalhava com participantes nos quais
suspeitava de distúrbios dessa natureza.
Infelizmente este tipo de trabalho em formato de seminário (workshop) se tornou
amplamente aceito como sendo a essência da terapia gestáltica e aplicado por um numero sempre
crescente de terapeutas com quem quer que estivessem trabalhando. Desta forma Gestalt-Terapia
foi sendo reduzida a uma modalidade puramente técnica que por sua vez, devido às suas limitações
óbvias, é combinada com qualquer outra modalidade técnica que por acaso esteja à disposição do
arsenal psicoterápico do terapeuta. E assim temos sensibilização E Gestalt, conscientização
corporal E Gestalt, bioenergética E Gestalt, terapias de arte e dança E Gestalt, Meditação
Transcendental E Gestalt, Análise Transacional E Gestalt, e qualquer coisa E Gestalt ad infinitum.
Todas estas combinações mostram que os conceitos básicos da Gestalt-Terapia são ou mal
compreendidos ou simplesmente ignorados. Gestalt-Terapia não é nem uma técnica específica nem
uma coleção de técnicas. Assim por exemplo, ela não é um método de encontro ou confrontação
com uma seqüência estruturada de proposições, ordens ou desafios. Tampouco é um método
dramático-expressivo visando basicamente a descarga de tensão. Tensão é energia, a energia é uma
coisa preciosa demais para ser simplesmente descarregada; deve se tornar disponível para
mudanças necessárias ou desejáveis. A tarefa em terapia é desenvolver suporte suficiente para a
reorganização e canalização de energia.
Os conceitos básicos são mais filósofos e estéticos do que técnicos. Gestalt terapia é uma
abordagem existencial–fenomenológica e como tal é experiencial e experimental. A sua ênfase no
Aqui e Agora não implica – como frequentemente – que passado e futuro inexistem ou não são
importantes em Gestalt Terapia. Pelo contrário, o passado é sempre presente na nossa experiência
total de vida, nas nossas recordações, nostalgias ou ressentimentos e particularmente nos nossos
hábitos e repetições em todas as situações inacabadas, nas Gestalten fixas. O futuro está presente
nos nossos preparativos e primeiros passos, expectativas e esperanças ou nos temores e desespero.
Por que damos o nome Gestalt terapia à nossa abordagem? “Gestalt” é um conceito
holístico (um sentido de totalidade). Uma gestalt é um conjunto estruturado, que é mais, ou
diferente da soma de suas partes. Há uma figura em primeiro plano que se destaca do seu fundo,
que “ex-iste”. O termo Gestalt entrou no vocabulário psicológico através do trabalho de Wolfgang
Koehler que aplicou princípios derivados da teoria de campo a problemas de percepção. A
psicologia gestáltica foi posteriormente desenvolvida por Max Weitheimer, Gelb e Goldstein,
Koffka e Lewin e seus colegas e discípulos. Para o desenvolvimento da Gestalt terapia o trabalho
de Wertheimer, Goldstein e Lewin se tornou particularmente importante. Qualquer pessoa que
queira entender plenamente a Gestalt terapia faria bem em conhecer os estudos de Wertheimer
sobre pensamento produtivo, Lewin sobre a Gestalt incompleta e a importância crucial de
interesse (atração) para a formação de gestalten, e os estudos de Kurt Goldstein sobre o organismo
como totalidade individual.
A abordagem organísmica de Goldstein se relaciona com a teoria de auto-regulação
organísmica de Wilhelm Reich para se tornar, em Gestalt terapia o postulado do continuum de
presentificação (awareness), o processo livre e contínuo de formação de gestalten, onde aquilo que
representa maior interesse e importância para a sobrevivência e o desenvolvimento do organismo
individual ou social tornar-se-á figura, surgirá em primeiro plano onde pode ser plenamente
experienciada e respondido.
Mas a contribuição mais essencial de Reich para o desenvolvimento da Gestalt terapia é sua
descoberta e identificação de tensões musculares e formação de caráter. A couraça
caracteriológica, condensadamente no caráter obsessivo é uma Gestalt fixa que se torna um
impedimento no processo de formação de gestalten. No entanto a atenção e ênfase na percepção do
corpo se tornaram parte da Gestalt terapia não a partir de Reich, mas a partir de minha longa
experiência com eu ritmia e dança moderna, dos meus estudos, há muito da obra de Ludwig
Klages “Movimento Expressivo e Criatividade” e da minha atenção para os métodos de Alexander
e Feldenkrais muito anterior ao desenvolvimento da Bioenergética e outras terapias de corpo.
Trabalhar com respiração, postura, coordenação, voz, sensibilidade e mobilidade se tornaram parte
do meu estilo terapêutico já desde os anos 30 quando ainda nos chamávamos psicanalistas.
A passagem gradativa de uma orientação psicanalítica para uma abordagem gestáltica está
documentada em “Ego, Hunger and Agression” (Perls, 1969) publicada pela primeira vez em
1942. Contribuí para este livro com dois capítulos que são predominantemente Gestálticos: “The
Dummy Complex” (A Resolução Postiça) que é uma Gestalt fixa que impede mudança, e “The
Meaning of Insomnia” (O Significado da Insônia) que é uma Gestalt incompleta, a situação
inacabada que não nos deixa dormir. E “Ego, Hunger and Agression” mudamos do ponto de vista
histórico-arqueológico que é o de Freud, para um ponto de vista existencial-experimental, de uma
psicologia associacionista focalizando partes para uma posição holística, do puramente verbal para
o organísmico, de interpretação para a presentificação imediata no Aqui e Agora; da transferência
para o contato como tal; do conceito do Ego como substancia (lugar) que TEM uma circunscrição
(fronteira, limite) para uma conceitualização do Ego como o fenômeno-limite em si, SENDO a
própria função de contato de identificação e alienação. Todos estes conceitos, ainda provisórios
estão, frequentemente confusos e confundindo, foram desenvolvidos durante os 10 anos seguintes
formando uma teoria mais organizada e coerente que foi publicada sob o título “Gestalt Therapy:
Excitement and Growth in the human Personality” (Perls, Goodman and Hefferline, 1951). Este é
o livro básico que ainda hoje considero indispensável para uma plena compreensão da Gestalt
Terapia.
No entanto, com o risco de repetir o que alguns de vocês já ouviram antes, mas que nem
sempre é bem compreendido, quero me limitar a alguns conceitos que são interrelacionados e, a
meu ver, essenciais para a teoria e prática da Gestalt Terapia: os conceitos de fronteira, contato e
suporte.
Contato é o reconhecimento de, e o lidar com o outro, o diferente, o novo, o estranho. Não
é um estado no qual podemos entrar e do qual podemos sair (o que corresponderia mais aos
estados de confluência ou isolamento), mas uma ação: eu faço contato na fronteira entre mim e o
“outro”. A fronteira está lá onde tocamos e, ao mesmo tempo, nos percebemos separados. É onde
existe excitação, interesse, cuidado e curiosidade ou medo e hostilidade; é onde uma experiência
inicialmente não percebida ou difusa se torna foco, se destaca como uma Gestalt nítida. A
formação livre e contínua de Gestalten é idêntica ao processo de crescimento, o desenvolvimento
criativo de si – mesmo e de relações. Se este continuum for interrompido por interferência externa
ou bloqueado por Gestalten fixas de uma formação de caráter rígido ou de atos ou pensamentos
obsessivos, o emergir de uma Gestalt forte e nova se torna impossível. A experiência de fronteira
perde nitidez e até se apaga por esta interferência de Gestalten fixas e incompletas. Excitação se
transforma em ansiedade e temor, ou em indiferença e tédio. As faculdades de diferenciação e
discriminação são alienadas e projetadas; atitudes, idéias e valores de outras pessoas são mal
assimiladas e introjetados; energia que podia estar disponível para ação direta e criativa é defletida
para atividades substitutivas (pseudo-atividades) ou retrofletida em auto-interferência, auto-
acusação, auto-piedade e auto-destruição. (Para uma fenomenologia mais pormenorizada de
introjeção, projeção, deflexão e retroflexão recomendo o livro de Erving e Miriam Polster, Gestalt
Terapia Integrada – 1973).
Como é que um Gestalt terapeuta dá conta deste pandemônio de patologia neurótica e
psicótica que se nos apresenta todos os dias? O nosso objetivo é o continuum de presentificação, a
formação livre, fluente e contínua de Gestalten que só pode ocorrer quando se mantém excitação e
interesse. Contato só pode ser relevante e criativo na medida em que haja equivalência de suporte.
Por suporte entendo muito pouco o que eu como terapeuta forneço em termos de cuidado e
asseguramento através da minha disponibilidade e do meu interesse, mas o auto-suporte que o
paciente (ou o terapeuta, se quiser) tem à sua disposição ou que lhe falta. Suporte começa pela
fisiologia básica como respiração, circulação e digestão, continua com o desenvolvimento do
córtex, a dentição, postura ereta, coordenação, sensibilidade e mobilidade, linguagem e sua
utilização, hábitos e costumes, até e particularmente defesas (hang – ups) que na época de sua
formação serviam de suporte. Todas as experiências plenamente assimiladas e integradas
constituem o fundo da pessoa, que dão sentido às Gestalten que vão emergindo e desta forma dão
suporte a uma determinada maneira de viver na fronteira com excitação. Aquilo que não é
assimilado, ou se perde ou fica como um introjeto, um impedimento no processo de
desenvolvimento.
A personalidade integrada neste sentido tem estilo, uma forma unificada de expressão e
comunicação. Ela pode ou não ser conforme ao que se considera comumente como “bem
ajustada”, socialmente útil e desejável ou mesmo sadia. Pode ser chamada de “excêntrica” ou
“irresponsável”, “esquisita”, “doida” ou “criminosa”; ela pode ser anarquista, pintora ou poeta,
homossexual ou vadia. Mas a pessoa que possui estilo não vem à terapia, pelo menos não
voluntariamente. As pessoas que procuram e precisam de terapia são aquelas que estão presas na
sua ansiedade, na sua insatisfação, sua inadequação no trabalho e nos relacionamentos, na sua
infelicidade, falta-lhe suporte para o tipo de contato que seria necessário ou desejável e adequado à
situação em que se encontram.
Pois bem, toda falta de suporte essencial é experienciada como ansiedade. Geralmente
ansiedade é considerada equivalente a insuficiência de oxigênio, mas a redução de excitação e
interesse, já podem ser uma formação reativa a uma situação potencialmente perigosa (se fazer de
desentendida) ou uma exigência de “auto - controle”. Existe toda uma gama de descoordenações
entre funções de suporte e funções de contato que vai desde um incômodo ocasional,
desajeitamento, vergonha até ansiedade crônica e pânico. Não temos tempo de nos aprofundar em
toda a fenomenologia destas descoordenações. Quero apenas enfatizar um ponto: falta de jeito e
embaraço são estados potencialmente criativos, podem significar a falta temporária de equilíbrio
que experimentamos no momento crucial do crescimento, quando temos um pé em terreno
conhecido e o outro em desconhecido, a própria experiência de fronteira e de expansão. Se
tivermos mobilidade e nos permitimos bambolear, poderemos manter a excitação, ignorar e até
esquecer o desajeitamento, ganhar terreno novo e com isto mais suporte. Vê-se este desajeitamento
gracioso em cada criançinha antes de ser socializada e ser tornar constrangida pela exigência
civilizada de “controlar-se”. Sei por experiência própria como é difícil nos libertarmos dos
introjetos com os quais ficamos atravancados a maior parte da nossa vida. Ao chegar neste ponto
quase sempre me sinto um tanto sem jeito e embaraçada. Neste momento me incomoda um pouco
não saber exatamente com quem estou falando e com isso estar falando para vocês. Mas também
sei que sobreviverei este momento. Aprendi a viver com incerteza sem ansiedade.
Como facilitar este desenvolvimento de funções mais elásticas de suporte nos nossos
pacientes depende do suporte que temos em nós mesmos e da nossa noção clara do que o nosso
cliente tem à sua disposição: Um bom terapeuta não usa técnicas, ele se usa dentro e de acordo
com uma situação com os conhecimentos, habilidades e experiência global de vida que formam
parte integrada de seu próprio “fundo” e com a percepção que tiver em qualquer momento dado.
Assim prefiro falar em estilos de terapia a falar em técnicas. Quase todas as modalidades técnicas
são aplicáveis dentro do contexto da Gestalt terapia, se forem existenciais , experienciais e
experimentais exatamente no grau em que é possível mobilizar suporte. O determinante é, se o
paciente já tem ou pode adquirir noção de como e o que ele está fazendo e se dispõe a
experimentar alternativas ou amplificações. Por isso começamos com o óbvio, com aquilo que é
diretamente perceptível tanto para o terapeuta como para o cliente, e deste ponto partimos em
passos miúdos que são diretamente experenciados e por isso mais facilmente assimiláveis. Este é
um processo que exige tempo, muitas vezes mal entendido por pessoas ávidas de efeitos fáceis e
resultados mágicos. Porém, milagres resultam não só de intuição mas da escolha do momento
certo. Desconfio do milagreiro e estou cansada da “catarse” instantânea. Frequentemente ela acaba
numa reação terapêutica negativa, uma recaída ou mesmo uma quebra psicótica. Evidencia falta de
respeito pelo sofrimento existencial do paciente, não aceitando-o como ele é neste momento, mas
manipulando-o rapidamente para onde nós achamos que ele deveria estar. Isto não contribui para o
desenvolvimento da sua conscientização própria e autonomia, e tampouco para a evolução do
terapeuta.
(publicado em: VOICES, Journal of the AAP - vol. 14 nº 3, 1978 – 3)

Bibliografia
- Perls, F., Hefferline, R. f., & Goodman, P. Gestalt therapy: Excitement the human
personality. New York: Dell Publishing Co., Inc., 1951
- Perls, F. Gestalt therapy verbatim. Lafayette, California: Real People Press, 1969.
- Perls, F. Ego, hunger and aggression. New York: Randon House, 1969.
- Polster, E. & M. Gestalt therapy integrated. New York: Brunner/Mazel, 1973.

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