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Flannery O'Connor Um Diario de Preces Prefacio de Pedro Mexia Relégio D’'Agua FICCOES «Gostava de escrever uma prece bonita.» Esta frase foi escrita por Flannery O'Connor durante a sua juventude, neste diario profundamente espiritual, recentemente descoberto entre os objetos que deixou na Georgia Pee enna tet Chatman cert Chcernce le treret (ae ria ser capaz de usar como instrumento em Teu louvor. Escrito entre 1946 © 1947, enquanto O'Connor estudava longe de casa na Universidade de Iowa, Um Didrio de Preces é um portal raro de acesso a vida intima da escritora. Nao apenas revela Aree trintqicia Keke ementn hanemcntn Cnn tecny Feareeed aera RC Cee ent cca eek etme er ee ents rag Bets Pa ee reer ee one en ee rece MN CONN ee da fancaria estética, mas no sentido do engenho estético: caso contririo, sentirei a minha solidio constantemente [...]. Nao eres erence ater cer a CM To ert Peer Rice eaten co Be teRe renee ere ae Tenctce tos 0 Ca np Bota told ACeee TG ent teas ten tan e tice Mtg Cd RCE eee Cae Xora ms Moment mers Cromer monty ambigao literaria: «Por favor, ajuda-me, meu bom Deus, a ser eee ee Mer teen eterna (enn eer on nce rT Pius teteteemerera vets Segundo W. A. Sessions, que conhecia O’Connor, nio foi Reem tet crermterte tire ten) Meo tcet ie Meera rear? histérias que formaram o seu primeiro romance, Sangue Sabio, durante os anos em que escreveu estas meditacoes singulares ¢ profundamente imaginativas. IsaN 978-969-681 i 59 RELOGIO D’AGUA Flannery O’Connor nasceu em Savannah, Georgia, em 1925. Carélica devota, viveu a maior parte da sua vida numa quinta em Milledgeville, onde fazia criagdo de pavies ¢ escrevia. Foi autora de dois romances, Sangue Sdbio O Céu E dos Violentos, ¢ trintae um contos, além de inumeras criticas ¢ ensaios. Quando morreu, aos 39 anos, a América perdeu uma das suas maiores escritoras, no auge da sua capacidade criativa. Os seus contos completos, publicados postuma- mente em 1971, foram galardoados com o National Book Award de ficcao. Ultimos Titulos Nesta Colegio: 186, Irene Némirovsky: O Baile 187. Inne Némirovsky: David Golder 188. Vladimir Nabokov: Rei, Dama, Valete 189. Vladimir Nabokov: Ada ou Ardor 190. Cormac McCarthy: A Travessia 191. Dalton Trevisan: O Vampiro de Curitiba 192. Dalton Trevisan: Novelas nada Exemplares 193. Dalton Trevisan: A Polaquinha 194. Clarice Lispector: Um Sopro de Vida (Pulsagées) 195. Junot Diaz: E assim Que A Perdes 196. Clarice Lispector: Lagos de Familia 197. Irene Némirovsky: O Vinho da Solidao 198. Denis Johnson: Anjos 199. Luigi Pirandello: O Falecido Mattia Pascal 200. Vladimir Nabokov: Riso na Escuridio 201. Dalton Trevisan: Guerra Conjugal 202. Dalton Trevisan: A Trombeta do Anjo Vingador 203. Vladimir Nabokov: A Verdadeina Vida de Sebastian Knight 204, Alice Munro: Amada Vida 205. Hjalmar Séderberg: O Jogo Sério 206. Vladimir Nabokov: Lolita 207. Michel Houellebecq: As Particulas Elementares 208. Vladimir Nabokov: Pain 209. Cormac McCarthy: O Consetheiro 210. Kate Atkinson: Vida apds Vida 211. A.M. Homes: Assim para Nés Haja Perdao 212. Jhumpa Lahiri: A Planicie 213. Alice Munro: Vidas de Raparigas e Mulheres 214, Rachel Kushner: Os Langa-Chamas 215. Isaac Babel: Contos e Didrios 216. Hermann Broch: A Morte de Virgilio 217. Elena Ferrante: Crénicas do Mal de Amor 218. Margaret Atwood: Ressurgir 219. Katherine Anne Porter: A Torre Inclinada e Outros Contos 220. Nathan Filer: O Choque da Queda 221. Alice Munro: Falos Segredos 222. Marguerite Duras: Moderato Cantabile 223. Marguerite Duras: Olbos Azuis Cabelo Preto 224, Saul Bellow: Agarnt 0 Dia 225. Michel Houellebecq: Plataforma 226. Saul Bellow: Henderson, o Rei da Chuva Um Diario de Preces Relégio D' Agua Editores Rua Sylvio Rebelo, n? 15 1000-282 Lisboa tel: 218 474 450 fax: 218 470 775 relogiodagua@relogiodagua pt wwwrelogiodagua.pt © 2013 by the Mary Flannery O°Connor Charitable Trust ‘tulo: Um Didrio de Preces Titulo original: A Prayer Journal (2013) Autora: Flannery O’Connor ‘Tradugdo: Paulo Faria Edigdo com prefécio de Pedro Mexia Revisio de texto: Anabela Prates Carvalho Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com) © Relégio D’ Agua Editores, setembro de 2014 O texto deste livro segue 0 novo Acordo Ortografico (exceto o Preficio). As notas foram feitas a partir das do editor original. Encomende os seus livros em: www relogiodagua. pt ISBN 978-989-641-433-7 ‘Composigio ¢ paginagio: Relégio D’ Agua Editores Impressfo: Guide Artes Gréficas, Lda. Depésito Legal n.: 379445/14 Flannery O’Connor Um Diario de Preces Prefacio de Pedro Mexia Tradugdo de Paulo Faria Obras de Flannery O’Connor Prefacio: Preces Atendidas Um Diario de Preces Fac-Simile indice 51 Preces Atendidas Escritora catélica no Sul protestante, a ficcionista norte-ameri- cana Flannery O’Connor estava numa situagdo privilegiada para desvendar aquela espécie de «cristianismo enlouquecido» que a rodeava. Do ponto de vista demogrdfico e sociolégico, a Bible belt dos estados sulistas ostentava uma fé omnipresente e as vezes estridente, quando nao fundamentalista. Em termos doutrinais, as nogées catélicas e evangélicas tinham um tronco comum mas di- vergiam em nogées essenciais, tanto bdsicas como sofisticadas. E, além do mais, O’Connor ndo era apenas uma catélica, ou uma catélica praticante: tinha uma sélida formagao tedrica, de Tomas de Aquino e Romano Guardini, ou seja, 0 seu catolicismo nao resultava apenas da educagao ou da convic¢do mas de um inces- sante estudo, alids notério nas dezenas de recensées que escreveu sobre livros de teologia. Quatro ensaios coligidos no volume Mystery and Manners (1969) lembram por isso que um «escritor catélico» ndéo é um apologeta, um ortodoxo, um autor piedoso ou reconfortante. Cer- tos sectores catdlicos talvez prefiram uma mensagem «positiva», mais de adesGo e propaganda fide do que de problematizagao; mas Flannery era uma tomista preocupada com o trabalho, com 0 «fazer» («craft»), 0 que implicava experiéncias comunais, como os cursos de escrita criativa, ou solitdrias, como a vida de eremi- ta, sem grande relagdo com o mundo que ndo fosse por carta. Foi assim que, apesar da saide fragil e da morte precoce, produziu dois romances e duas colecténeas de contos centrais no canone americano, numerosos artigos e conferéncias, e a volumosa cor- respondéncia reunida em The Habit of Being (1979). No ensaio «The Church and the Fiction Writer», Flannery O'Connor partiu de uma dupla, ou talvez tripla, defini¢do, para interrogar o que seja isso, um «escritor catélico». Lembremos que por meados do século havia autores mundialmente conheci- dos, como Frangois Mauriac, Evelyn Waugh ou Graham Greene, que eram muitas vezes apresentados como «escritores catélicos», sendo que quase todos se sentiam mais & vontade com a designa- ¢Go «catélicos [que sao] escritores», até porque o «catolicismo» nao esgotava a sua temdtica ou nao correspondia a todas as fases das respectivas obras romanescas. Nos Estados Unidos, 0 poeta Robert Lowell, um dos dois ou trés mais importantes do século americano, come¢ou por publicar livros de félego metafisico cris- tao, embora as colecténeas subsequentes se tenham afastado to- talmente dessa matriz. Ficcionistas catélicos como J. F. Powers ou Walker Percy tiveram alguma exposigdo medidtica ou algum sucesso de estima, mas havia quem achasse que tinham um inte- resse diminuto para leitores ndo-crentes. «The Church and the Fiction Writer» deixa claro que O’Connor recusa esse acantona- mento da ficgao catélica, e que ndo lhe interessa pregar a conver- tidos. Ela sabe que escreve, e que quer escrever, para protestantes e€ agnosticos e ateus, os quais, diz, chegarGo aos textos com ex- pectativas e cédigos de leitura que divergem bastante das inten- ¢6es originais da autora. O «escritor catélico» ocupa por isso 0 vértice de um tridngulo: depara-se frequentemente com a incom- preensdo da Igreja, que condena certos textos como demasiado subjectivistas, idiossincrdticos, ou até perigosos; e tem de se de- bater com a perplexidade ou a recusa do piiblico ndo-crente, que suspeita sempre do catélico como criatura dogmdtica, paroquial, edificante, catequética. O'Connor defendeu por isso que um «escritor catélico» sério se preocupa acima de tudo com a observagdo, a especificidade, a credibilidade, a verdade, néo ignorando aquilo que parece super- ficial e estereotipado, porque isso corresponde a uma manifesta- 10 ¢Go imediatamente visivel e significativa da sociedade. Aquilo que o escritor catélico ndo deve fazer é separar a natureza da Graga, o facto evidente do seu significado enigmdtico. Os confli- tos que os romances e contos testemunham e reconstituem, tanto os internos como os exteriores, sao metafisicos mesmo quando parecem naturalistas ou grotescos. A conhecida categoria a que se chamou «grotesco sulista» agastava O’Connor, porque parecia supor que s6 as vidas sulistas eram bizarras, talvez por causa do ambiente religioso; ora o «grotesco», isto é, 0 paradoxo, o humor negro, a distor¢do, cumpriam na literatura uma fungdo realista: identificavam 0 mal, o fracasso, a falta, 0 pecado, se quisermos dizer assim. E faziam-no de uma forma intensa, «exagerada», quase revoltante, e por isso insusceptivel de indiferenga, esse de- feito teologal. O «grotesco» deixava nitido que o «dogma» cris- tao é uma hipétese posstvel sobre o «mistério» da humanidade. De modo que quanto mais dogmdtico mais enigmdtico, ou seja, mais verdadeiro. E extraordindrio que o juvenil Um Diério de Preces dé conta destes debates, bem como de algumas diividas, com uma determi- nagdo precoce. Quando tinha 20 anos e estudava na Universida- de de Iowa, onde frequentava o prestigiado Iowa Writer’s Workshop, O’Connor manteve um didrio (Janeiro de 1946-Setembro de 1947), umas dezenas de folhas manuscritas num austero cader- no pautado. O texto integral fac-similado sé viu a luz em 2013, exumado dos papéis da escritora. Trata-se de um mondélogo em didlogo, um didrio em forma de oragdo, oragdo em forma de did- rio, forma hibrida e em interrogagdo constante. O’Connor sentia que as oragées tradicionais nao the serviam, talvez porque néo eram didlogos. «Quem me saiba ensinar a rezar», escreve ela, enquanto se dirige a Deus com exigéncias temperamentais: «make me a mystic, immediately»*. E certo que nao hd experiéncias sobrenaturais em Um Diario de Preces, mas nota-se a conhecida impaciéncia dos misticos: a diarista queixa- -se de que ndo sabe amar e de que ndo conhece a vontade de * «faz de mim uma mistica, imediatamente». rT Deus; ndo aceita uma crenga de fundo sentimental; ndo quer uma divindade & sua imagem e semelhanga; diz que as vezes mantém a fé apenas por preguiga; declara a sua propria medio- cridade e indignidade; vacila entre a desesperanga e a presun- ¢do; acusa-se de pensamentos eréticos e de ser tao «estipida» como as pessoas que ridiculariza; pede que Deus a ajude a ser uma escritora a sério, e além do mais «santa de um modo inteli- gente»; rasga paginas do didrio, que alids termina com um zan- gado «nada mais resta dizer acerca de mim». E quase o tempe- ramento de uma Teresa de Avila. Bernanos e Bloy sao dois dos autores catélicos citados, catéli- cos exigentes, ferozes, de terra queimada. Foi esse catolicismo que Flannery O’Connor praticou no seu Sul hostil aos papistas, e sabemos que na altura em que mantinha este didrio jd estava a escrever 0 romance Sangue Sabio (1952). E justamente uma no- ¢Go romanesca como a «suspensdo da descrenga» que aproxima a oragao da ficgdo. Isso e uma «viséo do mundo», a qual depende sempre de um «conceito de amor». Um amor que em O’Connor & agreste e contraditério: basta ver como a pés-adolescente, que nunca terd uma vida amorosa, se refere ao desejo como uma von- tade ou um tormento, e a auséncia de desejo como paz, e ao «ac- to sexual» como acto religioso, que, na sua forma agnéstica, é grotesco. Aos vintes, esta tao invulgar rapariga procura aquela «con- fianga» que, assegura, é a base de uma vida espiritual. Coisa dificil, a confianca, sendo a vida «traigoeira» e «decepcionante». As oragées de Flannery O’Connor estéo, como ela explica, entre a metafisica e a terapéutica. Exprimem adoragdo, contrigdo, ac- ¢Go de gracas, stiplica, mas também testam verdades que hdo-de alimentar a ficedo ainda por escrever: a ideia de que o inferno é um conceito mais compreensivel do que o céu, de que a Graca é sem porqué, ou de que o pecado é bom porque orienta para a salvagdo: «Concede-me a graca de ver a aridez e a indigéncia dos lugares onde Tu nao és adorado, mas profanado.» O’Connor imagina-se a dada altura septuagendria e ainda com duividas; mas sé viveria até aos 39. Quando regressou a 12 Georgia, onde iria escrever livros e cuidar de pavées, teve o pri- meiro ataque de lupus, doenga fatal que, em certos momentos, quase nos parece uma prece atendida. Pedro Mexia 13 Um Diario de Preces [ENTRADAS SEM DATA] [...]' esforgo artistico neste domfnio, ao invés de pensar em Ti e de me sentir inspirada pelo amor que tanto desejaria sentir. Meu bom Deus, nao consigo amar-Te como pretendo. Es 0 crescente esguio de uma Lua que avisto, e o meu eu é a sombra da Terra que me impede de ver a Lua inteira. O crescente é muito belo, e talvez uma pessoa como eu nao deva ou nao possa ver mais; mas 0 que eu receio, meu bom Deus, é que a sombra do meu eu se torne tao grande que obscure¢a a Lua inteira, e que eu julgue a minha pr6pria valia pela sombra, que nada é. Nao Te conhego, meu Deus, porque eu prépria Te encubro. Por favor, ajuda-me a arredar-me do caminho. Desejo muito triunfar no mundo com as coisas que pretendo levar a cabo. Dirigi-Te preces a este respeito, esforgando a mente € os nervos, mergulhei num estado de tensao nervosa e disse «oh, meu Deus, por favor» e «tenho de conseguir» e «por favor, por favor». Nao Te dirigi os meus pedidos da maneira certa, sinto-o. Doravante, deixa-me pedir-Te com resignagao — o que nao é nem pretende ser um afrouxar das oragGes, antes um orar menos febril —,com a consciéncia de que este frenesi é causado por uma ansia daquilo que desejo, em lugar de uma confianga espiritual. Nao pretendo fazer conjeturas. Quero amar. Oh, meu Deus, por favor, desanuvia a minha mente. * Aparentemente, as primeiras péginas do disrio perderam-se. Por favor, purifica-a. Pego-Te um amor mais puro pela minha santa Mie e a ela peco um amor mais puro por Ti. Por favor, ajuda-me a entrar no mais fundo das coisas e a des- cobrir onde Tu estas. Nao pretendo renegar as oragGes tradicionais que rezei ao longo de toda a minha vida; mas tenho estado a rezd-las sem as sentir. A minha atengao é sempre muito fugidia. Assim, tenho-a a cada instante. Sinto uma onda calorosa de amor a aquecer-me quando penso nisto e quando escrevo estas palavras para Ti. Por favor, nao deixes que as explicagGes dos psicdlogos a este respeito arre- fegam de stibito estes meus sentimentos. O meu intelecto é tio limitado, Senhor, que s6 me resta confiar em Ti para me conser- vares na senda correta. Por favor, ajuda todos aqueles que amo a libertarem-se dos seus padecimentos. Perdoa-me, por favor. Meu bom Deus, fico abismada ante a porgao de coisas pelas quais devo sentir gratidao, em termos materiais; e, em termos espirituais, tenho a oportunidade de ser ainda mais feliz. Porém, parece-me evidente que nao estou a traduzir esta oportunidade em factos palpaveis. Tu dizes, meu bom Deus, para pedirmos a graca, pois nos ser4 dada. Eu pego-a. Compreendo que nao me basta pedi-la, que tenho de agir como quem a deseja. «Nem todos os que dizem: Senhor, Senhor, mas sim aqueles que fazem a vontade de Meu Pai.» Por favor, ajuda-me a conhecer a vontade do meu Pai — nao quero um nervosismo escrupuloso, nem sequer conje- turas negligentes, antes um conhecimento lticido, sensato; e, de- pois disto, d4-me uma vontade forte, para ser capaz de a vergar 4 vontade do Pai. Por favor, deixa que os principios cristaéos impregnem a minha escrita, e, por favor, faz que haja textos suficientes da minha lavra (dados a estampa) para que os principios cristaos os possam im- pregnar. Temo, oh, Senhor, perder a minha fé. A minha mente nao € forte. Deixa-se seduzir por todo o género de charlatanice inte- lectual. Nao quero que seja o medo a fazer-me ir a igreja. Nao quero agir como uma cobarde, ficando junto de Ti s6 porque te- nho medo do Inferno. Devia pensar que, se temo o Inferno, entéo poderei estar certa da existéncia do seu autor. Os eruditos, porém, conseguem dissecar em meu beneficio os motivos que me levam atemer o Inferno, e dai extraem a conclusao de que o Inferno nao 19 existe. Mas eu acredito no Inferno. Para a minha fraca mente, o Inferno parece muito mais exequivel do que o Céu. Sem diivida porque o Inferno é uma coisa de aparéncia mais terrena. Consigo imaginar os tormentos dos danados, mas nao consigo imaginar as almas desencarnadas suspensas num cristal para toda a eternida- de, a entoar louvores a Deus. E natural que eu no consiga imagi- nar isto. Se consegufssemos cartografar o Céu com rigor, alguns dos nossos cientistas promissores comegariam logo a tragar pla- nos para o aperfeigoar, e os burgueses venderiam roteiros, a dez céntimos cada exemplar, a todas as pessoas acima dos sessenta e cinco anos. Mas no pretendo ser espirituosa, embora, pensando melhor, pretenda mesmo ser espirituosa e goste de ser espirituosa € queira que me considerem tal. Mas o que mais importa aqui é que nao quero ter medo da exclusdo, quero amar a pertenga; nao quero acreditar no Inferno, mas sim no Céu. Afirmar isto nio me traz beneficio algum. O que importa é o dom da graga. Ajuda-me a sentir que irei renunciar a tudo o que é€ terreno para a alcangar. Nao me refiro a tornar-me freira. 20 Meu bom Deus, somos tao esttipidos até Tu nos dares qualquer coisa. Mesmo ao orarmos, és Tu que tens de orar em nds. Gostava de escrever uma prece bonita, mas falta-me a matéria-prima. HA em volta de mim um vasto mundo sensivel que eu deveria ser capaz de usar como instrumento em Teu louvor; mas nao consigo. Todavia, num qualquer momento insfpido em que eu talvez esteja a pensar em cera para 0 soalho ou em ovos de pombo, as primei- ras palavras de uma prece bonita poderao emergir-me do subcons- ciente, levando-me a escrever um texto inflamado. Nao sou fil6- sofa, caso contrdrio conseguiria entender estas coisas. Se eu me conhecesse plenamente, meu bom Deus, se conse- guisse descobrir em mim prépria todos os tragos pedantes e ego- céntricos, falhos de sinceridade, 0 que seria eu, afinal? Mas que faria eu em relagdo a estes sentimentos que ora sao medo, ora alegria, que se encontram demasiado fundo para que o meu enten- dimento os alcance? Tenho medo das mos insidiosas, oh, Senhor, que buscam 4s apalpadelas nas trevas da minha alma. Por favor, sé a minha sentinela contra elas. Por favor, sé a barreira no alto do desfiladeiro. Serd que conservo a minha fé somente por preguica, meu bom Deus? Esta, porém, é uma ideia que agradaria a alguém racional até 4 medula. 21 Meu bom Deus, no quero que isto seja um exercicio metafi- sico, mas sim uma manifestagado de louvor a Deus. Provavel- mente, arrisca-se a ser mais terapéutico do que metafisico, com o elemento do eu subjacente a todos estes pensamentos. As preces devem ser compostas, parece-me, de adoragao, contri- ¢4o, agradecimento e stiplica, e eu gostava de perceber 0 que consigo fazer com cada um destes elementos sem escrever uma exegese. E a adoracio por Ti, meu bom Deus, que mais me as- susta. Nao consigo entender plenamente a glorificagdo que Te é devida. Do ponto de vista intelectual, concordo: adoremos a Deus. Mas poderemos fazé-lo sem sentimentos? Para sentir, temos de conhecer. E para isto, uma vez que nos é praticamente impossivel alcangar sozinhos esse conhecimento, nao plena- mente, é claro, apenas a parcela a que temos acesso, estamos dependentes de Deus. Estamos dependentes de Deus para a adoragdo que Lhe dedicamos, adoragdo, entenda-se, no sentido mais profundo do termo. Concede-me a graga, meu bom Deus, de Te adorar, pois nem sequer isto eu consigo fazer sozinha. Concede-me a graga de Te adorar com 0 entusiasmo dos antigos sacerdotes quando Te sacrificavam um cordeiro. Concede-me a graga de Te adorar com o assombro que enche os Teus sacerdo- tes quando sacrificam o Cordeiro nos nossos altares. Concede- -me a graga de aguardar com impaciéncia 0 momento em que Te verei cara a cara e de nao precisar de outro estimulo sendo esse 22 para Te adorar. Concede-me a graga, meu bom Deus, de ver a aridez e a indigéncia dos lugares onde Tu nao és adorado, mas sim profanado. 23 Meu bom Deus, sinto-me tao desanimada em relagdo 4 minha obra. Isto é, hd em mim um sentimento de desénimo. Compreendo que nao sei 0 que compreendo. Por favor, ajuda-me, meu bom Deus, a ser uma boa escritora e a conseguir que me aceitem mais textos para publicagao. Este desejo est4 tao distante do que eu merego, é claro, que a desfagatez com que o formulo me deixa naturalmente estupefacta. Em mim, a contrigao é, em grande me- dida, imperfeita. Nao sei se alguma vez me arrependi de um pe- cado por, ao cometé-lo, Te ter ofendido. Este género de contrigéo € melhor do que nenhuma, mas é egojsta. Para aceder ao outro género de contri¢o, € necessdrio possuir sabedoria, uma fé ex- traordindria. No fim de contas, tudo se reduz a graga, parece-me. Trata-se de pedir a Deus que nos ajude a arrependermo-nos de O ter ofendido, repito. Tenho medo da dor, e deduzo que tenhamos de a sofrer para alcangar a graca. Dé-me coragem para suportar a dor e assim alcangar a graca, oh, Senhor. Ajuda-me a viver esta vida que parece to traigoeira, tao dececionante. 24 Meu bom Deus, esta noite nao foi dececionante porque me deste uma histéria. Nao me deixes alguma vez pensar, meu bom Deus, que eu fui mais do que o mero instrumento da Tua histéria — assim como a mdquina de escrever foi o meu. Por favor, meu bom Deus, permite que o sentido da histéria, ao cabo das suces- Sivas revisGes, fique to claro que nao dé azo a quaisquer leituras falaciosas e vis, porque com esta obra nao pretendo denegrir a fé religiosa seja de quem for, embora, enquanto a ia escrevendo, nao soubesse ao certo o que pretendia alcancgar nem o que as palavras iriam significar. Nao sei se possui coeréncia. Por favor, nao me obrigues a deitd-la fora por, no fim de contas, conter mais defeitos do que virtudes — ou quaisquer defeitos. Quero trans- mitir com esta histéria que a bondade humana por vezes transpa- rece através do seu mercantilismo, embora isso nao seja culpa do mercantilismo. Talvez a ideia seja que o bem consegue transparecer, mesmo. através das coisas reles. Nao sei ao certo, mas, meu bom Deus, quem me dera que tomasses em mAos torn4-la uma histéria séli- da, porque eu nio sei como, do mesmo modo que nio sabia como escrevé-la, mas ela surgiu. Enfim, tudo isto me conduz ao agra- decimento, o terceiro elemento que devemos incluir na oragao. Quando penso em todas as coisas pelas quais devo estar grata, pergunto a mim mesma porque é que nao me matas aqui mesmo, pois j4 fizeste tanto por mim e eu nado me tenho mostrado espe- 25 cialmente agradecida. O meu agradecimento nunca toma a forma de sacrificio — umas quantas oragGes que aprendi de cor e desfio & pressa, sem grande atencio, isso sim. Tudo isto me enche de asco de mim mesma, mas nao me inspira o sentimento pungente que eu deveria experimentar para Te adorar, para me arrepender ou para Te agradecer. Talvez o sentimento que nao me canso de implorar seja algo, uma vez mais, egofsta — algo para me ajudar a sentir que nada ha de errado em mim. No entanto, parece-me a coisa mais natural do mundo, mas talvez esta naturalidade seja afinal egoismo. A minha mente é muito insegura, nao posso con- fiar nela. Incute-me escrépulos num momento e, logo a seguir, deixa-me descuidada. Se me cabe conhecer todas estas coisas através da mente, oh, Senhor, pego-Te, fortalece-ma. Obrigada, meu bom Deus, creio que me sinto verdadeiramente grata por tudo o que fizeste por mim. Quero sentir-me grata. Quero mes- mo. E agradece 4 minha boa Mae, que tanto amo, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. 26 Meu bom Deus, Stiplica. Eis 0 tinico dos quatro em que sou eximia. Nao € necessdria qualquer graga sobrenatural para pedir- mos 0 que desejamos, e eu pedi-Te sem freio, oh, Senhor. Creio que esta certo pedir-Te e pedir também a nossa Mie que Te pega, mas nao quero dar demasiada importancia a esta vertente das mi- nhas preces. Ajuda-me a pedir-Te, oh, Senhor, aquilo que é me- lhor para mim, aquilo que posso ter e que, tendo, me ird ajudar a servir-Te melhor. Tenho andado a ler Kafka, e apercebo-me da dificuldade dele em alcangar a graga. Mas parece-me que nao tem de ser assim para 0 catélico que possa comungar todos os dias. Monsenhor disse hoje que era obra da razio, ndo da emogdo — o amor a Deus. A emogio serviria de auxilio. Dei-me conta, da Ultima vez, de que seria um auxiflio egofsta. Oh, meu bom Deus, a razdo é muito 4rida. Creio que a minha é também preguigosa. Mas quero aproximar-me de Ti. No entanto, parece quase um pecado sugerir sequer tal coisa. Talvez a comunhio nao proporcione a proximi- dade a que me refiro. A proximidade a que me refiro vird depois da morte, talvez. E aquilo que buscamos a custo, e, se eu a alcan- gasse, ou estaria morta ou té-la-ia visto durante um breve segun- do, e a vida ser-me-ia insuportdvel. Nada sei acerca disto, nem do que quer que seja. Parece pueril da minha parte dizer uma coisa tao dbvia. 27 Meu bom Deus, para nao perder o rumo, vou refletir acerca da Fé, da Esperanga e da Caridade. Comecemos pela Fé. Das trés, € a que me causa mais sofrimento mental. Em todas as fases deste processo educativo, dizem-nos que é uma coisa ridicula, e os ar- gumentos soam to crediveis que é dificil nao lhes cedermos. Os argumentos talvez nao soassem tao crediveis a alguém com uma mente mais proficua; mas os meus mecanismos mentais sdo 0 que so, e estou sempre no limiar da anuéncia — é quase uma anuén- cia subconsciente. Pois bem, como hei de eu conservar a minha fé sem cobardia quando estas condigdes me influenciam assim? Nao consigo decifrar as profundezas particulares da minha pessoa que fazem luz sobre isto. Hd qualquer coisa no mais rec6ndito de mim — € mais fundo do que a anuéncia subconsciente — que nutre um determinado sentimento a este respeito. Talvez seja isso o que me refreia. Meu bom Deus, por favor, faz que seja isso em vez da tal cobardia que os psicélogos examinariam com tanta avidez e ex- plicariam com tanto desembarago. E, por favor, ndo permitas que seja aquilo a que, tao alegremente, eles chamam compartimentos estanques. Oh, Senhor, pego-Te, concede as pessoas como eu, que nao tém a inteligéncia necessdria para lidar com isto, pego-Te, concede-nos uma qualquer arma, nao para nos defendermos deles, mas para nos defendermos de nés préprios depois de eles nos te- rem examinado de fio a pavio. Meu bom Deus, nao quero desco- brir que inventei a minha fé para satisfazer a minha fraqueza. Nao 28 quero ter criado Deus a minha prépria imagem, como tanto se diz por af. Por favor, concede-me a graga necesséria, oh, Senhor, e faz que nao seja tao dificil de alcangar como Kafka dé a entender. 29 Meu bom Deus, no que respeita 4 esperanga, sinto-me um pou- co perdida. E tao facil dizer que tenho esperanga — a lingua es- correga por cima destas palavras. Acho que talvez s6 possamos compreender a esperanga se a pusermos em contraste com a de- sesperanca. E eu sou demasiado preguigosa para desesperar. Por favor, nao me inflijas essa pena, Senhor, eu ficaria tristissima. A esperanga, porém, é certamente uma coisa diferente da fé. Sem dar por isso, incluo-a no departamento da fé. Deve ser uma coisa positiva que eu nunca senti. Deve ser uma forga positiva, caso contrario porqué a distingao entre esperanga e fé? Gostava de or- denar as coisas, para me poder sentir espiritualmente coesa. Acho que nao sou capaz de ordenar as coisas. Mas todos os meus pedi- dos parecem liquefazer-se e mesclar-se num pedido de graga — essa graca sobrenatural que exerce o seu efeito, seja 14 qual for.O meu espirito est4 dentro de uma caixinha, meu bom Deus, no fundo de outras caixas dentro de outras caixas e de outras e de outras. H4 muito pouco ar dentro da minha caixa. Meu bom Deus, por favor, dé-me tanto ar quanto eu possa pedir sem que pareca presuncao da minha parte. Por favor, deixa que alguma luz emane de todas as coisas que me rodeiam, para que me possa sentir coe- sa. Este pedido, em ultima andlise, é egofsta. Nao haver4 maneira de contornar isto, meu bom Deus? Nao haverd como fugir a nés mesmos? E mergulhar numa coisa mais vasta? Oh, meu bom Deus, quero escrever um romance, um bom romance. Quero fazer 30 isto para satisfazer um bom sentimento e também um mau senti- mento. O mau sentimento é 0 mais relevante. Os psicdlogos di- zem que é este o sentimento natural. Deixa-me afastar-me, meu bom Deus, de todas as coisas assim «naturais». Ajuda-me a incor- porar na minha obra aquilo que é mais do que natural — ajuda-me a amar a minha obra e a mostrar-me indulgente com ela por este motivo. Se tiver de trabalhar arduamente para a criar, meu bom. Deus, pois que seja como se eu estivesse ao Teu servigo. Gostava de ser santa de um modo inteligente. Sou uma palerma presumida, mas talvez a coisa vaga em mim que me acalenta seja a esperanga. 31 Meu bom Deus, em certa medida fui bem castigada pela minha falta de caridade para com Mr. Rothburg’, no ano passado. Ele hoje ripostou, fustigando-me que nem um vendaval, o que, embo- ra ndo me tenha magoado muito, me estragou a pose. Tudo isto a propésito da caridade. Oh, Senhor, por favor, tora a minha men- te atenta a este respeito. Todos os dias fago muitos, muitos, dema- siados comentérios cruéis acerca das pessoas. Fago-os porque me dao um ar espirituoso. Por favor, ajuda-me a compreender na pratica como isto é reles. Ainda nada tenho de que me possa or- gulhar. Sou estipida, tao estipida como as pessoas que ridiculari- zo. Por favor, ajuda-me a deixar de ser assim egojsta, porque Te amo, meu bom Deus. Nao quero passar a vida a desculpar-me, porém. Pouco valho. Por favor, ajuda-me a cumprir a Tua Palavra, oh, Senhor. * Um colega de Flannery O'Connor no curso de escrita criativa na Universidade de Towa. 32 4/11 [1946] Concluf que isto nado vale muito como meio direto de oragao. A oragdo nao é sequer tao premeditada como estes meus escritos — €um impulso do momento, e isto € demasiado vagaroso para 0 momento. Iniciei uma nova fase da minha vida espiritual — tenho confianga. A par desta confianga, prescindi de certas rotinas de adolescente e de certas rotinas mentais. Nao é preciso muito para nos fazer entender os palermas que somos, mas esse pouco demo- ra a fazer-se sentir. Aos poucos, apercebo-me do ridfculo da minha pessoa. Uma coisa de que me apercebi esta semana — tem sido uma semana bizarra — é que me vejo constantemente como aqui- lo que desejo ser. Nao a concretizacio do que desejo ser, mas 0 estilo certo, 0 embriao correto no animal correto. A consequéncia deste delicioso estado de coma ser4, naturalmente, o eterno em- briaéo — e eterno no sentido mais genuino da palavra. Preciso de crescer. Tenho direito, creio, a demonstrar este interesse por mim propria, desde que este meu interesse se centre na minha alma imortal e no que a mantém pura. «Salvo aos puros, na mais pura hora», escreveu Coleridge — o dom da imaginagao funcionava apenas nesse momento, apenas para esses. Vou comegar pela alma, e talvez os dons temporais que desejo exercer tenham a sua opor- tunidade; e, mesmo que isto nao suceda, terei j4 nas mos a melhor coisa, a Gnica realmente necessdria. Deus tem de estar em toda a minha obra. Tenho andado a ler Bernanos. E absolutamente mara- vilhoso. Sera que alguma vez saberei seja 0 que for? 33 6/11/ Mediocridade é um termo severo para aplicarmos a nés mes- mos; contudo, vejo que se ajusta tio bem 4 minha pessoa que me € impossivel nao me apodar de mediocre — embora compreenda, no preciso momento em que o fago, que s6 quando estiver velha e caduca é que me resignarei a esse epiteto. Resignar-me a ele, parece-me, seria resignar-me 4 Desesperanga. Deve haver algum meio de os naturalmente medfocres escaparem a mediocridade[.] Esse meio é seguramente a Graga. Deve haver alguma forma de lhe escapar, mesmo quando sabemos que estamos abaixo desse nivel. Talvez percebermos que estamos abaixo desse nivel seja um primeiro passo. Digo que se ajusta bem a minha pessoa; mas a verdade é que sou abaixo de medfocre. Andarei sempre aos tombos entre a Desesperanga e a Soberba, encarando primeiro uma e depois a outra, avaliando qual delas me faz sobressair mais, qual delas me faz sentir mais confortdvel, mais descontraf- da. Nunca engolirei um grande naco de nada. Hei de mordiscar nervosamente aqui e além. O temor a Deus é uma coisa boa; mas, meu Deus, nao é este nervosismo[.] E algo colossal, grandioso, magnanimo. Tem de ser um jubilo. Todas as virtudes tém de ser vigorosas. A virtude tem de ser a tinica coisa vigorosa nas nossas vidas. O pecado é vasto e cedigo. Nunca conseguimos acabar de 0 comer, nem nunca o conseguimos digerir. Temos de o vomitar. Talvez esta declaracdo seja demasiado literéria — nao posso dei- xar que este meu diario se torne hipécrita. 34 Como é que posso viver — como é que hei de viver. Obviamen- te, a tinica maneira de viver retamente é abdicar de tudo. Mas nao tenho vocago, e talvez esse caminho esteja errado, seja como for. Mas como eliminar esta minha maneira exigente e cata-espinhas de fazer as coisas — quero tanto amar a Deus sem peias. Ao mes- mo tempo, quero todas as coisas que parecem opostas a esse amor — quero ser uma excelente escritora. Todo e qualquer éxito ter4 tendéncia a subir-me 4 cabega — inconscientemente, até. Se algu- ma vez conseguir tornar-me uma excelente escritora, nao sera porque sou uma excelente escritora, mas sim porque Deus me deixou arrecadar os louros de algumas das coisas que Ele carido- samente escreveu para mim. No momento atual, ndo parece ser esta a postura d’Ele. Nao consigo escrever uma linha que seja. Mas vou continuar a tentar — eis o que importa. E, em cada fase estéril, irei recordar-me de Quem esté a criar a obra quando esta fica pronta e de Quem nao a esté a criar naquele momento. Nos dias que correm, pergunto a mim mesma se Deus alguma vez tornaré a escrever alguma coisa para mim. Ele prometeu-me a Sua graga; no estou tio certa de que me conceda a outra. Talvez eu nao me tenha mostrado suficientemente grata pelas d4divas rece- bidas. Os desejos da came — excluindo os do estémago — foram-me subtraidos. Nao sei por quanto tempo, mas espero que seja para sempre. D4-me muita paz, ver-me livre deles. Nao haverd quem me saiba ensinar a rezar? 35 W/L Como é¢ dificil manter uma dada intengdo[,] uma dada postura em relacao a uma obra[,] um dado tom[,] um dado seja o que for. Neste momento, sinto na minha alma uma certa paz que muito me agrada — nao nos deixes cair em tentagdo. A qualidade das histérias é indiferente. Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Meu bom Deus, deixa-me trabalhar, obriga-me a trabalhar. Desejo tanto poder trabalhar. Se o meu pecado é a preguiga, quero ser capaz de o vencer. Estive a reler algumas destas entradas.” * O texto restante nesta pagina do didrio parece ter sido eliminado. 36 2/1/47 Ninguém pode ser ateu sem conhecer todas as coisas. Somente Deus é ateu. O deménio é o maior dos crentes, e 14 tem as suas razOes. 37 11/1/47 Sera que alguma vez podemos resignar-nos a chamar medfo- cres a nds mesmos — eu a mim pr6épria? Se eu nao sou isto ou aquilo que outrem 6, nao serei outra coisa que ainda nao sou capaz de ver nem de descrever plenamente? Volto atrds e [...] So Tomas [...]” Rousseau considera que o protestante tem de refletir; 0 catéli- co tem de se submeter. Deduz-se, creio, que, em tiltima andlise, © protestante também tem de se submeter; porém, 0 catdlico nunca deve refletir, nomeadamente acerca da natureza da relagao do homem com Deus. Isto € interessante. Sendo o catolicismo um roteiro para o inico meio de comunicar a que vale a pena submetermo-nos, no entender do catélico. E todas as doutrinas que negam a submisséo negam também Deus. O Inferno, um Inferno literal, € a nossa nica esperanga. Tirem-nos o Inferno e iremos converter-nos numa terra completamente devastada, ao invés de meio devastada. O pecado é uma coisa 6tima, desde que reconhecido como tal. Conduz a Deus muito boa gente que, de outra forma, nao chegaria 14. Mas se deixarmos de o reconhecer, ou se 0 tirarmos ao deménio enquanto deménio e o atribuirmos ao dem6nio enquanto psicdlogo, suprimimos também Deus. Se nao existe pecado neste mundo, nao existe Deus no Céu. Nao existe Céu. HA quem prefira assim. Porém, mesmo entre os lite- * O texto restante nesta pégina do didrio parece ter sido eliminado. 38 ratos tornou-se popular crer em Deus. Ha nesta fé qualquer coisa chocante. Os catélicos, no entanto, precisam de alimentar certe- zas, tanto quanto lhes é possivel, ou talvez somente tanto quanto desejam. Eu. Eu preciso de as alimentar, mas ao escrever estarei a tentar chocar as pessoas com Deus? Estarei a tentar encaixd-Lo a forga na minha escrita, as trés pancadas? Talvez nao haja pro- blema. Talvez, sendo eu a fazé-lo, nao haja problema. Talvez eu seja mediocre. Preferia ser menos que mediocre. Preferia ser nada. Uma imbecil. No entanto, nao devo pensar assim. A medio- cridade, se é esse o meu castigo, é algo a que terei de me subme- ter. Se é esse o meu castigo. Se alguma vez descobrir que é, tera chegado a altura de me submeter. Terei de ouvir muitas opinides. 25/1/47 A solenidade dos meus pensamentos esta noite! Seré que todas estas frases soam ao mesmo, tal como me parece? Todas me cau- sam uma vaga néusea — embora fossem sinceras a época e eu nao renegue nenhum dos meus artigos de fé. Esta noite, imagino-me teoricamente aos setenta anos, a dizer que tudo acabou, tudo esta terminado, as coisas sao 0 que sdo, sem por isso estar mais perto do que hoje. Esta baixeza moral aos setenta anos no serd tolera- vel. Quero uma revolugao agora, uma revolugao amena, alguma coisa que incuta em mim um ascetismo sereno do século xx quan- do passo diante da mercearia. As delicias intelectuais e artisticas que Deus nos proporciona sao visGes, e, sendo vis6es, pagamos um prego por elas; e a sede da visao nao acarreta necessariamente consigo uma sede do sofri- mento concomitante. Olhando para tras, vejo que sofri, nao o meu quinhdo, mas o suficiente para lhe chamar sofrimento, embora haja um fabuloso saldo a meu favor. Meu bom Deus, por favor, envia-me a Tua Graga. 14/4/47 Tenho de escrever que irei tornar-me artista. Nao no sentido da fancaria estética, mas no sentido do engenho estético; caso contra- rio, sentirei a minha solidao constantemente — como hoje. A pala- vra engenho cobre o Angulo do trabalho e a palavra estética cobre 0 Angulo da verdade. Angulo. Vai ser uma vida inteira de luta sem atingir a consumagao. Quando qualquer coisa estd concluida, nao a podemos possuir. Nada podemos possuir, exceto a luta. Consumi- mos todas as nossas vidas em possuir a luta, mas somente quando acarinhamos essa luta e a orientamos para uma consumacio final exterior a esta vida é que ela tem algum valor. Quero ser a melhor artista que me seja possivel, sob a batuta de Deus. Nao quero sentir-me solitdria toda a vida, mas as pessoas, a0 recordarem-nos de Deus, apenas acentuam a nossa solidao. Meu bom Deus, por favor, ajuda-me a tornar-me uma artista, por favor, faz que isso me aproxime de Ti. 41 4s Para manter o fio condutor num romance, tem de haver uma visio do mundo subjacente, e o tema mais importante no que a esta visio do mundo diz respeito é 0 conceito de amor — divino, natural e pervertido. E provavelmente possfvel dizer que quando uma viséo do amor est4 presente — uma visdo suficientemente ampla — nada mais é necessério acrescentar para construir a cos- movisao. Freud, Proust e Lawrence situaram o amor dentro do ser huma- no, e nao vale a pena pér em causa esta escolha; contudo, também nao ha necessidade de definir 0 amor tal como eles o fazem — somente enquanto desejo, uma vez que isto impossibilita o amor divino, 0 qual, embora possa ser também desejo, é um género diferente de desejo. E desejo divino — e, situando-se fora do homem, consegue elevd-lo ao seu patamar. O desejo humano de Deus tem os seus alicerces no inconsciente e procura satisfazer-se na posse fisica de outro ser humano. Esta fixagdo, nas suas face- tas sensuais, é necessariamente passageira e desvanece-se aos poucos, dado que constitui um pobre sucedfneo daquilo que o inconsciente busca. Quanto mais consciente 0 desejo de Deus se torna, mais bem-sucedida se torna a unio com outra pessoa, por- que o entendimento apreende a relagdo na sua relagaéo com um desejo mais grandioso, e se este entendimento estiver presente em ambas as partes, a forga motriz no desejo de Deus torna-se dupla e beneficia em tornar-se divina. O homem moderno, isolado da 42 fé, incapaz de elevar o seu desejo de Deus a um desejo conscien- te, afunda-se na postura de ver o amor fisico como um fim em si mesmo. Assim, romantiza-o, espoja-se nele, depois aborda-o com cinismo. Ou, no caso do artista como Proust, afunda-se na postu- ra de compreender que é a tinica coisa que vale a pena ser vivida, mas vé este amor sem propésito, fortuito, frustrante, uma vez satisfeito 0 desejo. O conceito de Proust do desejo s6 podia ser este, uma vez que ele faz dele o ponto supremo da existéncia — que efetivamente é — , mas sem nada de sobrenatural para o cul- minar. Este desejo afunda-se cada vez mais no inconsciente, até ao respetivo 4mago, que é o Inferno. Sem dtivida que o Inferno se situa no inconsciente, tal como o desejo de Deus. O desejo de Deus talvez esteja numa superconsciéncia que é inconsciente. Sata caiu na sua Ifbido ou no seu id, consoante o termo freudiano mais completo. A perversio € 0 resultado final de negarmos ou nos revoltarmos contra o amor sobrenatural, descendo da superconsciéncia incons- ciente para o id. Nos casos em que a perversaéo é uma doenga ou © resultado de uma doenga, isto nao se aplica, porquanto o livre- -arbitrio nao opera. O ato sexual é um ato religioso e, quando ocorre sem Deus, é um ato postigo, ou, no melhor dos casos, um ato vazio. Proust tem razdo ao afirmar que somente um amor que nao satisfaz pode continuar a existir. Duas pessoas s6 podem con- tinuar «apaixonadas» — um termo que o romantismo fétido tor- nou quase imprestavel — se 0 seu desejo comum uma pela outra as unir num desejo mais vasto de Deus, ou seja, ao invés de fica- rem saciadas, sentem um desejo partilhado e acrescido do amor sobrenatural em unido com Deus. Meu Deus, sara estes furtincu- los e ptistulas e verrugas de, romantismo doentio [...]" 30/5 Rasguei a Ultima entrada. Era digna de mim, sem divida; mas indigna da pessoa que eu deveria ser. Bloy veio ao meu encontro. O mais horrivel, depois de o lermos, é sermos capazes de regres- sar a néds mesmos, sendo ainda nés mesmos. Ele é um icebergue langado contra mim para romper o casco do meu Titanic, e espero bem que o meu Titanic fique feito em pedagos, mas receio bem que Bloy nao seja o bastante para destruir a época dentro de nés — a época é ainda a Queda do Homem, parece-me, e certamente o Pecado Original dentro de nés. Podemos subjugé-lo mas nao livrar-nos dele, podemos combaté-lo e mutilé-lo mas nunca maté- -lo. E dificil desejarmos sofrer; deduzo que a Graga seja necess4- ria para 0 desejo. Sou uma mediocre do espirito, mas ha esperan- ¢a. Sou uma criatura do espirito, pelo menos, ou seja, estou viva. Entio e estes mortos com quem vivo? Entao e eles? N6s, os vivos, teremos de pagar pelas mortes deles. Estando mortos, que hao de eles fazer? Foi por eles, deduzo, que os santos morreram. Nao, os santos morreram por Deus, e Deus morreu pelos mortos. Eles nao tiveram de se sujeitar 4 mesma indignidade de Deus. Ninguém consegue tornar a fazer o que Cristo fez. Estes «Cristos» moder- nos representados em cartazes de guerra e em poemas — «cada homem é Jesus; cada mulher, Maria» [—] teriam causado nduseas a Bloy. Os restantes de nés perderam a capacidade de vomitar. 22/9 e Bloy novamente. Deveria ser um grande acicate da hu- mildade em mim, o facto de eu ser tao inerte ao ponto de precisar sempre de Bloy para me mergulhar em reflexGes sérias — e mes- mo entdo estas nao se prolongam durante muito tempo. O verao foi muito 4rido em termos espirituais e, aqui em Iowa City, ter comegado a ir 4 missa novamente todos os dias nado me tocou — pensamentos horrendos na sua mesquinhez e no seu egoismo vém-me a cabega, mesmo com a héstia na lingua. Talvez o Senhor se tenha apiedado de mim e me tenha posto a deambular pelo meio das estantes para pegar no livro de Pfleger acerca de Bloy e de Péguy e de alguns outros. E horrfvel pensar na minha incons- ciéncia quando, na realidade, sei tudo. Demasiado débil para pedir sofrimento a Deus nas minhas preces[,] demasiado débil até para entoar uma prece seja para que fim for, excetuando ninharias. Nao quero estar condenada a mediocridade nos meus sentimentos em relagao a Cristo. Quero sentir. Quero amar. Acolhe-me, meu Se- nhor, e encaminha-me na direg&o que deverei tomar. Minha Se- nhora do Perpétuo Socorro, ora por mim. 45 23/9 Oh, Senhor, pego-Te, faz que eu Te deseje. Seria para mim a maior das beatitudes. Nao apenas desejar-Te quando penso em Ti, mas sim desejar-Te constantemente, pensar em Ti constante- mente, sentir esse desejo a pulsar dentro de mim, senti-lo como um cancro dentro de mim. O desejo matar-me-ia como um can- cro, e essa seria a satisfagio suprema. E facil para esta escrita revelar um desejo. Ha um desejo, mas é abstrato e frio, um dese- jo morto que transparece bem na escrita porque a escrita é uma coisa morta. A escrita é uma coisa morta. A arte € uma coisa morta, morta por natureza, ndo morta pela crueldade. Trago 0 meu desejo morto para o lugar certo[,] o lugar morto onde este desejo sobressai mais facilmente, para a escrita. Isto cumpre 0 seu fito, caso, pela graga de Deus, desperte outra alma; mas ndo me serve de nada. A «vida» que este desejo recebe ao ser passado a escrito est morta para mim, mais ainda porque parece viva — um horrivel embuste. Mas nao a meus olhos, que sei a verdade. Oh, Senhor, pego-Te, torna vivo este desejo morto, vivo na vida genuina, vivo tal como provavelmente terd de viver, no sofrimen- to. Sinto-me demasiado medfocre para sofrer. Se 0 sofrimento viesse ao meu encontro, nem sequer o reconheceria. Protege-me, Senhor. Ajuda-me, Mae. 24/9 Ao dar-nos 0 catolicismo, Deus priva-nos do prazer de o procu- rar, mas neste caso tornou a mostrar-se misericordioso para al- guém como eu — e, j4 agora, para todos os catélicos contempo- réneos — , que, se nao 0 tivesse recebido como dadiva, nao o teria procurado[.] E certamente uma providéncia divina em favor de todas as almas mediocres — uma ferramenta para nosso uso; no caso da figura veneranda de Bloy é... como chamar-lhe? Deus na terra? Deus tao préximo de nés quanto nos é possivel aqui na terra. Quem me dera somente ser um dos fortes. Se o fosse, ter- -me-ia sido dado menos, e eu teria sentido um grande desejo, té- -lo-ia sentido e teria lutado para o consumar, para medir forgas com Cristo, por assim dizer. Mas pertengo ao grupo dos fracos. Sou tao fraca que Deus me deu tudo, todas as ferramentas, instru- gGes para o seu uso, até um bom cérebro para as utilizar, um cé- rebro criativo para as tornar disponiveis para os outros. Deus est4 a alimentar-me, e nas minhas oragGes pego-Lhe que me desperte 0 apetite. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ora por mim. 47 25/9 Aquilo que pego é, na verdade, bastante ridfculo. Oh, Senhor, o que eu digo é que neste momento sou um queijo, faz de mim uma mistica, imediatamente. A verdade é que Deus é capaz disso — é capaz de converter queijos em misticos. Mas porque haveria Ele de o fazer em beneficio de uma criatura ingrata, preguigosa e suja co- mo eu? Sou incapaz de permanecer na igreja sequer para dizer uma oragdo de ago de gracas[,] e quanto a preparar-me para a comu- nhdo na noite da véspera — tenho a cabega noutro lugar. O rosario € para mim mera rotina, enquanto penso noutras coisas, normal- mente fmpias. Mas gostava de ser uma mistica, e imediatamente. Porém, meu bom Deus, por favor, dé-me um lugar qualquer, por exfguo que seja, mas deixa-me conhecé-lo e conservd-lo. Se me cabe lavar todos os dias o segundo degrau, diz-mo e deixa-me lavé- -lo e deixa que o meu coragao transborde de amor ao lav4-lo. Deus ama-nos, Deus precisa de nés. E também da minha alma. Por isso leva-a, meu bom Deus, porque ela sabe que Tu és tudo o que ela deveria desejar, e se fosse sensata Tu serias a tinica coisa que ela desejaria, e nos momentos em que ela se enche de sensatez Tu és a Unica coisa que ela deseja, e deseja desejar-Te mais e mais. As exi- géncias dela sio absurdas. E uma traga que quer ser rei, uma cria- tura esttipida e preguigosa, uma criatura néscia, que deseja que Deus, que criou a Terra, seja seu Amante. Imediatamente. Se eu ao menos conseguisse conter Deus na minha mente. Se ao menos conseguisse pensar n’Ele e s6 n’Ele e em mais nada. 48 26/9 Os meus pensamentos estado tao afastados de Deus. Mais valia Ele nao me ter criado. E os sentimentos que incubo ao escrever neste didrio duram aproximadamente meia hora e parecem-me um logro. Nao quero estes sentimentos artificiais e superficiais esti- mulados pelo coro de vozes. Hoje demonstrei ser uma glutona — 4vida de bolinhos de aveia integral e de pensamentos eréticos. Nada mais resta dizer acerca de mim. 49 Fac-Simile 54 58 mB 4 7” 8h 83 86 100 101 102 103, 104 106

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