Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 14(27): 207-210, jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 207
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v14n27p207-210
Angelina Cortelazzi Bolzam
208 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 14(27): 207-210, jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v14n27p207-210
Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros
Em vista disso, o autor sugere ser a CLT outro exemplo de bacharelismo libe-
ral e de ideias fora do lugar em um país onde o liberalismo sempre foi um grande
mal-entendido, uma vez que a legislação trabalhista brasileira, em geral, foi escrita
mais com um olho na Europa do que realmente na situação brasileira, uma vez ca-
racterizada por um paternalismo conservador que visava mascarar o antagonismo
de classes como sendo a soma de autoritarismo com sistema de favores, conforme
denomina Cerqueira, citado pelo autor.
Nesse sentido é que as relações de trabalho eram caracterizadas pela “política do
jeitinho” (como é chamada a habilidade de burlar problemas burocráticos ou legais
por meios extralegais), pela qual os industriais paulistas passaram a entender que não
tinham necessidade de se opor frontalmente à legislação, desde que pudessem ter uma
“interpretação razoável que atendesse parcialmente” aos seus interesses (p. 42-44).
Mas, afinal, até que ponto os empregados poderiam acreditar, ou melhor, ter
confiança política no Estado? Quando nosso autor trata da intencionalidade na cons-
trução do “império trabalhista”, afirma que o quadro de negligência operado durante
o governo Vargas – que, muito mais durante seus discursos expressava simpatia e
compreensão para com os problemas enfrentados pelos trabalhadores e sindicalistas
do que com políticas estatais concretas – explica-se pelo visível objetivo de atingir
estabilidade política com seus oponentes conservadores, mesmo sob a condição de
abrir mão de qualquer ideal de reforma social. Entretanto, todo esse quadro de ne-
gligência veio a ser alterado quando, conforme descrito, milhares de trabalhadores
entraram em greve (março de 1953), oportunidade em que Vargas finalmente veio a
oferecer aos trabalhadores muito mais do que meras palavras (p. 48).
Em consequência de tais reações, Vargas substitui Segadas Vinna, Ministro do
Trabalho, pelo político gaúcho João Goulart, o qual, segundo French, deve ter sua
atuação relativizada, uma vez que, apesar de demonstrar uma maior disposição “a
favor dos trabalhadores”, estar mais voltado para os problemas e necessidades do
povo à sua volta, admitia a dura realidade brasileira, apesar de apoiar seu cumpri-
mento, qual seja, a do não cumprimento da legislação trabalhista. E, novamente, o
autor questiona: “que confiança os ativistas sindicais poderiam ter em Vargas, o ‘pai
dos pobres’ e defensor dos humildes?” (p. 54).
Ademais, explica o autor que, embora a CLT fosse uma ‘fachada’, uma vez
que só existia no papel e não era aplicada, tal legislação formou “a base da luta de
classes”2, que recaia sob a tomada de “consciência legal” dos trabalhadores.
Desta forma, o enfoque primordial dessa situação deu-se com o impacto da lei
trabalhista na consciência individual e coletiva, bem como no comportamento, fato
PAOLI, Maria Célia apud FRENCH, John D. Afogados em leis: A CLT e a cultura política dos traba-
2
lhadores brasileiros. Tradução de Paulo Fontes. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. p. 57.
Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 14(27): 207-210, jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 209
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v14n27p207-210
Angelina Cortelazzi Bolzam
que levou a uma divisão de ideias sob dois enfoques: a lei como um ideal de espe-
rança e a lei como fraude. De outra forma, parafraseando a antropóloga jurídica Sally
Merry, French questiona: “como entender as complexidades da consciência legal dos
trabalhadores, as formas pelas quais eles entendem as leis trabalhistas e como esta
compreensão se modifica por meio dos contatos com o sistema jurídico?” (p. 60-61).
Isto posto, a consciência legal do trabalhador deveria ser desenvolvida por
meio da participação deste com a Justiça do Trabalho, a qual, segundo Sally Merry,3
desenvolver-se-ia por meio da experiência pessoal de cada um, individualmente.
A conclusão geral apresentada pelo autor é de quão ilusória é a consciência acerca
da liberdade dos militantes da classe trabalhadora, uma vez que jamais se pode esque-
cer a influência exercida por aqueles que atuam em favor do regime capitalista.
Dotada de uma abrangência sem igual, a CLT foi tida como a legislação mais
avançada para a época em questão, mas não ganha tais elogios do autor, uma vez que
para ele, tal sistema positivo não passava do reflexo direto de uma ação intencional
do Estado “burguês”, dotado de um paternalismo conservador e legalista; fato pelo
qual todo discurso proferido na época tinha como objetivo desviar a atenção da vio-
lência e das desigualdades das classes sociais.
Destarte, dividido por contrastes entre o ideal e o real, vive(u)-se o paradoxo
de estarmos afogados em leis e famintos por justiça, conforme o próprio título da
obra propõe.
3
MERRY, Sally. Getting justice and getting even: Legal consciousness among working-class Ameri-
cans. Chicago: University of Chicago, 1990. p. 5.
210 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 14(27): 207-210, jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-1228/cd.v14n27p207-210