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A

AMAR A IGREJA
"Se queres ser amigo da Igreja é preciso estender a tua amizade em toda a altura,
largura e profundidade da Igreja. Serás amigo dos primeiros cristãos, companheiro
de peregrinação dos peregrinos de Emaús. Acharás bela a palavra de Pedro, belos
os pés do apóstolo que anunciam Jesus, bela a autoridade de Inácio de Antioquia e
ainda mais bela a sua humildade, mas ainda muito mais belo o seu testemunho.
Conhecerás histórias dos que creram e cada um a seu modo trouxe um
testemunho. Como é possível amar a Igreja sem gostar da convivência antiga dos
irmãos na Fé? Como é possível amar a Igreja sem considerar com sobrenatural
ternura, com estremecimentos de gratidão, a galeria dos Padres, e sem admirar
toda uma civilização povoada de santos e marcada de Evangelho? Como é possível
amar a Igreja sem admiração agradecida por todos os que deixaram a passagem
marcada no chão do mundo ou no mundo das almas?"
(Amizades, 10/05/69)

AMIZADES
"Todo amigo é amigo de infância. Não importa se você o conheceu no mês passado
ou se soltou papagaio com ele na Rua do Matoso. Se a amizade é verdadeira, ela
tem esta força que vence as distâncias e os anos, e tem necessidade de uma
profunda comunhão de vida. O amigo não quer o amigo apenas no momento que
passa, não se contenta com encontros e trocas fortuitas; o amigo quer o amigo em
todas as suas dimensões, quer conhecer suas raízes e apreciar seus frutos. O
amigo quer o amigo como companheiro de caminhar neste mundo. E por isso, a
primeira idéia que nos acode quando pensamos na perfeição da amizade é a da
fidelidade.

"Observai quantas e quantas vezes a Sagrada Escritura nos fala da amizade,


insistindo sempre na idéia de longa fidelidade: "O amigo é amigo todos os dias,
mas na hora da desgraça é irmão" (Prov. XVII, 17). "Um amigo fiel é uma proteção
poderosa, e quem o achou possui um tesouro. Nada vale mais do que um amigo
fiel, nenhum peso de ouro marca seu preço. Um amigo fiel é remédio da vida, e
aqueles que temem o Senhor o encontram. Quem teme o Senhor é capaz de
verdadeira amizade, pois vê no amigo o seu semelhante". (Ecc. VI, 14-17).

Por outro lado, o que marca o falso amigo é justamente a sua inconstância: "Este é
amigo em tal hora, mas não o será no dia da aflição; este outro é hoje amigo e
amanhã inimigo; aquele é amigo quando está sentado à mesa, mas não o é na hora
da dor." (Ecc. VI, 8-10)

Há entretanto uma amizade maior do que as outras: a de quem dá a vida por seus
amigos. "Sois meus amigos se fizerdes o que mando", disse-nos o Senhor, e logo
acrescentou: "Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o
senhor, chamo-os amigos porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer".

E é por isso que Santo Tomás nos ensina que a caridade é uma amizade porque
inclui um paralelismo de vontades e uma comunhão de beatitude."
(Amizades, 10/05/69)

AMOR
"A conversação amorosa tem esse caráter especial: todos os assuntos são
pretextos. Dentro da infinita variedade que a vida e o mundo proporcionam, o
coração enamorado vê no assunto um lugar de encontro, um modo de contato."
(Wolfgang Amadeus Mozart, in Dez Anos)

"Antigamente, quando se acreditava demais nos valores extrínsecos e no


funcionamento das instituições, que seriam capazes até de arredondar as arestas
vivas das almas, era costume aconselhar casamento em função das qualidades e
dos títulos. Havia por exemplo o casamento do "bom partido". E ainda hoje muita
mãe calejada, ou de si mesma esquecida, espanta-se e assusta-se quando vê a
filha recusar um desses bons partidos. Diz que amor é poesia que passa. Ensina
que a vida é diferente. Alega sua experiência. Mas no caso quem tem razão é a
filha, porque ninguém se casa com adjetivos. Por melhores que sejam de ambas as
partes, a convivência será um doloroso desencontro se faltar a misteriosa afinidade
que só pode ser revelada e descoberta na experiência do amor. Ninguém se casa
com títulos. É com a pessoa, essa coisa espessa e compacta, integrante de todas as
qualidade numa substância concretíssima e singularíssima, é com a pessoa, com o
ser total do outro, que a gente se casa. E isto só se manifesta quando funcionam as
finas intuições do coração, e o amor é a virtude de multiplicar por mil as secretas
sensibilidades desse instinto. A intuição amorosa não despreza as qualidades, não
faz tábula rasa dos títulos e recomendações, mas integra-os no todo da pessoa
amada. O amor é essencialmente totalizador, ao contrário do desamor que é
essencialmente analista. Quando a gente gosta de uma pessoa, pessoalmente, até
o fundo, é da pessoa total que se gosta; quando porém a pessoa aborrece é
sempre pelas partes e pelas superfícies que aborrece."
(A Boa Escolha, in Claro Escuro)

"Muita gente diz que amor é cego, e portanto mau conselheiro. Mas não é verdade.
Cego é o amor próprio, que muita vez se finge de amor. Ao contrário, amor é
compreensão, é penetração, é conhecimento."
(A Boa Escolha, in Claro Escuro)

"Dizer que o amor é cego equivale a afirmar a radical incompatibilidade entre o


amor e a razão. O caloroso amor será cego; a lúcida razão será gélida. Divide-se
então o homem em si mesmo, de um modo irremediável, e o jogo do amor será
uma loteria com poucos prêmios e muitos bilhetes brancos. A razão virá mais tarde,
quando esfriar o amor, para passar um pito no apaixonado; ou para se rir amarelo
da ilusão dos que ainda vivem nos amorosos torpores.

"[...] Ao contrário, o amor é lúcido. O amor, o verdadeiro amor é ardentemente


compreensivo. Só quem ama verdadeiramente, conhece verdadeiramente. Se é
verdade que o conhecimento precede o amor, é verdade também que o amor
precede a dilatação do conhecimento.

"O amor, o verdadeiro amor tem um conhecimento penetrante, candente, fino,


lúcido; tem um conhecimento de ressonância profunda, de identificação, de
conaturalidade.

"O amor, o verdadeiro amor advinha, penetra, descobre, simpatiza, faz suas as
aflições do outro, dá ao outro suas próprias alegrias. É compreensivo. Mas não é
compreensivo no sentido que se dá a esse vocábulo, quando quer significar uma
tolerância que fecha os olhos. Não. O amor verdadeiro é compreensivo num sentido
maior, que não fecha os olhos, mas que também não fecha o coração. Vê as falhas
do outro, vê as misérias do outro, com uma generosa inquietação, com uma
piedosa solicitude. Mas vê. Vê com amor. Mas vê. E é nessa visão que ele encontra
as forças de paciência para os dias difíceis, e que se defende das amargas
decepções. A miséria, o defeito, a falha, apresentados pelo amor, conservam
sempre a dignidade do contexto em que foram apreendidos, sem sacrifício da
veracidade. Porque o amor é veraz, é verídico, é essencialmente amigo da verdade.
E como compete à razão guiar a alma nos caminhos da verdade, segue-se com
lógica irresistível que a razão é o piloto do amor."
(Amor, casamento, divórcio, A Ordem fev/52)

AMOR AO PRÓXIMO
"Um de nós, que nunca viu o sr. João Amazonas, e que só o conhece de nome, não
o pode amar. Como é possível amar o interventor do Pará ou o marajá de
Kapurtala, a alguém que nunca tenha encontrado esses ilustres personagens?
Amanhã ou depois um dos nossos talvez venha a encontrar o marajá ou o deputado
comunista, numa dessas interseções da vida, como aconteceu com o bom
samaritano que permitiu ao Senhor a lição sobre o próximo, mas antes disso
acontecer é ridículo dizer que já os amamos.

Ridículo e um pouco hipócrita. Amamos o próximo; e antes de tudo amamos a


Deus. Quanto ao marajá e ao interventor, está na mão de Deus, pelo ministério dos
anjos, a distribuição do afeto dentro da comunhão dos santos. Este é o único modo
de que dispomos, neste mundo, de honrar a humanidade dos desconhecidos, pela
santa humanidade de Cristo. Nosso amor a Deus descerá como uma chuva nas
casas dos japoneses e nas choças dos índios, mas não nos fica bem enunciar esse
mistério dizendo desde já que sentimos palpitações de amor quando pensamos no
sr. João Amazonas. Será preferível, mais sincero, mais varonil, talvez mais cristão
dizer claramente que sentimos uma veemente indignação pelo que dele sabemos
como homem público, que nas câmaras procura nos arrastar para uma iniquidade."
("Combate ao Comunismo", A Ordem, Editorial, Janeiro de 1947)

AMOR MATERNO
"Também o amor materno, que fez a violência de rachar o corpo ao meio, em
grandes dores, para dar à luz, isto é, para se separar, muitas vezes se arrepende
freneticamente e volta-se contra o filho com um vampirismo monstruoso que se
prolonga para a vida inteira. O primeiro gesto maternal de agarrar o filho ao colo já
é uma mistura de amor e de avareza. Mais tarde serão agasalhos, conselhos,
solicitudes que tentarão se interpor para tirar a luz depois de ter dado a luz. E
quando o filho se aproxima da idade das núpcias, podendo em cada instante
descobrir pelo amor a prodigiosa objetividade da noiva, a mãe devorante se
multiplica silenciosamente, cerca, abafa, agasalha, transforma-se ela toda num
enorme útero, tépido, escuro, palpitante".
(A Descoberta do Outro, pág. 184)

ARTE
"Não é por mero floreio literário que disse estarem os homens preparando uma
exposição para o juízo final. Na verdade, o fazer artístico, saiba ou não saiba o
artífice, é uma espécie de ofertório".
("Quadros em uma exposição", in O Desconcerto do Mundo)
ARTE MODERNA
"A mais humilhada das artes tirou uma desforra completa. Fugiu do internato. Ou
do orfanato. Rasgou o uniforme, e andou pelas ruas da cidade descabelada e
impudica. Fauvismo, cubismo, dadaísmo, futurismo, orfismo, sincronismo,
construtivismo, suprematismo, purismo, surrealismo, pós-cubismo, pós-
surrealismo, abstracionismo, concretismo... A história continua a descrever a curva
perigosa. E foi nos solavancos e na vertigem da mudança geral de valores e
critérios que se realizaram as ofegantes experiências estéticas. É difícil discriminar
o falso e o genuíno, o estéril e o fecundo, nessa Babel de tentativas. É difícil saber
qual é a parte de todo esse conjunto que terá ingresso, não nos salões oficiais dos
juízes carregados dos preconceitos da época, mas naquele salão universal e
apoteótico que os anjos contemplam."
("Quadros em uma exposição", in O Desconcerto do Mundo)

"Passaram-se os tempos. A curva continua, mas agora nós nos habituamos à


vertigem. Pode-se até dizer que de tal modo nos habituamos à curvatura da
história que até passamos a considerar os solavancos como rotinas. Temos ou
apregoamos uma facilidade enorme de aceitar todas as inovações. Temos até
vergonha, respeito humano, de demonstrar um sincero ahurissement diante de
alguma tela exposta na bienal. Não fica bem manifestar estranheza diante do que é
estranho. Escancarada e complacente, a opinião pública aceita tudo. O espírito
burguês, vivendo a antítese do fixismo derrubado, tornou-se revolucionário. E a
audácia de recusar foi substituída pela audácia de aceitar e de fingir que
compreende tudo. E assim, ao farisaísmo de 1870 responde o mundo moderno com
um publicanismo de infinita tolerância, que muitos pensam ser uma infinita
sabedoria, e alguns ousam pensar que é uma infinita caridade. Quando a forma da
música ou da poesia parecer esdrúxula demais, o público tem um moeda
desvalorizada para comprá-la, ou uma fórmula para conjurá-la: arte moderna. Nós
nos rimos hoje dos críticos que riam de Manet, do pacato Manet, do tranqüilo
Manet. Quem se rirá de nós?"
("Quadros em uma exposição", in O Desconcerto do Mundo)

ARTISTAS
"O pobre do artista, por mais que falem de suas vaidades e jactâncias, é sempre
um inseguro. Um mísero, que às vezes sabe o que faz, mas quase sempre ignora o
que fez. Um mendigo que precisa, mais do que ninguém, de pancadinhas no
ombro. Um sequioso de confirmação. Um faminto de elogio. Só não precisa de
elogios o homem muito santo ou o homem muito orgulhoso. O primeiro, porque
tem a alma repleta do elogio da Graça; o segundo porque carrega em si mesmo a
sua claque, a sua bancada, a sua maioria.

"Mas o artista do vulgar meio termo, que anda na montanha russa da vida, ora
mais alto, ora mais baixo, sem atingir a santidade e sem se endurecer de
suficiências, esse precisa de palmas, de sinais que o confirmem, de mãos que o
salvem do oceano de perplexidades."
(Agradecimento, in Dez Anos)

"Com já tive a ocasião de salientar mais de uma vez, tenho a convicção de que a
arte, se lhe tiram o sentido, a dimensão escatológica, deixa de ser o que é, perde-
se, desmancha-se. Os artistas estão aqui, neste mundo obscuro e bastante
desconcertado para mostrar aos homens os preparativos de uma festa a que todos
estão convidados. O trabalho deles, dentro de tal concepção, é como as estrelas
que brilham sem vencer a escuridão da noite. Estamos aqui no mundo, não apenas
vendo sombras, como disse Platão, mas vendo lampejos, como disse o Apóstolo
Paulo. E é nesse sentido mais alto que agora coloco o esforço de tornar visível o
que está escondido no âmago das coisas: os poetas, os escritores como Eça, são
semeadores de estrelas em nosso caminho escuro; e nisto, queiram ou não
queiram, sejam liberais ou anti-clericais de um modo mais ou menos pueril, como
nosso excelente português, estarão sempre a serviço de Deus. Canta a Igreja, na
Quinta-Feira Santa, durante o Lava-pés, a antífona tirada do Evangelho de São
João: Ubi caritas, et amor, Deus ib est. Ora, o que o Evangelista disse do amor,
creio que se possa analogamente dizer da beleza. Onde estiver algumas cintilações
da beleza, aí Deus está."
("Na mesma língua em que chorou Camões", in O Desconcerto do Mundo)

AVENTURA
"(...) nós naqueles verdes anos estávamos simplesmente realizando o que é próprio
do homem: a aventura. Na verdade toda a humanidade não tem feito outra coisa
senão cometer extraordinárias imprudências que depois se transformam em
impérios, em fama e glória, em história, em lenda, em canto.

"Vejam se o velho do Restelo não tinha razão em apostrofar os bravos lusitanos


que sob o comando de Vasco da Gama iam ao outro lado do mundo fundar novos
reinos e comprar especiarias. Vejam os fenícios que certamente andaram aqui por
perto; vejam os vikings, vejam todos os grandes navegantes e grandes
aventureiros e assim também vejam o sagaz e astuto Ulisses, que não fazia outra
coisa senão aventurosamente voltar para casa, que é a maior das aventuras.

"Os economistas que costumam explicar os atos humanos pelas causas materiais,
na verdade são uma raça de gente que vê o mundo pelo en dessous das coisas.
Eles pensam que assim explicam melhor os atos humanos, os grandes feitos,
aventuras e guerras. Na verdade em todo o mundo físico, as leis que governam os
movimentos dos astros e das coisas são aquelas do caminho mais curto. Eu não sei
qual a versão que dariam, esses explicadores de tudo pelo lado do nada, à
expedição do sábio dinamarquês Amundsen ao Pólo Sul. A mim, hoje, parece-me
que esses intérpretes da história, nas explicações que dão, explicam tudo menos
daquilo que é o principal no homem, a saber, o espírito. Eles não sabem que há
duas leis regendo os movimentos humanos. Às vezes o homem se sujeita à técnica
e procura a lei do menor caminho, mas antes disso já aceitara a lei da aventura e
do caminho mais longo."
("Sete Quedas", in Conversa em Sol Menor)

B
BOM SENSO
"O bom-senso não é apenas um prêmio da moderação e do bom comportamento: é
um troféu violentamente arrebatado".
("Uma restrição", in Três Alqueires e uma Vaca)

BURRICE
"Os católicos, em todas as épocas foram sujeitos aos pecados de todos os matizes,
mas nunca pecaram, como hoje, de um modo tão humilhantemente burro. Tudo
isto porque abriram portas e janelas quando deviam fechá-las: isto é, quando era
evidente que o melhor serviço que a Igreja podia prestar a um mundo enlouquecido
era a defesa de sua virgindade. Apregoaram admiração e até agradecimentos,
SINCEROS AGRADECIMENTOS, quando deviam clamar sem cessar que o homem é
homem, e Deus é Deus. Todas as baixezas e tolices foram praticadas em nome de
ecumenismos, diálogos e outros apelidos da prostituição. Levaram a fúria de
AGRADAR AO MUNDO até a infinita soberba de DESPREZAR A DEUS.

Até quando Deus manteria o sombrio mistério de sua permissão? E nós? Que
devemos fazer para opor àquela onde de AGRADO DO MUNDO uma onda de
AGRADO DE DEUS que Ele espera de nós para suspender a terrível permissão"
("Cosmolatria"-- editorial de Abril/Maio de 74 da Revista Permanência)

C
CARIDADE
"A Caridade é a luz que nos revela a coisa mais extraordinária do mundo: o outro.
Nem sempre conseguimos essa prodigiosa banalidade, e no meio da multidão
sentimo-nos isolados, únicos, como se todas as pessoas que vemos não passassem
de meras sombras, de sinais saídos de nosso interior. Mesmo em família ainda cada
um tem uma significação relativa ao nosso eu. Esta é minha mulher, aquele é meu
cunhado (...)

"A luz da Caridade opera uma separação; põe-nos diante do outro. Separa-nos para
nos livrar da insuportável solidão. Os maus poetas que só conhecem o amor
erótico, não sabem que o verdadeiro amor separa, e que separa de um modo
perfeito. A união da amizade não é um aniquilamento de um no outro, mas o
esplendor de uma separação. Os amigos não se desmancham, os santos não se
dissolvem, mesmo diante de Deus, mas reúnem-se de mãos dadas e cantam o
mesmo louvor, cada um com sua voz, separados e reconciliados. O modelo perfeito
do amor é a Santíssima Trindade, onde as três pessoas se amam numa perfeita
separação."
("A Maior das Três", in A Descoberta do Outro)

"O reino de Deus vem. A mais ardente prece que Jesus ensinou diz "adveniat" e a
oração inefável do Espírito Santo diz "veni". O céu vem. A esposa vem. Mas como
seria possível imaginar o grito ardente que chama, que pede a vinda, o "veni", sem
o impulso ainda mais ardente de correr ao encontro de quem chama? Que esposo
apaixonado chamaria a esposa, gritaria: vem! sem se levantar de sua cadeira, sem
esticar os braços, sem atirar corpo e alma ao encontro da bem-amada? Assim
também só podemos entender a mensagem da esperança na caridade, e o reino de
Deus está nesse encontro impetuoso em que Pai e filhos se atiram num imenso
abraço de reconciliação.

"E quando ele ainda estava longe, seu Pai o viu; e, tocado de compaixão, correu,
atirou-se em seus braços e cobriu-o de beijos."
("Ainda um pouco de tempo", in Descoberta do Outro)

CARIDADE FRATERNA
"O cristianismo é todo ele uma soma de pequeníssimas histórias familiares. Basta
ver nas epístolas. Depois do Dogma vêm os nomes de uns poucos amigos; depois
da doutrina, os abraços da cordialidade paroquial. Lembranças a Prisca e Aquila.
Lembranças e abraços a Andrônica, Amplius, Urbano, Persida e Rufus.

"Quem são esses santos ignorados cujos nomes vêm assim arrastados pelos
séculos e séculos na cauda da doutrina?

"E Lucius, Jasão, Sosipater; e Erastos, o tesoureiro da cidade; e Quartus, nosso


irmão?

"Quem são esses que ficaram gravados na Sagrada Escritura pela força dos
abraços?"
(O Elogio da Pequenez, A Ordem, Dezembro de 1946)

"Não há mal em ser pequeno grupo dentro da Igreja Universal. Ao contrário, o mal
está em supor que é possível a vida cristã na solidão das multidões, ou em
imaginar que as grandes concentrações constituem resultado mais genuinamente
cristão do que o pequeno grupo. O homem se perde, só ou nas multidões. Isolado
ou dissolvido na massa o homem deixa de ser homem, e por mais forte razão, de
ser católico. Uma paróquia com cinqüenta mil paroquianos é um absurdo,
simplesmente porque não é possível abraçar e mandar lembranças a cinqüenta mil
indivíduos.

"O mundo moderno padece de hipertrofia em tudo, e persegue implacavelmente


todos os pequenos grupos, desde a oficina do artesão até a família, desde a
paróquia até a granja. O pequeno grupo é a célula cristã por excelência, sendo
medido com o côvado da amizade, esse metro humano que é aproximadamente
igual aos braços de uma cruz."
(O Elogio da Pequenez, A Ordem, Dezembro de 1946)

"Mais de uma vez amigos escrupulosos externaram seus temores sobre os riscos do
pequeno grupo. É fato que existe nele uma tendência ao fechamento e uma outra a
um certo sentimento de superioridade. Mais de uma vez, como medida de
precaução, nos foi proposto um alargamento de horizontes.

"Eu creio, porém, que há um engano nesses temores. É claro que nada existe sem
riscos, mas convém notar antes de tudo que é a Igreja e não cada um de seus
grupos que é propriamente universal. o corpo tem as propriedades gerais da soma,
os membros, porém, têm as suas especificações. Alargar o âmbito das mãos e dos
pés é qualquer coisa como meter os pés pelas mãos. O Papa é um só, e se cada um
de nós se mete na cabeça ser um papa em miniatura, então o corpo será um
monstro formado de miríades de cabeças.

"Quanto ao sentimento de superioridade que se torna a equação de um grupo, eu


não vejo o inconveniente, nem vejo como seria possível funcionar, ou sequer
existir, um grupo sem esse sentimento. Tudo depende do critério em que se firma
esse sentimento. Se é no objeto que ele se prende, então não há nenhum
inconveniente, pois é na firmeza e na dureza de um objeto que nós nos gloriamos."
(O Elogio da Pequenez, A Ordem, Dezembro de 1946)
"Quando durante a guerra atroz que pulverizou mosteiros seculares, eu subia a
ladeira de São Bento, cada vez mais íngreme para o peso dos dias; e quando, em
cima, eu via a clara fachada de sol, as torres, os sinos, o portão monumental com
lavores em ferro, e o pequeno alpendre ao lado, onde dois ou três amigos já de
longe me sorriam; muitas vezes eu pensei que aquilo — a casa, o portão, as torres,
o alpendre acolhedor — tudo poderia um dia me faltar, reduzido a um montão de
escombros, como a tantos no mundo aconteceu. Bem sabia que a Igreja de Deus é
imperecível sendo frágil porém cada um de seus sinais. Frágil é o mosteiro apesar
da ingênua grossura das paredes que, para os bons portugueses de trezentos anos
atrás, seriam eternas como o céu; frágil o grupo de amigos; frágil o bronze, a
pedra, a vida — tudo o que não seja a palavra de Deus.

"Poderia o Senhor consentir que o Demônio me cobrisse o corpo de chagas e, de


uma só vez, me arrebatasse a família, o mosteiro, a clara fachada, os sinos e o
alpendre, e de uma só vez cobrisse a face de meus amigos: mas então, eu pediria a
Deus, num clamor de suplicações, que sem demora me descobrisse sua própria
Face."
(O Elogio da Pequenez, A Ordem, Dezembro de 1946)

"Tenho para mim com firmíssima convicção: as almas dadas, dedicadas,


debruçadas não se podem perder."
(Regina, in conversa em Sol Menor)

CASAMENTO
"A fragilidade do matrimônio decorre de uma desmedida exigência de felicidade, ou
melhor, da aplicação dessa exigência a uma coisa que não suporta tal pressão. Há
uma insolência nossa nessa impaciente cobrança de ventura, e há sobretudo um
equívoco, porque pretendemos tirar da casa, do matrimônio, do amor humano, um
infinito rendimento, quando é finita e sempre muito exígua a nossa própria
contribuição. Depositamos com mesquinharia e queremos juros generosos,
infinitamente generosos. E no desejo desse absurdo balanço nós somos injustos
com o próximo, e injustos com Deus."
(Patriotismo e Nacionalismo, in As Fronteiras da Técnica)

"No caso vertente, e para descobrir que as famílias estão funcionando mal, eu não
preciso andar de porta em porta com um impertinente questionário. Basta-me
observar a rua, os bondes, os cafés, para poder concluir que as casas já não retém
as pessoas. A febre nas ruas prova a agonia das casas. E como a felicidade
conjugal está vinculada à casa, ao equilíbrio, ao poder de retenção da casa, posso
deduzir do aspecto publicado nas ruas as infelicidades escondidas nas casas."
(Amor, casamento, divórcio, A Ordem, fevereiro de 52)

"Quando se diz que o fim principal do casamento é a prole ou a fundação de uma


célula social, não se pretende, de modo algum, que deva ser este o mais veemente
desejo dos noivos, nem que contrarie a essência do estado conjugal quem dele se
aproxime sem sentir arroubos de ternura pelas criancinhas que vão nascer. Com o
risco de parecer contraditório, declaro que não veria com bons olhos o futuro genro
que tivesse mais ternos sentimentos pela prole futura, ou pelo bem comum social,
do que pela noiva. Seria até capaz de vetar tal casamento, na medida em que hoje
pode um pai vetar alguma coisa. E se o moço viesse dizer que seguia nisso as
minhas lições, seria obrigado a dizer-lhe, com a máxima sinceridade, que então —
tenha paciência! — não entendeu nada.

"[...] Está na natureza das coisas começar o casamento pela exaltação amorosa
recíproca, como também está na natureza das coisas vir a flor antes do fruto. E não
se diga, por favor, que essas flores são ardis da natureza astuta e traiçoeira que
assim pega desprevenidos os corações e as abelhas. Nem se diga que são ilusórios
os idílios e as paixões. As flores e os amores são realidades que jorram da profunda
e intrínseca generosidade do ser. Não pecam, pois, por individualismo os noivos
que se amam de um modo esquecido de tudo, os noivos que se isolam numa
ilha, in a kingdom by the sea..., e que põe a máxima ênfase nesse recíproco afeto
ao se acercarem do altar."
(Um caminhar lado a lado, in Claro Escuro)

"Um encontro não se transforma em núpcias gradativamente e inevitavelmente;


entre uma coisa e outra é preciso inserir um elemento decisivo.

Há um provérbio de aparência imbecil que diz assim: “Quem pensa não casa.” É
costume ver nesse provérbio um encorajamento para se ficar, durante a vida
inteira, fechado numa prudência burguesa. Pensar, nesse caso, quer dizer: calcular
despesas, prever doenças, avaliar a liberdade perdida em confronto com os novos
encargos contraídos. Quem pensar assim não casará; resta-lhe a sabedoria
negativa do provérbio para consolo. Não casa, mas pensa. É livre e pensa; é uma
espécie de livre-pensador.

Atrás desse sentido comodista, o provérbio encerra uma advertência e sugere que é
melhor casar do que ficar pensando. Quando um sujeito, nos caprichos da vida,
encontra moça que acha de sua afeição e que lhe corresponde, tem essa
alternativa: escolher ou pensar. O escolher é precedido, evidentemente, de um
certo pensar; é de toda prudência que se conviva com a moça, que se converse,
que se observem umas tantas coisas, antes de decidir a escolha. O homem é
dotado de razão também para casar e deve aplicá-la na justa medida.

A tarefa não é fácil. A moça se esconde atrás de certas manobras que, no dizer de
muitos autores, lhe moram nas glândulas. O pretendente pode estar certo que ela
mudará enormemente; não é assim como agora se ri que ela vai rir; não é disso
que hoje chora que vai chorar. Seus gestos serão diferentes, sua forma se alterará,
e sua própria voz, que tanto agrada hoje, será mais cheia e mais dura no difícil
cotidiano. O mais atento leitor de um Bourget ou de um Montherlant se enganará
redondamente se quiser fazer previsões psicológicas sobre a esposa escondida na
noiva. Assim sendo, é justo que se pense e razoável que se cogite. Mas num certo
ponto do conhecer é preciso decidir. Ou escolhe, abrindo mão nesse único ato de
todas as outras moças, entregando-se totalmente, correndo todos os riscos,
agüentando todas as conseqüências, querendo desde já no seu coração agüentá-
las, tendo confiança, pelo pouco que sabe, no muito que desconhece, trocando
generosamente o pouco pelo muito, empenhando a vida inteira a vir em cima de
alguns meses que já passaram; ou então continua pensando. E se pensa não casa.
Não casa porque pode passar a vida inteira pensando. Sondando; sopesando;
excogitando. Conheço diversos casos assim, de namoros tristes que duraram mais
de vinte anos: o noivo pensava. Num caso desses, em vez de festa de núpcias
houve luto, porque o noivo morreu pensando... "
(Quem Pensa não Casa, in Descoberta do Outro)

"Existirá sempre esse problema, essa tensão entre os dois sexos. Como diz
Chesterton, o homem e a mulher são de fato incompatíveis. Viverão sempre em
dificuldades. Serão sempre dois estrangeiros cada um a falar mal o idioma do
outro. Prolongarão indefinidamente esse duelo que leva as maiores santas a nos
tratarem, pobres de nós, ora com astúcia, ora com provocação. Santa Escolástica,
para iludir o rigor monástico de seu santo irmão, rezou pedindo uma chuva
torrencial. Santa Teresa d’Ávila, espanhola e atrevida, dizia, pensando num diretor
espiritual que fora injusto com uma de suas filhas: «Olhe que nós outras não somos
assim tão fáceis de compreender». E a história de Heloísa e Abelardo não foi outra
coisa senão uma contínua e ininterrupta esgrima de provocações.

"Essa tensão entre os dois pólos da humanidade não é um mal. O homem e a


mulher podem viver, em honroso convívio, uma civilização, discutindo e brigando –
como no matrimônio – desde que mantenham a honra do combate. É claro que o
bom entendimento recíproco é bom. No casamento o bom entendimento, o
paralelismo de gostos e opiniões, é uma coisa maravilhosa, mas não creiam que
seja, como se diz, o elemento mais importante. No casamento, o decisivo é
compreender bem, em tempo e contratempo, a natureza mesma do ato
matrimonial, e a honra do novo estado. Enquanto essa bandeira estiver no mastro
da nau familiar, pode chover e ventar, podem as ondas avolumarem-se em
montanhas e cavarem-se em abismos, que a arca portadora desse casal, que Deus
prefere a todos os outros casais, chegará ao monte da salvação. Não serão muito
felizes os viajantes dessa tormentosa travessia, sem dúvida, mas chegarão. E
numa travessia é isso o que importa."
(A Vocação da Mulher, in As Fronteiras da Técnica)

CASTELO BRANCO
"Em outra ocasião em que também o Presidente me honrou com um convite que
também não pude aceitar, a conversa prolongou-se e eu queria perguntar-lhe uma
coisa e dizer-lhe outra:

"— Posso perguntar uma coisa ao meu Presidente?

"Ele olhou-me com aqueles olhos profundos de que não me esquecerei e, pousando
a mão no meu braço, disse-me:

"— Ao Sr. eu abrirei meu coração.

"E eu que dantes nunca entrara em palácios, que sou por vocação muito mais povo
que fidalgo, embora admire a fidalguia dos que a sabem trazer, vi de repente
naquele varão as duas coisas sem as quais não pode haver estadista: a pequenez
da condição comum que nos irmanava, e a majestade de um verdadeiro Chefe de
Estado designado por Deus. Saí do Palácio Laranjeiras indeciso nas minhas
convicções republicanas."
(Castelo Branco, O Globo 20/07/72)

CATARINA DE SENA
"Lembrei-me de escrever estas linhas de homenagem à dolce mamma Caterina,
porque ultimamente tenho pensado muito na moleza e tolerância dos tempos
modernos, que nos mais altos lugares são apregoadas como virtudes máximas.
Apeguemo-nos à adamantina dureza da santidade. Santa Catarina de Sena jamais
abriria a boca, jamais emprestaria o seu sorriso de virgem ardorosa e pura para
pronunciar essas melosas declarações de incondicional tolerância e falsa bondade.
Catarina de Sena tinha ódios. Santa Catarina de Sena não saberia, jamais, fazer
um programa de promoção do Reino de Deus naquele tom de amaciamento da
vontade e de derrame sentimental. O que nos ensinam os santos, com palavras e
obras, é que não basta o sentimento enternecido, nem basta traçar na areia a
tênue linha que separa o bem do mal. O que nos ensinam os santos é que é
preciso, resolutamente, entre os céus e os infernos, erguer muralhas de ódio e
cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistência essa moça de
vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de Sena, é que
devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre duas cruzes, no peito e
nas costas: a cruz do santo ódio e a cruz do santo amor. E é por isso que a Igreja,
no dia de sua festa, dizia no Intróito da Missa: Dilexisti justitiam et odisti
iniquitatem, fórmula que bem exprime o claro-escuro, ou melhor, o preto-e-branco
da vontade bem polarizada pelos mandamentos de Deus."
(Catarina de Sena, O Globo 4/5/78)

Desde os primeiros anos de sua peregrinação na terra, "entre as aflições dos


homens e as consolações de Deus", a Igreja sempre marcou uma especial devoção
pelo Sangue de nossa salvação. Já o Apóstolo em Hebreus IX, 22 diz: "É com
sangue que quase todas as coisas se purificam e sem efusão de sangue não há
salvação".

Mas foi no tormentoso século XIV que Catarina de Sena, nas cartas e nas lições
ditadas aos seus discípulos, pôs uma singular ênfase na riqueza de significações do
Sangue, sim, uma ênfase marcante no Sangue! Transcrevemos a seguir algumas
amostras de sua pregação colhidas ao acaso no livro Sainte Catherine de Sienne
vous parle do Pe. S. Bezin O.P., ed. L´Abeille, Lyon, 1941: "Corramos, então,
corramos todos cristãos fiéis, atraídos pelo odor do Sangue" (pág. 251).
"Inebriemo-nos do Sangue de Jesus crucificado já que o temos ao nosso alcance.
Não nos deixemos morrer de sede. Não nos contentemos com pouco, mas tomemos
muito para nos embriagarmos e nos afastarmos de nós mesmos". "Nós não fomos
resgatados por preço de ouro, nem somente por amor mas pelo Sangue". "Não há
outra maneira de saciar o homem: somente neste Sangue poderá alguém se
desalterar". "Este Sangue é nosso, foi derramado para nós, ninguém nô-lo pode
tirar a não ser nós mesmos" (pág. 252).

Folheando o epistolário de Santa Catarina de Sena em seis volumes (Le Lettere di


S. Catarina de Siena, Casa Editrice Marzocco, Firenze 1947) não resistimos ao
desejo de transcrever mais este grito da Dolce Mama: "Caminho sobre o sangue
dos mártires, o sangue dos mártires ferve e convida os vivos a serem fortes".

Tenho a firme convicção de que Santa Catarina de Sena falava com esta obsessiva
insistência por uma razão muito simples e muito extraordinária: a vigésima terceira
filha do tintureiro Benincasas via o Sangue do nosso Salvador em todos os sinais
sagrados da Igreja. Quando por exemplo ela procurava seu confessor Frei
Raimundo de Capua costumava dizer: "Vou-me ao Sangue".
(No Sangue, O Globo, 13/7/78)
CETICISMO
"O que mais entristece e irrita na atitude do cético em relação ao milagre não é a
incredulidade, por teimosa que seja em face das evidências. De certo modo, eu
diria que o homem católico mais depressa simpatiza com o incrédulo, com o
homem que defende o reduto intelectual de qualquer rápido assentimento, do que
com a credulidade fácil que traduz negligência intelectual. Se me permitem o
paradoxo, direi que nós somos terrivelmente incrédulos, porque temos cristalizado
e bem definido o nosso sistema de crenças. A rigor, o católico é o homem que não
acredita numa imensidade de coisas em que todos acreditam. Não é pois a
incredulidade que mais nos afasta do homem que não crê em milagres; é antes
uma posição puramente intelectual e puramente metafísica, antes de ser uma
atitude de Fé teologal. O homem que não acredita em milagres se apresenta
geralmente como indivíduo mais racional, mais raciocinante e até mais razoável do
que o homem que acredita. No íntimo, está convencido de ser mais inteligente ou
pelo menos de ser mais fiel aos dados da pura inteligência contra as armadilhas dos
dados emocionais. Ora, o que acontece é exatamente o contrário. O homem infenso
ao mistério e ao milagre é justamente aquele que não tem olhos lavados para a
profundidade do ser, para as riquezas da realidade, para o que há de extraordinário
na simples existência do mais ordinário dos seres (...) Dizia Santo Agostinho que o
hábito de ver embota a inteligência e torna vis as coisas. Essas almas rotineiras
usam a parte cartesiana da razão, a parte quadriculada do espírito, e estão
convencidas de que todo o espírito, toda a alma humana e toda a realidade do
universo cabe no magro diagrama que não é senão o esqueleto do real. Não vêem
o que o poeta chamou a lágrima das coisas, e que poderia ter chamado também o
riso das coisas. Não vêem a novidade permanente de todos os seres contingentes
pendurados na fonte viva que lhes garante a existência. Para o olhar do poeta, do
metafísico e do místico não há senectude, não há repetição essencial e mecânica
dum universo montado como imensa relojoaria: eles vêem a origem absoluta
escondida, e vêem no frêmito da contingência uma perpétua ressonância do ato
criador."
(O Centenário de Lourdes, A Ordem, Julho de 1958)

CHARLES MAURRAS
"Tomada como "movimento histórico", que realizava o mais vigoroso engajamento
numa realidade nacional em movimento jamais visto, A. F. surgiu como adversário
implacável da corrente revolucionária, que evoluiria rapidamente em direção ao
marxismo. Concretamente, Charles Maurras opunha-se, atravessava-se no caminho
de Marc Sangnier e dos sillonistas com a disposição marcial de Pétain em Verdum:
"ON NE PASSE PAS".
("Estamos no século XX" in O Século do Nada)

"O fato é que Charles Maurras, dizendo-se um homem sem fé, e depois de uma
literatura ostensivamente pagã e às vezes quase blasfematória, põe-se à frente de
um movimento que defende a Igreja de todos os sucessivos ultrajes sofridos dos
governos da república e congrega em torno de si os católicos mais sérios da França.
O mundo católico inteiro sentiu a irradiação dessa alma poderosa, e aqui no Brasil
Jackson de Figueiredo, fundador do Centro D. Vital, foi um maurrasiano fervoroso."
("Estamos no século XX" in O Século do Nada)

CHARLES PÉGUY
"Péguy, de fato, não freqüentou os sacramentos; e não os freqüentou por uma
razão extremamente simples: porque morreu durante o processo de conversão. O
que amamos nele é esse itinerário, longo, difícil, penoso, que ele percorreu com os
olhos postos na Virgem Santíssima. Começou, esse singular convertido, por onde
geralmente termina o filho pródigo: pelo culto de Nossa Senhora e pelo gosto da
oração. Se nós víssemos um amigo querido, um irmão, seguir esse itinerário em
direção à Igreja, rezando e honrando a mãe de Deus; se nós soubéssemos que
esse amigo, ou esse irmão, tinha morrido com uma bala na testa, em defesa de sua
honra, de sua pátria, e da verdadeira Rainha de França; e se nos contassem que na
véspera da morte, esse amigo, ou esse irmão, tinha passado a noite a enfeitar de
rosas um altar para a festa de Nossa Senhora; nós teríamos uma imensa esperança
em sua salvação (...)

"O espetáculo que guardamos no coração e que não parece ter impressionado o sr.
Mesquita Pimentel é este: um homem passa correndo numa pista difícil; um
homem passa, cantando e rezando; um homem passa, levando a vida de seus
filhos numa longa peregrinação; para entregar a quem de direito, a vida de seus
filhos; e vai, e passa, e anda, e corre pelas terras da Normândia, vendo ao longe,
afinal desenhar-se contra o céu a agulha fina e escura de uma catedral, onde os
reis de França dormem, à espera da ressurreição. Vemo-lo passar, vemo-lo correr;
rezando e cantando. De repente, em meio do caminho, quando o horizonte se cobre
de nuvens escuras e estremecem as catedrais, vemos um vulto de pé, reto, varonil,
estender os braços em cruz e cair, molhando com seu bom sangue, beijando em
sua agonia, a antiga terra de mártires e de heróis...

Heureux ceux qui sont morts pour la terre charnelle


Mais pourvu que ce fût dans une juste guerre.
Heureux ceux qui sont morts pour quatre coins de terre.
Heureux ceux qui sont morts d'une morts solennelle.
Heureux ceux qui sont morts dans les grandes batailles,
Couchés dessus le sol à la face de Dieu.
Heureux ceux qui sont morts sur un dernier haut lieu,
Parmi tout l'appareil des grandes funérailles.
Heureux ceux qui sont morts pour des cités charnelles.
Car elles sont le corps de la cité de Dieu.
Heureux ceux qui sont morts pour leur âtre et leur feu,
Et les pauvres honneurs des maisons paternelles.

"Ora, depois disto, chega-nos o sr. Mesquita Pimentel, de roupa marrom e colarinho
duro, para nos dizer secamente, com argumentos de corretor de seguros, que
lamenta muito, mas que o nosso cliente morreu sem pagar sua última apólice."
(Respondendo a uma Provocação, A Ordem, Dezembro de 1947)

CHESTERTON
"Chesterton trouxe-me uma libertação, uma recuperação da infância, encheu-me
da confiança que mais tarde, pela misericórdia de Deus, seria vestida de
Esperança".
(A Descoberta do Outro, pág. 112)

"... posso dizer que há um pequeno equívoco a respeito da obra de Chesterton.


Realmente, ela foi escrita sobreo homem da rua, mas não para ele. O autor inglês
trata sempre do homem ordinário, mas dirige-se indiscutivelmente aos intelectuais,
tentando convencê-los da vantagem imensa de tornarem a ser homens ordinários."
(A Descoberta do Outro, pág. 115)

CIÚME
"O ciúme puro, o ciúme congênito, não consiste numa falta de confiança; é antes
uma avareza, que não pode tolerar que alguma coisa da mulher, sua figura, seu
calor, seu perfume, possa ser atingida por um outro. Um contato causal numa
cadeira de teatro basta para produzir nele uma angústia insuportável, ainda que
tenha a certeza da sua casualidade e da sua inconseqüência. O ciúme puro não se
alimenta de dramas; não tem história; não depende de um enredo. É uma tragédia
seca, toda instalada no presente, na idéia de uma posse absoluta, como a do
avarento. Pelo seu gosto, o ciumento desse puro ciúme esconderia a mulher, como
o avaro esconde na terra o seu tesouro."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 101).

"Não. Otelo não foi avaro nem suspeitoso de Desdêmona. Otelo foi um crédulo, um
grande e generoso confiante, que só representou, do drama do ciúme, as cenas de
ira e da violência. Sua cólera teve a medida de sua confiança traída. Esse foi o seu
drama. Qual é o ciumento que precisa da astúcia e da perfídia de um Iago? (...)

"O ciúme do curioso, do desconfiado (...) é dramático, inventivo, inquieto, urdidor,


e dispensa qualquer intriga, porque ninguém melhor do que ele as fabrica.
Dispensa os ardis, porque ninguém melhor do que ele os executa. E tem febre de
esmiuçar, febre de saber, chegando a experimentar uma lívida satisfação ao ver
confirmadas as suas suspeitas. E raramente castiga. Diante da evidência da traição,
ele desfruta a mesma esquisita alegria intelectual que leva as pessoas mais
compassivas a dizer "eu bem sabia..." quando vêem os seus presságios
confirmados"
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 102-103).

COLETIVISMO
"O coletivismo de que morre o mundo e de vivem os novos aventureiros é a teoria
do ajuntamento sem unidade; é a tentativa de encontrar significado na multidão, já
que não se consegue descobrir o significado de cada um: é a conspiração dos que
se ignoram; a união dos que se isolam; a sociabilidade firmada nos mal-
entendidos; o lugar-geométrico dos equívocos."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 87).

COMUNISMO
" [...] deve ou não deve ser extirpado o comunismo do corpo da democracia, no
qual figura como um fibroma?

"Deve. Deve ser extirpado, sem a menor dúvida (...) É portanto errado dizer que a
democracia, como a entendemos, confere direitos a qualquer idéia se discutir e a
qualquer doutrina arrolar adeptos. — Este indiferentismo moral é o grave erro do
liberalismo, fulminado pela Igreja."
(Combate ao Comunismo, Editorial de "A Ordem", Janeiro de 1947)

"Há uma fórmula bondosa que parece muito cristã e que diz assim: combater o
comunismo amando os comunistas. Esta fórmula é parcialmente verdadeira, mas
carece de uma distinção justamente quando parece estar fazendo uma fina
distinção. Na verdade podemos e devemos combater o comunismo combatendo os
comunistas. O que se pretende dizer, com aquela disposição de amar os
comunistas refere-se a pessoas como pessoas, e não às pessoas como comunistas.
Rigorosamente falando não estamos obrigados em relação ao comunista como tal,
mesmo porque é impossível combater praticamente o comunismo sem combater os
comunistas e sem os detestar na medida em que são comunistas. Levando aquela
fórmula a rigor, cairíamos no erro de reduzir nosso combate ao campo puramente
doutrinário, de que já nos ocupamos. A luta tem de ser prática, e por conseguinte
tem de se realizar num corpo a corpo onde aquela distinção se manifesta
imperfeita. É claro que em qualquer fase da luta, em cada caso particular, nossa
indignação estará pronta a se transformar em amizade cristã. Mas isso não pode
constituir uma condição vaga, preliminar à luta.

Não devemos ter medo da justa indignação; da justa detestação. Devemos, ao


contrário, ter medo dessa dulçurosa falta de combatividade que nos obriga a recuar
para dentro das capelas. Nos evangelhos, a divina indignação não se dirige ao
farisaismo, mas aos fariseus. É claro que cada homem mereceu o sangue do
redentor e pode amanhã se tornar santo. O sr. Prestes poderá ser um santo. Isto é
ponto de doutrina. Mas o que é claro também, de modo ofuscante, é que hoje o sr.
Prestes é nosso adversário político e deve ser considerado como tal.
(...)
Passaram os tempos de doçuras; saibamos ser duros com justiça. E entreguemos a
Deus nosso amor, para que dele disponha, e para que escolha quem virá amanhã
ao nosso encontro."
("Combate ao Comunismo", A Ordem, Editorial, Janeiro de 1947)

CONFIDÊNCIAS
"Todos nós temos nossos santos prediletos, mais próximos segundo não sei que
espécie de afinidade, ou talvez mais favoráveis por algum decreto de Deus para a
comunhão dos santos. O fato é que os temos. Depois de Deus — tu solus
altissimus... — depois da Virgem Santíssima e dos santos apóstolos, começa então
a lista caprichosa dos afetos sobrenaturais de cada um. Não escondo a minha, onde
o leitor em vão procurará a razão que também não encontrei de tal predileção. Ei-
la: Santo Tomás, São Bento, Santa Perpétua, Santa Catarina de Sena, São João
Cancio, Santa Bernardete, Santo Cura d'Ars, Santa Teresa d'Avila, São Francisco e
São Pio X, o mais próximo na data de canonização e o mais importunado para que
interceda no céu, como trabalhou na Terra, em defesa da Fé e da Igreja peregrina.
Vou mais longe na confidência: trago sempre comigo, no bolso da camisa, em cima
do coração, uma medalha do grande e Santo Papa, e tenho no missal uma imagem
e uma oração."
(São Pio X, in O GLOBO, 21/8/69)

"Nos dias que se seguiram, lembro-me bem, eu não podia passar quinze minutos
sem pensar no santo nome de Deus. Era um assédio, um atropelo, era uma
verdadeira perseguição que me acuava contra o altar. Uma onda de mérito de
todos os santos, um vento de todas as orações, puxava-me o chão em baixo dos
pés. E eu não sabia que o silencioso mover de lábios de toda a cristandade cuidava
de mim, dizia um segredo que me interessava, como os cochilos de gente grande
nas vésperas de Natal, quando eu era pequenino..."
(Nas portas de um Reino, in A Descoberta do Outro)
CONTRADIÇÕES DO HOMEM
"Aí está nessa esplêndida imagem a figura do homem: um ser capaz de galopar em
todas as direções. Em outras palavras, o homem, como o vemos, na situação em
que está, é o mais evasivo dos seres. Sua explosiva natureza, composta de espírito
e matéria, isto é, de fogo e pólvora, já deixaria entrever, em abstrato, que sua
história não seria cômoda. Sua natureza é tão aventurosa, que parece melhor
realizar-se quando rompe seus próprios limites e se ofende a si mesma.

"Não admira muito que, na origem de nossa história, a integridade de tão explosiva
natureza e a observância de tão dinâmicos limites precisassem apoio num pacto de
sagrada obediência. Ora, essa obediência foi uma vez quebrada, os diques do pacto
rompidos, e a humanidade precipitou-se pelos vales da história como uma
avalanche. E nós vemos passar em tumulto esses estranhos seres crivados de
contradições, capazes de desejar com ardor aquilo mesmo que fere a sua própria
natureza, capazes de assaltar e pilhar o próprio domicílio, capazes de morder o
próprio coração."
("O valor da vida", in As Fronteiras da Técnica)

COTIDIANO
"A vida só é cristã quando tudo pesa na balança da eternidade, e por isso a mesa
do trabalho, ainda do mais obscuro trabalho, que não é nada, menos do que nada,
se pretende ser uma atividade salvadora do mundo, é muito e pesa, se significa a
aceitação da tarefa diária, a entrega do cotidiano, a preparação de um ofertório.
Evidentemente, fazem-se nessa mesa coisas sem brilho e sem festa e ninguém
cairá em êxtase diante dum memorando. Mas a vida não é só festa, nem mesmo
para os filhos de Deus e aos pés de Deus, porque ainda temos que caminhar um
pouco de tempo carregando a cruz de Nosso Senhor.

"Não adianta nada evitar o realismo cotidiano e banal com a espera de situações
ideais, dum emprego apostólico, duma ocupação heróica, duma noiva total e
perfeita, porque é bem possível que essas coisas não existam. Aliás, essa idéia de
aguardar coisas que pesem, que valham realmente a pena de nosso esforço, é uma
impertinência e uma presunção. Caíram nisso homens muito piedosos como
aqueles que São Cipriano exortava: atacados duma prosaica peste, achavam ruim
porque já haviam decido, cada um no seu foro íntimo, que queriam ser mártires...
Esse escrúpulo de levar a sério um orçamento ou um horário, essa preocupação de
ser despreocupado, também traduz um desejo de ser cada um o próprio autor dos
acontecimentos ou então uma displicência boêmia em relação ao fluxo de fatos
reais que nos vêm ao encontro cada dia."
("Ainda um pouco de Tempo", in A Descoberta do Outro)

CRISE DA IGREJA
"Sim, é cruel demais ter de explicar, ou tentar explicar o que acontece em nossa
Igreja. Na verdade ainda não medimos bem a extensão de nossa desgraça. Mais do
que nunca, a Igreja, que conheci jovem e bela como a mais bela das filhas de
Jerusalém, nos aparece como uma pessoa viva, preciosa em sua carne e em sua
alma, preciosa para o mundo, carregada de promessas, de dons, de beleza, de
doçura e agora ferida, caída no chão, indizivelmente humilhada, a esmolar de seus
filhos uma gota de piedade...
"A impressão que todos nós sentimos, todos nós que a amamos e há tantos séculos
a vemos sempre virgem e sempre bela, e sempre moça, é a de que Ela foi traída
por todos os lados. Essa idéia corresponde sem dúvida à realidade, desde que se dê
à palavra traição um sentido muito mais extenso, mais complexo, e ao mesmo
tempo muito mais doloroso e menos carregado de intenções criminais do que se
costuma dar. É um sentido mais profundo e mais antigo... E também desde que de
todas as traições de que falo só de uma tenha uma certeza íntima e indiscutível,
uma certeza experimentada que, com a graça de Deus por Ela mesma servida, ao
filho ingrato lhe dá forças para cair de joelhos e chorar..."
("Encruzilhada de Traições" in O Século do Nada")

"A história da Igreja será necessariamente uma imitação da história de Cristo. Teve
sua infância obscura, teve o massacre dos inocentes, teve um período de
construção e consolidação da doutrina da Salvação. Teve durante mil anos o
domingo de Ramos. Entrou depois em quatro séculos de Gethsemani. E agora terá
não sei quantos milênios de flagelação.

Estamos no começo do segundo mistério doloroso. O Corpo Místico de Cristo é


insultado, chicoteado, cuspido. E a mais bela das casas expõe aos viandantes um
deplorável aspecto de desolação e ruína. Virão depois os milênios da coroa de
espinhos, os milênios do caminho da cruz e os milênios da crucificação. O que não é
admissível – mas foi longamente admitido por equívoco – é a confortável e rotineira
instalação da Igreja no Mundo. E o que também não é admissível é que a promessa
de que não prevalecerão as portas do Inferno se aplique aos Suíços do Vaticano,
aos paramentos e à cor das meias dos prelados. Entre as notas essenciais da Igreja
sabemos que sua santa visibilidade foi desde o início concebida por Deus, mas
também sabemos que a Igreja não é visível em todas as suas partes, nem é
sempre visível em todos os momentos naquelas partes em que se concentra o
fulgor de sua visibilidade.

Preparemo-nos, sem ilusões, sem apegos, e sem medo, ao dia do grande eclipse."
("Um Otimismo Descabido", O Globo, 02/12/1972)

"Miséria, dolência, fraqueza, tudo isto se entende, ou se admite sem se entender,


ou se entende sem se admitir — tudo isto constitui o imenso pátio dos milagres que
é o campo do Cristo neste mundo; mas inimigos? inimigos militantes? inimigos
atuantes, de consciente hostilidade, dentro da Igreja?... Eis o que nos parece um
exponencial e hiperbólico abismo dos abismos do mal.

[...] Um eclesiólogo rigoroso poderá, das próprios palavras do Evangelho, deduzir a


falta de homogeneidade entre o joio e o trigo, e concluir que esses inimigos
realmente só para efeito visível de sua odiosa tática estão dentro do recinto da
Igreja, mas não estão dentro de sua substância santa. o contato que têm com a
Igreja não é o dos pecadores que pensam no regaço materno e chegam a manchar
o seu manto; é um contato mais íntimo: o que tiveram os flageladores com a Carne
santíssima de Jesus Nosso Senhor."
(Editorial, Permanência no. 27, Dez de 1970)

"O que é particularmente penoso, ou particularmente repugnante, é o tom de


superioridade, o ar inteligente e adiantado com que esses relapsos criticam os
tempos em que a cristandade detestava e castigava heresias, e a Igreja
pronunciava anátemas. Esses senhores progressistas não chegam e não chegarão
jamais a compreender que, em favor de uma cordial permissiveness para
seqüestradores, comunistas, autores de burríssimas fichas catequéticas etc. etc,
eles deixaram de apreciar o valor das coisas de Fé."
(A Casa de Tolerância, O Globo, 13/2/1971)

"Peço ao leitor a paciência de suportar a insistência com que bato na mesma tecla:
o nervo de toda a subversão e de toda a agitação que se observa hoje no mundo
católico, especialmente no clero, é o da contestação do Mandamento honrarás pai e
mãe".
("O 4o. Mandamento", Permanência no. 59)

"Não posso hesitar em meu testemunho, já que a isto se reduz tudo o que me cabe
neste resto de vida. Deus o quer. Já tenho dito mais de uma vez que professo a
Religião Católica e que, em muita algaravia que vem de Roma ou das Conferências
Episcopais, e agora do Sínodo, eu mais ouço os relinchos do Cavalo de Tróia do que
a voz de minha Mãe e Mestra; continuo tranqüilamente, e peço a Deus que me
renove todos os dias a mesmíssima Fé, continuo a crer na Igreja de Cristo,
depositária e distribuidora da doutrina da Salvação; continuo a pensar que é essa
mesma doutrina que deve ser ensinada a jovens e velhos, para que se salvem;
continuo a pensar, em termos de Fé e de senso comum, que os pais, padres e
arcebispos devem diligentemente dizer aos moços que com Deus não se brinca e
que a salvação da alma deve ser o principal cuidado de sua vida.
Conseqüentemente, não é de admirar que eu continue a seguir o conselho de S.
Paulo aos Gálatas: a quem fizer profissão pública de outra doutrina,
direi: anathema sit. Ou então, em vernáculo: não seja idiota!"
("A Salvação das Almas", Permanência, no. 74)

CRISE DE ESCOLHAS
"Ora, é fácil mostrar que a sociedade moderna, na grave crise que atravessa,
parece ter esquecido essa pequena regra elementar das escolhas nítidas. Quem
casa, continua muitas vezes a viver como se não se tivesse casado; quem estuda
medicina não afasta de si muitas vezes a idéia de fazer disto um negócio; quem
cinge a espada não deixa de espreitar, muitas vezes, as menores oportunidades de
ocupar cargos civis. Não discuto aqui as causas. Vejo somente o fato bruto: a todos
nós, homens deste século e desta cultura mórbida, repugna a escolha."
("O valor da vida", in As Fronteiras da Técnica)

"O mundo é um anárquico depósito, uma loja monumental onde a gente compra
estrelas e flores para a festa silenciosa e recatada no recesso da alma. Não é assim
que fazem os escultores, quando arrancam o barro do chão e o trazem para o
encontro do amor? Não é assim, por exclusão, por ablação, que o poeta destaca o
que quer do anônimo e bulhento reservatório comum? O importante, na poesia e
na vida, é a escolha; e por conseguinte a recusa. A poesia é uma greve, um
protesto, como o que fazem os límpidos cristais, com suas intolerantes arestas, no
seio opressivo da montanha. Ninguém rejeita tanto como o poeta, e como o
apaixonado."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 35).

D
DESCONCERTO DO MUNDO
"Na verdade, a causa principal do desconcerto do mundo que tanto aflige o poeta,
está no fato de ser o homem maior do que o mundo por sua principal dimensão
(...)

"O homem está nesse mundo sempre de algum modo desfalcado, e portanto, de
algum modo obrigado a submeter o maior ao menor, o eterno ao transitório, o
espiritual ao corpóreo. E por isso estará sempre em posição mais ou menos cômica,
ou mais ou menos trágica."
(O Desconcerto do Mundo, in O Desconcerto do Mundo)

"Todas as almas afinadas, um Pascal, um Peguy, a seu turno, e cada um com seu
modo, dirão que o homem é uma incôngrua criatura, "un monstre de
contradictions, un puits d´inquietude". O próprio Camões, mais de uma vez volta à
obsessiva idéia do "desconcerto do mundo" trazido pela mesma conturbada
condição humana. Nós sabemos pela Fé que tais desconcertos e contradições são
conseqüências do pecado de nossos primeiros pais, e Chesterton dizia que, de
todos os dogmas e mistérios da fé, o mais claro, o mais evidente é sem dúvida o do
pecado original. Basta efetivamente olhar em torno de si com alguma atenção para
descobrir que o animal racional é o menos razoável dos seres, e para começar a
crer que algum grave mal-entendido está na origem do homem, e perdura em sua
condição ao longo dos séculos."
(Mísera sorte! Estranha condição, O Globo, 13/5/78)

"Será preciso dizer que muitos filósofos, e atrás deles muita gente, julgam que não
existe o universo de seres imateriais; que a alma humana é apenas um princípio de
vida física, como a alma dos animais; que o conhecimento sensível e o racional são
de mesma natureza e que, por conseguinte, é pura ficção a diferença específica do
homem? Um dos mais estridentes desconcertos do mundo, como atrás já disse,
reside nessa tentativa de achatar o homem para acomodá-lo, para naturalizá-lo no
planeta. Se são suas excrescências que impedem a boa instalação, reduzamo-la. Na
base de todas as grandes tentativas para diminuir o homem, está aquela filosofia
que risca a diferença específica, como se fosse possível solucionar nosso problema
cortando-nos o que temos de principal! Em todo o caso não percamos de vista o
fato. Há filósofos e seguidores que recomendam a prática da castração espiritual, e
que dizem que a alma espiritual é sonho de alguns, como a borboleta amarela do
chinês, ou como o chinês da borboleta amarela."
(O Desconcerto do Mundo, in O Desconcerto do Mundo)

DESTINO
"Para os gregos antigos o trágico humano estava no confronto com um destino
implacável, consistia numa escatologia fechada e opressiva que calcava a vida
humana de cada dia, pesando em cada gesto, penetrando cada palavra, orientado
nada passo. A encarnação e a ressurreição do Cristo vieram abrir as portas da
Parusia e libertar o homem; e uma nova luz acesa no mundo revelou com nitidez o
verdadeiro trágico humano, a treva que contrasta com o Cristo, o mistério da
iniqüidade. O cristão acha hoje ridícula a ameaça antiga do destino, acha risível a
própria palavra que ficou relegada para a literatura amorosa de subúrbios, porque
tem consciência de uma liberdade terrível e de uma tremenda batalha com o mal."
("Vade Retro, Satana", in A Descoberta do Outro)
DIVERSIDADE
"O mundo moderno, por lamentável engano, pensa que o mal e o sofrimento
humano vem da diversidade. Procura então destruí-la, arrastando limites e
paredes, e fundindo numa grossa pasta, onde serão trituradas, todas as coisas que
constituem o esplendor da civilização. Não é justo dizer que isto seja uma idéia de
bárbaro: um bárbaro não teria nunca uma idéia tão prodigiosamente estúpida. Não
podemos imaginar um selvagem a fundar doutrina para simplificar seu
"boomerang" ou a composição do seu curare. Mas posso dizer que essa idéia
conduz à barbárie: o primeiro que a formula é geralmente um indivíduo muito
civilizado, que num certo ponto de sua história, toma nojo da sua condição; o
segundo, que a repete, é geralmente um tolo; o terceiro, um idiota; o quarto ou o
quinto será então um bárbaro, e esse já não se dará ao trabalho de formular
idéias".
(Introdução a um livro, A Ordem, Janeiro de 1947)

DOM HELDER CÂMARA


"... Dias depois li a famosa entrevista concedida por Dom Helder a L'Express, onde,
entre outras coisas contava que "felizmente tivera na sua adolescência de
seminário um PADRE MESTRE QUE O LIBERTARA DO TEMOR DE DEUS; e mais
adiante incitava os seqüestradores e assassinos de reféns com palavras de
entusiasmo: "eu os amo, eu os amo..."

(...) Escrevi-lhe logo outra carta mais breve e simples: "Depois de ler a entrevista a
L'Express esperei desmentido seu em vão. Não o tendo, quero dizer-lhe que
doravante o Sr. está dispensado de me escrever qualquer carta, e até de me dizer
bom-dia, porque, depois de sua entrevista, o senhor perdeu o direito à estima e ao
respeito dos homens de bem".
(Dom Helder, O Globo 14/5/77)

DOR HUMANA
"Eu li o comovente artigo de Carlos Drummond sobre o outro menino, apaixonado
de um dia, que teve pressa de matar-se. Li, e creio ter compreendido a pungente
aflição daquela enorme alma de poeta quando lhe passa pela mente que o menino
poderia salvar-se se alguém, naquelas poucas horas de um prelúdio de dor, o
tomasse pela mão, o levasse à praia, e risse com ele nas espumas do mar.
Raramente senti tamanha afinidade, tamanha simpatia, como nesse artigo escrito
ele todo com um nó na garganta; (...)

"Mas não basta, ó poeta, mostrar às almas aflitas a doçura das relvas, a frescura
das ondas, e a ternura dos regaços de amor. Porque isto não é toda a verdade da
vida. E é preciso ser verdadeiro. É preciso, sempre, ser verdadeiro. Em toda a
extensão. Em toda a profundidade. Nos dois hemisférios de luz e sombras da
verdade.

"O que é preciso dizer, a esses moços que por tão pouco desesperam, é que existe
uma dignidade no centro mesmo da dor; que a dor não excomunga; que a dor já
foi santificada para que possa santificar. O que é preciso, ó poeta de alma grande,
é abrir velas ao mar, e descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida.

"Ah! essa história maravilhosa, que a mim me contaram, como eu gostaria de lhe
contar, longamente! longamente!"
(Os Meninos se Matam, in Dez Anos)

DOR SOBRE-HUMANA
"Sabei ao menos leitor impaciente, que é por vós mesmos que grito e choro. Dói-
me só de pensar um segundo no mal imenso que fazem os destruidores da Santa
Igreja — mal que não se traduz somente nos tenebrosos novíssimos, mas desde já
produz esse inferno na terra, que está sendo triunfal desfecho de uma civilização
que estrepitosamente professa a aversão de Deus e a conversão à carne.

"Não me gabo do monopólio da dor. Todos eles sofrem, mais ou menos


obscuramente, mais ou menos vertiginosamente. Agradeço a Deus a graça de
saber qual é a causa da dor pela qual o mundo chora e de, sabendo-a, sofrê-la dez
vezes mais, porque então à dor do mundo, que partilhamos, se somam a dor do
Céu, as lágrimas de Nossa Senhora e a flagelação de Nosso Senhor, que pelos
séculos e séculos se perpetua. Peço-vos, pois — ó múltiplo e vago leitor — ver
nestas páginas de tão variado tom sempre o mesmo agradecimento e a mesma
compaixão."
(Agradecimentos, in Conversa em Sol Menor)

DOSTOIEVSKI
"A leitura de Crime e Castigo me trouxe a convicção melancólica de estarmos
vivendo uma depressão histórica. O mundo inteiro está passando por um processo
de laminação, de mediocrização, de perseguição de um conforto elementar e não
creio ser possível em algum lugar deste mundo de hoje alguém escrever um livro
como este e outros de Fedor Dostoievski. Quem sabe se não seria melhor, mais
higiênico, mais decente, calarmo-nos todos durante um milênio?"
(Relendo Dostoievski, 4/3/71)

E
EÇA DE QUEIRÓS
"Nos romances de Eça de Queirós tudo é claro, tudo é visível e colorido. Como
porém lhe falta o gênio de um Tolstoi ou de um Proust, essa claridade é mais um
verniz do que uma radiação própria que venha de dentro das coisas. Sua
luminosidade, em suma, é uma superficialidade. No que concerne ao jogo
psicológico das situações dramáticas, essa visibilidade chega freqüentemente ate o
mau gosto. O autor não deixa nada implícito, não supõe uma vida interior, e nem
de longe imagina os abismos inconscientes da alma humana. Tudo se diz, tudo se
explica e tudo se compreende (...)

O que torno a dizer dos romances de Eça de Queirós, com o acréscimo do que disse
acima, é que seu enorme talento de descrever estava ligado a um talento menor de
acompanhar os passos das humanas paixões"
("Na mesma língua em que chorou Camões", in O Desconcerto do Mundo)

EDUCAÇÃO
"Quem enlouqueceu, leitor, foi o mundo, sim, o mundo na sua efervescente
pluralidade e majestosa rotundidade. Foi o mundo, a civilização, a época, o século -
ou que outro nome lhe dêem; e um dos muitos efeitos dessa loucura, que reflui
sobre os indivíduos na variada proporção da permeabilidade que encontra, está na
idéia que atribui aos aparelhos institucionais, às máquinas de educar, o principal
papel na formação dos valores humanos. Este erro funestíssimo é próprio de uma
época gregária, cujos critérios pegajosos, colantes e massificantes sufocam e
estrangulam as iniciativas pessoais, que desde São Tomás, e até desde Aristóteles,
são o fator principal da formação dos veros valores da pessoa humana."
(Ensina-te a ti mesmo, Permanência, Jan/Fev de 1975)

EMPIRISMO
"O homem filosofa, ainda que freqüentemente filosofe mal. A existência do
empirismo prova contra o empirismo. Se as teses do empirismo fossem
verdadeiras, não existiria o empirismo. Se o materialismo fosse verdadeiro, o
homem seguiria seu caminho sem se deter para apregoar o materialismo. A única
filosofia que se pode apregoar com lógica é aquela que permite filosofar.

"Em resumo, o homem só pode negar a vida do espírito, embora com veemente
falta de lógica, porque é espiritual; só pode negar a liberdade e a lei moral porque
é livre."
(O Tecnicismo e suas Origens, in As Fronteiras da Técnica)

EROTISMO
"Estamos numa Guerra. A Guerra Mundial III. E contra quem? Contra o homem,
contra a Imagem e semelhança de Deus.

"No Oriente a Guerra toma a forma de escravidão. No Ocidente, liberal, relaxado,


entregue ao igualitarismo e ao mito da liberdade total; no Ocidente que deu à luz o
que já se chama a "permissive society" - e que nós traduziríamos por "sociedade do
vale tudo" - a Guerra toma a forma da liquefação e putrefação de todo o brio
humano. Com violência aturdidora, espalha-se um furor de erotismo, uma
febricitante promoção da sexualidade, degradante e destrutiva como se todas as
energias humanas se concentrassem no mesmo propósito: levar o homem a
descrer definitivamente de todos os seus títulos de transcendência e nobreza."
("A Escalada do Erotismo e a Censura", in Carta Mensal, julho de 1970)

"— Ó galata pouco inteligente! geme São Paulo. Ó leitor desatento! Gememos nós.
Consideremos o espetáculo dos costumes que aflige tantas famílias, lembremos os
casos de tantas e tantas moças que se transviam, que se perdem, que se
prostituem, e que ainda respondem aos pais “que eles estão por fora e não
entendem nada”.

"Pergunto eu: qual é o critério principal que norteia a vida dessas pobres moças
embrutecidas? Todos proclamam: “é o hoje” é a “atualidade” unanimemente
afinada pelo diapasão do orgulho que esmaga o 4° Mandamento, despreza Deus e
diz aos moços que só eles são juizes de seus atos, como, com todas as letras, já foi
dito num “catecismo” editado pela Sono-Viso, aprovado pela CNBB e evidentemente
inspirado pelo Diabo.

"O inimigo evidente das pobres moças que se perdem é “o que todo mundo faz”, é
o que se vê nos filmes, nas TV’s, ora, é esse gênio mau que Jesus chama “mundo”.
E os jovens idiotas, quando pensam que estão sendo movidos por sua esplêndida e
brilhante soberba, quando pensam que estão agindo livremente, COITADOS !!!, é
justamente nesses arrebatamentos que estão sendo arrastados, puxados, levados
para a sarjeta e para o prostíbulo pelo aparelho da perdição que Jesus chama
“mundo” do qual Ele nos veio apartar, do qual nos veio salvar."
(Editorial da Revista Permanência, n° 76-77, Março-Abril de 1975.)

"E nós, herdeiros desse júbilo divino, devemos compreender que a dignidade
humana mais depressa começa pelo decoro da veste do que pela conquista da
Lua."
(Editorial Permanência, n°18, Ano III, Março de 1970.)

ESCRITOR
"Imagino que as pessoas alheias ao ofício julguem que a substância de um escritor
é feita de mistura e da soma de outros escritores e que, assim sendo, caberia aqui
um largo tópico onde eu discorresse sobre os livros que li e os autores que devorei.
Parece-me todavia que um escritor mais se parece com uma salada do que com um
panteão ou com uma academia. Salada de quê? De experiências, de cabeçadas, e
sobretudo de malogros.
(Quando nasce o escritor? in Conversa em Sol Menor)

"Como pode o escritor ser escritor se não tiver o gosto supremo das mais finas
exatidões? E como pode o escritor ser escritor, e lograr comunicação, se não
possuir nos recôncavos da alma as ressonâncias, os abalos da terra, do chão, do
rumor dos passos e descompassos das marchas e das danças?"
(Quando nasce o escritor? in Conversa em Sol Menor)

"Mas o escritor não nascerá somente da matéria que lhe dá corpo. Para que ele
venha a nascer é preciso que dentro dele nasça a paixão violenta, invencível, de
deixar sinais escritos, mots, words, vocábulos, sinais, língua. O escritor nascerá
para escrever, para passar a vida pondo tudo o que viveu neste imperativo vital de
respirar escrevendo ou neste veredicto de não respirar se não escrever."
(Quando nasce o escritor? in Conversa em Sol Menor)

ESPERANÇA
"Nossa esperança, senhores, vem de Deus mesmo. Não somos nós que a
inventamos, que a deduzimos, que a fabricamos. Deus mesmo é quem no-la
deposita na alma, com as outras virtudes teologais, a Fé e a Caridade, que é a
maior. E nós sabemos, agora, que nosso Destino não é a força cega que empurrava
o rei Édipo para o parricídio e para o incesto. Nós sabemos que as portas de nossos
destinos abriram-se; sabemos que o Filho de Deus deitou-se sobre o abismo de dor
e morte para que nós todos, um por um, pudéssemos passar por cima de seu
corpo. Nós sabemos que uma festa está sendo preparada para nós, desde toda a
eternidade, e, quando apuramos os ouvidos, conseguimos distinguir os ruídos
desses preparativos...

"Quando éramos pequeninos, nas vésperas dos aniversários, ou das noites de


Natal, ficávamos às vezes acordados na cama, nervosos, impacientes; e
trocávamos olhares compreensivos com nossos irmãos, noite a dentro, ouvindo os
passos, as vozes, os ruídos novos de objetos novos, e trocávamos olhares cheios
de suposições, ouvindo a surda azáfama dos pais que povoavam nossa noite de
mistérios e esperanças.
"Ora, nossa esperança de hoje, essa esperança teologal, parece-se muito com
aquela esperança filial de antigamente. Nós sabemos, com a certeza da fé, que há
uma festa preparada para nós, e sabemos, desde já, que os preparativos
escondidos não nos estão inteiramente escondidos. Ouvimos sinos que batem,
ouvimos passos em procissão, ouvimos, como um rio de amor, um murmúrio de
orações - e sabemos que é aqui mesmo, aqui em baixo, aqui e agora, entre velas,
cálices, e pães, que o Cristo Jesus e sua Mãe preparam, para nós!, as garantias da
ressurreição..."
("O valor da vida", in As Fronteiras da Técnica)

"Bem sabemos, Senhor, que a beleza maior da Igreja, a beleza sem par, está
guardada para o céu. Bem sabemos, Senhor, que aqui na jornada nossas alegrias
são de esperanças e portanto de lágrimas. Mas não é só por nós mesmos, por
nosso pobre irmão corpo que nos apegamos às alegrias deste chão tão doce de
pisar, desta água tão bela de beber, deste sol que comemos com os olhos. Não é só
por nós e para nós que rogamos um reflexo de esperança nas nossas pobres coisas,
esta mesa, os livros, a casa lá dentro, a pobre família mal amada... não é só por
nossa casa que rogamos uma beleza de vergel, uma largueza de mar, uma
suavidade de jardim, é também, Senhor, para vossa Igreja que rogamos a beleza
da terra. E perdoai-nos, Senhor, a fraqueza de nossa esperança..."
("Encruzilhada de Traições" in O Século do Nada)

ESTUDO
"Na vida do estudante temos a supervalorização da Universidade: os moços
esperam demais da universidade. Sim, esperam receber dela não apenas uma
iniciação, não apenas um aperfeiçoamento a ser continuado, mas quase a
substância plástica de sua personalidade profissional.

"Abrem-se as torneiras das aulas e os estudantes se enchem daquela "matéria


dada". Ora, nós sabemos que, ainda hoje, qualquer profissional que se destaca é
quase totalmente um autodidata. Aprendeu sem dúvida alguma coisa nos bancos
escolares, mas sobretudo aprendeu por iniciativa própria muitíssimo mais. Não
contraponho aqui o estudo à prática da vida, como se costuma fazer num esquema
convencional; contraponho o estudo escolar com o estudo por iniciativa própria, o
estudo solitário, o estudo personalíssimo, que é o único capaz de formar elites
criadoras de que o mundo precisa constantemente para seus repetidos emperros.

"Os moços de hoje acreditam demais na universidade, e acreditam de menos no


valor próprio, no esforço próprio, e na fecundidade desse esforço procurado na
solidão da alma. Nós sabemos há mais de mil anos que o agente principal da
educação e do ensino é a atividade imanente do próprio educando, sabemos que o
mestre, e portanto toda a universidade, é um agente ministerial secundário, mas os
moços de hoje perderam essa noção que só é individualística na cabeça das
pessoas que raciocinam com o ruído das palavras."
("O Valor Próprio", in A Tempo e Contratempo)

"Qualquer transmissão de experiência viva, qualquer magistério, só pode funcionar


com o primado da palavra e por isso qualquer pedagogia tem de ser
fundamentalmente passiva. Esse vocábulo é considerado hoje obsceno; mas para
um cristão ele tem o mais elevado sentido e com ele afrontamos o ridículo do
mundo, porque toda nossa vida consiste em ser compassiva."
(A Descoberta do Outro, pág. 176)

EUTANÁSIA
"Às vezes tentamos esse empreendimento de medir o que é incomensurável, e
tomamos o metro da dor física para concluir que é melhor que morra o paciente se
o pouco que lhe resta de vida está condenado ao sofrimento. A eutanásia é a ilógica
conseqüência do excesso de lógica. Ela aconselha a matar baseada na certeza da
morte próxima, e no direito sobre a dor. Ora, se a morte é próxima, porque
abreviá-la? E qual é a diferença essencial entre o moribundo e um de nós? Se é por
causa da dor qual é o critério, a medida, o grau centígrado de dor que perdoa ou
condena? E quem poderá dizer o significado de cinco minutos de vida?"
("O valor da vida", in As Fronteiras da Técnica)

EVOLUCIONISMO
"Parece-nos indispensável marcar bem a intolerância em relação à Evolução dos
evolucionistas, que tira o mais do menos, que faz passar a potência ao ato sem
nada que esteja em ato, o que consiste precisamente em ser um processo
autocriador que torna sub-repticiamente aceitável a criação “ex-nihilo” sem um
Deus Todo Poderoso, desde que essa criação se torne infinitesimal e
suficientemente lenta para que as inteligências tardas não percebam o mecanismo
do absurdo, e fiquem, de tantos em tantos metros, ou de tantos em tantos séculos,
diante de uma situação de fato.

"É preciso denunciar a absoluta inaceitabilidade do evolucionismo dos racionalistas


e dos empiristas."
(As Descontinuidades da Criação, Ed. Permanência, 1992)

F
FAMÍLIA
"Em relação aos muros da casa de família há porém um problema semelhante ao
das fronteiras das nações. Há casas patrióticas e casas nacionalistas. Poderíamos
também mencionar as casas internacionalistas, onde entra e sai quem quer, onde
todo o mundo faz o que lhe passa pela cabeça, e onde, em suma, impera tamanha
tolerância que não seria impróprio chamá-las casas de tolerância.

"As nacionalistas são aquelas que mais abrigam uma quadrilha do que uma família.
Não porque sejam os seus membros ferozmente desunidos; antes porque são
unidos ferozmente. Unidos contra as outras casas."
(A Casa, O Globo 3/1/76)

FILHOS
"Vejam, vejam senhores como o mundo do homem é feito de sucessivas e
concêntricas fronteiras que vão, desde aquelas que vemos no mapa com rios e
cordilheiras, até a porta fechada da câmara conjugal. Mas agora apreciam o reverso
do fenômeno: cada uma dessas muralhas é sucessivamente superada, como
barragem de açude que se quer cheio para que transborde em serviço. O
dinamismo das fronteiras está voltado para fora. E agora, vejam, vejam nessa nova
direção como se expande o mundo do homem.
"De fato, se é verdade que os esposos se escondem, em compensação não há nada
menos escondido do que o fruto do seu segredo e não há nada mais apregoado,
mais publicado do que a criança que nasce. Toca cem vezes o telefone, esse
pequeno sino familiar do natal dos homens. É menino ou menina? Expedem-se
cartões. Abrem-se janelas. Como se chama? Quanto pesa? Com quem se parece?
As vizinhas comentam; as criadas, esquecidas de tudo, enternecem-se, e varrem
melhor, lavam melhor, como se o filho, sendo da casa, fosse como pouco delas
também; e as tias e as avós emitem vaticínios, ou confirmam profecias de que aliás
ninguém mais se recorda.

"O segredo tornou-se público. A porta misteriosa foi arrombada por um ladrão
recém-nascido. E o aroma de alfazema que sai pelas frestas da casa, que se dilui
no ar, no ar da rua, da paróquia, da cidade, já é a primeira suave emanação da
amizade cívica, o oxigênio das almas.

"A casa nesse dia deu o seu fruto. Fez a sua entrega.

"Nasceu hoje uma criança. Nem é preciso telefonar para saber que naquela casa
nasceu hoje uma criança. Vê-se de longe. Quem estiver acaso à janela pelas
cercanias logo verá que alguma coisa aconteceu naquela casa, naquele navio
ancorado: porque no seu exíguo convés, em sinal de festa, tremula uma carreira de
fraldas ao vento — bandeiras brancas de júbilo e de paz."
(A Casa, O Globo 3/1/76)

FILOSOFIA POLÍTICA
"Seu João soltou então um grande rugido que a custo reprimia.

-- Ai, minha senhora, os maçons mataram nosso Rei, e mais o Príncipe Luiz.
Estamos sem Rei. É uma desgraça uma grande desgraça...

E para bem exprimir seus sentimentos, Seu João, no tom mais respeitoso do
mundo, soltava palavrões (...). Foi nesse tempo que ouvi as lições de uma
insuspeitada sabedoria que naquele tempo nos fazia sorrir. Foi preciso viver 77
anos para descobrir que valeu a pena prestar ouvido as palavras aladas de seu
João. Sobretudo as que exprimiam a sua filosofia política. Uma noite resolvi
enfrentar seu máximo furor, e perguntei-lhe porque se apegava tanto à monarquia
e tanto se enfurecia contra a república. Com palavras e argumentos precoces para
meus nove anos de menino vivo nascido numa república, tentei confundir o lusitano
perguntando-lhe porque razão fazia questão de um Rei. Erguendo seus quase dois
metros de altura, e ainda avantajando com os braços enormes atirados ao teto, seu
João soltou um rugido de leão flechado; mas depois começou a falar
pausadamente. O menino era muito novo; a experiência da vida é que ensina. Ora,
o que ela ensina é que, para governar um povo nada se inventou melhor do que
um rei. E seu João repetia com uma voz grave e lenta: "Um RRRei! Sim, meu
menino, um Rei". Sentando-se com as mãos nos joelhos, debruçado e didático
prosseguiu: -- O que lá está e se diz presidente, o tal de Bombardino Rachado
(Beranrdino Machado), sai à rua com um guarda-chuva e diz que é igual a um de
nós, pedreiro como eu ou carpinteiro como José. Ora m'o M'nino, se ele é igual a
João Martins Duarte, pedreiro, como é que pode governar Portugal?
"E depois de uma pausa para meditação seu João me deixou cravado na memória
esse argumento sublime e definitivo: -- Naquele tempo (o da monarquia) m'o
m'nino, quando Sua Majestade saía de seu Palácio de Viçosa, quem estivesse nas
ruas, alçava-se nas pontas dos pés, quem estivesse nas lojas assomava à porta,
quem estivesse em casa chegava à janela, a GENTE VIA O REI PASSAR.

"Naquele tempo o menino de 9 anos ria-se do fantástico argumento de seu João


Martins Duarte e precisou viver 77 anos para desconfiar que se ria com riso
errado."
(O Globo, 5/12/74)

"E agora, sem nenhum receio dos adjetivos e advérbios que me atirarão, ouso dizer
que, nas circunstância do mundo contemporâneo, para ser razoavelmente bom o
regime político deve ser preliminarmente anticomunista e nesta conditio sine qua
non deve evitar qualquer sinal de nostalgia democrática. As nações do mundo
inteiro estão à espera de um regime onde os dirigentes procuram fazer o bem e
evitar o mal. E também ouso dizer que o governo que disso mais se aproximou no
século XX foi o governo de Franco na Espanha que durou 39 anos de paz e
prosperidade"
(O Globo, 11/5/78)

FREUD
"O que há de curioso na obra de Freud, a meu ver, é o seu completo desinteresse
pelo centro do homem. Suas admiráveis descobertas vieram revelar a diversidade,
a riqueza misteriosa de nosso organismo psíquico. Conclui ele então que o homem
é um pobre ser dilacerado e sem unidade. Ora, isto me parece ilógico. A mim,
quanto mais diferenciado e decidido se evidenciar nosso psiquismo, mais forte se
afirmará o princípio de unificação que apesar de tudo ainda consegue uma vitória,
mais penosa, mas por isso mesmo mais valiosa, por ser um domínio sobre
numerosos e dispersos elementos. Na doutrina de Freud, ao contrário, a ilógica
conclusão a que se chega, ou pelo menos aquela a que ele nos convida com
insistência, é a do enfraquecimento de nosso centro de gravidade. Na estrutura que
Freud propõe para o nosso psiquismo, como já observou um moderno psicólogo, a
parte principal do drama se passa entre o id e o super-ego. O enredo interessante
está todo nas obscuras intrigas de nosso inconsciente e nas categóricas repressões
policiais da zona exterior do super-ego, ficando no meio do palco, anódino, inerme,
com as mãos abanando, o Ego consciente. Vê-se pois que essa psicologia, e suas
derivadas, se caracteriza por um forte extrinsecismo, disfarçado, porque chega
muito perto do centro, e tanto mais forte e resoluto quanto resiste com maior
deliberação à poderosa atração da proximidade. Ao que me parece, essa psicologia,
com toda a sua respeitável contribuição, é antes uma força de dissociação do
homem do que uma tentativa de descoberta do princípio que faz de um eu a coisa
mais una, mais separada, mais brutalmente segregada do universo. Ela contraria,
por curiosidade analítica, por dissociação, o primeiro fato bruto da primeira
experiência da alma."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 199-200)

G
GOSTOS
"Já ouvi dizer inúmeras vezes que gosto não se discute. Ultimamente disseram-me
essa frase, que bem figuraria entre as proclamações do direito do homem, a
propósito da obra de Machado de Assis e da pintura de Picasso. Estou pronto a
concordar que gosto não se discute quando se trata de pratos. Custa-me um pouco,
mas reconheço a perfeita legitimidade do gosto pela beterraba. No que concerne à
pintura de Picasso ou aos livros de Machado, compreende-se ainda uma certa
relatividade na simpatia temperamental, um gosto, mas não posso concordar que o
juízo sobre tais coisas se reduza a esse elemento da ordem do sensível. Seria a
última concessão da inteligência: a submissão aos sentidos.

"Diante de um quadro de Picasso, uma pessoa afetada desse liberalismo subjetivo,


convencida da alta dignidade da livre opinião, não hesita em formular uma
condenação peremptória ainda que o difícil problema da arte não tenha tomado dez
minutos de reflexão em toda sua vida. Antes da reflexão, do estudo, do esforço de
procurar, antes de qualquer coisa está o direito, estranhamente glorificado, da
opinião."
(A Descoberta do Outro, pág. 67)

GUERRA
"Se uma guerra só é justa quando seus dirigentes puderem ter a certeza de poder
evitar qualquer excesso, qualquer crueldade acidental, então voltamos ao quadro
caricato de uma guerra com espingardas de rolha, baionetas de papelão e bombas
de creme. Só essa será justa. E então concluiremos que um cristão é um homem
que jamais deve combater em defesa dos valores cristãos. E quanto mais cristã for
a razão de sua guerra, mais odiosa e menos justa será essa guerra. Curiosa
doutrina? Curioso pacifismo que contradiz toda a civilização cristã e que troca as
cores violentas dos vitrais de nossa História por um cinzento budismo ou quietismo
de qualquer inspiração sem sangue!"
("Espanha, Roma e França" in O Século do Nada)

"O conselho evangélico me diz que será bom para minha vida personalíssima, e
interioríssima, isto é, para minha intimidade sobrenatural, oferecer a outra face se
me esbofeteiam numa; mas não me diz que seja bom oferecer a face de minhas
filhas e de meus netos. O conselho evangélico nos diz que quem com ferro fere com
ferro será ferido; mas o preceito, desdobrado em moral natural e sobrenatural, nos
comanda a defesa do próximo, a defesa da família, a defesa da civilização cristã,
que só pôde durar um milênio porque seus habitantes usavam espadas e preferiam
imitar o rei Luís de França, filho de Branca de Castela, a imitar os pacifistas
hindus."
("Espanha, Roma e França" in O Século do Nada)

H
HITLER
"Lembro-me bem da primeira vez que vi em Jacarepaguá, num cinema poeira, a
figura de Adolf Hitler, a discursar num cenário wagneriano. Levantei-me, como
quem acorda, sem poder sopitar uma exclamação: "Esse homem é um louco!"
Minha mulher puxou-me pelo casaco, e eu me espantava com a tranqüilidade da
platéia. Naquele momento tive uma fulgurante intuição de que começava um
período de demência universal, mas não imaginava que traços tomaria e que
intinerários seguiria."
(O Século do Nada, Introdução, pág. 19)

HUMOR
"O conteúdo do humorismo, isto é, o humour, vem dum senso lúdico como também
a poesia (...) e eu diria até que o humorismo é uma espécie de poesia dos
canhotos."
(Chesterton e Maritain, in A Descoberta do Outro)

I
IDADE MÉDIA
"Para nós, o esplendor medieval não está no brilho das cortes, na oficialização, na
penetração do poder temporal; diríamos até que não está no desenvolvimento da
escolástica e na altura das catedrais: para nós, o maior, o único esplendor da Idade
Média está numa cruz de carvão que São Tomás traçou numa porta que dava para
o pecado e nas chagas que um dia apareceram sangrando nas mãos dum pobre de
Assis."

"Quem presta ouvidos àquela crônica das derrotas da Igreja, onde se diz que ela
perdeu oportunidades e terreno, presta ouvidos aos pruridos e não às palavras da
fé. Não lhe passa pelo espírito que foi o mundo que perdeu terreno no reino de
Deus e não a Igreja que o perdeu nas cidades do mundo. Não se recorda mais que
o banquete de núpcias será completo um dia, ainda que bilhões de convidados
inventem as mais engenhosas desculpas para não comparecerem."
(A Descoberta do Outro, pág. 146)

IDEALISMO
"O grande desvio do pensamento moderno tem origem nessa inversão interior pela
qual a vontade se arroga um direito de conquista onde somente à inteligência cabe
o primado. Todos nós, mais ou menos europeus, estamos impregnados de
idealismo filosófico até à medula dos ossos, estamos convencidos de que nossa
dignidade mais alta reside nesse subjetivismo obstinado que tenta reduzir todas as
coisas do céu e da terra a meia dúzia de opiniões. Muita gente pensa que isso é
grandeza e marca de caráter e que a personalidade humana se define por esse
fechamento diante dos objetos e se engrandece por essa deformação interior.
Diante dos objetos mais simples, o homem liberal, que agasalha suas opiniões, que
desconfia de tudo que não seja o morno recôncavo de sua interioridade, cai em
guarda numa posição crispada; a vontade mete-se de permeio entre a porta dos
sentidos e a inteligência, e como o seu caminho é mais curto, ou porque seja ela
mais ágil, sua sugestão chega antes do conceito e gera o preconceito. A inteligência
perde a liberdade e a vontade então convence o sujeito de que ele é um livre-
pensador"
(A Descoberta do Outro, pág. 66)

INTELECTUAIS
"Por essas e outras é que sempre aconselho aos jovens intelectuais a prática de
trabalhos manuais. Aprendam a consertar torneiras, a descobrir curto-circuitos e
assim terão um exercício de docilidade ao real. Não é só com a cabeça que o
homem pensa, é também com as mãos. É preciso nunca ter mudado um fusível ou
nunca ter pregado um botão nas calças para chegar ao irrealismo profundo dos
“intelectuais” que trazem seus brilhantes talentos para pronunciamentos que
deveriam versar sobre coisas simples como pão e a água e por excesso de
categorias mentais deixam de ver o elefante, o piano e outras coisas mais
volumosas."
(O Globo 29/08/1970)

IMATURIDADE
"Numa reunião de pais de família, uma pergunta é lançada à madre superiora:

"- Então a Sra. acha que não devemos obrigar os filhos a ir à missa?

"Houve um silêncio. Um suspense. E então a madre, com voz clara e resoluta,


respondeu:

"- Não. A missa não deve ser imposta às crianças como um castigo, do qual não se
pode escapar. A criança deve ser despertada para o significado e a beleza desse
encontro semanal com o Cristo. Os pais devem dar o exemplo e mostrar à criança
que ela é livre de fazer a escolha...

"E aí está. Tudo isto que pareceu muito bonito a vários pais de família é
simplesmente monstruoso.

"Em primeiro lugar obrigação não é castigo. Em segundo lugar, a educação consiste
essencialmente em preparo e em indicar aos educandos as suas obrigações e os
seus deveres para com Deus, consigo mesmos e com o próximo. E educação
católica consiste essencialmente em preparar a alma do educando para o
cumprimento da vontade de Deus, expressa nos mandamentos.

"Todos nós sabemos há mais de dez mil anos, para o que concerne a lei natural, e
há quase dois mil anos, para a lei revelada, que essa tarefa tem de ser feita com
amor, dedicação incansável, alternativas de persuasão e severidade, e, sobretudo,
sabemos que o desnível da autoridade paterna se atenua com o crescimento dos
filhos. Ninguém pensará em obrigar um filho de 48 anos a cumprir o preceito
dominical; mas também nenhum pai cristão de bom senso deverá consentir que um
filho de 7 anos não vá à missa porque não quer. Diremos até que é bom, vez por
outra, algum atrito, para lembrar à criança que há uma obrigação a cumprir em
relação a Deus, e que nessa matéria ela tem de obedecer como o pai e a mãe
obedecem. Chamo a atenção do leitor para um aspecto muito curioso da resposta
daquela madre. Na religião nova ou na nova filosofia de vida que ela prega, os pais
devem... os pais devem... mas os filhos não devem nem aprendem a dever.
Observem especialmente esta passagem: “Os pais devem dar o exemplo e mostrar
à criança que ela é livre de fazer a escolha...”. Do lado dos pais o dever, do lado
dos filhos a liberdade, a livre opção. (Devemos aqui fazer uma distinção que
certamente não ocorreu à freira: livre escolha, toda alma racional possui, se se
trata de liberdade interior de autodeterminação da vontade; mas livre escolha dos
atos exteriores, no sentido de liberdade, de independência, ou de não-obrigação,
esta só temos em termos muito relativos já que todos nossos atos são polarizados
no universo moral!)

"E aí está um exemplo típico do mundo em que vivemos: um colégio católico, de


longa tradição, em cinco anos se transforma num “André Maurois”. Não ensinam os
deveres e não se entende bem como será que o jovem descobrirá sozinho o dia e a
hora em que deixa de ser um imaturo que só age em função do agrado, para ser
um responsável."
(Editorial da revista Permanência n° 7, abril de 1969, Ano II)

"Como se explica então tal paradoxo? Como se explica que uma sociedade se gabe
precisamente do que não tem, e se glorie justamente no que devia envergonhar-
se? Estamos diante de mais uma arma de guerra invisível que se trava nos
subterrâneos da história contra a dignidade e a grandeza do homem. Basta um
esboço de inquérito para nos revelar o seguinte dado: o termo "Cristão adulto" foi
lançado precisamente por uma ala que precisava cativar os ressentidos, os imbecis,
os imaturos e os perversos. Servia o termo para designar uma atitude nova, livre,
autônoma e supostamente adulta. E qual era essa atitude? A da recusa das
estruturas da autoridade. Seria "cristã adulta" a mocinha que chegasse em casa e
desfeiteasse a mãe antiquada. Seria cristão consciente o garoto semi-analfabeto
que soubesse repetir slogans contra a guerra do Vietnam, e que com isto tivesse o
conforto de saber que feriria seu pai ou se avô.

"Na verdade, verdadeiramente maduro e verdadeiramente consciente é o homem


que sabe não ser ele sua própria lei, e que possui interiorizado o austero amor da
obediência ao bem. É o homem que se move por convicções próprias, mas,
também, e principalmente, pela convicção central e principal de que não é ele que
improvisa os critérios com que se move na vida. As convicções são próprias porque
se apropriou delas por um processo de reflexão e de obediência. Em obscuro, se
não é religioso, ou claramente se tem fé, esse homem maduro sabe que tem
deveres e normas mais altas do que seus caprichos e suas inclinações.

"O contrário disso é o imaturo. quando ele pensa estar realizando sua mais radiante
epifania, e quando pensa estar atingindo sua máxima afirmação, está apenas
cumprindo um ato subalterno ditado pelas inclinações inferiores, ou sugeridas pelo
líder da turma. E esses pobres títeres se enfeitam com títulos de nobreza que têm a
derrisão de apresentá-los pelo avesso do que são.

"(...) A moral subjetiva, que recusa a regra exterior, a lei divina, não faz e ninguém
um adulto; ao contrário, fixa inexoravelmente suas vítimas numa perpétua
adolescência."
(A moral subjetiva, O Globo, 8-2-69)

INFELICIDADE
"É claro que o homem é extraordinariamente engenhoso na arquitetura de sua
infelicidade. Ainda que os fatores extrínsecos sejam seguros e bonançosos, o
homem traz em si a borrasca. Ainda que os elementos econômicos, afetivos e
temperamentais sejam favoráveis, o homem se encarrega freqüentemente de
inventar sua desventura."
(Amor, casamento, divórcio, A Ordem, fev/52)

INIMIGOS
"Hoje, depois de um século de empulhamentos e do triunfal aggiornamento trazido
por uma apoteose de equívocos, querem nos inculcar a amolecida idéia de um
cristianismo sem combate, sem inimigos e, por via de conseqüência, sem
necessidade do Sinal da Cruz. Ouso dizer que a paz mundial, a paz terrestre, a paz
feita de bem-estar e do comodismo, etc...constitui uma das principais preocupações
do Demônio. Muito melhor do que nós, ele sabe que a obsessão desse cuidado nos
leva ao abandono de qualquer ideal de Bem e de Verdade, e diverte-se em saber
também que esse é o caminho da mais espantosa explosão de inimizades que o
mundo conhecerá. Por mim, confesso que me apavoro, quando sinto o horror que
esta simples palavra provoca nesta atualidade costurada de ecumenismos,
cursilhos, diálogos e demais retalhos da fantasia dopada. Uma vez, conversando
com um general, usei inadvertidamente este vocábulo: “os nossos INIMIGOS”, e
ouvi esta afetuosa observação: Professor, eu prefiro o termo adversário...Calei-me
aterrado. Se os padres e os militares não sabem mais o que é o “inimigo”, quem o
saberá? Porque, na verdade, as duas instituições que devem ter a viva noção desta
entidade, são realmente a Igreja e o Exército. Aqui no Brasil, as desavenças acaso
ocorridas entre essas duas instituições se explicam umas vezes pelo fato de não
serem “da Igreja” aqueles que em nome dela pretendem falar, outras vezes pelo
fato de não saberem, os homens da Igreja, que o Exército, de 64 até hoje luta a
seu lado contra o inimigo comum.

"Imagino que nesta altura meu leitor esteja a revolver as idéias que aprendeu
sobre a Caridade, Evangelho, Perdão e outras grandes noções que auriu no regaço
da Igreja. Sendo estudioso, lembra-se que o Concílio de Trento trouxe esta
definição lapidar: A Igreja Militante é aquela parte de seus membros (ainda na
Terra) que luta contra três cruéis Inimigos: o Diabo, o Mundo e a Carne.

"Mas meu leitor também se lembrará de uma palavra de Cristo: Mas eu vos digo
amareis vossos inimigos... “Meu Deus, como conciliar tantas idéias aparentemente
opostas?! Como poderei amar se devo combater? Respondo dizendo: combatendo!
Porque esta é a melhor forma de Caridade a que ele tem direito. Por incrível que
pareça são os pacifistas que pecam contra a Caridade quando querem que todos se
unam e se misturem na mesma indiferença em relação à Verdade e ao Bem. Sim,
não há mais odioso pecado contra a Caridade do que a amável condescendência
com que permitimos e colaboramos com a permanência no erro e no mal. Não fazer
questão de incomodá-lo, de combatê-lo, de tirá-lo da sua tranqüilidade no erro e no
mal, é fazer uma das obras prediletas do Demônio.
("Livrai-nos Deus de nossos inimigos", O Globo, 25-7-74)

"Falando ao prelado em questão de tais personagens, que desfiguram a Santa


Igreja, disse-lhe eu que o meu mais ardente desejo não era o da convivência
pacífica com tais inimigos. Ao contrário, meu mais ardente desejo, repito-o aqui, é
que esses maus levitas, que tão estridentemente apregoam sua apostasia, sob os
eufemismos de novidade e progresso, tenham a lealdade última de se afastarem da
Igreja. Levem sua aventura até a extremidade de irem comer bolotas com os
porcos. Estas palavras duras, caro leitor, são palavras dos santos evangelhos, e
portanto, palavras de amor, porque assim fazendo, eles teriam talvez nesta vida a
última chance de, um dia, sentirem saudades da Casa do Pai que só espera a volta
do filho pródigo"
("A Santa Visibilidade", in O Globo 9/8/75)

J
JOVENS
"Uma dessas aberrações é a frenética promoção d´O JOVEM. À primeira vista
parece simpática, otimista e esperançosa essa exaltação da juventude; melhor
reflexão, todavia, revela sua falsidade, e então o que parecia auroreal e otimista
torna-se lúgubre e até obsceno. Tomemos por exemplo a frase "eu tenho confiança
no jovem" de que muitos Padres e Bispos não conseguiram escapar. Essa frase
parece uma proposição inofensiva, um sorriso, uma amabilidade, uma
generosidade; na verdade, porém, é uma frase destituída de sentido e carregada
das mais dissolventes conotações. De início a proposição é tola porque o jovem, por
definição, é algo que ainda não disse ao que veio e, portanto, é alguém de que só
posso dizer que tenho esperanças ou inquietações, conforme os sinais que nele
observo. Mas dizer que tenho arrematada confiança em quem ainda não deu
provas, é dizer um nonsense. A rigor, dos jovens e aos jovens, só podemos dizer
com propriedade e sinceridade que cresçam e apareçam.

"Com verdadeiro amor só posso dizer aos moços que não tenham tanta jactância
de suas imaturidades e que cuidem diligentemente de aprender duas coisas.
Primeira -- agradecer a Deus e aos homens o que encontraram feito: água nas
bicas e no mar, frutos nas árvores e no prato. O primeiro sinal que me predisporá a
ter confiança num moço será essa disposição de agradecer. O segundo será a
visível disposição de continuar e prolongar o que encontrou.

"Ora, a adulação, com que os padres progressistas cercam os moços, só pode


produzir o resultado oposto a essas duas virtudes: sim, só pode produzir fatuidade
e soberba."
(O 4o. mandamento, Permanência, no. 59, set. de 1973)

"O moço recém-acordado da infância é o menos infantil dos homens e, se não tem
a capacidade de uma infância mais alta, a da contemplação que vence o tempo,
não pode voltar às figuras do passado nem procurar as estrelas do futuro. Então, só
lhe resta o presente, proximidade morna dos outros presentes aprisionados. Sim,
só lhes resta esse calor dos gestos sem razão: poderá divertir-se até queimar a
carne, poderá sangrar-se até incendiar o mundo. Torno a dizer: prisioneiros do
presente. Eis a estranha segregação em que se gloriam os jovens; e ainda mais
esquisita e repugnante é a admiração com que os mais idosos assistem ao suplício
das almas jovens aprisionadas, no exíguo camarote de um navio-fantasma que não
veio de lugar nenhum, e não procura nenhum porto seguro".
(Não sabem o que Querem, O GLOBO)

L
LEÓN BLOY
"O que admiramos em Bloy é a estrutura gótica de sua alma, o ardor incondicional
de sua fé, e, de certo modo, o motivo mesmo que o leva ao univocismo na
compreensão do fenômeno histórico. O que nele admiramos, a par da grandeza de
escritor que nem sempre tinha razão contra Rafael, Bossuet, ou contra seu
diletíssimo amigo Roualt, é a perfeita fidelidade à Dama Pobreza, que fez dele um
genuíno descendente de S. Francisco de Assis."
("Respondendo a uma Provocação", A Ordem, Dezembro de 1947)

"Léon Bloy testemunhou, e nos fez sentir como ninguém, a invisível presença dos
eleitos, o acotovelar dos anjos, o hálito dos vivos e dos mortos. Muitas noites
passava a chorar com as almas do purgatório; e muitos dias passava a esperar as
notícias distantes dos invisíveis próximos. Sentia a comunhão dos santos como a
aranha sente a teia, como o pássaro sente a brisa, como o ouvido de mãe mal
adormecida sente os mil rumores de uma casa cheia de filhos, que se agitam, que
ressonam, que estremecem... Sentia os passos dos santos como se o chão da
eternidade fosse a pele de um tambor.

"A Igreja de Deus é verdadeiramente um corpo, aquecido por um sangue e


animado por um espírito: as partes se comunicam, se encontram, e muitas vezes
se chocam. O Universo não é tão grande como o pintam os astrônomos: é antes
uma nave de catedral onde o humilde cochilo de um penitente ressoa em cada
nicho e interessa cada alma."
("Léon Bloy", in Dez Anos)

LIVROS
"Ora, o que eu quero dizer (...) é que existem obras, em arte e filosofia,
desprovidas desse interesse profundo e vital, obras que não tratam do homem, que
não lhe concernem, e que, nem ao menos para o destruir, procuram atingi-lo. E é
nesse ponto, nessa falta de contato, a meu ver, que se localiza a mediocridade.
Não são as blasfêmias — nessa ordem de idéias — que excluem a obra de
Nietzsche do campo onde os homens se golpeiam ou se abraçam (...) O que
imprime à sua obra um sinal de irremediável ridículo são os atentados ao homem
em nome do super-homem. O ateísmo dos marxistas não é também, nesse ponto
de vista, a mancha mais repulsiva dos seus tratados, mas o atentado contra o
homem em nome do sub-homem. Ambos são ridículos porque, sendo o mundo
redondo, o super e o sub se tornam relativos e muitas vezes se confundem."
(O Falso e o Genuíno, in Três Alqueires e uma Vaca)

LOUCURA
"Há uma divina loucura, que vem do alto, que libera, que eleva o homem acima dos
níveis em que estão instaladas as coisas rotineiras, as verdades superficiais e
elementares, uma loucura que é feita de asas e de horizontes insuspeitados, que se
chama inspiração, que dilata a alma, que dita aos homens os segredos de Deus; e
há uma outra loucura, que prende à carne o espírito, que reduz os horizontes às
medidas da obsessão e que, segundo o genial paradoxo de Chesterton, consiste na
perda de tudo, exceto da razão. Materialmente semelhantes, pela quebra de
padrões usuais, pela extravagância dos resultados, pela fuga ao nível dos valores
consagrados, os dois casos estão realmente nos pólos opostos da vida da
inteligência. Ou melhor: opõem-se como a vida se opõe à morte. Poderíamos ainda
lembrar que há uma outra espécie de loucura "from above" e de delírio
verdadeiramente divino: é aquela que se traduziu numa descida de Deus, e que em
nós atua como força de sobrenatural subida, e como apetite de cruz. Por causa dela
estamos sempre em tensão neste mundo. Não há fórmula de repouso ou de cura,
não há receita de relaxing que possa resolver as trágicas equações de nossa vida.
Em regra geral, no comum dos casos, que a filosofia da mediocridade chama de
normal, vivem os homens o cuidadoso equilíbrio ao rés-do-chão. Têm medo das
energias internas que pedem superação, e agarram-se aos preconceitos e às
fórmulas da pacata existência. E é por isso, precisamente por iso, por causa da
parcimônia espiritual, por causa do medo da divina loucura, por apego ao equilíbrio
da carne, que ficam doidos da doidice que pede choque elétrico e camisa-de-força.
A loucura do alto é o melhor antídoto para a sandice inferior.
"Se o mundo tivesse mais santos, se se entregasse com mais generosidade aos
vôos líricos dos poetas, se cultivasse com mais amor o delírio que está num
quinteto de Mozart ou num poema de Camões, haveria mais vagas nas casas de
repouso. Nós andamos na vida com dois doidos por dentro, um a nos ditar
obsessões, outro a nos propor um vôo. Voemos. Libertemos o doido que nos
libertará. Cantemos com os cantores, e sobretudo aceitemos o divino convite que
nos torna divinos."
("Na mesma língua em que chorou Camões", in O Desconcerto do Mundo)

M
MACHADO DE ASSIS
"... sua obra foi um milagre. Dentro de um ambiente de verborréia que ofendia a
palavra e traía de modo elementar o espírito de nossa língua, Machado soube
guardar-se e, compreendendo que o português é avesso às rotundidades, escreveu
como seus antigos, curto de fôlego e enxuto de formas. Foi verdadeiro no
instrumento e verdadeiro na obra."
(A Descoberta do Outro, pág. 130)

"Tempos atrás, para escândalo de um crítico musical, ousei um paralelo entre


Machado e Mozart. E torno a perpetrá-lo, pois não sei de outros, nas línguas ou na
música, que saiba entrar com tamanha graça e tão notável desenvoltura. Dêem-nos
dois ou três acordes, duas ou três frases, e logo identificamos a inigualável figura
de um desses autores."
("Na mesma língua em que chorou Camões", in O Desconcerto do Mundo)

"Os autores das modernas filosofias existencialistas optaram pelo absurdo. O que
vale dizer que não optaram, e que ficaram detidos, imobilizados, sem ímpeto para
atravessar o espelho e entrar no mundo das maravilhas. Dessa paralisação da
inteligência resulta um pessimismo real, profundo, desconsolado e degradante, que
não era, de modo algum, o pessimismo de Machado de Assis. (...)

"Até seus últimos dias, na desolação da velhice e da viuvez, Machado de Assis


conserva intacto o senso moral. Se nos romances parece ter atingido um cansaço
da vida e um desconsolo supremo, aí está sua correspondência Para nos mostrar o
outro lado do homem que persiste em crer no homem e na realidade moral. E a
explicação desse dualismo está no Eclesiastes, ou melhor, naquilo que falta
no Eclesiastes, que é por assim dizer um livro onde o principal é justamente o que
falta: a notícia de nossa transcendência e de nossa ressurreição."
("Na mesma língua em que chorou Camões", in O Desconcerto do Mundo)

MARCEL LEFEBVRE
"De início eu diria ao meu escandalizado leitor que é fácil julgar-se mais católico,
mais virtuoso do que Dom Lefebvre, mas que não é tão fácil sê-lo efetivamente.

"A Europa inteira está emocionada e aturdida diante da suspensão do venerável


ancião que se achou colocado na situação prevista na famosa carta que os cardeais
Ottaviani e Bacci dirigiram ao Sumo Pontífice em 1969: «...a promulgação do Novo
Ordo coloca o fiel católico diante de uma trágica opção».
"Coube à grande alma católica do Bispo fundador de seminários católicos o encargo
de condensar em sua obra, em seu coração, o sofrimento de todos os sacerdotes e
leigos do mundo que sofrem o mesmo dilaceramento."
("Dom M. Lefebvre fala", Revista Permanência n° 140-141, Julho-Agosto 1980)

"Tantos são os sinais mais ou menos graves da ruptura da tradição, que sem
hesitação podemos dizer ― com o que aprendemos no regaço da Igreja onde
queremos viver e morrer ― que o rumoroso caso de Dom Lefebvre ultrapassa de
muito a dimensão de uma questão disciplinar: o que esta em jogo é o valor que
damos ao Sangue de nosso Salvador."
("A Necessidade de Explicar tudo", O Globo 2/9/76)

"Estas singelas considerações talvez ajudem os católicos que sinceramente amam a


Igreja a compreender que não há nenhuma desobediência nas missas rezadas por
Dom Lefebvre: ele obedece ao Espírito de sua Igreja; os padres extravagantes
citados pelo Pe. Auvray obedecem materialmente ao espírito que inspirou os falsos
princípios.

"Entre esses dois exemplos há a maioria dos vacilantes, dos tímidos, dos mornos,
que obedecem materialmente a papéis marcados com o sinete do Vaticano, e ficam
com a consciência em paz enquanto a Religião de Cristo sofre perseguição e as
almas se perdem."
("Onde irá parar a Missa?", O Globo 9/9/76)

MATEMÁTICOS
"Os matemáticos são os joalheiros do senso comum, mas às vezes entusiasmam-se
pensando que o ouro foi também feito por eles."
(Descoberta do Outro, pág. 77)

MILITÂNCIA CATÓLICA
"Um dia de aniversário festivo Manuel Bandeira e outro conhecido acadêmico
cordialmente me saudaram e me disseram que a Academia reclamava a minha
presença. Volto ao mesmo sábado de poesia e de loucura para responder ao
convite amável: "Não sei, Manuel Bandeira, se alguma vez, nas vezes das Marias,
das Terezas, você encontrou quem lhe dissesse estar comprometido. Digo-lhe hoje
eu. Chego a ter, Deus me perdoe, inveja de sua graciosa liberdade, inveja de não
poder desatar o prisioneiro que trago. Sou hoje militante. Engajado.
Comprometido. Com sete deveres de estado e um noivado no Céu. Ousarei
confessar-lhe, ó poeta, que ainda não morreu o poeta-menos-do-que-menor que
não fui? Muitas vezes vou visitá-lo às escondidas, como um Nicodemus, e de
nossas confabulações trago o pouco que põe a vida e calor nas obras de meus
compromissos, dos sete deveres de estado."

"(...) não recebi o dom de bem discorrer sobre rosas e rubis para servir as
academias. Não posso pois reclamar omissão alguma no país dos homens de letras;
mas posso pedir ao leitor a compreensão, a paciência de reconhecer que eu devo
continuar a escrever contra os discursos do Congresso Eucarístico de Manaus, os
pronunciamentos da CNBB e outros tediosíssimos assuntos. No fim de todo este
delírio, conservo a convicção da inutilidade de meu serviço, mas sobeja a certeza
de que, feitas todas as contas, Deus quer o meu testemunho.
"E ai de mim se o não der."
(Sereis minhas testemunhas, O Globo, 27/09/75)

MISSA
"(...) há hoje todo um esforço de covardia e traição universal para conjurar o
insuportável espetáculo da Cruz. E então, para fugir à visão daquele divino pára-
raios da cólera divina, para tirar os olhos do sangue, inventaram o recurso de fazer
a missa derivar mais da ceia do que da Cruz, e com esse estratagema malicioso e
parvo, fizeram da Santa Missa um espetáculo de feira, aonde a assembléia dos fiéis
é aquele “respeitável público” dos palhaços de circo".
(O GLOBO 7/4/77 )

"Quando nós vamos à Missa não vamos para constituí-la, para fazê-la o que ela é
por nossa reunião. Vamos à Missa para usar a oportunidade maravilhosa e
misteriosa que Deus nos oferece de estarmos misticamente, mas realmente, ao pé
da Cruz, naquele dia e naquela hora da Salvação.

"E assim, qualquer católico alfabetizado, e ainda não imbecilizado pela onda de
novidades, compreenderá que definir a Missa pela assembléia dos fiéis é sacrílego,
herético e estúpido. Dir-se-ia que somos nós, assembléia de fiéis, que fazemos ao
Cristo o favor de rememorar seus feitos, e não que é o Cristo que nos faz o infinito
e incompreensível favor de nos oferecer uma oportunidade de colhermos os frutos
da árvore da salvação, e uma possibilidade de participarmos de sua obra."
(De Roma a Olinda, O Globo 28/7/77)

"Sem nenhum prurido latinista eu me pergunto se terá sido boa a substituição da


língua universal pelas diversas línguas nacionais. A meu ver há boa dose de
exagero nos meios em que tenho visto adotarem a renovação com entusiasmo. A
Igreja tem que ir ao povo mas não num estilo que se aproxima da demagogia.
Creio que se enganam os que julgam que o povo gosta dos sermões em que o
padre diz que está batendo um papo com os fiéis. Estou convencido que se
enganam os que julgam que o povo se encontra mais bem representado pela
mediocridade, pela chulice, do que pela nobreza do estilo, pela elevação do tom e
até pela pompa dos paramentos. Essas coisas, ao contrário do que pensam os que
vivem falando na pobreza, constituem a riqueza do pobre. O pobre tem na Igreja o
lugar em que alguém lhe fala com elevação e esmero; tem na Igreja a casa das
alfaias ricas; tem na Igreja seu luxo, seu requinte, seu apuro. Em todos os outros
lugares do mundo, o pobre encontra a pobreza. Em casa, tem a pobreza da
necessidade; nos lugares de trabalho tem a pobreza funcional, técnica. Só na Igreja
o pobre continua a encontrar o ouro, o incenso e a mirra"
(Reformas Litúrgicas, O Globo, 18/3/65)

"É preciso dizer por cima dos telhados, aos gritos, com cólera ou com dor, que nós
não precisamos dos conselhos e da colaboração dos protestantes para decidir a
feição de nosso culto de adoração, isto é, para observar e apartear o que temos de
mais íntimo na vida da Igreja. Esta falsa modéstia, esta falsa humildade, este falso
ecumenismo é que clamam aos céus e a nós nos ferem em nossa honra e no nosso
amor."
(Editorial Permanência, n°56, Ano VI, Junho de 1973.)

MORTE
"Curioso é esse contraste: a morte é o que há de mais certo, a ponto de servir no
modelo clássico de silogismo; e é por outro lado a idéia que mais nos custa admitir,
e tanto mais custa quanto mais perto nos toca. É uma certeza que anda ao
contrário das outras."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 35).

"E a morte? Onde ficou a morte em todo esse filosofar? Que relação existe entre o
mistério da pessoa e os trinta ou quarenta dias que me são adjudicados?

"A relação existe. Deixamos para trás a certeza da morte, que é luminosa na visão
essencial, e que evolui em proporção inversa da evidência, transformando-se em
surpresa, em estranheza, em repugnância, em estupor, à medida que emerge a
realidade da pessoa. Concluímos pois que há na pessoa, no mistério da pessoa,
uma força que empurra a morte para trás, que recusa a morte, que denuncia a
morte como um espantalho de contradição.

"Estarei descobrindo que a alma é imortal?"


(Trecho em que o personagem José Maria descobre a imortalidade da alma. Ibid,
pág. 48).

MOVIMENTOS CATÓLICOS
"Algum dos modernos, creio que no tempo dos padres-operários, já observou que
sempre que surge ardoroso movimento de evangelização, a Igreja o entrava e o
bloqueia. E faz bem, porque na maioria dos casos o ardor de novas iniciativas mais
se nutre de amor-próprio inquieto e ávido de sucesso do que se inspira de pura e
casta caridade. A grande calamidade que aflige a Igreja de nosso tempo tem
origem, ou fator dominante, numa inversão de atitude que levou a Igreja, aí pela
década dos 40 e dos 50, a ver as efervescências sem a antiga e sábia reserva."
(O Século do Nada, 2a. edição, Record, pág. 173)

N
NIETZSCHE
"Nietzsche foi o poeta épico dos pequenos-burgueses, o bardo dos subchefes de
seção, ou, então, o profeta que anunciou o advento tumultuoso de três bilhões de
deuses..."
(A Descoberta do Outro, pág. 76)

NOVOS TERMOS: "LARGUEZA DE ESPÍRITO" E "DIALOGAR"


"O que é isso? A julgar pelos lugares onde já encontrei essa expressão, receio
tratar-se de uma disposição para cuja conquista não me sinto atraído. Serei
reprovado no vestibular de "largueza de espírito", se por tal coisa se entende a
facilidade de "dejeuner chaque jour un crapaud", como dizia Cyrano de Bergerac,
ou de comer lagartixas, como hoje diz Nelson Rodrigues. Não, não serei reprovado
porque não chegarei sequer a me matricular em tal maratona.

"Também não sei o que quer dizer "dialogar", mas pelo que suspeito desde já
advirto à leitora desconhecida que não lhe fica bem dizer que "dialogar" não faz mal
a ninguém. Na Faculdade Nacional de Filosofia, no início da década de 60, quando o
termo explodiu, "dialogar" engravidou várias alunas. Na PUC o mesmo verbo
transformou mocinhas egressas do Colégio Sion ou do Sacré Coeur em terroristas,
amantes de terroristas e assassinas."
(Resposta a uma leitora. O Globo, 12/9/70)

NOSSO DEVER
"Mais do que nunca na história é imperiosa a mobilização de todas as devoções.
Temos o direito de reclamar, de acusar, de denunciar, e até de pedir o castigo dos
soberbos. Mas todos esses incontestáveis direitos são fracos recursos diante de um
dever que pode nos esmagar mas do qual não podemos fugir: o dever de tomar os
lugares vazios, as vagas, e o dever de preencher com atos de submissão e de
adoração os enormes buracos deixados pelos trânsfugas. Precisamos multiplicar por
cem ou por mil as orações de súplica e de adoração, precisamos importunar nosso
Pai do Céu com a repetição de nossos atos de Fé, com nossa fidelidade, com nossa
incondicional permanência."
(Editorial da revista Permanência, no. 30)

O
OBSESSÃO
"Qual é a natureza da obsessão? Quanto ao objeto, ela consiste em afirmar "que
existe uma coisa e só uma a temer". Quanto ao sujeito, consiste em supor que
todas as virtudes devem ser concentradas na direção daquele perigo único. Ora,
tanto uma idéia como outra é contrária à noção de vigilância que a Igreja não se
cansa de nos inculcar. O vigilante é o homem que, de certo modo, não sabe de
onde virá o perigo. Não sabe a hora e o dia. Ou melhor, sabe que ele poderá vir a
cada instante (o perigo e a salvação) e de cada direção. O obsedado, ao contrário,
é o homem que se gaba de saber precisamente a hora e o azimute do perigo. Ora,
essa é a mentalidade do homem técnico, do tático, e não do homem que consulta a
prudência propriamente moral. Nas guerras nós sabemos, com certa nitidez, de que
lado está o adversário; na vida a Igreja nos ensina que ele está em torno de nós,
"ao redor de nós, a rugir como um leão". E não à frente; e não à direita; e não à
esquerda.

"Ainda mais, convém notar que o mesmo indivíduo pode ser vítima de muitas
obsessões. Melhor do que acima dissemos, a obsessão consiste, não tanto na idéia
de um objeto único, detestável ou apetecível, mas na idéia da decomposição em
partes do domínio moral. O mesmo sujeito pode sofrer a obsessão do pecado
contra a castidade e do comunismo. Pode ter mil obsessões sem que o número, por
mais elevado que seja, restaure a fundamental unidade do ato moral radicada na
razão. Basta uma zona obscura para estar completamente perdida a integridade
moral.

"A obsessão é uma paixão desgovernada, tornada má por falta da inteireza, e, pelo
medo ou pela concupiscência, conduzirá o indivíduo, por caminhos tortuosos,
levando-o infalivelmente a perder o que busca alcançar e a abraçar com o espectro
que o apavora. [...]

"Revista-se embora de aspectos virtuosos, nunca é virtude; seja um mal o que


evita, acaba por atraí-lo; seja um bem que procura, só consegue perdê-lo."
(Editorial não Assinado de A Ordem, Março de 1947)
OBEDIÊNCIA
"Sim, o Crime da Obediência. Será preciso lembrar que a virtude da obediência é a
que exige o mais fino e intransigente dos discernimentos?"
("Remember", artigo sobre o Nazismo, in Patriotismo e Nacionalismo)

"(...) diante de uma hierarquia tornada quase invisível, aqueles que mais amam
obedecer, são levados por um indizível sentimento de orfandade, e se embaraçam
numa invencível dificuldade de obedecer..."
(Editorial de Permanência, no. 52)

"Quando Santa Tereza (para obedecer ao confessor) fazia caretas à visão que lhe
aparecia, ouviu do Senhor Jesus: "filha, agrada-me a tua obediência". Mas quando
porém se trata da salvação das almas, como silenciar sem desobedecer? Para fingir
que obedecemos, desobedeceremos àquele que nos deixou dito: "... sereis minhas
testemunhas..." (At 1,8)"
(Editorial de Permanência, no. 52)

"E não se diga que o clero e o laicato "progressista" quebraram a disciplina. É


pouco. Diga-se que quebraram uma coisa mais profunda e mais preciosa. De um
jovem que acha indispensável esbofetear a mãe para afirmar sua maioridade não
diríamos que quebra a disciplina. Antes diremos que quis quebrar tudo, céus e
terra, e só feriu a autoridade próxima por não ter à mão a Face de um Deus que se
encarnou para ser esbofeteado, cuspido e depois crucificado.

"Salta aos olhos do mais desatento habitante do século que o espetáculo da morte
da autoridade é sinal do desejo da morte de Deus. Andam por aí os padres que não
obedecem aos bispos, os bispos que não obedecem ao Papa, e enchem o mundo os
filhos que não obedecem aos pais.

"Mas não haveria crise de autoridade se o fenômeno se limitasse à desobediência


ou se a falha estivesse só do lado dos revoltosos. Não haveria a calamidade de
dimensões planetárias sem a outra metade do problema, isto é, sem a omissão dos
que deviam exercer e não exercem a autoridade, não apenas por fraqueza ou
covardia, mas por uma espécie de simpatia e conivência, ou por uma espécie de
descrença profunda."
(A Crise de Autoridade e o Democratismo, Permanência, junho de 1969)

OFÍCIOS
"Sempre que medito na variedade dos ofícios humanos sinto uma espécie de
vertigem, como se essa multiplicidade separasse e dividisse a espécie humana em
miríades de subespécies; e preciso agarrar-me à metafísica para lembrar que essa
pluralidade espantosa de habilidades prova a unidade do gênero humano no nível
da racionalidade. Somente poderia dominar os seres corpóreos com tal
universalidade um ser, embora corpóreo, animado por uma substância
ontologicamente superior à substâncias materiais. É a espiritualidade da nossa
alma que nos proporciona essa espantosa multiplicidade de ofícios. Mas essa
mesma capacidade que glorifica o homem tem seu lado de miséria, porque cada
ofício é uma gaiola onde o homem canta sua humanidade à custa da prisão que lhe
assegura o alpiste de cada dia, como dizia o Bilac de minha infância."
("A Profissão dos outros e a minha", in Conversa em Sol Menor)
"Dias há em que a gente fica triste com o ofício que tem. Imagino como não deve
ser enervante para as cozinheiras, nesses dias, a atmosfera das frituras e a
companhia das caçarolas; como não deve ser monótono para o ferreiro o gemido
das bigornas; como não deve ser triste, muito triste, o vai-e-vem da agulha na mão
picada da velha costureira. Cada ofício é uma prisão. Se a gente tem o espírito
largo dos santos, a prisão vira clausura de amor e torna-se recanto de paz; mas
onde falta a largueza de coração, o ofício é ofício, e a prisão é prisão: as coisas
ficam sendo o que são pelo bagaço. E o cárcere do ofício é duro, asfixiante,
enervante."
("Não matar", A Ordem, Novembro de 1953)

OTIMISMO
"De início quero registrar a chocante impro pried ade d essa mistura de confiança em Deus
com otimismo. O termo otimismo não tem lugar, a não ser em serviços muito subalternos, no
léxico cristão. É em nome da divina Esperança que repilo o otimismo, e que não posso ser
otimista diante do tal Homem Moderno. Esse termo foi inventado e posto em circulação para
designar uma espécie de bobagem muito humana, humana demais, e não para substituir os
termos com que há dois mil anos sabemos exprimir nossa confiança em Deus. "
(O GLOBO 11 de abril de 1974)

"Não se trata porém de pessimismo como me escreve um leitor querendo colocar


minha posição em termos de pessimismo ou otimismo. Em primeiro lugar, chamo a
atenção do leitor para uma esquisita contradição que esses termos produzem na
mente dos que os escrevem: o escritor que passou sua vida tomando posições,
combatendo sem tréguas poderá parecer realmente pessimista, no sentido vulgar
do termo, pelo simples fato de estar quase sempre em defesa de uma causa e
contra os adversários. Serão então otimistas, positivos, construtivos aqueles que
tudo aceitaram, tudo engoliram e só produzem atos reticentes?

"Neste caso prefiro ser pessimista e desde logo digo que, no caso atual da crise da
Igreja, não tenho a menor esperança humana. Só espero em Deus."
(Apelos e súplicas sem resposta, O Globo, 10/6/78)

OS DESESPERADOS
"Morto o Papa Pio X reorganizaram-se os inimigos da Igreja; e terminada a Guerra
Mundial I com a vitória de ninguém, surgiu no mundo um frenesi de viver que era
uma réplica nervosa ao frenesi de matar. E começa nosso pobre bravo século de
tantas invenções e de conquista da lua (!!!) a percorrer suas derrisórias oscilações
entre tempos de depressão e tempos de exaltação. Século ciclotímico. Já em 30
cansa-se o planeta de seu frenesi de viver e entra em crise de depressão que
atinge os alicerces econômicos. Logo depois surge nova forma de exaltação. Com
nostalgia da guerra, da camaradagem viril, da comunhão do perigo, surgem os
"ativistas desesperados" de Malraux que em lugar de sentido da vida, e de
doutrinas de verdade só procuram combates, sim, combates que por si mesmos
bastem para provar e sentir a coragem como um engajamento sem retorno, ou
para satisfazer aquele anseio de fraternidade viril, ou combate puro onde não se
quer mais do que desforrar-se da obscuridade da vida... Ativistas desesperados,
Malraux, Drieu La Rochelle, Brasillach. Exaltação, procura de heroísmo. Ou procura
desesperada de uma exaltação de ventura. "Une grande action quelconque...", "...
un mot: bonheur!".
[...]
E com a infiltração do marxismo nos meios católicos franceses, nas
revistas Sept, Esprit, Témoignages Chrétiens, Études etc., a heresia do século
cresce, incha, torna-se gigantesca, planetária. Agora não é a Razão que se ergue
contra a fé, não é a Ciência que julga a Igreja, agora o que reclamam da velha
Madre ineficiente é a sua incapacidade de fazer um mundo feliz. Já não é o valor-
verdade, para afirmar ou para negar, o que mais se discute, o que mais importa é o
valor-vital, é a felicidade, o bem-estar, o paraíso, já, aqui, agora, exigido pelos
tempos modernos, imperiosamente reclamado pelos impacientes credores de Deus!
Transforme-se a Igreja em eficiente instituição filantrópica, ou em divertido clube
de jovens, casem-se ou não se casem os padres, exista ou não exista outro mundo:
o que importa soberanamente é comer, beber e coroarmo-nos de rosas, porque
amanhã morreremos. Os credores de Deus protestam as sagradas escrituras e
penhoram a Casa de Deus. Faliu a Igreja dos santos, a Igreja que prometia uma
festa no céu como nas histórias de crianças: cabe agora ao homem libertado de tais
alienações a edificação de um novo mundo... E aqui temos o traço principal de todo
esse movimento de apostasias que, por eufemismo, chamam de progressismo; é a
heresia do século, ou melhor, o somatório, o compêndio, a concentração de todas
as heresias do século — com uma orientação dominante: contra a Esperança.
Sabemos, pelas especulações teológicas dos melhores doutores, que no ato de dar
as costas a Deus e de converter-se às criaturas, a primeira virtude mais
diretamente afligida é a da Esperança.

"Todo este vendaval de insânias, toda esta tormenta de blasfêmias, de sacrilégio,


de profanações que temos diante de nossos olhos — e para os quais contribuímos
com a tristeza de nossos pecados, mesmo quando combatemos com argumentos de
boa doutrina — todo esse emaranhado de malícia e de estupidez dos católicos que
se deixam enlear pelos mais brutais inimigos de todas as transcendências de nossa
sorte não é mais do que isto: um imenso e ensurdecedor gemido de desesperança.
"Os imbecis, que se guiam pelo ruído que as palavras fazem, dizem que os
progressistas têm confiança no homem e no mundo; dizem que os progressistas
são otimistas.

Não duvidamos que o sejam; mas sabemos que não há nada mais lúgubre do que o
otimismo dos desesperados."
(Editorial, Permanência no. 27, Dez de 1970)

"E ousando imitar o tom do grande papa santo, ouso eu dizer-vos, "aos amigos
católicos": bem sabeis qual é a grave e profunda causa desse desespero em que se
debate essa geração. Para cúmulo de seus males perderam a estrela que sempre,
de algum modo tinham como guia e como última esperança. Onde está ela? Onde a
Casa de Ouro que anunciava um Reino que não é deste mundo? Onde a luz
sobrenatural? Onde a tradição que de boca para ouvido, pelos séculos e séculos,
contava uma história de milagres que acabava na madrugada de um Deus
ressuscitado?"
(Um texto singular, O Globo, 3/9/77)

P
PASTORAL
"A Igreja é polêmica e freqüentemente dramatizante. Ainda se chama a Igreja na
terra de militante e não de dialogante. E quanto mais "pastoral" mais militante e
mais viril deve ser a atitude do homem de Igreja, seja ele leigo ou Papa. Porque
diacho terão descoberto sentido analgésico e soporífero ou lubrificante no termo
"pastoral"?

"Semanas atrás todos nós meditamos sobre a obra-prima divina, se assim podemos
dizer, que é o Evangelho do Bom Pastor. Nessa polêmica e dramática alegoria, em
três linhas encontramos:

1. O Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas.


2. O mercenário, que em vez de defender suas ovelhas, as aconselha a dialogar
com o lobo.
3. O lobo, que devora não sabemos quantos apóstatas por dia.

"Não vejo nesse Evangelho nenhum traço desse "pastoralismo" inventado


recentemente pelo qual o mercenário não é tão feio quanto se pinta e o próprio
lobo tem inegavelmente um lado positivo.

"No meu entender, "pastoral" continua a ser um termo enérgico, militante, que
lembra o Pastor que deu a vida por suas ovelhas, e que tem cor de sangue para
lembrar o sacrifício e o amor. Continuo a crer que a Igreja na terra continua
Militante, com a função de anematizar o erro por amor à Verdade e por amor aos
homens. [...]"
(Pastoral! O Globo, 27/4/78)

"Discutiu-se o problema do Concílio [Vaticano II] ser apenas pastoral; alguns mais
lúcidos chegaram a dizer que todos os concílios ecumênicos são necessariamente
pastorais. A esses mais lúcidos faltou todavia a coragem ou a lucidez para ir até o
fim da sentença. Todos os concílios ecumênicos foram pastorais, exceção feita do
Concílio Vaticano II, que foi "aberto", tolerante, pragmático - tudo o que quiserem -
menos pastoral [...]

"E agora, com o coração a estalar de dor, nós podemos, na presença de Deus que
não nos deixa mentir, perguntar que título merece este Concílio que no seu
encerramento deixou claramente entendido que seus três mil bispos, numa
opressiva e sufocante maioria, já não acreditam em lobos e na perdição das almas,
e que na sua última declaração sobre a Liberdade Religiosa, com o pretexto de
agradar aos homens, confirma os transviados no erro mortal, e acaricia o orgulho
dos que se julgam senhores de sua própria lei? Posso dizer que os bispos e o Papa
mostraram um ardente interesse pelos problemas temporais e uma estranha
simpatia pelos piores regimes muitas vezes condenados pela Igreja, mas não
mostraram o menor zelo pela cura das almas. Poderei, diante de Deus, deizer que
essa declaração sobre a Liberdade Religiosa, e mais as outras duas sobre a Igreja e
o Mundo e sobre o ecumenismo, demonstram que esse Concílio terá sido "pastoral"
entre aspas e piscadelas de olhos entre os evoluídos e mutacionados. Mas não no
sentido austero, severo, amoroso e terrível que a Igreja Católica sempre deu a esse
termo. Não foi pastoral no sentido dos Evangelhos e do Magistério. Mas se eles
próprios dizem que o Concílio só foi "pastoral" (aspas e piscadelas de olhos) então
nós só podemos concluir, aterrados, que esse Concílio autofágico não foi nada, ou
então que foi uma trama urdida pelo Diabo para a ruína e desmoralização de todos
os valores e todas as verdades da Santa Religião fundada por Nosso Senhor Jesus
Cristo"
(Pastoral? O Globo, 29/4/78)

PÁTRIA
"E não se diga que o sentimento pátrio nos separa da grande humanidade comum.
Acidentalmente acontecerá tal coisa, mas normalmente a diversidade de nações e
costumes melhor realça a unidade essencial do gênero humano. O homem está no
fluxo da história para manifestar, aos homens, aos anjos e a Deus todas as
virtualidades da essência humana; e para isto é boa a divisão que multiplica a
possibilidade de manifestações do mesmo universal louvor elevado a Deus. Cada
país, cada nação habilitada a se constituir em corpo político não existe só para o
bem-estar de seus cidadãos. Cada nação traz à história uma contribuição
civilizacional própria. Há nações mais importantes, como a França, cuja ausência na
história repugna até a fantasia. Poderá alguém imaginar a história desse mundo
sem a Inglaterra? Poderá um brasileiro sequer fantasiar a caricatura de um mundo
sem Portugal, sem Camões, sem Vasco da Gama? Poderá algum espírito anêmico
conceber um planeta Terra sem a flor da bela Itália ou da rubra Espanha? E
perdoem-me a inevitável omissão todas as pátrias irmãs que incluo na festa do dia
da pátria para lembrar que todas se devem umas às outras, sem quebra da ordem
que nos preceitua um dever mais próximo, mais direto e imediato em relação
àquela onde nascemos e para cuja glória devemos trazer nosso modesto tributo."
("A Vocação do Brasil" in Permanência no. 35, Agosto de 71)

PATRIOTISMO
"O patriotismo é uma virtude moral anexa da justiça. Como todas as virtudes
morais, tem a universalidade que não conhece fronteiras, mas deve exercer-se
concretamente no desejo e na promoção do bem comum de uma determinada
comunidade humana definida por fronteiras culturais, geográficas, lingüísticas e
históricas. O homem procura o bem sob o duplo ângulo do universal e do concreto.
Se a idéia de justiça manda que se dê a cada um o que lhe é devido, de um modo
geral, a virtude da justiça é inclinada ao exercício, ao particular, ao concreto, ao
próximo. (...) Sendo o patriotismo uma virtude moral, é claro que o sentimento
mais se dirige para os homens do que para as coisas. É mais uma forma de
fraternidade do que uma admiração pela bacia hidrográfica do Amazonas."
"O patriotismo é uma forma de reverência que tem apoio na tradição. É um
sentimento, raro hoje, de respeito pelos antepassados. É um modo peculiar,
racional e afetivo, de ver no chão de uma terra o sinal de pés antigos. É um modo
especial de adivinhar numa paisagem os sinais, os comoventes sinais de antigas
mãos. É um modo sem igual de simpatizar com dores passadas e de se alegrar com
passadas alegrias. É ter uma história comum, que vem de longe, cantada na
mesma língua e vivida no mesmo grande e permanente cenário."
(Patriotismo e Nacionalismo, in As Fronteiras da Técnica)

PAULO VI
"Se quiséssemos fazer um resumido inventário desse pontificado, teríamos de
começar evidentemente pelo Concílio Vaticano II e mais especialmente pela
Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual, o Decreto sobre o
ecumenismo, a Declaração sobre a liberdade religiosa e pelo discurso de
encerramento pronunciado pelo Sumo Pontífice.

"Em seguida mencionaríamos as reformar litúrgicas feitas "para acomodar a santa


liturgia" à mentalidade contemporânea, e mais especialmente o novo Ordo Missae,
e especialíssimamente o ponto 7 da Institutio Generalis do mesmo. Em seguida
lembraríamos a campanha desencadeada no mundo inteiro contra o IV
mandamento de Deus e a promoção do "jovem". Em seguida falaríamos sobre a
acintosa heterodoxia de vários autores sob a benevolente tolerância que
encontraram e que prova o desgoverno da Igreja. Mencionamos alguns pregadores
dessas novas e detestáveis doutrinas: Karl Rahner, Hans Kung, Ratzinger (elevado
ao cardinalato), J. B. Metz, Schillebeckx, Yves Congar, Gonzalez-Ruiz; e na América
Latina: Juan Segundo, Segundo Galileia, Gustavo Gutierez, e no Brasil, Leornado
Boff, Carlos Mesters e outros.

"A esses abusos e aos correlatos descasos pelo Depósito Sagrado,


acrescentaríamos os aberrantes produtos da nova pastoral catequética. De um
modo geral falaríamos na protestantização da Igreja e finalmente mencionaríamos
a "Ost-Politik" do Vaticano.

"Diante de todas essas aberrações, não hesitaríamos em dizer que o pontificado de


Paulo VI foi o mais tormentoso e desastroso de toda a história da Igreja.

"Como resultado global, temos hoje um cisma mais profundo e mais grave do que o
Grande Cisma do Ocidente ocorrido no século XIV. Com uma diferença: naquele
tempo os fiéis católicos estiveram hesistantes diante de duas obediências, e até
alguns grandes santos, como São Vicente Ferrer, enganavam-se de papa
(escolhendo Clemente VII em vez de Urbano II), MAS NÃO SE ENGANAVAM DE
IGREJA, que permanecia una, íntegra, nas duas obediências. Hoje, ao contrário,
temos duas Igrejas: a Igreja Católica, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, e
outra reformada, alterada, adulterada em favor de um humanismo sem dimensões
sobrenaturais, e ostensivamente apegado às coisas temporais, usque ad
contemptum Dei."
("O Pontificado de Paulo VI", revista Permanência Maio-Junho de 1978)

PEREIRA PASSOS
"Lembro-me agora das ressonâncias que tinha para nós, em casa, o nome do
grande engenheiro. Foi talvez ele que me plantou na alma o gosto da profissão, de
tanto ouvir falar em torno, com respeito e até veneração. Lembro-me de minha
mãe, num dia muito claro e muito antigo, a me explicar a obra daquele grande
homem que n´O Malhor eu via caricaturado ou fotografado ao lado do presidente
da República, que eu aprendi a desenhar assim: um círculo, dois círculos menores
no lugar dos óculos, e cinco fios de barbante paralelos.
("Rio Antigo" in Conversa em Sol Menor)

PLÍNIO SALGADO
"Sem conhecer os rudimentos da arte, tornou-se escritor e orador; sem conhecer a
doutrina que diz defender, tornou-se um exegeta; sem conhecer os elementos de
filosofia, tornou-se pensador. E ainda por cima, no arrojo de todos esses
empreendimentos não o ajuda a inteligência. Porque inteligente ele não é (...)

"Confiante em si, como a seu tipo convém, o encorajado pelas mesmericas


emanações de seu público, o sr. Plínio Salgado pretendeu ser uma voz poderosa, ou
melhor, um coro, uma orquestra viva, rica em timbres, com o registro de sociólogo
completando o do católico, e com o barítono do cientista armado em sabia fuga de
quatro compassos com o tenor do patriota.
"E desafinou. Provou, a quem tenha um par de ouvidos comuns, e não
simplesmente um par de orelhas, que não possui nenhuma daquelas vozes. "
("À Margem de um Discurso", A Ordem, Janeiro de 1947)

PRINCÍPIO DE IDENTIDADE
“Quando um juiz delibera, em vista de um volumoso processo, que um réu é
culpado, já pressupõe, com uma certa segurança, que o réu é ele mesmo. Por isso,
e para evitar que no mais brilhante dos debates seja condenada uma das
testemunhas, costuma-se indagar o nome, a idade, a residência, e verifica-se a
carteira com fotografia e impressão digital.”
(O Humorismo, A Ordem, agosto de 1942)

PROFESSOR
"Saí pela rua procurando alguém que entendesse uma coisa extraordinariamente,
assustadoramente simples: que a marcha da civilização chegará a um colapso no
dia em que ficar unanimemente estabelecido que um professor de
telecomunicações deve preocupar-se meticulosamente com o conhecimento de
coisas como o salário-família, o exercício findo, o encerramento do exercício etc.
etc. etc. Sempre imaginei que existissem Secretarias, e funcionários de Secretarias,
para notificar, avisar, telefonar e até para tornar a advertir e tornar a telefonar aos
professores distraídos. Agora vejo que eles existem para se divertirem com as
distrações dos professores. Ora, ou o professor é distraído, ou não é professor. Ou
se ocupa dos alunos e da matéria, confiando que dele se ocupem no que tange o
salário, as gratificações, os abonos e descontos, ou então tem de mudar cabeça e
coração e mudar de ofício. Não é propriamente o tempo que falta. Sobra-me tempo
para ouvir música, para conversar, para escrever artigos e para estudar muitas
coisas que não se relacionam com a matéria ensinada. O que falta não é pois
tempo; é disposição, é gosto, é alma, é boca. Será que não encontro em São Paulo
quem entenda uma coisa tão simples?"
("Um Professor em Apuros", in Conversa em Sol Menor)

PROGRESSISMO E PROGRESSISTAS
"Chamamos de progressismo não a procura do progresso, que é própria do homem,
mas a procura feita em direção errada e com critérios errados, e também a má
doutrina que tenta reduzir todas as várias linhas de progresso humano àquela que
se processa nos problemas da relação homem-mundo exterior e interior"
(Origens do progressismo, revista Permanência no. 19, Abril 1970)

"Os “progressistas” flagelam desembaraçosamente a Pessoa da Igreja, mas não


admitem que lhes pisem os purpurados calos do personnel, que são para eles mais
sagrados do que as cinco adoráveis chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo."
(Editorial Permanência, n°56, Ano VI, Junho de 1973.)

PROTESTANTISMO
"...o que nos choca na atitude protestante é o seu esquisito modo de estimar a
Bíblia. Nenhum de nós que escreve gostaria de sofrer o tratamento a que o
protestante submete o Espírito Santo. Nenhum de nós se alegra de ser livremente
interpretado; e podemos até dizer que o nosso mais acabrunhante sentimento vem
do elogio equivocado. André Gide disse uma vez a um admirador apressado que,
por favor, não o compreendesse tão facilmente. Pois bem, o Deus ciumento de sua
identidade, que martela em nossos ouvidos a sua terrível definição "Eu sou aquele
que sou", e que nos recomenda insistentemente que guardemos a doutrina, é
tratado como um acomodado personagem que nos dissesse com bonomia: Aqui
está a minha revelação, estejam a gosto, e façam dela o que quiserem."
("A Visibilidade da Igreja", A Ordem, Maio de 1951)

PSICOLOGISMO
"A racionalização do mistério da iniqüidade é uma iniqüidade. O mundo que não é
do Cristo, que não vive o mistério da Fé, perde também a consciência sobrenatural
do mal (...) os pagãos apóstatas dos tempos modernos reduzem toda a tragédia
humana a conflitos íntimos ou a problemas econômicos. Não há nenhuma tragédia,
mas mal entendidos; não existe ódio, mas ressentimentos e recalques. Os autores
contemporâneos, quando escrevem romances ou dramas, têm um imenso trabalho,
apelam para mil finuras, procuram o concurso de mil circunstâncias, antes de
consentirem na realidade brutal do ódio. Estão longe da grandeza de Shakespeare e
da clara simplicidade da Branca de Neve. A filha do rei Lear tinha ódio; a rainha
madrasta tinha ódio. É verdade que parece fácil explicar, até para uma criança, que
a razão daquele ódio era a inveja; mas é justamente a clareza desse motivo, ou
antes sua escuridão, que falta em nossa mentalidade apegada ao psicologismo dos
conflitos internos. A inveja não é um conflito psicológico, mas um pecado mortal,
uma ofensa dirigida para fora, atirada em cima da Suma Objetividade, através da
face do próximo."
("Vade Retro, Satana", in A Descoberta do Outro)

PSICOLOGIA INFANTIL
"'Se não fordes como as criancinhas não entrareis no reino dos Céus'. O mundo
moderno não quer ser como as criancinhas para as quais o tempo só existe como a
regra dum brinquedo e como a ordem duma féerie. Nunca houve tamanho
massacre de inocentes como neste tempo de muitos Herodes. O século que diz ter
entronizado a criança, que mais livros escreveu sobre testes, sobre psicologia
infantil, sobre doutrinas de aprendizagem, tiradas, aliás, de experiências feitas com
cachorros, na verdade, na verdade mesmo, odeia a criança."
(A Descoberta do Outro, pág. 158)

R
REMBRANDT
"Outros dez passos, e estamos diante de Rembrandt. Auto-retrato. Da juventude.
Mais tarde pintará outro auto-retrato, que está no Louvre, e que os entendidos
consideram obra mais perfeita. Vi-o, anos atrás, mas não tive a mesma forte
impressão, ou não fiz a mesma descoberta de ontem: Rembrandt é o Bach da
pintura (...) Quem será o Mozart da pintura?"
(Quadros em uma Exposição, in O Desconcerto do Mundo)

RIO ANTIGO
"A cidade era bela como as moças daquele tempo. Enquanto eram meninas
cantavam de roda e não havia bairro sem cantos infantis a marcar o anoitecer. As
meninas também brincavam com a boneca. Depois, quando acontecia nelas o
mistério da transformação, que nesse tempo era posto em surdina, a menina punha
vestidinhos compridos e virara flor à espera de quem descobrisse dentro da corola
uma sede de amor. As moças de meu tempo ficavam à janela, ou no portão,
cercadas de madressilvas. O namorado, olhava para ela de longe, muito tempo,
encostado num lampião com as pernas trançadas, a torcer o bigode que nascia.
Gestos, bigodes, lampião, calças, tudo passou. E como vento foi-se a suavidade e a
doçura de viver acreditando em almas de flor. A rua da Cidade ajudava a viver. O
transporte ajudava a respeitar. Quem nesse tempo ousava encostar de leve no
sagrado corpo da menina-moça? Vinha o mundo abaixo, e o bonde inteiro
ameaçava o audacioso, o perverso."
("Reminiscências", in Conversa em Sol Menor)

"O povo era mais bem vestido, e, sobretudo, a tenue, a posição do corpo era mais
ereta, mais briosa, mais desempenhada que a de hoje. Corra você mesmo, leitor,
seu álbum de avós e repare como eles eram mais altivos e verticais. E então? O
que foi que houve com os homens, com as cidades? O que foi que aconteceu?"
("Rio Antigo", in Conversa em Sol Menor)

RISOS
"O cômico, como Bergson tão bem assinalou, supõe o social, isto é, supõe a
possibilidade de imaginar um picadeiro para o personagem que se singulariza e
uma arquibancada para seus juízes, que pronunciam às gargalhadas o seu curioso
veredicto.

"Quem será então que se ri desse generalizado espetáculo que envolve três bilhões
de palhaços? Às vezes nós conseguimos a ilusão de um camarote confortável que
nos permita rir dos outros. Mas de onde vem esse eco, essa ressonância de um riso
muito mais poderoso do que o meu? Quem está aí? Quem está por aí, nessas
cadeiras vazias, a rir-se de mim?

"O mundo é um circo em que a arena e as arquibancadas são relativas. Três bilhões
de autores mal ensaiados passam a vida a divertir-se, cada um apontando no outro
o rabo de papel. Ou a trave no olho."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 92).

ROSÁRIO
"Uma das grandes crises de nosso tempo, especialmente dolorosa em meio
católico, é a crise moral que se traduz no amolecimento chamado “falta de caráter”
que parece ter-se tornado o novo caráter do homem mutacionado de nosso século.
"Ora, o melhor exercício espiritual para ganharmos a virilidade evanescente, para
recuperarmos a coragem e o vigor de amar o bem e detestar o mal é o de tomar
viva consciência de nossa linhagem sobrenatural, e das armas com que venceremos
o mundo sob o signo da cruz de Nosso Senhor, que “já venceu o mundo”. E entre
as armas do céu, especialmente eficazes contra os demônios que devastam as
almas, é oportuno lembrar o santo rosário, cuja festa instituída por São Pio V em
1571 em agradecimento pela vitória de Lepanto, hoje esquecida e desdenhada
pelos católicos que invocam a paz da carne e do sangue, por já não terem fibra e fé
para pelejarem pela paz de Cristo."
(Editorial, Permanência, no. 48, Out. 72)

ROUSSEAU, JEAN JACQUES


"O leitor de sã formação filosófica, ou de robusto bom senso, descobrirá logo que
Jean Jacques Rousseau, pretendendo arvorar a bandeira da santidade natural, da
bondade sem contágios, da pureza sem salpicos, na verdade professava horror à
natureza propriamente humana, valorizando a subnatureza, a sensibilidade em
detrimento dos valores espirituais."
(Dois Amores Duas Cidades, Ia parte III capítulo, "conjunção dos pares")

S
SÉCULO XX
"O que sou eu principalmente? O habitante do século XX não sabe responder a essa
pergunta, e conseqüentemente não sabe se deve andar ou parar, se deve sentar-se
para estudar, se deve deitar-se e deixar a vida correr, se deve virar de cabeça para
baixo como os palhaços, se deve cair de quatro como os imbecis, se deve erguer a
cabeça, ou se deve dobrar o joelho. O mundo em que vivemos é a projeção de
todas estas perplexidade dos "eus" que já não sabem o que são."
(A Crise de autoridade e o Democratismo, Permanência, junho de 1969 )

"Em nome de um otimismo confiante nos recursos humanos, na ida à Lua e nos
transplantes de corações logo rejeitados, em nome de um novo humanismo que
ousa dar o qualificativo de novo ao capricho inconstante dos homens, em nome do
nada e da vaidade das vaidades, perseguição de vento, o caudal de erros se
alargou neste estuário de disparates que inunda o mundo e produz na Igreja
devastações incalculáveis. Que nome daremos ao mal deste século?

"Este: DESESPERANÇA.

"Ei-lo, o mal de nosso tormentoso e turbulento século que ousou horizontalizar as


promessas de Deus transformadas em promessas humanas. Que ousou tentar a
secularização do Reino de Deus que não é deste mundo. Ei-los os escavadores do
nada a construir em baixo-relevo, en creux, a nova torre de Babel. Esperantes às
avessas, eles querem fazer revoluções niilistas, querem voltar ao zero, querem
destruir, querem contestar, rejeitar, querem niilizar. E se chamam "progressistas".

"No século anterior as agressões e traições convergiram contra a Fé, como se viu
na crise modernista que São Pio X represou. Tremo de pensar que o próximo século
será o do desamor. Perguntando ao mar, às árvores, ao vento, o que querem esses
homens que se agitam e meditam coisas vãs, parece-me ouvir uma resposta de
pesadelo. Eles querem produzir uma sinarquia, uma espécie de unanimidade, uma
espécie terrível de paz e bem-estar. Qual?

"Querem chegar ao PECADO TERMINAL.

(...)

"Que fazer? Lutar. Combater. Clamar. Guerrear. Mas lutar sabendo que lutamos
não somente contra a carne e o mundo, mas contra o principado das trevas. É
preciso gritar por cima dos telhados que, se o cristianismo se diluir, se a Igreja
tiver ainda menos visível o ouro de sua santa visibilidade, se seu brilho se empanar
pela estupidez e pela perversidade de seus levitas, o mundo se tornará por um
milênio espantosamente, inacreditavelmente, inimaginavelmente estúpido e cruel.

"Roguemos pois a Deus, com todas as forças; desfaçamo-nos em lágrimas de rogo


e gritemos a súplica que nos estala o coração: enviai-nos, Senhor, ainda neste
século, um reforço de grandes santos, de grandes soldados que queiram dar a vida,
no sangue ou na mortificação de cada dia, pela honra e glória de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Compadecei-vos, Senhor, de nossa extrema miséria, e sacudi os
homens para que eles saibam quem é o Senhor!

"É preciso lutar; e sobretudo não desanimar quando nos disserem que o inimigo
cerca a Cidade de Deus com cavalos e carros de combate. Ouçamos Eliseu: "Não
tenhais medo porque os que estão conosco são muito mais fortes do que os que
estão contra nós". E elevando a voz Eliseu exclamou: "Senhor, abri-lhes os olhos
para que eles vejam. E abrindo-lhes os olhos o Senhor, eles viram, em torno de
Eliseu, a montanha coberta com cavalos de guerra e carros de fogo". (II Reis,
VI,16)
(O Século do Nada, Conclusão)

SINCERIDADE
"Uma das mais monstruosas deformações de nosso tempo é a que faz da
SINCERIDADE a suprema virtude. Ora, a sinceridade não chega a ser uma virtude;
é necessária mas não é bastante para a integridade do ato moral.
Será, materialiter, uma meia-virtude.

"Se definirmos a sinceridade como uma concordância entre a consciência e o ato


exterior, ação ou palavra, podemos facilmente mostrar que os grandes celerados da
humanidade foram sinceros. Hitler, por exemplo, foi um modelo de sinceridade e de
autenticidade. Durante a guerra, evidentemente, teve de mentir e enganar o
inimigo; mas antes da guerra disse em palavras dispersas, e no livro que imprimiu,
tudo o que contava fazer, e que fez.

"Raskolnikoff foi levado a assassinar uma velha por um ditame da sinceridade.


Convenceu-se a si mesmo de que sua vida era um bem infinitamente superior ao
da vida de uma pobre velha, e com este sistema instalado e transformado em
instância última de sua consciência, concluiu que podia matar a velha rica e
usurária.

"A sinceridade só será boa se vier acompanhada da clara notícia de que precisa um
complemento. Normalmente, a consciência é a regra próxima do agir humano, e,
portanto, sua consulta é boa e necessária. Mas não é o bastante. É preciso que a
consciência se reconheça incompleta e dependente, e obrigada a procurar sempre a
regra exterior que vem de Deus, ou pela revelação, para a vida sobrenatural, ou
pela experiência humana, e pelos ensinamentos da Igreja, para a lei natural.

"A consciência moral que não sabe e não sente que está obrigada a uma regra
exterior, ou que julga ter atingido sua plenitude quando prescinde dessa regra e se
basta, na verdade atingiu o ponto mais baixo da humana monstrificação. Quando o
homem quer ser sua própria lei e seu próprio Deus, só consegue aproximar-se dos
modelos atrás citados."
(Editorial da revista Permanência n° 7, abril de 1969, Ano II)

T
TOLERÂNCIA
"A grande doença de nossa época, e principalmente de nosso país, é a da
insensibilidade moral travestida em bondade. Todos toleram tudo, e depois se
espantam com o antinômico resultado dos vagões de gases."
(Pode-se transigir em religião?, A Ordem, Fevereiro de 1954)

"Ah! essa caridade assim definida, eu a vomito! A que aprendi, e tão mal sirvo, soa
como bronze e queima como fogo. É paciente, sem dúvida, conforme diz o
apóstolo, mas é paciente quando está em jogo o seu próprio interesse, e
impetuosa, terrível, colérica, quando vê a injustiça triunfar, quando vê nos postos
de mando os que deviam estar na cadeia, quando vê o bem comum mal servido,
quando vê o pobre humilhado, o inocente ferido, e sobretudo, sobretudo! quando
vê o culpado engrandecido."
(Caridade e caridade, in Dez Anos)

"Há inúmeras situações humanas em que a solução acertada é um meio termo.


Assim acontece quando, por exemplo, queremos regular o uso dos bens materiais;
e assim também acontece quando devemos navegar entre escolhos. Seria,
entretanto um erro gravíssimo supor que a boa solução está sempre no meio termo
ou na bissetriz. Costuma-se hoje criticar, apostrofar as pessoas que em certas
situações de dilema tomam posições extremadas ou radicais. Há também inúmeros
casos em que o acerto está num extremo e não no meio. A integridade e a
totalidade da Fé estão nesse caso.

"A Fé divina constituirá para nós a mais bela e adamantina intolerância; ou a maior
das exigências feitas aos homens. Seria insustentável se Deus mesmo, para tanto,
não nos desse a força interna, a virtude teologal, visão obscura, mas certa,
semente de vida eterna, mas já eternidade diante de Deus. E para nós é
especialmente grato lembrarmo-nos de que aparelho, de que obra, nos vêm essa
energia espiritual — a Cruz de nosso Salvador."
(Curso de Religião, Cadernos Permanência, 1979)

"A propósito de maus e bons mosteiros, escreveu assim o abade de Solesmes: "Um
mau mosteiro não é aquele em que os monges cometem muitas faltas; é aquele
em que as faltas não são punidas". E eu creio firmemente que o próprio São Bento
não diria melhor. Realmente, onde alguns monges cometem muitas faltas pode-se
dizer que existem diversos maus monges; mas onde essas faltas não tem
conseqüências, são todos que se tornaram maus, sim, maus por indiferença à linha
divisória entre o bem e o mal, maus por negação da ordem moral, e sobretudo
maus por indiferença ao mal que causa o mal praticado impunemente.

"Ora, esse princípio elementar, essa decorrência imediata da Caridade, ou essa


exigência primeira da lei moral, não somente está em desuso como também em
descrédito. Ninguém corrige, ninguém pune. Nas famílias, nas dioceses, nas
universidades, na sociedade civil (...) E quando se esboça um pequeno movimento
de reação e de virilidade, surgem logo os bons moços a gritar contra o "terrorismo
cultural", ainda que reconheçam, como Tristão de Ataíde, que se trata de um
"terrorismo suave".

"Depois, o bom moço recebe abraços dos patifes, é elogiadíssimo pelos corruptos,
recebe telegrama dos apóstatas, e cartas efusivas dos blasfemos. E o bom moço
fica contente consigo mesmo e com o mundo, porque a forma mais alta da caridade
é a tolerância, como me escreve um imbecil, ou algum interessado em pensão de
moças."
(Impunidades, O Globo, 16/09/65)

“É impossível, no convívio dos homens, sempre dizer sim e nunca dizer não. Há
situações em que o sim é a expressão triste de um grande egoísmo e o não, a forte
manifestação de ardente amor. A caridade nem sempre agrada e a prudência só é
autêntica se aliada à força. Se em casa os pais não sabem dizer não ao filho e à
filha desde a terna infância, mais tarde certamente irão dizer a eles vítimas do
tóxico e do amor-livre um sim entristecido.”
(Editorial Permanência)

"Reconheço que usei expressões que a muitos parecerão excessivas e que corri os
inevitáveis riscos de quem escreve com amor. Mas ainda não consegui encontrar
um tom avaselinado quando vejo o incêndio lavrar na Cidade de Deus, e quando
está em jogo o Sangue de nosso Salvador."
(Cavalos, Avestruzes e Cães Cegos, O Globo, 5 de Março de 1970)

TRABALHO
"Uma errônea filosofia, em reação a outra não menos errônea, afirma em nossos
dias o "primado do trabalho", não apenas no contrato de trabalho entre os
operários e empregadores, mas em todas as situações da vida, como se o homem
tivesse nascido para trabalhar, e viva para trabalhar em vez de trabalhar para viver
como diz o bom-senso e a reta filosofia [...] É fácil compreender que estaremos
irremediavelmente perdidos, como pessoas, se concedermos esse primado do
trabalho pelo qual seríamos essencialmente, antes de mais nada, um animal
produtor. Não [...] o homem trabalhar "para"... descansar "para"... para o quê?
Para ser dono de si mesmo, fazer o que lhe agrada, amar, meditar, rezar e tudo o
mais que não é "trabalho" nem "lazer", que não é divertimento nem descanso, mas
plenitude de vida, ainda que a manifestação seja a mais humilde.

"[...] E é para isto que existem as refinarias de petróleo, as usinas siderúrgicas, os


computadores eletrônicos, mesmo porque, se não tiverem esta serventia, não terão
nenhuma."
(A Volta para Casa, 23/08/64)

V
VATICANO II
"SANTO DEUS! Esses mesmos autores de tal otimismo que tanto lisonjeiam o
mundo e tantas vezes disseram quere acomodar as coisas da Igreja às exigências
da mentalidade contemporânea, ao que parece, não se detiveram a bem observar o
testemunho que ele — este bravo novo mundo — dá de si mesmo. Sim, depois de
todas as conquistas da ciência e as mais inebriantes experiências de todas as
liberdades, e de todas as perversidades, o espetáculo que vemos é o do planisfério
de um imenso desespero.

"Está nas caras, nos braços caídos. Nas pernas moles. Nos cabelos sujos e
emaranhados. Nos olhos alucinantes. E está nos fatos, nos atos, nos costumes. Nos
divórcios fáceis. No aborto legal. Na procura das evasões pelos psicotrópicos que
são uma espécie de suicídio à prestação. As famílias se decompõem, a
intemperança cresce dia a dia, prendendo os homens às coisas de barro e à
coisinhas que inventaram. E por cima deste mundo de liberdade em decomposição,
uma atmosfera de impostura feita pela primeira vez na história por uma
"civilização" que, como principal exigência, quer a negação de Deus. Ora, Santo
Deus! Diante de tal quadro vemos três mil bispos a aplaudir, a sorrir, a encorajar:
estejam à vontade, cada um é senhor de sua sorte, estejam a gosto..."
(Um texto singular, O Globo, 3/9/77, sobre a GAUDIUM ET SPES)

VIDA CATÓLICA
Há no mundo uma coisa que poderíamos chamar de tom ou timbre católico: é uma
voz que todos conhecemos, e cujo timbre se estende da súplica do mendigo à
homilia do bispo. É um acento; um timbre; uma colocação; um sotaque que poucos
anos de prática gravam de um modo inconfundível. É um modo de falar que sai
naturalmente de um modo de pensar, e que se aprende em pouco tempo porque é
o modo próprio e normal para essa raça de homens tocados pelo batismo."
("À Margem de um Discurso", A Ordem, Janeiro de 1947)

"O cristão é um espinho fincado à força no mundo. É um soldado do Cristo, do


Senhor, do Imperador, portador da Sua cultura, autêntico representante onde quer
que esteja, vivendo humilde e vitorioso, entre as formidáveis pressões do mundo e
de Deus, na exinanição e na exaltação, defrontando todas as ondas com um ato
positivo.

"É um mendigo (ele apregoa isso), um decepcionado em cada hora (ele bem o
sabe); mas é um mendigo, um decepcionado que recebe cada dia o corpo de
Deus."
(Decepções, editorial, A Ordem, Maio de 1942)

VIAGENS
"Disse atrás que Pascal explica a maior parte das viagens pelo desejo de buscar
assunto e alimento para a vaidade. Viaja-se para obter um diploma, como o de
bacharel; ou para aumentar o reservatório de temas. Viaja-se para voltar com
carimbos na mala, e com vulcões na memória. Posso imaginar o aventureiro
retilíneo que faça exceção, mas não duvido que o caso geral seja este de quem
parte para voltar, para trazer a personalidade engrossada.

"Mas essa mesma idéia, como tudo que é do homem, tem duas faces. Acho
belíssima essa voracidade do homem, e essa capacidade de trazer para casa, para
a sala-de-estar, sob as espécies do assunto, as guerras, os terremotos e os
ciclones. Por outro lado, porém, acho lúgubre essa avidez de engrossar por fora a
ganga do eu, numa capitulação da maior das aventuras, que é a conquista de si
mesmo, a descoberta de sua própria alma. Há duas iluminações na face de um
Marco Polo: de um lado o brilho ensolarado da boa aventura; de outro a verde
lividez do homem que foge de si mesmo."
(Lições de Abismo, 15a. edição, Agir, pág. 190)

VISIBILIDADE DA IGREJA
"Ao contrário do que diziam os autores super-espirituais que chegaram a perturbar
a grande Teresa d'Ávila, e que pretendiam ver na Ascensão de Cristo, e na descida
do Espírito, uma manobra de Deus para nos livrar da visibilidade do seu Corpo, nós
podemos dizer sem receio que Nosso Senhor se tornou ainda mais visível no seu
Corpo Místico espalhado pelo mundo. A Igreja é de fato o alastramento universal do
Salvador. O sangue derramado é agora estendido, e tinge o mundo inteiro numa
prodigiosa iluminura. E a Igreja cresce, como cresce o dia, de "claridade em
claridade".
("A Visibilidade da Igreja", A Ordem, Maio de 1951)

VOTO OBRIGATÓRIO
"Já que resolvemos abordar este desagradável assunto, é melhor que fique dito
tudo que nos pesa. Voltemos pois à expressão "votar disciplinadamente". Em nossa
opinião, essa fórmula é obscena [...]

"O voto é um ato (um ato moral) com que o cidadão exprime sua livre escolha para
o governo da cidade. Faz parte da essência do voto, portanto, a sua liberdade, não
sendo possível, disciplinadamente, namorar, casar, passear, entrar para um
convento, amar os filhos, venerar os santos e adorar a Deus.

"Em compensação, é possível prevaricar disciplinadamente. Prevaricar aos sábados.


Prevaricar com método. Porque nesses atos, em que a matéria submete o espírito,
a férrea disciplina pode entrar tão bem como numa férrea ajustagem mecânica.

"Há evidentemente, uma louvabilíssima disciplina, se por tal entendermos o


cumprimento de certas regras da vida comum, como encolher as pernas no bonde,
não soltar urros no cinema e não cuspir dos sobrados. Neste caso é possível votar
disciplinadamente: trata-se então de chegar cedo ao posto, com seus papéis em
ordem, de não ficar meia hora dentro da cabine indevassável e de não entreter com
algum mesário conhecido uma inoportuna conversação sobre o calor ou o preço dos
gêneros. A esse conjunto de pequenas e preciosas virtudes, filhas da justiça,
chamaremos de boa educação e respeito; mas não temos grande relutância em
aceitar a denominação de disciplina, se quiserem.

"O que relutamos em aceitar é que, disfarçada com o mesmo nome, a disciplina
tente penetrar no íntimo dos atos que só valem quando são livres. Um destes é o
voto. Voto é voto. É opção; é escolha; é, enfim, um desses atos em que o homem
mais fortemente, e com todo agrado de Deus, imprime a marca de seu espírito.

"A muitos parecerá que a escolha de um senador seja mesquinha ou ridícula,


comparada à escolha de uma esposa, de uma ordem monástica, ou de um Papa.
Atrevemo-nos a fazer um paralelo entre todas as eleições, afirmando uma grande
piedade por esse desdenhado campo dos atos humanos que estão pedindo
santificação. Não achamos a política ridícula e mesquinha senão na medida dos
seus erros; como não achamos ridícula a fidelidade e respeito de um esposo por
uma pobre mulher que tenha perdido seus encantos; como não achamos ridícula a
vigília à cabeceira de um doente; como não achamos indigno do Evangelho e da
solicitude cristã nenhum ato humano que seja tentado na linha da justiça.

"O voto, por definição, não pode ser disciplinado. Quem receia tão nervosamente o
clima da liberdade, ou não observou que todas as modernas formas da tirania
apregoam a disciplina; ou então deseja a disciplina precisamente porque deseja a
tirania. Deseja uma tirania que lhe seja favorável, e que neutralize e destrua a
tirania que lhe é desvantajosa.
"Por isso, deveria ser lançado à execração pública quem jamais se atrevesse a
pronunciar essa enormidade: votar disciplinadamente. Quem agita essa bandeira
não crê no voto; não crê na política de fundamento moral; não crê em senado,
deputado e vereador; não crê em democracia; não crê no direito natural, no direito
das gentes, nas raízes do direito positivo; não crê na justiça; não crê,
simplesmente, na justiça."
(Editorial de A Ordem, março de 1947)

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