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Reabilitação Neuropsicológica

A importância da reabilitação neuropsicológica como uma das intervenções possíveis após o diagnóstico de déficits
cognitivos derivados de quadros neurológicos e/ou psiquiátricos vem sendo cada vez mais abordada nas literaturas
nacional e internacional. Corresponde a complexo conjunto de procedimentos e técnicas aplicados em busca de
melhorar a qualidade funcional do paciente em seu cotidiano, à luz de pressupostos teóricos e abordagens
metodológicas das neurociências e áreas afins. Estão envolvidos neuropsicólogo e paciente, demais profissionais da
equipe interdisciplinar e cuidadores/familiares.

História da Reabilitação Neuropsicológica O interesse pela reabilitação tem origem na Antiguidade, sendo que com
o início da Idade Moderna teve também origem o interesse pelo estudo sistemático do sistema nervoso. Por
exemplo, Andreas Vesalius (1514-1564) publicou um tratado com cerca de 700 páginas sobre anatomia humana,
grande parte era dedicada ao cérebro. Suas dissecações e investigações neuroanatômicas resultaram em uma série
de desenhos que permanecem ainda hoje como uma das melhores ilustrações nessa área. O interesse pela
neuroanatomia fez com que a teoria ventricular proposta por Galeno fosse contestada, passando então as
diferentes estruturas cerebrais a ocupar lugar de destaque no controle das funções mentais. Durante o século XIX,
grande quantidade de pesquisa tentou estabelecer possíveis relações entre funções mentais superiores e estruturas
cerebrais. Este tipo de pesquisa deu origem a um dos debates mais intensos da história da neuropsicologia,
conhecido como “estrutura versus função”, e levou à formação de dois grandes grupos teóricos rivais. De um lado
encontravam-se os localizacionistas, que propunham que as diferentes funções intelectuais estariam associadas à
atividade de estruturas neurais específicas. Do outro lado, estavam os antilocalizacionistas, denominados holistas
ou globalistas, propunham que o cérebro participaria como um todo na execução das diferentes funções mentais.
Franz Joseph Gall (1758-1828) deu origem a esse debate com a proposição da doutrina da frenologia, termo criado
por seu aluno e colaborador Johann Gaspar Spurzheim (1776-1832). A frenologia (do grego, frenos, mente) partiu
do princípio de que diferentes regiões cerebrais teriam funções mentais específicas. Para investigar tais relações, o
movimento frenológico desenvolveu uma metodologia denominada cranioscopia, cujo propósito era o de descobrir
correspondências entre características psicológicas, tais como traços de personalidade ou habilidades cognitivas,
com saliências ou reentrâncias específicas do crânio. O fato de não existir nenhuma relação entre crânio e
estruturas cerebrais, somadas à falta de uma definição sistemática das características mentais, fez com que a
frenologia caísse em total descrédito. Concomitantemente ao desmoronamento da frenologia, surgiram vários
neurologistas que passaram a contestar a doutrina localizacionista proposta por Gall. Entre eles destacam-se Pierre
Flourens (1794-1867) e Friedrich Leopold Goltz (1834-1902). Trabalhando com lesões cerebrais em animais
perceberam que os prejuízos causados pela lesão eram recuperados com o tempo. Além disso, não havia associação
direta entre a extensão da lesão e os déficits motores. Esses resultados, portanto, não demonstravam nenhuma
evidência para a localização de estruturas neurais associadas a funções mentais específicas. Além dessas
descobertas com animais, Pierre Paul Broca (1824- 1880), aluno de Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881), fervoroso
defensor da frenologia, fez uma descoberta em seres humanos que impulsionou de forma decisiva a perspectiva
localizacionista. Ao empregar o método anatomoclínico, o qual busca associar eventuais lesões cerebrais avaliadas
post mortem a quadros neurológicos avaliados durante a vida, em um paciente afásico, Broca descobriu, em 1861,
uma estreita relação entre uma região localizada na terceira circunvolução do giro frontal inferior esquerdo (área de
Broca) e aspectos motores da linguagem. Para muitos, esta descoberta marca o início da neuropsicologia. Pouco
tempo depois, em 1874, Carl Wernicke (1848-1905) identificou, na porção superior do lobo temporal esquerdo, a
área de Wernicke, relacionada à compreensão da linguagem. Tais achados fortaleceram a hipótese de que existem
diferentes áreas cerebrais, localizadas no hemisfério esquerdo, especializadas para a execução de funções
linguísticas. Em paralelo ao debate “estrutura versus função”, ocorreram, também no início do século XIX, as
primeiras tentativas de auxiliar pacientes com lesões cerebrais por meio de intervenções conhecidas hoje como
técnicas de reabilitação neuropsicológica. Neuropsicologia Os primeiros programas sistemáticos de reabilitação
neuropsicológica surgiram na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Walter Poppelreuter
(1886-1939) e Kurt Goldstein (1878-1965) Foram os principais precursores desses programas. Popelreuter foi
responsável pela publicação do primeiro livro sobre reabilitação neuropsicológica (1917). Definições Reabilitação
neuropsicológica pode ser definida como o conjunto de intervenções que objetivam melhorar os problemas
cognitivos, emocionais e sociais decorrentes de uma lesão encefálica auxiliando a pessoa a alcançar maior
independência e qualidade de vida. Segundo a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization, 2000), as
doenças ligadas ao funcionamento cerebral constituem a maior causa de deficiências no mundo. A demanda por
serviços de reabilitação neuropsicológica têm crescido consideravelmente devido ao aumento dos recursos médicos
oferecidos à população. No Brasil, porém, diversas dificuldades são observadas para que essa área se desenvolva,
por exemplo: ainda são poucas as instituições de ensino que oferecem capacitação nesta área da neuropsicologia,
as dificuldades inerentes à área para delimitar protocolos baseados em evidências, a necessidade de adaptar as
estratégias de reabilitação utilizadas em outros contextos socioculturais à realidade brasileira e, ainda, a descoberta
de indicadores adequados à realidade brasileira para avaliar os programas de reabilitação que têm sido
implantados. Com o intuito de amenizar estas dificuldades, desde a última década do século XX, diversas iniciativas
podem ser apontadas como tentativas de estruturar um corpo de conhecimento em reabilitação neuropsicológica
que fundamente as intervenções na área. Cicerone e colegas (Cicerone, Dahlberg, Kalmar, Langenbahn, Malec,
Berquist & cols., 2000) realizaram uma extensa revisão bibliográfica e apresentaram estratégias de intervenção que
a literatura propõe ao reabilitar no contexto de diferentes problemas neuropsicológicos. Uma variedade de
tecnologias também é usada como auxilio na reabilitação de pessoas com problemas neuropsicológicos. Por
exemplo, a utilização de sistemas de mensagens curtas que auxiliavam a lembrar pacientes com esquizofrenia de
suas atividades e compromissos diários. Estudos utilizando-se de sistemas computacionais para criar realidades
virtuais que facilitam a aprendizagem de modo seguro e incentivam a comunicação de pessoas com problemas de
mobilidade também têm sido realizados. Um marco da neuropsicologia pediátrica nos anos 90 foram os modelos
integrados de avaliação e reabilitação neuropsicológica.

Modelos integrados de Avaliação e Reabilitação Neurológica:REHABIT O modelo de intervenção REHABIT (Reitan


Evaluation of Hemispheric Abilities and Brain Improvement Training) toma como referência os sistemas hierárquicos
do funcionamento cerebral (Reitan e Wolfson, 1985). Primeiro, funções críticas para um processamento geral são
treinadas: atenção, concentração e memória; segundo, são treinadas funções necessárias para o processamento
orientado pela lateralização, isto é, funções verbais mediadas pelo hemisfério esquerdo e funções de natureza
vísuo-espacial servidas pelo hemisfério direito. O nível de processamento superior inclui abstração, formação de
conceitos e análises lógicas. A estrutura do programa REHABIT integra teoria, avaliação e treinamento, sendo
adequado para planejamento educacional individualizado de crianças com lesões cerebrais avaliadas pela bateria
neuropsicológica HalsteadReitan. Esse modelo apresenta duas vantagens: 1) a intervenção respeita a hierarquia
operacional do encéfalo (funções críticas, lateralizadas e de processamento superior), e, portanto, facilita o
processo de reorganização funcional e cerebral; 2) habilidades preservadas são acompanhadas e, em consequência,
estimuladas, o que contribui para a automatização das mesmas. Por outro lado, duas desvantagens devem ser
consideradas: 1) a bateria Halstead-Reitan não é validada para a população brasileira; 2) avaliações consecutivas
podem refletir o efeito de aprendizagem pelo desempenho repetido de alguns testes, daí a necessidade de mais
versões de cada tarefa empregada. A intervenção leva em consideração a observação direta do comportamento,
por exemplo, na dificuldade que uma criança apresente para planejar e organizar o seu tempo de estudo ou na
dificuldade para memorizar uma informação enquanto estuda para uma prova. As avaliações incluem as esferas
educacional, comportamento afetivo, desenvolvimento cognitivo e aspectos clínicos, e envolvem a participação de
familiares, professores, equipe interdisciplinar e outros diagnósticos especializados. DNRR O modelo de intervenção
DNRR (Developmental Neuropsychological Remediation / Rehabilitation) foi desenvolvido em atenção às
dificuldades de aprendizagem, isto é, de linguagem falada e ou escrita, coordenação, autocontrole e atenção. O
DNRR supõe sete passos. No primeiro, o perfil neuropsicológico é traçado; a seguir, esse perfil é contrastado com as
demandas do ambiente (comportamento, nível acadêmico, aspectos psicossociais). No terceiro passo, são feitas
predições quanto aos déficits passíveis de recuperação a curto ou longo prazo mediante a intervenção, levando em
conta os recursos da família, comunidade e ambiente psicossocial. O passo seguinte é o plano de tratamento e sua
respectiva monitoração. No sexto passo, o plano de tratamento é reajustado em função da monitoração. O sétimo
passo é a reavaliação neuropsicológica para modificar e clarificar o plano de intervenção. Segundo Teeter (1997), o
DNRR é um paradigma integrado para avaliação e tratamento de dificuldades de aprendizagem, cuja estrutura
permite a identificação de fatores críticos úteis também para o desenho de intervenções em outras desordens. Seu
grande mérito está na constante reavaliação da evolução do paciente.

Programas de Reabilitação Neuropsicológica (PRN) Existem inúmeras dificuldades a serem consideradas no


estabelecimento de formas de Programas de Reabilitação Neuropsicológica (PRN) que funcionem simultaneamente
como terapêutica para idosos portadores de demência e como alternativa preventiva contra o declínio cognitivo e a
depressão. Os modelos de PRN mais adequados são aqueles que utilizam técnicas que promovem a redução ou a
compensação das dificuldades, ou, ainda, dos problemas verificados na execução de atividades cognitivas e que
possam ser medidos e conceituados. Dentre esses modelos, os mais reconhecidos são as estratégias
compensatórias, a orientação para a realidade, as reminiscências, os recursos mnemônicos, a mnemotécnica, a
aprendizagem sem erro e a psicoeducação do reabilitador. A técnica de estratégias compensatórias, por exemplo,
que compreende o uso de apoios externos - como gravadores, agendas, sinalizadores, cartazes etc. -, produz efeitos
benéficos quando os pacientes estão em fase inicial, e menos na fase intermediária, dependendo do auxílio do
cuidador e do terapeuta (Bourgeois, 1990). A técnica de orientação de realidade é o treino sistemático de
informações presentes e contínuas, amparadas por estímulos ambientais de orientação espacial e temporal. Facilita
a sociabilidade e pode ser orientada por apoios externos. Essa técnica vem sendo muito utilizada em idosos. A
técnica das reminiscências consiste em utilizar diversos materiais de contexto autobiográfico (fotos, músicas, roupas
etc.), além das próprias histórias remotas que fazem parte do acervo mnemônico preservado do paciente. Essa
técnica estimula a socialização e a integração no grupo terapêutico e é habitualmente utilizada em grupo e em
pacientes confusos, como também em idosos demenciados. Os recursos mnemônicos compreendem os apoios
verbais e visuais associados ao aprendizado. A dificuldade para seu uso está na capacidade de o indivíduo amnésico
utilizá-lo por iniciativa própria. Entretanto, esses recursos produzem resultados mais eficientes no armazenamento
de uma nova informação, se comparados à repetição. A mnemotécnica foi proposta como um aprimoramento dos
recursos mnemônicos, ao aplicar uma associação ou combinação de informações mentais para serem recordadas
em conjunto. Podem-se utilizar histórias que se conectem a materiais a serem recordados, palavras sem sentido
treinadas com um objeto a serem recordadas, ou ainda nomes ou rostos ligados a uma característica da pessoa. O
aprendizado sem erros é o reforço das respostas corretas. Nessa técnica, não há acentuação ou reforço das
respostas com erro (Wilson, 2009). Para uma boa execução desse aprendizado, é necessária a realização de um
programa que impeça o indivíduo amnésico de emitir “respostas-palpites” ou em forma de tentativa e erro. Essa
técnica tem como base os estudos com memória implícita, em que o indivíduo é capaz de aprender e desempenhar
uma habilidade, mesmo que não tenha capacidade de lembrá-la. Apesar dos vários tipos de intervenção, a
reabilitação neuropsicológica é primordialmente possível devido à inserção de dois conceitos fundamentais, são
eles: a plasticidade cerebral e o princípio da transferência. O primeiro, está relacionado com a capacidade
regeneradora que o cérebro tem através das experiências subjetivas do sujeito, reformulando as suas conexões em
função dos fatores e das necessidades do meio ambiente. O segundo, é entendido quando um domínio cognitivo,
tarefa ou habilidade não treinada, melhora como o resultado da reabilitação exercida noutro domínio. Toda a
intervenção independentemente do tipo de abordagem, tem metas a curto, médio e longo prazo, o que gera a
necessidade de estabelecer objetivos bem definidos para um tratamento mais eficaz. McMillan e Sparkes (1999),
defendem quatro princípios fulcrais para se atingirem os objetivos delineados no plano de reabilitação. O primeiro,
relaciona-se com o paciente, ele deverá ser a referência na definição dos seus objetivos. Em segundo, as metas
devem de ser estabelecidas de acordo com as caraterísticas do paciente. Em terceiro, analisar o comportamento do
paciente face ao acontecimento do objetivo alcançado. Por fim, a existência de coerência em relação às metas
específicas, ao alcance dos objetivos e ao prazo definido. Os objetivos devem de ser específicos, mensuráveis,
realizáveis, realistas e exequíveis estimando um tempo determinado para cada paciente, sendo aconselhável a
realização de reavaliações periódicas dessas metas. Do ponto de vista histórico é possível observar avanço
significativo nos modelos teóricos, métodos e técnicas utilizados na Reabilitação Neuropsicológica: Neuropsicologia
Definição de metas para o planejamento da RN – negociadas com o paciente, família e equipe; auxilia na regulação
motivacional; as metas são focadas em demandas cotidianas; permitem a identificação de prioridades, avaliação do
progresso e dividem a RN em etapas. Um acrônimo que resume tais princípios é o SMART(ER) (em Inglês, specific,
measurable, achievable, realistic, timely, evaluation e review, isto é, as metas devem ser específicas, mensuráveis,
atingíveis, realistas, com prazo definido, avaliável e revisável). O reconhecimento de que, além das dificuldades
cognitivas, os aspectos emocionais e psicossociais também podem ser incluídos na reabilitação – há evidências
empíricas de que tais aspectos podem influenciar os déficits cognitivos. Além disso, consequências psicossociais e
comorbidades psiquiátricas de um transtorno podem influenciar negativamente a resposta do paciente à
Reabilitação Neuropsicológica. Aumento do uso da tecnologia para a compensação dos déficits cognitivos – a
tecnologia pode ser utilizada no contexto da avaliação, e também para auxiliar o paciente a desenvolver
mecanismos compensatórios para os déficits apresentados. A realização da RN necessita de diferentes bases
teóricas – um único modelo teórico é insuficiente para lidar com as diferentes demandas e consequências de um
transtorno. Neste sentido, Wilson (2008; 2013) têm descrito um modelo compreensivo/ holístico para a
Reabilitação Neuropsicológica baseado nos 38 pressupostos definidos pelos pioneiros Yehuda Bem-Yishay e George
Prigatano. Alguns aspectos metodológicos importantes devem ser considerados durante a realização de um
programa de Reabilitação Neuropsicológica: • a avaliação deve identificar áreas alteradas e preservadas; • o
treinamento deve ser individualizado e adaptado às necessidades do paciente; • o trabalho deve envolver a
participação familiar; deve levar em conta variáveis intervenientes; o treinamento se inicia por aspectos nucleares e
se aproxima de atividades da vida diária; • deve iniciar com atividades que exijam menor demanda atencional; deve
usar materiais do cotidiano do paciente; • diversificar materiais e estímulos (visuais, auditivos, táteis); • ajustar o
nível de dificuldades, para que o paciente não finalize uma sessão com mais erros que acertos; • incluir componente
educacional e instrutivo; • deve realizar treinamento metacognitivo, explicando o que é a função cognitiva e as
estratégias para trabalhá-la; • ocorrer de maneira sequencial e hierárquica; • usar materiais que motivem o
paciente; • o terapeuta deve proporcionar feedback sobre desempenho e evolução do paciente e recompensar
sucessos obtidos; • garantir a generalização para a vida diária e não somente melhora nos testes; • controlar a
eficácia da intervenção com registros sistemáticos e instrumentos para averiguar a percepção da melhora.

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