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RESENHA

Afogados em leis: a CLT e a cultura política


dos trabalhadores brasileiros
Angelina Cortelazzi Bolzam
Graduada em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba.
Mestranda em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Advogada.

FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores


brasileiros. Tradução de Paulo Fontes. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

Com o objetivo de promover o conhecimento e o debate acerca dos problemas


decorrentes das relações de trabalho no Brasil, Afogados em leis expõe uma expli-
cação histórica sobre a criação de uma estrutura jurídica própria (Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT) para a proteção de tais relações.
Examinando os impasses causados em seu funcionamento, bem como a eficá-
cia quando da realidade em que foi inserida, French apresenta a maneira pela qual a
legislação foi apropriada pelos trabalhadores brasileiros e movimentos operários da
época, que muito lidaram com as infinitas promessas.
O desenvolvimento da obra inicia-se pela recordação de que a CLT, mesmo
sendo criada em meios de instabilidades política e social da Era Vargas (1943), tor-
nou-se, conforme disposição citada de Wanderley Guilherme dos Santos, “mais do
que uma evidência trabalhista, em realidade, uma certidão de nascimento cívico”.1
Ao encontrar um caminho comum entre o capitalismo privado e a classe tra-
balhadora, o governo da época passou a mover o País em direção ao capitalismo
industrial. Colocava-se a fábrica como símbolo da nação, ao mesmo tempo em que
se implantava um “avançado” programa de reforma social direcionado aos trabalha-
dores urbanos.
John French relata que até hoje a origem atípica do sistema da CLT faz com que
pesquisadores e cientistas sociais se debrucem sobre legislações trabalhistas repres-
sivas e centralizadoras que acabam por não levar em consideração o real significado
que as legislações criadas para proteger os direitos do trabalho têm na formação
política e cultural da classe trabalhadora.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio
1

de Janeiro: Campus, 1979. p. 76.

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 14(27): 207-210, jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 207
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Assim, com a finalidade de preencher a lacuna existente entre a “lei” e a “re-


alidade”, John French apresenta a CLT, no interregno de 1943 a 1964, na visão e
debate dos intelectuais e não intelectuais, afirmando ser impossível estudá-la sem
reconhecê-la como fundamento para a construção de um horizonte cultural comum
referente às questões trabalhistas.
Ao tratar da abrangência desta CLT, o autor define-a como o “código de tra-
balho nacional” que, além de contribuir para a estabilidade legal e institucional das
relações industriais e de trabalho brasileiro, oferece orientação acerca dos mais di-
versos temas que envolvem a relação de trabalho, dado o cuidado com que seus
formuladores esforçaram-se para abranger todas as possíveis eventualidades. Entre-
tanto, ressalta que, mesmo com todo o zelo de seus formuladores, seria ingenuidade
afirmar que todo o conteúdo das normas ali estabelecidas não poderia ser enfraque-
cido, seja por seu não cumprimento, por interpretações jurídicas ou por administra-
tivas equivocadas.
Na perspectiva da época, relata o autor que o abismo existente entre aquilo que
era garantido e o que realmente acontecia nas relações de trabalho era tão grande que
toda a Consolidação não passava de letra morta, já que os esforços dos sindicalistas
para utilizar os poderes formalmente concedidos pela Lei eram sistematicamente
frustrados, tanto pelos empregadores quanto pelo governo.
Ressalta, ainda, a inadequação dos serviços prestados pelo Ministério do Tra-
balho, uma vez que nunca chegou perto de garantir o respeito aos direitos legais
dos trabalhadores (p. 19). Quanto ao papel dos tribunais, descreve que, quando as
petições envolviam menores de idade empregados ou mulheres que exerciam suas
tarefas em horários ou sob condições impedidas pela CLT, os próprios tribunais,
fossem locais, regionais ou nacional, mostravam-se alheios a essa realidade e as ne-
gavam sob o argumento de que a situação envolvia “trabalho ilícito”. Assim, durante
todo o período em análise, os órgãos judiciais omitiram-se a defender os interesses
dos trabalhadores.
Um dos problemas apresentados pelo autor, agora no que tange à forma de
elaboração da CLT, repousa na vertente posta pela América Latina, qual seja, uma
“relação estatutária das condições de trabalho”, que, antes de tudo, destaca o aspecto
legal das relações de trabalho como um conjunto de diretos e obrigações legais. E,
em um contexto no qual a lei trabalhista estaria à frente da situação social e econô-
mica real do País, em um sistema como o do Brasil, em que a distância entre a lei e
a realidade é maximizada, uma lei como a CLT poderia prometer 80% de melhoria,
mas somente 20% de satisfação do que é pleiteado, uma vez que tais normas esta-
riam carentes de planejamento anterior, ou seja, sem qualquer relação com a realida-
de social (p. 25-26).

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Em vista disso, o autor sugere ser a CLT outro exemplo de bacharelismo libe-
ral e de ideias fora do lugar em um país onde o liberalismo sempre foi um grande
mal-entendido, uma vez que a legislação trabalhista brasileira, em geral, foi escrita
mais com um olho na Europa do que realmente na situação brasileira, uma vez ca-
racterizada por um paternalismo conservador que visava mascarar o antagonismo
de classes como sendo a soma de autoritarismo com sistema de favores, conforme
denomina Cerqueira, citado pelo autor.
Nesse sentido é que as relações de trabalho eram caracterizadas pela “política do
jeitinho” (como é chamada a habilidade de burlar problemas burocráticos ou legais
por meios extralegais), pela qual os industriais paulistas passaram a entender que não
tinham necessidade de se opor frontalmente à legislação, desde que pudessem ter uma
“interpretação razoável que atendesse parcialmente” aos seus interesses (p. 42-44).
Mas, afinal, até que ponto os empregados poderiam acreditar, ou melhor, ter
confiança política no Estado? Quando nosso autor trata da intencionalidade na cons-
trução do “império trabalhista”, afirma que o quadro de negligência operado durante
o governo Vargas – que, muito mais durante seus discursos expressava simpatia e
compreensão para com os problemas enfrentados pelos trabalhadores e sindicalistas
do que com políticas estatais concretas – explica-se pelo visível objetivo de atingir
estabilidade política com seus oponentes conservadores, mesmo sob a condição de
abrir mão de qualquer ideal de reforma social. Entretanto, todo esse quadro de ne-
gligência veio a ser alterado quando, conforme descrito, milhares de trabalhadores
entraram em greve (março de 1953), oportunidade em que Vargas finalmente veio a
oferecer aos trabalhadores muito mais do que meras palavras (p. 48).
Em consequência de tais reações, Vargas substitui Segadas Vinna, Ministro do
Trabalho, pelo político gaúcho João Goulart, o qual, segundo French, deve ter sua
atuação relativizada, uma vez que, apesar de demonstrar uma maior disposição “a
favor dos trabalhadores”, estar mais voltado para os problemas e necessidades do
povo à sua volta, admitia a dura realidade brasileira, apesar de apoiar seu cumpri-
mento, qual seja, a do não cumprimento da legislação trabalhista. E, novamente, o
autor questiona: “que confiança os ativistas sindicais poderiam ter em Vargas, o ‘pai
dos pobres’ e defensor dos humildes?” (p. 54).
Ademais, explica o autor que, embora a CLT fosse uma ‘fachada’, uma vez
que só existia no papel e não era aplicada, tal legislação formou “a base da luta de
classes”2, que recaia sob a tomada de “consciência legal” dos trabalhadores.
Desta forma, o enfoque primordial dessa situação deu-se com o impacto da lei
trabalhista na consciência individual e coletiva, bem como no comportamento, fato
PAOLI, Maria Célia apud FRENCH, John D. Afogados em leis: A CLT e a cultura política dos traba-
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lhadores brasileiros. Tradução de Paulo Fontes. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. p. 57.

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que levou a uma divisão de ideias sob dois enfoques: a lei como um ideal de espe-
rança e a lei como fraude. De outra forma, parafraseando a antropóloga jurídica Sally
Merry, French questiona: “como entender as complexidades da consciência legal dos
trabalhadores, as formas pelas quais eles entendem as leis trabalhistas e como esta
compreensão se modifica por meio dos contatos com o sistema jurídico?” (p. 60-61).
Isto posto, a consciência legal do trabalhador deveria ser desenvolvida por
meio da participação deste com a Justiça do Trabalho, a qual, segundo Sally Merry,3
desenvolver-se-ia por meio da experiência pessoal de cada um, individualmente.
A conclusão geral apresentada pelo autor é de quão ilusória é a consciência acerca
da liberdade dos militantes da classe trabalhadora, uma vez que jamais se pode esque-
cer a influência exercida por aqueles que atuam em favor do regime capitalista.
Dotada de uma abrangência sem igual, a CLT foi tida como a legislação mais
avançada para a época em questão, mas não ganha tais elogios do autor, uma vez que
para ele, tal sistema positivo não passava do reflexo direto de uma ação intencional
do Estado “burguês”, dotado de um paternalismo conservador e legalista; fato pelo
qual todo discurso proferido na época tinha como objetivo desviar a atenção da vio-
lência e das desigualdades das classes sociais.
Destarte, dividido por contrastes entre o ideal e o real, vive(u)-se o paradoxo
de estarmos afogados em leis e famintos por justiça, conforme o próprio título da
obra propõe.

Submetida em: 8-8-2014


Aceita em: 10/9/2014

3
MERRY, Sally. Getting justice and getting even: Legal consciousness among working-class Ameri-
cans. Chicago: University of Chicago, 1990. p. 5.

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