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Quarta feira de cinzas ou o homem invisível Era quarta feira de cinzas.

Para os
cristãos, essa data é destinada a refletir sobre a morte, matéria que vira pó e retorna
para a terra. Incontinenti, saí pelas ruas no final da tarde cinza e percorri os ladrilhos
do centro da cidade. A cidade adormecia, embevecida, exausta. No chão, alguns
restos de folia e êxtase. Saí sem destino certo, mas olhava atentamente as cores dos
prédios, os desenhos arquitetônicos recortando os buracos do espaço, assimetrias,
flores murchas. A alma da cidade estava em silêncio, mas eu lia nas fachadas as
historias do lugar, ruas estreitas de quem já conheceu varadouros, torres de quem já
foi coronel, abismos de quem se deu para as guerras. Vejo quão sutil os detalhes
moldam o destino. Tudo mudo e novo na correnteza do rio, pois o rio sempre é novo,
a cada hora, a todo instante são sempre novas águas. A cidade repousava do suor dos
homens, descansava das pisadas em suas costas. Os poucos transeuntes que passavam
cabisbaixo me causava curiosidade em saber para onde estariam indo. Seriam
cristãos? A cidade estava ausente do manto da multidão do dia a dia do trabalho, do
movimento das vendas, dos funcionários públicos desocupados a olhar para as nuvens
passageiras. A cidade descansava das buzinas, da velocidade dos carros, das
urgências, da combinação binária dos computadores, das cifras contábeis dos balanços
financeiros. A cidade descasava dos gritos e dos agitos juvenis.A cidade estava em
silêncio, o tempo adormecido. Era possível sentir a sua exatidão, a sua poesia densa,
força de gente bruta. Tudo era lúcido, mas nada me falava de mim, que também era
cidade. Cores, formas e sons. Natureza modificada pelas mãos humanas e nada
despertava a minha humanidade naquela manhã, pós carnaval. O que nos torna
humanos? “O que torna um ser humano humano? Que aspecto é suficientemente
humano para que possamos dize-lo: isso é humano! Diria Asimov em suas viagens
astrais.Já no final do passeio de cinzas, ao dobrar a rua que me levaria de volta para
casa, encostado a um contêiner de lixo, um homem comia a podridão que escorria das
sobras de pães de uma panificadora. Uma gosma preta se arrastava pelo ladrilho. Um
odor insuportável, cheiro de carne podre, cheiro de escuridão, tal qual a gosma mansa
e espessa da sarjeta. Sobras de dias e dias de consumismos. Dentro do recipiente, um
homem. Semovente. Um homem de barba branca, primitivo. Pela sua aparência, um
velho de quase 80 anos, pela sua postura ereta, de ser biologicamente evoluído, não
arriscaria dar-lhes mais do que 35 anos de idade. O homem virava, revirava e com as
duas mãos enchia a boca com os restos de comida, festejada, também, pelas moscas.
Um homem comendo restos humanos vira trapo. Em sua face enrugada, olhos fundos,
o sutil movimento da boca mastigando as ferrugens, marcava a passagem indelével do
tempo. Naquele momento eu desejei que a minha alma invadisse o corpo do ancião
maltrapilha. A distância entre nós dois não era tão longa, mas eu teimava em não me
aproximar, o mal cheiro me afastava, repelia. As moscas voavam embevecidas por
dividir o espaço com um humano. Eu sentia asco de nós dois. De mim, por pensar
que o universo é uno, e dele por saber que somos verso. De longe, gritei: - Homem, o
que te faz humano? O que ainda te resta de humanidade por baixo dessa roupa suja?
Ele guardou um silêncio sádico e, ao mesmo tempo, búdico. Uma leveza lunar, de
quem já alcançou certa experiência de vida. O ser que doma os seus sentidos é sábio,
pensei. O homem cheirava e comia devagar aquela podridão. Aquele homem não
poderia ser eu, mas, mesmo assim eu queria que a minha alma se apossasse de seu
corpo. Eu queria sentir-me no corpo de um mendigo, viver como um vagabundo por
uns instantes, comer aquela gosma sem sentir o odor dos urubus, ratos, insetos e
vermes desprezíveis. Aquele homem era humano, mas já possuía propriedades de
pedra. o estado original é a pedra. Eu precisava do cheiro que lhe impregnava,
saborear da sua nobre refeição do dia. O que aquele verme poderia saber sobre o
sistema financeiro e a bolsa de valores do centro capitalista do mundo? O que
pensaria sobre a estupidez da intolerância religiosa, dos valores morais que despreza
os diferentes? O que saberia sobre o budismo, zoroastrismo, taoísmo e o império
persa? O que falaria sobre o poder do Estado e a decadência dos governos e da
democracia? Já teria ouvido falar sobre números irracionais, número atômico, vírus
filtráveis, alquimia, sífilis, mutações, gravitação universal, teoria cinética dos gases,
escala celsius, Shakespeare, reflexo condicionado, penicilina, behaviorismo?
Pergunto: qual o valor da vida? Haveria vida humana naquela carcaça hominídea?
Estaria embriagado, fora de si? O cheio da sarjeta seduzia a embriaguez. A boca do
inferno era a âncora do prostibulo. A fome não estava no estômago vazio; o cheiro
não estava na pele seca. Havia uma consciência perdida fora do corpo, assim como
havia multidões de flores primaveris em estado vegetativo pairando nas abas do
container. Não dava para ver se ele estava usando sapatos, por certo seus pés estavam
descalços. Aquela era a imagem verdadeira da cidade, aquela era a cena que me
chamava para as cinzas do silêncio e da resignação da cidade. O que os olhos daquele
homem enxergava todos os dias? Teria familiares, filhos? Estaria esquecido pelo
tempo ou seria um espião de Deus? Eu não teria a mesma coragem de Madalena. Não
seria capaz de lava-lhes os pés. Fiquei por alguns minutos observando os movimentos
paradisíacos do homem. Ele não estava me vendo e, se estivesse, me ignorou. Em seu
corpo, minha alma suportaria? O corpo suporta o que a alma tem de ser. Senti ternura
por aquele homem, porém no meu pesar ele não passava de uma paisagem amorfa e
esquecida. Não, o ser humano é um centro de força, tal qual o átomo e o sistema solar.
A sua marcha evolutiva está cada vez mais acelerada. Fitei-o. Desejei ser ele, natureza
de árvore, de cão, de flores, de vermes, de muro. O maior apetite humano é desejar ser
- desejei comer os restos apodrecidos das ultimas mastigações dos finos banquetes dos
deuses. Espectro humano - eu era ele. Quem, além de vós, viveu nesse estado sub
humano? Eu desejava ser ele. Ele não poderia ser eu. Não! sua virtuose era muito
melhor. Ouvia, em quaisquer circunstâncias, o mágico piano de Bach. Escutava a
música das esferas e tudo era suspiro dos anjos. Assim, ele continuava a elevar do
chão a massa negra gosmenta que logo se transformava em brioches de uma farta
mesa francesa. Música e comida em dia de festa: enterro do carnaval. O carnaval se
foi. Agora, 40 dias de reclusão. Árvores e tambores emitiam seus sons; água e
trombetas falavam dos céus. Machinhas, brincantes e fantasias ficaram para trás.
Indizível realidade de ilusões. Divina liberdade do mundo opressor, em nudez
absoluta ou em completo esquecimento. Daquela calçada, eu lançava olhares furtivos
sobre o desnudo andrajo humano. Todas as pedras, arvores, prédios, cores, formas e
sons testemunhavam a minha presença, metáfora do medo, horror e solidão. Escurecia
e o silencio torna-se cada vez mais denso à ressonância entre eu e ele no vazio. Ao
acender ao indizível, entenderei as duas faces do mundo, pois que no fim tudo vira
cinzas.

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