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Editora Quartier Latin do Brasil

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A na Elisa L iberatore S ilva B echara
Uvre-Docente em D ireito Penalpela USP
Doutora em Direito Penalpela USP
Professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP
Professora de Pós-Graduação na Universidade de Salamanca

B em J urídico -P enal

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, verão de 2014
A na Elisa Liberatore Silva Bechara - 31

i. i. Estado , S ociedade e D ireito


O Direito serve à sociedade, disciplinando a convivência humana em um
contexto específico, e, justamente por isso, reflete uma determinada ordem
axiológica e as prioridades de tal convivência. Antes disso, a existência de diversas
conformações sociais condiciona também a existência de diferentes modelos de
Estado, influindo diretamente no conteúdo das expectativas de comportamento
que vão orientar, por sua vez, o estabelecimento dos instrumentos formais de
controle social10.*A adoção de determinada opção político-social orienta, assim,
de modo direto o conjunto normativo correspondente, impedindo que se possa
afirmar aprioristicamente a existência de ordenamentos jurídicos valorados em
si mesmos corretos ou incorretos, mas sim de ordenamentos mais ou menos
coerentes com o modelo político-social ao qual se relacionam. Qualquer
reflexão sobre um ordenamento jurídico determinado deve, portanto, partir
do pressuposto do modelo de Estado no qual este se insere.
Ao tratar especificamente do Direito Penal, observa-se que sua relação
com a sociedade sempre foi ambígua, exprimindo uma tensão antínômica
derivada da própria essência da sanção penal, que atinge direitos fundamentais
do indivíduo, inclusive, em último caso, sua liberdade. D e outro lado, o sistema
penal exerce também uma função de proteção dos direitos fundamentais por
meio da incriminação de comportamentos, no contexto de um movimento
duplo de afirmação positiva de valores e atribuição de sentido delitivo à sua
transgressão ’1, tudo com o fim último de resguardar a segurança da convivência
social. A busca do ponto de equilíbrio entre os diversos interesses envolvidos
revela-se, assim, uma das mais sérias dificuldades no estabelecimento do
conteúdo e da legitimidade da intervenção jurídico-penal, estando,justamente
por isso, sempre sujeita à revisão.
N a verdade, a discussão sobre a contraposição entre sistema penal,
segurança social e direitos individuais e, portanto, sobre os próprios limites do
Direito Penal não é nova, podendo-se encontrar diversos exemplos concretos de
modelos de intervenção que se afastaram do paradigma liberal e, pretensamente
sustentados por uma ideologia de manutenção da ordem pública, levaram à

io No mesmo sentido, afirmando a subordinação do conteúdo das elaborações jurídicas a um


determinado modelo de sociedade no qual estas se inserem e ao qual servem, v. Z1PF, Heinz.
Introducciónalapolítica criminal.Trad. Miguel Izquierdo Macias-Pícavea. Madrid: Editorial Revista
de Derecho Privado, 1979, p. 29;S£RRANO-P!ED£CASASFERNÁNDEZ, José Ramon. Conodmiento
científico y fundamentos dei derecho penai. Anotaciones de derecho penal peruano de Díno
Carlos Caro Co ria. Lima: Horizonte, 1999, pp. 5-6; e CAMARGO, Antonio Lu is Chaves. Sistema
de penas, dogmática jurídico-pertai e política criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2 002, p, 35.
32 - Bem Jurídico -Penal

segregação autoritária de determinados grupos sociais12. Esse movimento


pendular entre autoritarismo e humanismo15 sempre esteve presente na história
do Direito Penal, obrigando a uma reflexão sobre seus fundamentos14.
A partir da constatação de que o Direito Penal reflete a orientação
filosófico-jurídica e a ideologia política vigentes em momentos históricos
distintos, relacionadas com a forma de Estado adotada na organização social,
de um lado, e da relação antinômica entre o indivíduo e o Estado detentor
do iuspuniendi, de outro, a análise de qualquer modelo de intervenção penal
remete necessariamente ao estudo de duas das construções jurídico-políticas
mais relevantes na tradição cultural ocidental: o Estado de Direito e os direitos
fundamentais, entre os quais existe um estreito vínculo de interdependência
funcional. Afirma-se, então, que o modelo de Estado de Direito evoluiu na
medida em que se reconheceram novas categorias de direitos13, concluindo-se
que a transformação de um tipo a outro de Estado atende a uma mudança de
suas próprias funções e obrigações16. E tais obrigações e objetivos perseguidos
pelo Estado levam à adoção de mecanismos de controle determinados para
sua concretização, avaliando-se, nesse sentido, inclusive a necessidade social
da intervenção penal.
Proibir, por meio da imposição de pena, constitui, assim,um fato político,
vale dizer, um meio público para a compreensão normativa acerca dos interesses
sociais fundamentais, bem como da fronteira das liberdades individuais17.
Todo Direito Penal materializa, portanto, uma determinada política criminal,
que depende por sua vez dos princípios de organização política próprios do
Estado a que corresponde. Dessa forma, a natureza do Estado determina não
apenas a finalidade perseguida pela sanção penal, como também, no âmbito

í2 Nesse sentido, v. ZÚNIGA RODRIGUEZ, Laura. Viejasy nuevas tendências poîiticocrîminalesen ias
legislado nés penaies. In: BERDUGO GÔMEZ DE LA TORRE, Ignacio; SANZ MULAS, Nieves (Coord.).
Derecho penal de la democracia vs seguridad pública. Granada: Comares, 2005, p. 102.
U Binômio denominado por Luigi FERRAJOLI de "Direito Penal mínimo" e "Direito Penal máximo".
Derecho y razón. Teoria dei garantismo penai. Trad. Perfect© Andrés ibánez, A. Ruiz Miguei, J.C.
BayónMohinoJ. Terradilios Basoco, R. Cantarero Sandres. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001, pp. 103 ess..
14 Cf. BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Direitos humanos e direito penal: limites da intervenção
penal racional no estado democrático de direito. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BOTTÍNI, Pierpaoio;
PACELI.Î, Eugênio. (Org.j. Direito penal contemporâneo: questões controvertidas. S lo Paulo:
Saraiva, 2010.
15 Assim, por exemplo, explica-se a passagem do Estado Liberal ao Estado Social, como consequência
da luta pelos denominados direitos sociais.
16 Cf. MARTÍNEZ DE PlSÓN, josé. Tolerância y derechos fundam entales en las sociedades
multi culturales. Madrid: Tecnos, 2001, pp. 131-132.
17 No mesmo sentido, v, 1HAS5EMER, Winfried. La autocomprensióndefa ciencia del derecho penal
U ,t „ , ! .,( f!o ‘Io n ™ In - P C P f? A l h î n - H A C i F ,V I P P W in fr ie d R M P tC H A R D T R ir t r n
A na Eusa Useratore Silva Bechara - 33

da busca de efeitos preventivos, condiciona quais são as condutas que se quer


evitar e a racionalidade na utilização dos meios de intervenção penal para esse
E se a reflexão sobre a legitimidade do Direito Penal só pode derivar
do reconhecimento de sua vinculação axiológica com a função política do
Estado, a análise da evolução e da concepção atual deste último como Estado
Democrático de Direito1819 converte-se, sob o ponto de vista metodológico, no
suporte valorativo dos pilares sobre os quais gravita a análise de todo o sistema
teleológico de intervenção jurídico-penal, bem como de seus limites.

1.2. D a Evolução dos M odelos de Estado de D ireito e


S ua ínfluência sobre o D ireito P enal
Em geral, pode-se reconhecer a origem da essência do Estado de Direito
na distinção platônica entre governo de homens e governo de leis20, para indicar
as características de um modelo sociopolítico no âmbito do qual as atividades
estão legitimadas normativamente, de forma a garantir a esfera inviolável da
liberdade dos cidadãos. Nesse contexto, o Direito, como regra abstrata, repre­
senta ao mesmo tempo meio de delimitação impessoal do poder e de autono­
mia dos cidadãos. A fórmula de Estado de Direito como “Estado submetido
ao Direito” é, porém, ambígua, possuindo significados distintos quando em­
pregada, por exemplo, em sentido liberal clássico ou no do socialismo demo­
crático21. O exame do conceito de Estado de Direito revela, assim, marcada

18 Cf. MIR PUIG, Santiago. Constitueión, derecho pena! y giobalización. In: MÍR PUiC, Santiago;
CORCOY B1DASOLO, Mirentxu (Dir.). Política criminal y reforma penal. Madrid: Edisofer, 2007,
p. 04. Dessa forma, o conceito e a função do Direito Penai repercutirão na própria concepção do
tipo de injusto. Cf. BERDUGO GÕMEZ DE IA TORRE, ignacio. Ei delito de lesiones. Salamanca:
Ediciones Universidad de Salamanca, 1982, pp. 36-37.
19 Conforme estabelece, no caso brasileiro, o art, i° da Constituição federal de 1988.
20 Nesse sentido, vide a clássica obra A república, de Platão. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo; Nova
Cultural, 1999.
21 Cf. MARTÍNEZ DE PISÓN, José. Tolerância y derechos fundamentales, c.it. p. 135. Assim, sob a
perspectiva liberal, 0 Estado de Direito não significa meramente 0 império da lei (a sujeição ao
princípio da legalidade), e sím que as leis devem ser inspiradas na defesa da liberdade individual,
em um âmbito estatal cujas funções são muito limitadas à lesão de referidas liberdades por
terceiros. De outro lado, no contexto de uma concepção representativa do socialismo democrático,
na estei ra de El ias DÍAZ, "designar como Estado de Derecho o todo Estado por eí simple hecho de que
se sirve de un sistema normativo jurídico constituye una imprecisión conceptualy real que solo lleva - o
veces intencionadamente ~al confusionismo. (,..)El Estado de Derecho, como Estado con poder regulado
y limitado poria ley, se contrapone a cualquierformo de Estado absoluto y totalitário. (...) Los ideas de
coniroljurídica, deregulaüôn desde cl Derecho dela aaividad estatal. delimitoción deipoder dei Estado
p or ei sometimiento a la ley, aparecen, pues, como centrales en ei concepto de! Estado de Derecho en
relodón siempre con elrespeto al hombre, a la persona humana y a sus derechosfundamentales. DÍAZ,
Flínc FctaHo He Horor-Lir» v enrioHaH democrática, reimoressão. Madrid: Ta urus, 1086. DD. 17-18.
34 ~Bem Jurídico-Penal

complexidade, na medida em que nele $e inserem posições discrepantes e, não


raras vezes, antitéticas22, não sendo possível estabelecer uma doutrina neutra a
valorações político- ideológicas23.
Recorda-se, nesse sentido, que o Estado moderno nasceu historicamen­
te como Estado de Direito muito antes de assumir um caráter democrático.
De fato, o Estado de Direito surge limitado por proibições, sem vincular-
-$e inicialmente a obrigações. Observa-se, assim, que o núcleo essencial das pri­
meiras cartas fundamentais - desde a Magna Carta inglesa e as Declarações de
Direitos do século XV III até os estatutos e as Constituições do século X IX —
é formado por regras sobre os limites do poder, e não sobre sua fonte ou suas
formas de exercício. Também sob a perspectiva axiológica, a limitação jurídi­
ca do poder precede à sua fundamentação democrático-representativa. Nesse
aspecto, o Estado de Direito, entendido como sistema de limites substanciais
imposto legalmente aos poderes públicos, contrapõe-se ao Estado Absoluto
na medida em que garante formalmente os direitos individuais como condi­
ção indispensável da convivência social pacífica e da própria legitimidade do
Estado, conforme o pensamento jusnaturalista e contratualista da Ilustração24.

22 Acerca dos múltiplos conceitos de "Estado de Direito", afirma Lttigi FERRAJQLi que “‘Eslodo de
derecho 'es uno de esos conceptos om pliosy genéricos que tienen múltiplesy variadas ascendências en
ia historia dei pem amiento político: lo idea, que se remonta a Plotón y a Aristóteles, dei ‘g obierno de
las íeyes' contrapuesto o! 'gobierno de (os bombres', lo doctrina medieva! deifundamento jurídico de la
soberania, ei pensamiento político liberai sobre los limites de la actividad dei estadoy sobre ei estado
mínimo, la doctrina íusnaturalisla dei respeto de las libertodesfundamentales p or parte dei derecho
positivo, cl constitucionalismo inglês y norteamericano, la tesis de la separadon de poderes, la teoria
jurídica de! estado elaborada por la ciência alemona dei derecho público dei siglo posado ydespués
por el normativisma kelseniano." Derecho y razón, cit., pp. 855-856. Nesse sentido, há, inclusive,
inúmeras concepções denominadas por José Afonso daSU VAcom o deformadoras do conceito
de F.stado de Direito, haja vista que, “conforme Cari Scbmitt, a expressão 'Estado de Direito'pode ter
tantos significados distintos como a própria palavra 'Direita'e designar tantas organizações quanto as
que se aplica 0 palavra 'Estado'. SilVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22.
ed. São Paulo; Malheiros, 2003, p. 03. Como exemplo de concepção deformadora do conceito
de Estado de Direito, v. o entendimento de Hans KELSEN, para quem Estado e ordem jurídica se
confundem, chegando-se a uma idéia de Estado formai de Direito ou Estado iegal, sem qualquer
preocupação com a realidade poíítíco-econômica ou com os valores sociais. Cf. KELSEN, Hans.
Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. João Baptisía Machado. Coimbra; Arménio Amado Editora,
1984, pp-38sess.
23 Nesse sentido, v. BARATTA, Alessandra. Ei estado de derecho. Historia dei conceptoy probiemática
actua!. Revista Sistema, n° 17-18,1977, pp. 12-13,
24 Cf. EERRAJOL.l, l.uigi. Derecho y razón, cit., p. 859. Toma-se, aqui, a Ilustração ou liuminismo em
seu sentido gerai, admitindo-se, todavia, que não é possível reduzí-lo a um movimento filosófico
unitário ou a uma construção filosófica sistemática. Cf. CATTANEO, rMario A. lium inism o e
iegisiadone, Milano: Ediaionidi Comunità, 1966, introdução (p. og). Para o estudo dos movimentos
Muministas francês, italiano, ingiês e alemão, v., na mesma obra, pp. 13-98, No mesmo sentido,
adverte José de Faria COSTA que “0 liuminismo, coma todos os outros 'ismos', teve, não obstante a
matriz comum, diversas tonalidades e apresentou características bem diferenciadas conforme desde
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A partir do modelo político do contrato social, que, materializado em


pacto constitucional, deixa de representar uma hipótese político-filosófica para
converter-se em um conjunto de normas positivas a obrigar entre si o Estado
e o cidadão, a transformação do Estado absoluto em Estado de Direito reflete,
nas palavras de Luigi FERJRAJOLI, a transformação do súdito em cidadão,
isto é, em sujeito titular de direitos constitucionais frente ao Estado25.
Nesse sentido, observa Santiago M IR PU IG que a diferença entre o
Estado absoluto e o de Direito não reside no fato de que no primeiro o Direito
dependa do poder e no segundo o poder dependa do Direito, já que também
neste último 0 Direito depende do poder (Legislativo), mas sim na constata­
ção de que no Estado de Direito os representantes do povo (como expressão
da vontade geral) estabelecem o Direito de modo a limitar o exercício dos de­
mais poderes26.
Em geral, verifica-se a utilização da expressão “Estado de Direito" com
dois significados diversos. Em sentido formal, designa-se Estado de Direito
a qualquer ordenamento no qual os poderes públicos sejam conferidos pela
lei e exercidos sob as formas legalmente estabelecidas (conforme o sentido
atribuído à expressão Rechtsstaat em âmbito alemão). Sob tal perspectiva,
todos os ordenamentos jurídicos modernos seriam Estados de Direito, mesmo
aqueles não liberais. D e outro lado, a partir de uma perspectiva material, o
Estado de Direito identifica-se com os ordenamentos nos quais os poderes
públicos estão sujeitos à lei, fundaraentalmente quanto ao seu conteúdo e
carga principiológica27. Adotando-se a segunda concepção, o Estado de Direito
deixa de ser mero sinônimo de Estado submetido ao Direito ou ao princípio da
legalidade em sentido formal, compreendendo, na verdade, o controle jurídico da
atividade estatal, a partir da legislação, com referência ao respeito ao indivíduo
e a seus direitos fundamentais28.
C om base na concepção material, tem-se, assim, como exigências indis­
pensáveis a todo Estado de Direito: (i) o império da lei, como expressão da

josé de Faria. Uma ponte entre 0 Direito Pena! e a filosofia penai: iugar de encontro sobre o
sentido da pena. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado luso-brasiieiro
da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 872-873.
25 Cf. FERRAJOLi, Luigi. D erechoy razóri, cit., p. 860.
26 Cf. MIR PUIG, Santiago. El derecho penal en el estado social y democrático de derecho, Barcelona:
Editorial Ariel, J994, p. 32, nota 6.
27 Nesse sentido, v. FERRAjOLi, Luigi. O estado de direito entre o passado e o futuro. ín: COSTA,
Pietro; ZOLO, Danilo (Org.) O Estado de Direito. Trad. Carlos Alberto Dastoii. São Paulo: Martins
36 -B em Jurídico-P enal

vontade gerai; (ii) a divisão de poderes; (iii) a legalidade da administração,


no sentido de atuação conforme a lei e submetida a controle judicial; e (iv)
a garantia jurídico-formal e a efetiva realização material de direitos e liber­
dades fundamentais29, afirmando-se, então, que a essência da legitimidade e
o objetivo estatais se centralizam na pretensão de atingir a garantia suficien­
te de referidos direitos.
Se a distinção primordial entre o Estado de Direito e o Estado autoritá­
rio reside materialmente no fato de que a legitimidade do primeiro está fun­
dada no reconhecimento formal dos direitos fundamentais e na promoção das
circunstâncias adequadas para sua realização, tais condições essenciais podem
ser encontradas de diferentes formas, nos diversos modelos possíveis - Estado
Liberal de Direito, Estado Social de Direito e Estado Democrático de Direito
conforme a classe de direitos reconhecidos, garantidos e concretizados. Assim,
o Estado Liberal identifica-se com os direitos da burguesia, o Estado Social
preocupa-se com os direitos sociais e a realização dos objetivos de justiça so­
cial e o Estado Democrático representa o aprofundamento dos elementos de­
mocráticos do sistema, tanto no plano da participação como no de controle
do poder político30*.
Em qualquer um dos referidos modelos, porém, é importante ressaltar que
a função prioritária do Estado de Direito é dotar de segurança os indivíduos
para que possam desenvolver-se no âmbito social. Com efeito, desde que iniciou
sua evolução nos séculos X V II e XV III, o Estado moderno buscou protetor de
seus cidadãos. O Estado Liberal faz isso por meio do emprego de mecanismos
repressores destinados à manutenção da ordem; o Estado Social, mediante o
estabelecimento e a generalização de sistemas de proteção e de assistência social;
e o Estado Democrático, como síntese dos modelos anteriores, a partir de uma
relação dialética entre a proteção do cidadão e a intervenção democrática nas
relações sociais. De todo modo, o objetivo final constitui sempre a manutenção
da ordem social necessária ao desenvolvimento humano, ainda que os meios
sejam distintos-*1.

29 DÍAZ. Elias. Estado de derecho y sociedad democrática, cit., p. 31. No mesmo sentido, v. SILVA,
José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., pp. 112-113.
30 MARTINEZ DE P1SÓN, José. Tolerância y derechos fundamentales, cit., p. 139.
•" Nn m « in o sentido, tratando dos mecanismos de proteção nos diferentes modelos de Estado, v.
A na Elisa Liberatore Silva Bechara - 37

. ..
1 2 1 Estado L iberal de D ireito
O Estado Liberal de Direito constitui a primeira formula por meio da qual
se materializou o ideal de Estado de Direito elaborado pelo Ilumínismo jurídico,
corrente de pensamento dominante na Europa no século XV III, que defendeu
a primazia do Direito frente aos abusos do poder despótico do Antigo Regime.
O pensamento ilustrado caracteriza-se por dois elementos fundamentais: a
atitude racional em relação ao Direito natural e uma postura voluntarística
acerca do Direito positivo. No que concerne ao primeiro aspecto, no dizer de
Mario C A T TA N EO , trata-se de uma concepção racional da justiça e da moral,
fundada sobre a ideia de que há princípios e valores éticos absolutos, válidos
em todos os tempos e lugares, que se apresentam como auto-evidentes para a
razão humana. Daí surge um entendimento do Direito natural compreendido
como Direito subjetivo inato (ideia que acaba por formar a base e a essência
da teoria dos direitos humanos)32.
N esse contexto, buscando responder à preocupação de defesa da
sociedade frente ao Estado mediante a técnica formal da divisão de poderes
e do princípio da legalidade33, o modelo liberal sustenía-se a partir de uma
filosofia individualista que coloca o cidadão - racional, autônomo, responsável
e livre - no centro da sociedade, reconhecendo e garantindo seus direitos
fundamentais tais como a vida, a integridade física, a liberdade de expressão e
a propriedade privada, tipicamente identificados com a burguesia, no âmbito
de uma concepção negativa da ideia de liberdade34.
Tom ada a noção de liberdade individual como ausência de coação,
reclama-se ao Estado a não ingerência no âmbito de autonomia do cidadão. O
princípio organizativo no âmbito liberal é, portanto, o de neutralidade estatal,
deixando-se às forças sociais e econômicas o governo do desenvolvimento e da
evolução social. Dessa forma, no que tange ao Direito Penal, o Estado apenas
está legitimado a interferir sobre as liberdades individuais de forma utilitarista,
vale dizer, para a manutenção da ordem e da paz social contra a vulneração de
regras básicas da convivência33.
A fundamentação do Estado Liberal no contrato social de Jean Jacques
R O U SSEA U , concebido como pacto subscrito pelos homens para a manuten­

32 Cf. CATTANEO, Mario A. ilum inismo e legislazione, cit., p. 13.


33 Cf. MiR PUIG. Santiago. El derecho penal en el estado social y democrático de derecho, cit., p. 32.
38 - Bem Jurídico -Penal

ção social36, designou, então, ao Direito Penal a função de proteção da sociedade


por meio da prevenção de delitos, cuja essência constituía em um dano social.
Essa conquista histórica do Iluminismo sobre o modelo absolutista represen­
tou um importante divisor de águas na história da evolução do sistema penal,
justamente por implicar o abandono da ideia de utilização ilimitada do Direito
Penal meramente como castigo ou expiação do agente, sem utilidade social3',
acabando por dar início ao desenvolvimento do Direito Penal contemporâneo38.
E de se notar que se a liberdade aparece em primeiro plano no âmbito
liberal, seu valor cinge-se, sob essa perspectiva, à exaltação do indivíduo e de
sua personalidade. Assim, quanto menos presente o Estado nos atos da vida
social, mais ampla torna-se a esfera de liberdade outorgada ao cidadão39.
O conceito de liberdade do liberalismo mostra-se, portanto, positivo
apenas quando referido a indivíduos dotados de igual capacidade. H á de se
ver, contudo, que a liberdade só tem valor como condição prévia, sendo que,
na verdade, o que importa são as possibilidades de sua utilização. Desse modo,
por ser a igualdade que fundamenta o Estado Liberal meramente formal, o
liberalismo acaba por encobrir as desigualdades sociais concretas, apresentando
um conceito de liberdade inoperante, que não permite a busca de soluções às
contradições sociais, mormente em defesa dos menos favorecidos40.

36 Para a exposição da teoria do contrato social, v. ROUSSEAU, Jean Jacques. Oo contrato social.
Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 5999. Sobre o m odelo político-
sosical de ROUSSEAU, resume johann FISCHL: "Porei contrato social los aspirodones sociales
de todos los indivíduospasan a ser voluntadgeneral (voiontégénérole), que garantizo !a libertady
igualdadde todos. Lo libe.nod, porque coda uno obedece sólo a lo leyque él mismo ba contribuído
a dar; la igualdad, porque la voluntad general mira p o r igual a l bien de lodos." FISCHL, Johann.
Manual de historia de ia filosofia. Trad. Daniel Ruhr Sueno. 8. edición. Barcelona: Herder,
2002, p. 298.
37 Conforme pondera Cesare BECCARIA: “No solo es interés común que no se cometan delitos, peró
oún lo es que seon menosfrecuentes, o proporción dei dono que causan en la sociedod. Así, pues. mós
fuertes deben ser los motivos que retroigon los hombresde los delitos, a medido queson contrários al bien
público, a medida de tos estímulos que los inducen o cometerles. Debe por esto hober uno proporción
entre tos delitosy taspenos."Tratado de los delitos y de las penas. 2. edição. Paris: Casa de Rosa
Librero, 1828, p. 54.
38 Sobre a evolução do Direito Penal a partir do conceito material de delito vinculado ã idéia de um
dano soda! v., dentre outros, a obra de Franz von LISZT. La idea dei frn en derecho penal. 1. ed..
reimpressão. Santa Fé de Bogotá: Temís, 1998, pp. 59 et. seq.; Tratado de derecho penai. Trad. da
18. eci. alemã por Luisjiménez de Asúa.4.ed„3* reimpressão. Madrid: Editorial Réus, 2007,1.1, pp.
21-22. e. a mesma obra, no t. 2. pp. 5-11. Modernamente, v. ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner
Teil. Grundlagen Aufbau der Verbrechenslehre. 3. edição. Munique: Beck, 1997, T. 1, pp. n et seq.
e TAVARES, juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. revista e ampliada. Beio Horizonete: Oe! Rey,
2002, pp. 579 et seq.
39 Nesse sentido, v. BONAVIDES, Paulo. D o estado liberal ar> s. cs_
A na Eusa Uberaíore Silva Bechara - 39

Assim, o Estado Liberai garantiu uma liberdade de ação praticamente ili­


mitada às forças econômicas, possibilitando a acumulação de poder econômi­
co e político nas mãos de poucos e disfarçando, sob a imagem do jogo livre e
igual de mercado, uma sociedade de classe cuja unidade era mantida pelo pre­
domínio da classe capitalista. E justamente por afastar o Direito da realida­
de social, potencializando as desigualdades entre as classes41, o Estado Liberal
deixou de atender às condições próprias da civilização industrial e pós-indus-
trial, com seus novos problemas e seus avanços técnicos, econômicos e sociais,
acabando por ser sucedido pelo Estado Social de Direito.

1.2.2. Estado Social de D ireito


Em face dos efeitos e males históricos produzidos no contexto do mode­
lo liberal, tais como o aumento das desigualdades econômico-sociais, da po­
breza, das discriminações de todo tipo e de conflitos sociais em geral, surge
no início do século X X o Estado Social, na tentativa de superação das barrei­
ras que separavam o Estado e a sociedade. Concebe-se, assim, 0 novo mode­
lo sociopolítico como fórmula para remediar os defeitos do Estado absentista
e, em particular, seu excessivo individualismo, por meio da revisão do sistema
com o fim de dar-lhe orientação mais social42. Enquanto o Estado Liberal pre­
tendia assegurar as garantias jurídicas sob a perspectiva meramente formal, o
Estado Social volta-se a modificar efetivamente as relações sociais, evoluindo
de Estado-árbitro imparcial a Estado intervencionista, o que traz profunda mu­
dança em sua interação com a sociedade43. Dessa forma, o novo modelo estatal
não apenas reafirma os valores básicos do Estado Liberal, tais como a liberda­
de, a segurança jurídica e a participação dos cidadãos na formação da vontade
geral, como também busca tomá-los efetivos, conferindo-lhes base e conteú­
do material a partir do pressuposto de que indivíduo e sociedade não repre­
sentam categorias isoladas e contraditórias, mas sim em implicação recíproca.

41 No mesmo sentido, v. 8 ERCOV1CI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente.


Atualidade de Weimar. Rio de janeiro: Azougue Editorial, 2004, pp. 124-130.
42 Cf. DÍAZ, Elias. Estado de derecho y sociedad democrática, cit-, p. 83. A formulação da idéia
do Estado Social de Direito deve-se á Hermann HELLER. para quem a crise da democracia e do
Estado de Direito não se soluciona por meio da renúncia ao Estado de Direito, mas sim mediante
a atribuição a este de um conteúdo económico e social, realizando-se nesse âmbito uma nova
ordem laborai e de distribuição de bens: apenas o Estado Social de Direito pode ser uma
alternativa política válida frente à anarquia econômica e â ditadura fascista, salvando os valores
da civilização (Rechtsstaat oder Diktatur? Publicada em *929). C f GARCÍA-PEIAYO, Manuel. Las
transformaciones dei estado contemporâneo. 2. ed. (reimpressão}. Madrid: Alianza Editorial,
4 0 - Bem Jurídico-Penal

Na palavras de Manuel G A R C Í A -PELAYO , passa-se da proteção da socie­


dade frente ao Estado à proteção da sociedade por meio da ação do Estado44.
O Estado Social parte, assim, da experiência de que a sociedade deixada
total ou pardalmente a seus próprios mecanismos de auto-regulação conduz à
irracionalidade para concluir que apenas sua ação pode neutralizar os efeitos
disfuncionaís de um desenvolvimento econômico e social não controlado. Tal
postura risa à correção sistemática do status quo, cujo efeito conduz a uma estrutura
e estratificação sociais novas, garantindo os interesses da sodedade neocapitalista45.
Desse modo, à lista dos direitos civis e políticos do Estado Liberal somam-se, com
caráter prioritário, os direitos econômicos, sociais e culturais, que materializam as
exigências de bem-estar gerai. A legitimidade do Estado Social reside, portanto,
na implementação dos direitos sociais e no reconhecimento e materialização do
princípio de solidariedade e de justiça social.
Em geral, há que se reconhecer a contribuição do modelo estatal social
para a elevação do nível de bem-estar e o incremento da igualdade material.
Paralelamente a esses fatores positivos, há, porém, que se admitir outros, de
natureza negativa, tais como o excessivo intervencionismo, apto a conduzir ao
limite os conflitos políticos e sociais, colocando em perigo a própria existên­
cia da democracia. Nesse sentido, o ilustrativo exemplo histórico do regime
nacional-socialista demonstra, a partir do uso impróprio da ideia de seguran­
ça ou de paz pública, as consequências desumanas a que pode aportar uma in­
terpretação errônea dos princípios do Estado Social, evidenciando que suas
prestações sociais podem servir como instrumento de legitimação de regimes
autoritários. Restam, assim, expostas as tensões nesse âmbito entre liberdade,
igualdade, segurança social, responsabilidade individual e proteção estatal, a
materializar uma ambivalência inevitável que sujeita esse modelo à influência
negativa da burocracia e, consequentemente, a críticas46.
De fato, se as prestações positivas do Estado Social em benefício dos
cidadãos tiveram um desenvolvimento efetivo, com o crescimento do W elfare
State e a multiplicação das funções públicas nos âmbitos econômico e social,
tal desenvolvimento produziu-se em grande parte por meio da simples
ampliação dos espaços de discricionariedade dos mecanismos burocráticos, do
jogo não regrado dos grupos de pressão e da proliferação das discriminações

44 No mesmo sentido, v. GARCÍ A-PELAYO, Manuel. Lastransformadonesdei estado contemporâneo,


dt., p- 27.
45 Cf. CARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transfotrnaciones dei estado contemporâneo, cit., pp. 42-23. No
mesmo sentido, v. R F R rn v jn OíiUorf« r — —i - J - J - -
A na Elisa Liberatorê Silva Beckara - 41

e dos privilégios. Conforme adverte Luigi F E R R A JO O , o Estado Social


não conseguiu realizar, em suma, o ideal do estabelecimento de obrigações
taxativamente estabelecidas e de direitos claramente definidos e acionáveis
frente a órgãos públicos a fim de garantir certeza, legalidade e igualdade na
satisfação das expectativas47.
Tratando especificamente da esfera jurídico-penal, observa-se haver
em geral dois enfoques possíveis na valoração dos interesses coletivos. Um é
contemplá-los desde o ponto de vista de sua importância para o sistema social.
Outro corresponde à sua valoração em função da repercussão aos indivíduos.
O Estado Social acabou por adotar, de forma autoritária, o primeiro enfoque,
subordinando o indivíduo ao todo social.
O princípio intervencionista condutor do modelo social foi, assim, apto
a determinar em diversos ordenamentos a construção de um Direito Penal
mais preocupado com a sua própria eficácia do que a servir aos cidadãos. Nesse
contexto, a pena acabou por funcionar como arma do Estado em relação à
sociedade, transmutando-se sua eficácia em terror penal, a partir do abandono
dos limites que deveria respeitar diante das minorias e do próprio indivíduo48,
o que contribuiu para o aumento das críticas dirigidas ao modelo social, a
partir das profundas transformações no panorama político no início dos anos
70 do século XX .
Tais críticas voltaram-se (i) à tensão entre sua função de promover os
benefícios empresariais e a de aumentar o gasto social destinado a políticas de
bem estar; (ii) à perda de adesão e de consenso social ante a frustração provocada
pelo descumprimento das promessas de diminuição do gasto social; (iii) ao
aumento do autoritarismo estatal; (iv) à perda da liberdade individual; e (v) à
excessiva burocratização, tornando os cidadãos dependentes do Estado, o que
levou à necessidade da adoção de um novo modelo estatal49.

1.2.3. Estado D emocrático de D ireito e I ntervenção


J urídico -P enal
Diante dos diversos problemas decorrentes da adoção do modelo social,
nasce a fórmula do Estado Democrático de Direito, supondo não apenas a
tentativa de submeter a atuação do Estado Social —à qual não se quer renunciar
- aos limites formais do Estado de Direito, mas também de sua orientação

47 Cf. FERRAjOU, Luigi. Derecho y razón, cit., p, 863.


>n d octadr» cofiai v democrático de
42 - Bem Jurídico-P enai

material à democracia. Nesse novo contexto, o Estado deverá criar condições


sociais que favoreçam efètivamente o desenvolvimento de seus cidadãos.
O modelo do Estado Democrático de Direito constitui, assim, uma opção
política cuja legitimidade não procede meramente de seu reconhecimento
constitucional (como no caso brasileiro), mas, antes, de um consenso ao
qual se chegou após mais de dois séculos de experiência que ressaltaram a
necessidade de submeter o poder estatal a limites jurídicos democráticos, com
raiz na ideia liberal, porém também a conveniência de atribuir a esse Estado a
função de resolução de problemas sociais5051.Dessa forma, passa-se a considerar
a importância dos interesses coletivos na medida em que condicionam a vida
dos cidadãos. A razão é clara: o sistema social é posto a serviço do indivíduo,
e não o contrário31.
Em razão do respeito aos diferentes grupos sociais e aos próprios
indivíduos, em um contexto pluralista, o Estado Democrático de Direito
reflete, por sua própria natureza, um ordenamento pretensamente imperfeito,
resultando impensável a absoluta harmonia de interesses e valores nos diversos
níveis do sistema52. Essa aparente imperfeição representa, porém, o maior
mérito dos ordenamentos jurídicos democráticos, uma vez que a total ausência
de antinomias só seria possível se não se incorporasse às normas nenhum
vínculo substancial, como acontece no Estado Absoluto, no qual os dispositivos
jurídicos possuem validade meramente por serem produzidos dentro das formas
estabelecidas. Resulta, então, missão fundamental do Estado Democrático
trabalhar com as antinomias existentes em matéria de direitos fundamentais,
de forma a sopesar os interesses em conflito, sem perder o foco da proteção
dos direitos individuais. A transposição ao nível jurídico desse entendimento
do sentido social a partir dos próprios indivíduos que o compõem possibilita

50 Do mesmo modo, tratando do modelo político-social espanhoi, v. M 1R PU1C, Santiago. Ei principio


de proporcionalidad como fundamento constitucional de limites materiaies dei derecho penal.
In: CARBONEU MATEU, j.Q CONZÁLEZ CUSSAC J.L.; ORTS BERENCUER, E. (Dir.). Constitución,
derechosfundamentales ysistema penal. Semblanzas y estúdios con motivo dei setenta aniversario
dei profesor Tomás Salvador Vives Antón. Tomo II. Valência: Tirant )o Blanch. 2009, p. 1.359.
51 Nesse sentido, v. MIR PUIG, Santiago. El derecho penal en e! estado social y democrático de
derecho, tít., pp. 164-165. Tratando do Estado Democrático de Direito a partir de uma perspectiva
mais jurídica - porém sem pretender teorizar um novo modelo de Estado, autores com o Luigi
FERRAjOU defendem o denominado Estado Constitucional de Direito, no qual o princípio de
legalidade resta pulverizado ante o caráter normativo da Constituição, que se converte na pedra
angular de todo o sistema jurídico para o fim de modificar as próprias bases da democracia,
entendida nessa linha como uma democracia de conteúdo, isto é, uma democracia substancial.
Cf. FERRAJOU, Luigi. Derecho y razón, cit., pp. 863 eiseq. Da mesma forma, v. MARTÍNEZ DE
PISÓN, José. Toierancia y derechos fundamentales, cit., pp. 154-155.
A na Elisa Liberators Silva Bechara - 43

a aplicação do Direito para além do cumprimento de requisitos meramente


funcionais.
Assim, no contexto de um Estado Democrático de Direito de cunho
personalista, o Direito Penal, como subsistema do sistema de controle social, é
naturalmente subordinado, por meio da política criminal, à carga valorativa que
conforma todos os outros subsistemas de controle, impedindo que se atribua à
intervenção penal objetivos irreais, como instrumento político de transformação
social5354. Nessa linha democrática, o critério político-criminal fundamental
identifica-se com a própria garantia dos direitos individuais'14.
Então, se o Direito Penal se legitima democraticamente somente quando
voltado à proteção da sociedade e, em última análise, dos interesses dos
indivíduos que a compõem, sua justificação mantém-se apenas na medida de sua
necessidade para o fim de evitar delitos, conforme o denominado princípio da
intervenção penal mínima (desdobrado nas vertentes subsidiária e fragmentária),
como decorrência da dignidade humana e do direito à liberdade, reconhecidos
constitucionalmente35.
Nessa linha, a proteção da segurança social não deve ser diretamente
relacionada ao Direito Penal, mas sim ao Direito em geral, sendo a intervenção
penal apenas um dos instrumentos (na verdade, o último) a cooperar com o
ordenamento jurídico em tal tarefa. Por isso, quando a proteção da sociedade
possa ser obtida por outros meios, preferíveis por serem menos custosos aos
direitos individuais, o Direito Penal deixa de ser necessário, em coerência com a
exigência, no âmbito democrático, da busca de maior bem com o menor prejuízo
social. Esse raciocínio conduz à fundamentação militarista da intervenção
penal, não no sentido de maior eficácia possível, e sim do mínimo de prevenção
imprescindível.
Constituindo-se, portanto, o Direito Penal como ultima ratio, deve o
Estado antes esgotar todas as alternativas menos prejudiciais para a proteção
dos interesses sociais, dando preferência à utilização de meios desprovidos de

53 Cf. 0 \tZ RiPOILÉS, josé Luis. La poiítica criminal en la encrucijada. Montevideo: BdeF Editorial,
2007, p.H -'5-
54 No mesmo sentido, v. BEROUGO GOMEZ DE LA TORRE, Ignacio. Derechos humanos y derecho
penal. Estúdios Penatesy Criminológicos, XI, Santiago de Compostela, »987, p. 32; e FERNÁNDEZ
CARRASQU5LLA, Juan. Princípios y normas rectoras. Conceptos generates. D erecho Penal y
Criminologia, V. XIII, n° 45, septiembre-diciembre 1991, item t.7.
55 Cf. TOLEDO Y ÜBÍETO, Emilio Octavio de. Sobre el concepto dei derecho penal. M adrid:
Universidad de Madrid, 1981, p. 360; M!R PUIG, Santiago. Introducciòn a las bases dei derecho
pena. Concepto y método. Barcelona: Bosch, J976, pp. 124-125; e MUNOZ CONDE, Francisco.
44 ■ B em J u r íd ic o -Penal

sanção, como uma adequada política social, passando, ao depois, aos mecanismos
sancionatórios de controle social não penais, nomeadamente nos âmbitos civil
e administrativo56.
Do mesmo modo, apenas se justifica a necessidade da intervenção jurídico-
-penal em um contexto democrático quando esta seja útil para cumprir seu ob­
jetivo protetor, e não um efeito meramente simbólico. Nesse sentido, o exem­
plo mais ilustrativo (porque extremo) de inutilidade em matéria penal talvez
corresponda à própria pena capital5758, haja vista que, conforme estudos reali­
zados, sua supressão em diferentes ordenamentos jurídicos não determinou o
aumento dos delitos aos quais ela era cominada53, a demonstrar sua carência
de justificação, mormente em relação a seu intolerável custo social (a supressão
de vidas humanas pelo próprio Estado), o que, aliás, já observava B E C C A R IA
há quase três séculos59.
Ê de se observar, porém, que a despeito de o princípio da intervenção
penal mínima ser decorrência do Estado Democrático de Direito, a dinâmica
própria do intervencionismo que caracteriza referido modelo estatal leva ao
perigo de comprometer sua realização efetiva. D e fato, tem-se, de um lado, a

56 No mesmo seniido, v. ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo I. Fundamentos. La
estructura de !a teoria dei delito. Trad. da 2. ed. alemã por Diego Manuel luzón Pena, Miguel Díaz
y Garcia Confledo e javier de Vicente Remesaí. Madrid: Civitas, 1997, pp. 65 eiseq. No Brasil, v.a
monografia sobre a intervenção penal mínima de QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário
do direito penal. Bei o Horizonte: Del Rey, 1998, pp. 76 etseq. Justamente por isso, observa Antonio
GAROA-PABl.OSMOLINA que longe de pretenderfornecerinformaçõesquepossibilitemameíhor
ou maior punição de um delito, a criminologia revela, no contexto democrático, importância
fundamentai, pois conduz a uma intervenção racionai, mediata e seietiva, capaz de prevenir sua
ocorrência com programas e estratégias adequadas (prevenção primária) deixando-se a prevenção
penal propriamente dita reservada aos casos de efetiva necessidade, em razão de seu elevado
custo social e efeitos nocivos. GARCÍA-PABLOS MOLíNA, Antonio. Tratado de criminologia. 3.
edición. Valência: Tirant fo Blanch, 2003, pp. 82-84.
57 De iodo modo, observa-se que no ordenamento jurídico brasileiro, salvo em caso de guerra
declarada, a pena de morte é expressamente vedada peio art. 50, inc. XLVI1, £7, da Constituição
Federal de 1988, em atenção ao princípio de humanidade das penas. Para o panorama da evolução
da pena de morte, v. BARBERO SANTOS, Marirto. Pena de muerte (ei ocaso de un mito). Buenos
Aires: Depaima, 1985.
58 Nesse sentido, v. SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena, cit. pp. 113
etsçq.
59 Cf. BECCARIA, CESARE. Tratado de los delitos y de ias penas, cit., para quem não é a gravidade do
castigo que previne a ocorrência de delitos, e sim a certeza da punição. Na verdade, verifica-se que
a manutenção da pena de morte em diversos ordenamentos jurídicos na atualidade deve-se mais a
razões políticas do que jurídico-penais, conforme afirma Eugênio RAüLZAFFARONI. Pensamineto
patibuiario. La discusión sobre la pena de muerte. Prólogo a V1DELA, M.C.; REBOREDO, j.F. Pena
de muerte. Un tema para reflexionar. Mendoza: Ediciones Jurídicas, 2 0 0 0 : e boa parte dos
trabaihos constantes da obra coletiva H ada la abolición universal de la pena capital, ditada por
ARROYO ZAPATERO, l.uis Alberto; BiCLiNO CAMPOS, Paloma; e SCHA8AS, VVilliam.Valencia:
Tirant Lo Blanch, 2 cu o, o que levou a comunidade acadêmica internacional à constituição de
A na Eusa Uberatore Silva Bechara - 4 5

tentação de utilizar o Direito Penal como apoio a uma determinada política


de governo, em nome da maximização da eficácia do poder público. De outro
lado, a necessidade de favorecer determinados interesses coletivos difundidos
no âmbito social pelos denominados gestores atípicos da moral (atypische
Moraluntemehmerf0 não raras vezes confunde-se com a conveniência da
intervenção penal para impedir seu ataque.
Verifica-se, então, que o princípio de intervenção penal mínima,
originalmente limitador do Direito Penal, corre o risco de sujeitar-se à passagem
de um caráter negativo para um critério positivo de incriminação (intervenção
penal máxima), se se adota uma concepção do sistema penal legitimado a partir
da duvidosa confiança em sua eficácia6061.
Constitui, de fato, característica do sistema penal certa discrepância entre
realidade e aparência, ou, em sentido específico, entre a busca efetiva e manifesta
da proteção social e a comunicação latente, por meio da norma, dos valores
estabelecidos pelo Estado. Assim, conforme ressalta Claus RO XIN , o Direito
Penal é, por natureza, um instrumento de controle social formal com carga
simbólica, na medida em que suas disposições não somente buscam impedir e
reprimir delitos concretos, como também incidir na consciência jurídica geral,
reforçando as expectativas sociais reputadas fundamentais, o que não pode ser
valorado, por si, negativamente6263*.
O caráter simbólico do Direito Penal torna-se, porém, criticável quando as
funções latentes buscadas predominam sobre as manifestas, vale dizer, quando
as normas não desempenham efeitos concretos de proteção, estando destinadas
apenas a servir de auto-proclamação de grupos políticos ou ideológicos a favor
de determinados interesses65. Nesse contexto, a intervenção penal adquire um

60 Tratando da influencia dos gestores atípicos da morai no Direito Penai, v. SfLVA SÁNCHEZ,
jesús Maria. La expansion del derecho penal. Aspectos de la política criminal en ias sociedades
postindustriales. Madrid: Civitas. 1999, p. 47.
61 No mesmo sentido, v. KAYßER, Marijon. Sobre ei potencial incrim inador de ios princípios
limitadores dei derecho penal. Competências penaies en la cuestión dei aborto. Trad. Ramon
Ragués i Vallès, in: La insostenibiesituación del derecho penal. Granada: Cornares, 2000, p. 165.
62 ROXIN, Claus. Problemas actual es de dogmática penal, cít., p. 36.
63 Nesse sentido, v. HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos.
Pena y Estada Función simbólica de la pena. n° or, septiembre-diciembre de 1991, pp. 29-30. Sobre
a crítica ao Direito Penai simbólico, v. DÍEZ RI POELES, José Luis. El derecho penal simbólico y los
efectos de ia pena. In: Modernas tendências en ia ciência dei derecho penai y en la crim inologia
Madrid: Universidad Nacional de Education a Distancia, 2001, pp. 124-126; HASSEMER, Winfried.
Persona, m undo y responsabiiidad. 8ases para una teoria d c ia imputación en el derecho penal.
Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, pp. 32 ctseq : HASSEMER, Winfried; MUNOZ CONDE, Francisco.
La resDOnsabiiidad p o re i producto en derecho penal. Valencia: Timat Io Blanch, 1995, pp. 41-
46 - Bem J urídico-P enal

conteúdo moralizante destinado a reforçar, por meio da manipulação política,


a adesão dos cidadãos a uma ideologia de defesa social, legitimando, com isso,
determinadas medidas repressivas*64.
N a verdade, o desvirtuamento do princípio da intervenção penal mínima
por meio de uma intervenção penal desnecessária e simbólica é fruto da tentativa
de ocultação deficiências nas políticas públicas do Estado, buscando-se conferir
à sociedade a falsa impressão de segurança e de um legislador atuante, o que
gera grande prejuízo ao caráter democrático do Direito Penal, não podendo,
por isso, ser tolerado num contexto que impõe necessariamente o balanço
entre os custos e os benefícios da intervenção estatal em qualquer âmbito para
a garantia dos direitos do cidadão.
A esse ponto, é importante reconhecer, de outro lado, o uso não raras
vezes equivocado da expressão “expansão do Direito Penal”, empregada
invariavelmente em sentido crítico ou negativo. E natural no E stado
Democrático de Direito que o Direito Penal encontre novos âmbitos de
aplicação, relacionados fundamentalmente à esfera coletiva, que antes não
eram considerados socialmente relevantes (ou mesmo nem sequer existiam).
Nesse contexto, a expansão penal mostra-se justificável, porque condizente
com o desenvolvimento social, se realizada em observância aos princípios
fundamentais decorrentes do modelo político-social democrático, com destaque
ao seu caráter subsidiário e à proporcionalidade65. Essa expansão difere, porém,
da atitude disfuncional de “expansionismo” penal, identificada com a tentativa
de abarcar grande parte das novas necessidades sociais exclusivamente ou em

actuales cie dogmática penal, dl-, p-35; RíQliERT, Marceio Alfredo. Crisis penal. Política criminai,
global izació n y derecho penai. Buenos Aires: Ediar, 2007, p. 48; e SILVA SÁNCHEZ, jesús Maria.
Aproximación al derecho penai contemporâneo. Barcelona: José Maria Bosch, 1992, p. 306.
Tratando especificamente da utilização de um Direito Penai simbólico no combate contra o
terrorismo, v. BERDUCO GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio; SERRANO PIEDECASAS, José Ramón.
Reflexiones político criminafes sobre ei terrorismo. Derecho Penai y Crim inologia Vol. X, n°34,
Enero-abril 1988.
64 Nesse sentido, conforme a advertência de Reinharl MAURACH: "Lo experíencia ensena que para
Ia burocracia es macho más sencillo prom ulgar ttn conjunta caótico de Icyes, ordenamos y decretos,
sancionando su infracdôn, en virtuddedisposicianes complementarias, con penas ctiminales, a proceder
con la cautela precisa en la requiociòn d ela maieríafundam ental y am ena/ar ton sólo los casos graves
con penas criminales, evitando en lo p o sib k un divorcio entre norma y ronm inadón penal". Tratado de
derecho penal. Tomo I, Trad. juan Cordoba Roda. Barcelona: Ariei, 1962, p. 31. Da mesma forma,
Alessandro BARATTA afirma que a cominação pena! nessa linha produz sentimentos de unidade
em seus espectadores e busca, dessa forma, a consolidação das reiações de poder existentes,
atuando, portanto, como elemento de integração do grupo sociai. Crim inologia crítica e crítica
do direito penal, introdução à sociologia do direito penai. 3 ed. Rio de Janeiro: REVAN, 2002,
pp. 47 et seq. e 117 et seq.
65 Sobre a critica á desproporcionalidade da tutela penal de novas necessidades sociais, v. GARCIA
•• ■ ---------- * ----—------!------- Ar k S IC T A .\ < A P T ÍM 4 r tin
A na Elisa Liberatore Silva Bechara - 47

primeiro plano por meio da intervenção penal, estando essa segunda hipótese
a merecer a acertada crítica quanto à sua ilegitimidade democrática e aos seus
efeitos contraproducentes.
D e fato, o giro operado na valoração do princípio da intervenção penal
mínima, desde a concepção sustentada por Karl B IN D IN G segundo a
qual o caráter fragmentário era um vício da intervenção penal a ser sanado
por meio da proteção completa de bens jurídicos66, até a atual, conforme a
qual referido caráter constitui a característica de um Estado Democrático
de Direito que privilegia a liberdade dó cidadão, revela a própria passagem
de uma fundamentação retributiva para uma fundamentação preventiva do
Direito Penal67. A constatação de um interesse digno de proteção e o posterior
reconhecimento da existência de ataques relacionados a ele constitui uma
condição necessária, porém não suficiente à intervenção penal, devendo-se
acrescentar no exame crítico da legitimidade da incriminação a idoneidade do
instrumento penal para os fins protetivos almejados. Assim, já não se busca
mais, por meio da intervenção penal, a realização da justiça (a exigir a proteção
completa de bens jurídicos), mas sim a defesa da sociedade, excluindo-se da
reação penal os comportamentos menos lesivos, frente aos quais bastam outros
meios de controle, em geral mais eficazes.
Conclui-se, então, que embora se chegue a questionar, em análise
superficial da realidade atual, a compatibilidade do princípio de intervenção
penal mínima com a concepção dominante do Estado intervencionista para a
proteção efetiva da sociedade, o reconhecimento de um Estado Democrático
que atue na busca do bem-estar social não obriga a postular como desejável
um Direito Penal que restrinja a liberdade do cidadão além do imprescindível
para sua própria proteção. Em outras palavras, maior intervencionismo
estatal, justificável no contexto democrático atual em benefício do próprio
desenvolvimento social e, assim, dos cidadãos diretamente implicados, não
significa necessariamente maior intervencionismo penal. Ao contrário, e na
linha defendida por Ignacio Berdugo G Ó M E Z D E L A T O R R E : tomado o
Estado como instrumento a serviço dos indivíduos, a atividade político-criminal

66 Concepçãoreferida por BINDING, Karl. Lehrbuch des germinen Deutschen Strafrecht. Besonderer
Teil, 1.1, Leipzig: W. Engelmann, 1902, pp. 20 etseq., cf. citado por Y U8IETO, Emilio Octavio de.
Sobre el concepto del derecho penal, cit., p. 363; e PRITTWITZ, Cornelius. Sociedad del riesgo
y derecho penal.Trad. Adán Nieto Martin y Eduardo Demetrio Crespo. In: GUZMAN D A I BORA.
José Luis (Coord.). El penalista liberal (Manuel de Rivacoba y Rivacoba homenaje). Controvérsias
rtacionales e intemacionales en derecho penal, procesaf penal y criminologia. Buenos Aires:
Hammurabi, 2004. pp. 169-170.
48 - Bem Jurídico-Penal

deverá estar necessariamente orientada à busca da proteção dos respectivos


direitos fundamentais, mesmo na esfera penal6869.
Deve-se, portanto, evitar cair na tentação de estender ao Direito Penal o
papel promocional que corresponde a outros setores do Direito. Nesse sentido,
Eugênio Raul ZA FFA RO N I adverte com razão que os Estados de Direito
não são outra coisa senão a contenção dos Estados de polícia. Assim, o Estado
de Direito naturalmente conserva em si, encapsulado, o Estado de polícia, em
uma relação dialética na qual o último tende sempre a perfurar as bases postas
pelo primeiro. E se o campo penal é o preferido dos impulsos do Estado de
polícia, por ser a um só tempo sua vertente mais frágil e mais simbolicamente
eficaz, cabe à política criminal determinar a adoção de um modelo punitivo
menos irracional possível, erigindo-se em barreira do iuspuniendi, sob pena de
fracassar o Estado Democrático de Direito63.

1.3. Força N ormativa da C onstituição


A ideia de Constituição, referida por Eduardo G A R C IA D E E N T E R R ÍA
a uma corrente que vem dos séculos medievais e concretiza-se entre o final do
século XVIII e o século X IX no denominado movimento constitucional, não
representa um mero instrumento único ou codificado de definição da estrutura
política do Estado, mas sim o estabelecimento de tais estruturas a partir de
determinadas bases e com um conteúdo específico70.
Assim, se a Constituição não pode ser considerada um texto normativo que
ordena a convivência social como uma concessão do Estado, ou que pretende
que neste se resuma a vida pessoal ou coletiva, tal qual um nível ético superior,
em referido instrumento jurídico há de expressar-se antes de mais nada a
autodeterminação política social, assim como o princípio da limitação do poder,
essencial ao constitucionalismo. Essa técnica aparentemente formal de decisão
coletiva vincula-se ao pensamento jusnaturalista material dos direitos inatos
do homem, que ao Estado cumpre não só respeitar, senão também garantir e
fazer efetivos como primeira de suas funções73.

68 Sobre a orientação da política criminai à proteção dos direitos fundamentais, v. BERDUGO GOMEZ
DE LA TORRE, fgnacio. Derechos humanos y derecbo penai, tit., pp. 32-33; e SHECA1RA, Sérgio
Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena, cit., pp. 53-54.
69 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Ei enemigo en el derecho D e n a i. Buenos Aires: Ediar, 2006, Dp
! 65-168.
70 Cf. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La constitution com o norma y el tribunal constitucional.
A na Elisa Libíratore Silva Bechara - 49

E é justamente sobre a limitação do poder —que supõe o estabelecimento


de um sistema respectivo de competências e de normas de exercício - e sobre
as liberdades dos cidadãos - que lhes permite fundamentar verdadeiros direitos
frente à organização que se estabelece o Direito público contemporâneo,
como sucessor direto do constitucionalismo. Dessa forma, a Constituição, de
um lado, configura e ordena os poderes do Estado e, de outro, fixa os limites
do exercício do poder e o âmbito de liberdades e direitos fundamentais, assim
como as prestações estatais a serem cumpridas em benefício da sociedade. Em
todos esses conteúdos, conforme conclui Eduardo G A R C IA D E EN T E R R IA ,
a Constituição apresenta-se como um sistema preceptivo, que emana do povo
como titular da soberania em sua função constituinte*72.
Em uma sociedade dotada democraticamente de Constituição, é essa
norma que define os contornos do acordo social, sempre condicionado
historicamente e, por isso, suscetível à modificação. Por isso, as Constituições
tendem a especificar não apenas a estrutura política do Estado, mas também
os objetivos a se perseguir, expondo um conjunto de princípios, valores e
interesses sociais que devem inspirar a atuação dos poderes públicos. Nesse
quadro axiológico que informa o Estado e o caracteriza como Democrático
de Direito no caso brasileiro, inserem-se os direitos e garantias individuais, a
determinar uma especial relação entre o poder e o Direito, de forma que seu
exercício esteja sempre voltado ao indivíduo, transcendendo à mera tarefa de
controle ou manutenção da ordem social.
Consequentemente, o estudo do Direito Penal, ainda que admita a
consideração de dados empíricos e de questões ideológicas para além da norma
jurídica em si, não pode escapar de seu objeto, isto é, de um sistema presidido
pela Constituição, a assegurar a unidade de sentido do ordenamento, sobre
a base de uma ordem de valores materialmente expressos73. A inserção do

de 1789: "Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada o
separação de poderes não tem Constituição"
72 Conforme conciui o autor, a constituição transforma o poder nu em legítimo poder jurídico. La
constitución com o norma, cit-, pp. 47-49.
73 Cf. SERRANO-PIEDECASAS FERNANDEZ, José Ramon. Conocimiento científico y fundamentos dei
dereeho penai, cit., p. 124; TERRADILLOS BASOCO, Juan. Constitución y ley penal. La imposibíe
convergência. Estúdios de dereeho penai en homenaje ai profesor Luis Jimenez de Asua. Revista
de Ia Facultad de Dereeho de la Universidad Complutense, n!>11 (monográfico), 1986, p. 656, e do
mesmo autor, La satisfacción de necesidades como critério de determinación de! objeto de tuteia
jurídico-penal. Revista de la Facultad de Dereeho de la Universidad Complutense, n° 63,1981, pp.
141-142; e REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penai. Parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 27. Concluindo que a conformação político constitucional do Estado implica o perfil
democrático ou autoritário rio Direito Penai, v. QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do direito penal.
5 0 - Bem J urídico-P enal

Direito Penal no modelo político-jurídico conformado pela Constituição não


constitui, assim, apenas uma opção técnica, possuindo, na verdade, profundo
significado político*74.
Conclui-se, então, que a Constituição representa a norma fundamental
do ordenamento jurídico, na medida em que materializa a expressão de uma
intenção fundacional configuradora de todo o sistema jurídico que nela se
baseia, possuindo pretensão de permanência a assegurar-lhe uma posição de
superioridade sobre as normas ordinárias carentes dessa intenção total tão
relevante. Tal força normativa da Constituição não leva apenas a verificar a
adequação formal de uma lei ordinária, mas sim a determinar sua compatibilidade
material no âmbito do denominado método de interpretação conforme a
Constituição, para o qual são elementos decisivos a unidade da ordem jurídica
e o sistema de valores de que o ordenamento se acha impregnado75.
No contexto de um Estado Democrático de Direito, quanto mais plural,
aberta e política seja a ordem constitucional, mais relevante será a reflexão
sobre as diversas possibilidades de sua interpretação767. Desse modo, a grande
quantidade de conceitos amplos constantes do texto constitucional exige o
permanente questionamento sobre a interpretação de seu conteúdo, implicando
não raras vezes aspectos conflitantes, porém de fundamental importância para
a manutenção do caráter democrático do Estado".

com algum exagero que "Todanueva Constitution requiere unnuevo Código penal", j IMÉNEZ DE ASÚA,
Luis. Tratado de derecho penal. Tomo I. Concepto de! derecho penal y de ia criminologia, historia
y legisíadón penal comparada. 5. ed. Buenos Aires: Editorial Losada, 1992, p. 195.
74 Nesse sentido, conforme afirma Marino BARBERO SANTOS, a patente conexão entre política
e Direito Penal representa, para além de guia para a interpretação histórica, o fundamento da
configuração do sistema jurídico-penal de um país. BARBERO SANTOS, Marino. Postulados
político-criminaSes dei sistema punitivo espahol vigente: presupuestos para su reforma. Nuevo
pensamento penal, v. 4, 5/8, 1975, pp. 1-19. Discorrendo pontualmente sobre as influências
constitucionais no sistema penal, v,, do mesmo autor. Estado constitucional de derecho y sistema
penai. Actualidad Penal. Revista Semanal Tecnico-Juridica cie Derecho Penai, Voí. 2, n0 18,2000,
pp. 609-618.
75 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, n. ed. São Paulo: Maiheiros, 2001,
p, 478; e DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos. Da idade média ao
século XXi. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 309 elseq. No mesmo sentido, GARCÍA DE ENTERRÍA,
Eduardo. La constitución com o norm a cit., p. 50; e 8ERDUGO GÓM EZDE LA TORRE, Ignacio. Ei
consentimientoen las lesiones. Cuadernosde Política Criminal, n° 14,1981, pp. 64-65.
76 Cf. HÄBERLE, Peler. H erm enêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
c onstituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimenta!' da constituição. Trad.
Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 13.
77 Nesse sentido, v. HA BERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estúdios de teoria constitucionai de
la sociedad abierta.Trad. Emílio Mtkunda-Franco. Madrid: Tecnos, 2002, pp. 8jetseq, Conforme
conceitua referido autor, pluralismo significa “consecudàn de ta mayor medida pasibte de libertad
A na Eusa Liberators Silva Bechara - 51

Assim, se num primeiro momento os princípios constitucionais possi­


bilitam o estabelecimento de pautas de atuação estatal em matéria penal, a cons­
trução do sistema jurídico nesse âmbito deverá passar por uma análise valo-
rativa teleológica que leve em conta tais princípios, bem como a interpretação
dos conceitos daí advindos. Por isso, ainda que se afirme o estreito vínculo da
intervenção penal à Constituição, para 0 fim de orientar seu desenvolvimento
de forma a proteger os valores fundamentais reconhecidos na lei fundamen­
tal, não se deve perder de vista a natureza plural e comunicativa do Estado
Democrático de Direito, a determinar a necessidade de manutenção da aber­
tura do sistema penal.
Observa-se, de outro lado, que a norma constitucional não possui
existência autônoma diante, da realidade. Sua essência reside na pretensão de
que a situação que regula seja concretizada, significando mais do que o simples
reflexo das condições fáticas de sua vigência. Por isso, graças à pretensão de
eficácia, a constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade
política e social78.
Nesse sentido, Wílheim H U M B O L D T observava já em 1791 que a
Constituição não deve buscar construir o Estado de forma abstrata e teórica
- não se logra produzir nada do que já não esteja minimamente presente na
realidade sob pena de permanecer eternamente estéril'9. Porém, para além da
adaptação a uma dada realidade, a Constituição converte-se, por si mesma, em
força ativa, na medida em que impõe tarefas, no âmbito daquilo que se identifica
como “vontade da Constituição”, para o fim da concretização de suas normas.
A partir dessa perspectiva, os textos constitucionais que se sucederam
após o fim da Primeira Guerra Mundial passaram a trazer a declaração, a par
dos direitos individuais tradicionais, também de direitos sociais, relacionados à
ideia de igualdade material e que, por ísso, dependem de prestações do Estado
para serem usufruídos.Tais Constituições, denominadas econômicas ou sociais,

las cosas; ya que conflicta y disenso no soo sino :an sólo mecos expresiones de articulation de las 'res
publica'."Idem, pp. 116-117.
78 Nesse sentido, v. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes.
In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Ciim ar Ferreira; COELHO, Inocèncio Mártires (Org.'j.
Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 127-129; e GRAU,
Eros Roberto. Realismo e utopia constitucional, in: COLITINHO, jacinto Nelson de Miranda;
LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (org.). Diálogos constitucionais: direito, neoíiberafistno
e desenvolvimento em países periféricos. Rio de janeiro: Renovar, 2006, pp. 140-141.
52 - BfM Jurídico-Penal

levam a uma série de discussões, relacionadas ao seu caráter dirigente*80*. De fato,


observa-se que, a partir do século XX , as Constituições deixam de representar
estaticamente os interesses sociais dominantes e passam a abrigar em si um
espaço de conflito, democrático e pluralista, voltado ao desenvolvimento social,
estabelecendo-se competências relacionadas à elaboração de políticas públicas
para o alcance dos objetivos elencados. Tomada, assim, a Constituição sob a
concepção de um projeto de transformação social, verifica-se em diversos textos
constitucionais - como é o caso do art. 3o da Constituição Federal brasileira de
1988 - a existência de um vasto programa de políticas públicas, definindo um
movimento contínuo na concretização de objetivos político-sociais31.
Em tal contexto normativo, a questão a resolver consiste, então, em
delimitar em que se concretiza a força normativa do texto constitucional no
âmbito penal, fundamentalmente no sentido de legitimar ou, ao contrário,
de fundamentar a criminalização de condutas com o fim de tutelar valores e
interesses expressos na norma fundamental.
Com efeito, se a partir do princípio da legalidade (nullum crimen nutta
poena sine lege), consagrado no art. 5o, inc. X X X IX , da Constituição Federal, se
estabelece a competência do legislador ordinário para decidir pela criminalização
de determinada conduta, prevendo a sanção correspondente, referida capacidade
nada significa se desacompanhada de critérios específicos para a eleição de
comportamentos delitivos. Surge daí a relação mais estreita entre Direito
Penal e Constituição, permeada pela política criminal. Nesse sentido, em razão
de materializar um consenso social valorativo prévio, a Constituição assume
especial relevância, como referencial nos processos de criminalização e de
descri minalização32.
Tratando especificamente das transformações legislativas ocorridas após o
texto constitucional brasileiro de 1988,verifica-se,porém,uma nítida expansão
da intervenção penal, notadamente no âmbito coletivo, seja em relação a novas
incriminações, seja quanto ao próprio aumento do rigor punitivo, o que, é bem
verdade, revela uma tendência comum no âmbito ibero-americano, fruto do
denominado “mal-estar constitucional” que, conforme assevera José Joaquim
Gomes C A N O T ILH O , corresponde à crise de efetividade pela qual passam

fio Cf. BERCOVfCI, Gilberto. Constituição econôm ica e constituição dirigente. ín: BONAVIDES,
Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira (coord.). Constituição e
democracia. Estudos em homenagem ao professor j.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros
Edilores, 2006, p. 219.
A na Elisa Liberatore Silva Bechara - 53

tanto o Estado como a própria Constituição na atualidade83. Nesse contexto,


o aumento de incidência do poder punitivo estatal advém não apenas da
insegurança gerada no âmbito da sociedade atual, decorrente de uma demanda
cada vez maior por prestações sociais e de um paralelo decréscimo da capacidade
prestacional do Estado, mas também de uma interpretação equivocada da
Constituição em relação à legitimidade da intervenção penal.
Antes de tudo, cabe ressaltar que a teleologia trazida pela superioridade da
Constituição, como ordem fundamental, não significa que o texto constitucional
possa ser convertido em um supercódigo totalizante, a ponto de liquidar
a autonomia e a especificidade jurídica de cada um dos ramos do Direito
estruturado a partir de seus valores. Assim, conforme observam Giovanni
FIA N D A C A e Enzo M U SC O , pretender afirmar que o sistema constitucional
seja fechado e auto-suficiente de valores dos quais derivariam diretamente as
normas penais equivaleria a subtrair a estratégia criminalizadora das regras
de discussão pública próprias de um regime democrático e pluralista, sendo
precisamente o respeito a essas regras que impede que a Constituição seja
transformada em uma espécie de Direito natural positivado, rígido e intangível8485.
Por isso, embora seja uma relação de relevância, 0 vínculo entre Constituição
e Direito Penal não pode ser tomado de forma piramidal positivista e, assim,
determinante em sentido absoluto84.
De fato, a razão de ser do elenco de direitos fundamentais, valores e
interesses sociais trazido no texto constitucional de forma ampla e aberta
deve-se a dois fatores: o caráter aberto das próprias finalidades constitucionais,
de um lado, e o caráter relativo da dogmática da ponderação, de outro86. Por

83 Cf. CANOT1LHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:


contributo para a com preensão das normas constitucionais programáticas. 2. eci. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001, pp. V etseq.
84 No mesmo sentido, v. f JANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Perdita de fegittimazione de! diritto
penale? Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, v. 37,1994, p. 39.
85 Nesse sentido, sobre os problemas de compreensão da Constituição como ordem fundamentai
ou ordem-quadro do Estado, v. Cf. CANOT1LHO, José Joaquim Gomes, justiça constitucional e
justiça penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, anoi4, n° 58, janeiro-fevereiro de 2006, p.
341. Sobre a crítica de uma concepção formal da constituição a fundamentara intervenção penai
à margem da análise da própria participação dos cidadãos, v. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los btenes
jurídicos colectivos; repercusiones de la labor legislativa de Jiménez de Asúa en ei Código Penal
de 1932. Estúdios de derecho penai en homenaje af profesor Luis Jimenez de Asua. Revista de ia
Facuitad de D erecho de ia Uníversidad Compiutense, n° n (monográfica), 1986, p. 155.
86 A partir de tal constatação. Oito LAGODNY defende a ideia de um diálogo entre Direito Penal
e Direito Constitucional e indaga: “no debería considerar-, al derecho penal ta piedra de loque de Ia
dogmática constitucional?Ante semejontes resultados en el âmbito penot, no deberíaesta reflexionai
sobre si mismar". LAGODNY, Otto. El derecho penai sustantivo com o piedra de toque de ia
' — r~'------- r~. u c r c u n c u i PrOanrt It A ! ta
54 - Bem J urídico-Penal

isso, se não existe uma teoria jurídico-constitucional do delito, isso decorre


das diferenças axiológicas e finalísticas entre Constituição e Direito Penal, de
forma que a teoria do injusto penal deve ser valorada de forma aberta, tendo
o texto constitucional como necessária referência87. D e fato, a diversidade de
objetivos do constituinte e do legislador penal faz com que ambas as ordens
não sejam coincidentes, mas sim coerentes. Então, nem todo bem, interesse ou
direito constitucionalmente previsto deve gozar de proteção penal, embora todo
ilícito penal deva compreender uma ofensa a um interesse constitucionalmente
relevante88. D e outro lado, a leitura da Constituição para o fim de buscar a
legitimação de formas específicas de intervenção penal deve necessariamente
levar em conta a unidade do texto constitucional, não sendo possível sua
decomposição em diversos núcleos ou setores autônomos8990, sob pena de
potencial violação de direitos fundamentais.
Aceita a vigência material da Constituição, interessa, portanto, precisar
quais são suas consequências válidas sobre o conteúdo e a função do Direito
Penal ou, de forma mais específica, saber se o legislador penal pode ser obri­
gado constitucionalmente à criminalização de ofensas a interesses sociais con­
siderados fundamentais.
A partir de referências explícitas no texto constitucional em matéria penal,
bem como do entendimento da existência de deveres implícitos de incriminação,
fundados na consagração de valores fundamentais, defende-se frequentemente
o entendimento da Constituição nos sentidos limitador e fimdamentador do
Direito Penal'a, o que leva à pretensa divisão, no texto constitucional, de dois

87 Nesse sentido, v. TIEDEMANN, Kiaus, La constitución y derecho penal. Trad. Teresa Martin. !n:
Derecho penal, Homenaje al doctor Raú! Pena Cabrera. Uma: Ediciones Jurídicas, 1991, p. 668.
Da mesma forma, tratando de um “programa penai da Constituição' com o o apoio do Direito
Penai na referência valorativa oferecida peia Constituição, Nicolas GARCIA RiVAS esclarece que
"no >e trata, pues, de un dibujo acabado sino de una guia para lo cuiminación de la obra". GARCIA
RIVAS, Nicoíás. El poder punitivo en el estado dem ocrática Cuenca: Ediciones de la Uníversidad
de Castiiia-La Mancha, 1996, p. 45.
8S Cf, l.ASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan Anionío. La propordonaíidad de !a norma penal. Revista Ibero-
- Americana de Ciências Penais, ano i, n° o, maio-agosto 2 000, p. 228. No mesmo sentido, v.
GONZÁLEZ RUS, juan josé. Bien ju ríd ico y constitución. Madrid: F.J. March, 5978, pp. 2 9 etseq.:
e TOLEDO Y U81ETO, Emiiio Octavio de. Eunción y limites dei principio de exclusiva protección
de bienes jurídicos. Anuário de Derecho Penal y Ciências Penates. T. XLilí, Fascículo I, enero-
abril, 5980. p. 9.
89 No mesmo sentido, tratando especifica mente da necessidade de observação da unidade
da Constituição em matéria econômica, v. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econôm ica e
constituição dirigente, cit., p. 221.
90 Sobre a defesa da força normativa da constituição nos sentidos lim itador e fundamentador
do Direito Penai, v. FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do direito penal. In:
WUNDERLiCH. Alexandre (Coord.j. Política criminal contemporânea: criminologia, direito penal
A na Elisa überatore Shva Bechara - 55

círculos concêntricos, sendo o mais amplo correspondente à legitimidade


(impondo limites à intervenção jurídico-penal), e o círculo menor voltado à
determinação das imposições de criminalização, na defesa de bens, interesses
e direitos fundamentais. O espaço entre ambos os círculos corresponderia,
conforme essa concepção, ao âmbito de liberdade legislativa91.
Abordando, em primeiro lugar, a menção expressa na Constituição de
incriminação de determinadas condutas, sua razão inspiradora poderia encontrar
fundamento em uma dupla consideração, a tratar da importância atribuída ao
interesse social a ser protegido, de um lado, e da necessidade da imposição de
pena para assegurar sua tutela eficaz, de outro. Referidos critérios de natureza
político-criminal seriam antecipados no texto constitucional em relação às
escolhas discricionárias normalmente remetidas ao legislador ordinário em
vista da experiência histórica e dos próprios objetivos a que se propõe 0 Estado
no momento da adoção da nova Constituição9293. Nessa linha, a leitura da
Constituição Federal brasileira de 1988 revela diversas diretrizes explicitamente
relacionadas à proteção penal em determinadas matérias, tais como, de forma
ilustrativa, as contidas no art. 5o, incs. X L II e X L III, no art. 7o, inc. X , no art.
225, parágr. 3o e no art. 227, parágr. 4o9\ materializando um consenso social

duplofaceto. Elo contém os princípiosfundantes ao exercício do poder em ordem a eliminar o arbítrio e


o defendera segurança e ajustiça nas relações cidadão/Fstado, em especial em relação ao poder penal.
Mas, p o r outro lodo, preocupada com a defesa activa do indivíduo C da sociedade em gerol, e tendo
em conta que os direitos individuais e os bens sociais, para serem efectivamente tutelados, podem nâo
bastar com a mera omissão estadual, não devendo ser apenas protegidos foce a ataques estaduais,
mos também face a ataques de terceiros, ela pressupõe (e impõe) amo actuaçõo estadual no sentido
protector dos valoresfundamentais (os valores que ela própria consígra/"Constituição e crime. Uma
perspectiva da criminalização e da descrimirtalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa
Editora, 1995, p. 273.
91 Cf. CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e crime, cit.. p. 299.
92 Cf. DOLC1NI, Emilio; MARfMUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos. Trad. José
de Faria Costa. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fase. 2, abril-junho 1994, p. 173.
Nesse sentido, os autores trazem os ilustrativos exemplos da norma constitucional alemã voftada a
responder historicamente ao período do nacional-socialismo: da previsão expressa na Constituição
espanhola de >978 de repressão aos abusos dos poderes públicos na luta contra o terrorismo,
fundada na experiência da ditadura de Franco; e os dispositivos constitucionais brasileiros que
tratam da punição de atentados aos direitos fundamentais, da prática de tortura, da ação de grupos
armados contra a ordem constitucional e a democracia, dirigindo-se claramente à prevenção
do retorno da ditadura militar, [dem, pp. 173-174. No mesmo sentido, tratando do adiantamento
dos juízos em matéria de política criminal pela Constituição, v. SANTANA VEJA, Dulce Maria. La
protección penal de los brenes jurídicos coiectivos. Madrid: Dikinson, 2000, p. 62.
93 Art. 5o, inc. XLIi, CF - "o prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito ò pena
de reclusão, nos termos da lei; “
Art. 5a, inc. XLIII, C f -"a le i considerará crimes inofionçávcis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática
da tortura, 0 tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, 0 terrorismo e os definidos como crimes
/>n< ní)f> f lf íf im H n S'^ nfVtitirCm : ~
5 6 - Bem Jurídico -P enal

sobre a importância da tutela dos valores fundamentais relacionados a referidas


questões.
Sob tal perspectiva, defendendo-se que o princípio fundamental penal
de intervenção mínima deriva do texto constitucional, não podendo, em um
movimento contrário, servir de referencial interpretativo da Constituição,
afirma-se a necessidade de tomar tal princípio sob o ponto de vista dinâmico, em
duas vertentes: uma negativa, manifestada nos processos de descriminalização,
e outra positiva, que garante a intervenção penal em casos relevantes. Nessa
segunda vertente, situar-se-iam as obrigações expressas de criminalização,
gerando ao Direito Penal o compromisso de proteção de bens jurídicos
fundamentais94.*
D iante de tais dispositivos constitucionais expressos - e a par do
reconhecimento da importância de reafirmação dos valores e interesses sociais
fundamentais no âmbito dos próprios objetivos de um Estado Democrático
de Direito é preciso analisar com cautela sua força normativa para efeito de
vincular o legislador penal, ponderando-se, nesse sentido, que a consideração da
Constituição não apenas como um limite, mas também como um fundamento
do Direito Penal pode, se mal interpretada, levar a um alargamento indevido
nessa esfera a impor ao legislador penal uma atuação ineficaz93.
Com efeito, são diversos os exemplos no ordenamento jurídico-penal
brasileiro a demonstrar os riscos da adoção de uma política criminal voltada
ao combate simbólico da criminalidade a qualquer custo, ao amparo de uma
pretensa obrigação constitucional explícita de tutela, acabando por gerar efei­
tos negativos à concepção sistêmica do Direito Penal e, assim, à sua própria
legitimidade e credibilidade social96. A hipótese mais ilustrativa da disfuncio-
nalidade de uma legislação penal baseada na suposta obrigatoriedade constitu­

Art. 225, parágr. 30, CF - "As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão
os infratores, pessoasfísicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente do
obrígodoção de repararas donos causados"
Art. 227, parágr. 40, CF - "A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança
e do adolescente."
94 Nesse sentido, v_ SANTANA VEGA, Dulce Maria. La protección penal de los bines ju rídicos
coiectivos, cit, p. 64.
93 No mesmo sentido, tratando de da tutela penal de situações de "emergência“, v. PASCHOAL,
janaina Conceição. Constituição, criminalização e direito penai mínimo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003, p. 71.
96 Conforme a crítica de Alberto Silva FRANCO, verifica-se no inicio dos anos 90 a instalação de
uma "fábrica de produção incessante de normas penais" no Brasil, o que faz o autor concluir estar 0
.1. j . - j ------------ Aon/prcàn Ha Direito Penal. "A criminalidade passo p or um processo
A na £usa Liberatore Sílva Bechaka - 57

cional explícita de incriminação talvez constitua a denominada Lei dos Crimes


Hediondos (Lei Federal n° 8.072/90), fruto de mecanismos de pressão social
vinculados ao medo irracional difundido pelos meios de comunicação e à des­
confiança em relação aos órgãos oficiais de controle, aos quais o legislador or­
dinário não soube resistir9'.
Além do equívoco da mera etiquetagem legal de determinadas condutas
como hediondas, que, despreocupada em relação à necessidade de se buscar
uma definição para a locução constitucional “hediondo”, acabou por impor
ao operador do Direito uma intolerável presunção absoluta de gravidade nos
casos concretos93, a análise dos efeitos da adoção de maior rigor na repressão
penal por meio da Lei dos Crimes Hediondos revela que não houve, na prática,
ganhos sociais sensíveis, haja vista a ausência de decréscimo das práticas delitivas
assim rotuladas. Ao contrário, a exacerbada atividade repressora do Estado
provocou o sensível aumento da taxa de encarceramento, em decorrência
direta do estabelecimento de medidas preventivas de contenção e de regimes
prisionais mais rígidos97989910.
A partir do exemplo emblemático da Lei dos Crimes Hediondos300, ve­
rificam-se, assim, os efeitos negativos de uma interpretação fimdamentadora
da força normativa da Constituição em relação ao Direito Penal, a evidenciar
os perigos da adoção de uma política repressiva do Estado com o objetivo de
demonstrar a capacidade de governar por meio do poder de punir. De fato
interpretar as prescrições constitucionais explícitas em matéria penal comc
obrigações absolutas de criminalização significaria o retrocesso aos excesso;
intervencionistas característicos do Estado Social, os quais foram criticado;
e abandonados justamente em razão de seu caráter autoritário. Analisando-
-se o texto constitucional a partir de sua unidade, verifica-se, então, que ante;

97 No mesmo sentido, v. REALE JÚNIOR, Miguel. Avanços e retrocessos. In: Estudos jurídicos en
homenagem a Manoel Pedro PimenteE São Paulo: Revista dos Tribunais, 5992, p. 275.
98 Nesse sentido, observa-se a crítica contundente de M iguel REALE JÚNIOR em relação .
inconstitucionalidade da Lei Federal n° 9.677/98, que acresceu ao rol dos crimes hediondos <
art. 273 do Código Penai brasileiro, em otensaaos princípios fundamentais da proporcionalidad-
e da ofensividade. REALE JÚNIOR, Miguel. A inconstitucionalidade da lei dos remédios. Revist
dos Tribunais, v. 763, A. 88, maio de 1999.
99 Apenas no Estado de São Paulo, observa-se que o número de presos aumenloti de cerca de 50.00'
em 5994 para 531.000 em 2004, em decorrência direta do estabelecimento de tais medida:
conforme dados da Secretaria de Administração Penitenciária disponíveis em: http://w w v
admpenitenciaria.sp.gov.br/dti/estaiisticas.html. Acesso em 13 de janeiro de 2010.
100 Poder-se-ia fazer referência também ao exemplo da Lei Ambiental fie i Federal n° 9.605/98
que, sob o amparo de pretensa obrigação explícita de criminalização prevista no art. 225, parág
3o, da Constituição Federai, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro dispositivos pena
amnlamente criticados oeía doutrina. Sobre o tema, v., amplamente, NfcTTO, Alamiro Velíud
58 - Bem Jurídico -P enal

de mais nada os valores, princípios e objetivos ali expressamente estabeleci­


dos - inclusive na esfera penal —devem relacionar-se ao próprio fundamento
democrático conferido ao Estado. Assim, será justamente a observância a essa
natureza democrática e personalista do Estado brasileiro que impedirá uma
leitura meramente positivista quanto à pretensa obrigatoriedade de tipificação
penal a partir da Constituição.
Na verdade, a interpretação constitucional remete, conforme observa
Vittorio M A N E S , a um circuito hermenêutico complexo e multifatorial,
que compreende de modo dinâmico diversas manifestações concretas do
ordenamento jurídico, bem como diferentes agentes relacionados à política do
Direito, a estabelecer critérios específicos voltados a dirimir o balanceamento
de interesses sobre os quais incidem as disposições constitucionais101. Apenas
a partir de tal análise, as prescrições constitucionais na esfera penal podem
materializar-se de modo producente no âmbito político-criminal.
A maior dificuldade na crítica à concepção constitucional fimdamenta-
dora do Direito Penal reside na constatação de que o núcleo das prescrições
constitucionais expressas em matéria penal em geral representa, de fato, inte­
resses fundamentais, cuja transposição ao âmbito jurídico-penal parece ser uma
decorrência lógica e, por isso, automática. De fato, a efetiva relevância social
dos interesses expressos nos dispositivos constitucionais acaba, por si só, tor­
nando-os merecedores de tutela penal. Nesse sentido, parece ser logicamente
acertada a idéia de obrigação constitucional de criminalização. D e outro lado,
verifica-se que a Constituição não estabelece como deve ocorrer a proteção pe­
nal de tais interesses. Assim, o equívoco está justamente no processo lógico-
- formal de transposição automática e a todo custo de preceitos constitucionais
à esfera penal, que impede o exame acerca do acerto político-criminal da tu­
tela determinada. Na realidade, as questões relativas à existência de obrigações
constitucionais de criminalização não abrangem em geral a discussão sobre o
merecimento de tutela penal dos interesses eíencados, a qual pode ser resolvi­
da positivamente, mas sim a gradação de referida proteção, a fim de impedir
que a intervenção penal se dê de forma desnecessária e abusiva.
Dessa forma, tomando-se a indicação expressa no texto constitucional
de hipóteses de criminalização ainda dentro dos princípios fundamentais que
regem o Direito Penal, dentre os quais os da intervenção penal mínima, o da
ofensividade e o da culpabilidade, cabe considerá-las como indicações - de
A na Elisa überatore Silva Bechara - 59

marcada importância, é bem verdade —para a possível atuação do legislador


ordinário, a ser sopesada conforme a efetiva necessidade e utilidade social de
tutela penal, no âmbito de um determinado contexto da realidade, e nos casos de
maior gravidade, em que não seja suficiente a utilização de outros instrumentos
informais e formais de controle102103.
D e outro lado, discute-se acerca de obrigações constitucionais implícitas
de criminalização, relacionadas à idéia de proibição de proteção deficiente
( Untermassverboi)im. Trata-se aqui de uma variação estrutural do princípio
de proporcionalidade, antagônica à ideia de proibição de excesso, de forma
a estabelecer um limite inferior à liberdade legislativa na tutela de direitos
fundamentais. A proibição de proteção deficiente define-se, assim, como um
critério para a determinação da eventual vulneração de um direito fundamental
de proteção por um ato estatal - por antonomásia, uma omissão104.
Quando se admite, em consonância com a concepção atual da Constituição,
a existência de um dever do Estado de intervir ativamente em favor da realização
das garantias constitucionais, inicia-se a discussão sobre até que ponto esse

102 Posicionando-se contra a existência de obrigações constitucionais expressas de criminalização,


v„ no Brasii, SILVEIRA, Renato de Meiio Jorge. Direito penal econôm ico como direito penal de
perigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 167-168; e PASCHOAL, Janaina Conceição.
Constituição, crim inalização e direito penal mínimo, cit., p. 114. Em sentido oposto, v. DIAS,
Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penai revisitadas. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999, p. 79 e, do mesmo autor, Direito penai. Parte gerai. Tomo I. Questões
fundamentais. A doutrina gerai do crime. i. e d . brasileira. São Pauio: Revista dos Tribunais, 2007,
pp. 129-130; BATISTA, Nilo. introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4. ed., Rio de Janeiro:
Revan, 1999, p. 90; PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1996, p. 72; CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e crime, cit, pp.
304-307 (embora a autora admita, em seguida, que “uma eventual obrigação de criminalização só
poderia existirem casos muito limitados, em que dignidade penal e necessidade de tutelafossem faísque
exigissem, de umaforma evidente ou quase evidente, a intervenção penal", p. 294); SANTANA V£GA,
Dulce Maria. La protectíón penal de los bienes jurídicos colectivos, cit., pp. 61 e ss.; e, de forma
mais contundente, FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do direito penai, cit., p. 223.
Paraleiamente, acerca da inconstitudonalidade de lei que descriminaliza conduta relacionada a
previsão expressa constitucional de criminalização, v. DOLONt, Emilio: MAR1NUCCI, Giorgio.
Constituição e escoiha de bens jurídicos, cit., p. 177.
103 Referida expressão é utilizada por CANARiS, Claus-Wifhelm. A influência dos direitos fundamentais
sobre o direito privado na Alemanha. Trad. Peter Naumann. !n: SARLET, Ingo VVolfgang (org.).
Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006, p. 244, encontrando-se também na decisão do Tribunal Constitucional Federai alemão na
qual se estabeleceu que o legislador, por força de mandado constitucional, estaria obrigado a
observara proibição da proteção deficiente no cumprimento do dever prestacionai relacionado à
tuteia de direitos fundamentais, devendo o Estado tomar medidas suficientes ao cumprimento do
seu dever de tutela, que façam com que se obtenha uma tutela adequada e, enquanto tal, eficaz.
{BverfCE. 28/05/1993), conforme citado por FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do
direito pena!, cit., p. 225.
104 Nesse sentido, v. 8ERNAL PULIDO, Carlos. El principio de proporcionalidad y los derechos
f. mon+aloc P! nrinz-inin A*> nrnnnrcionalirfad rnm n rrtfprio na ra determinar el contenido de
6 o - B em J urídico -Penal

dever pode entrar em contradição com o caráter de garantia dos direitos


fundamentais, como direitos de defesa dos indivíduos frente ao Estado. Nessa
linha, indaga-se, de um lado, se deve prevalecer a ideia de segurança ou, de outro,
permanecer válida a concepção de indivíduo e de sua relação com a sociedade
correspondente a um Direito Penal mínimo105. Costuma-se fazer referência,
nessa matéria, à decisão da Corte Constitucional Federal alemã (BVerfGE 39,
1, 45) que, em 1975, declarou inconstitucional a Lei de Reforma do Código
Penal506especificamente em relação à impunidade do aborto praticado nos três
primeiros meses de gestação, fundada na proibição ao legislador de renúncia
absoluta à proteção penal e na rejeição à idéia de que da Constituição não
podem emanar comandos de criminalização107.
Antes de tudo, ressalta-se que a proibição de proteção deficiente no
âmbito penal, longe de identificar-se com a tradição do conceito de bem
jurídico, constitui na verdade seu contraponto, ao transmitir uma mensagem
positiva, e não negativa, de limitação da intervenção penal. Nesse sentido,
chama a atenção o fato de referida proibição ao mesmo tempo basear-se nos
bens jurídicos e, compreendendo sua proteção de maneira modificada, servir
não apenas para formular propostas ao legislador penal, mas sim para criar-lhe
deveres normativos de criminalização108.
De forma similar ao que ocorre em relação às indicações explícitas
constitucionais de criminalização, aqui também se observa que a ponderação
entre a liberdade individual e o interesse social, bem como entre a delimitação
de liberdades individuais entre si, está compreendida nas margens de decisão
do legislador. Por isso, cabe antes de mais nada ao legislador ordinário decidir
se a proteção de determinado interesse deve se dar por meio do Direito Penal

705 Cf. STAECHELIN, Gregor. Es compatible la prohtbición de iníraprotecdón con una concepción
libera! dei derecho penal? Trad. David Felip i Saborit. fn: La insostenible situación dei derecho
penal. Granada: Cornares, 2000, pp. 290-291.
}o6 5. Gesetzfit r Reform des Strafrechts, 18/0 6/1 974.
707 Referida decisão se encontra comentada por ROXiN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo
1. Fundamentos. La estruetura de la teoria dei delito. Trad, da 2. edição alemã por Diego Manuel
Luzon Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesai. Madrid: Civitas, 1997, p.
64; PULiTANÒ, Domenico. Obbiigbi costituzionali dí tuteia penale? Rivista italiana di Diritto e
Procedura Penale, anno XXVi, 1983, p. 491; SANTANA VE GA, Dulce Maria. Laprotección pena! de
los bienes jurídicos colectivos, cit., p. 70; e FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do
direito penal, cit., p. 224. Seguiu-se a essa decisão uma outra oriunda da mesma Corte (BVerfGG88,
203), mas que concedeu ao legislador a possibilidade de proteger a vida em formação por outros
meios distintos do jurídico-penal, conforme comentários de ROXIN, Claus. Derecho penal, cit.,
p. 65; BERNAL PUUDO. Carlos. El principio de proporcionaiidad, cit., pp. 801-802; e FELDENS,
Luciano. A conformação constitucional do direito penal, cit., p. 225.
A na Elisa überatore Silva Bechara - 61

,Jfbr outros instrumentos de controle social, tais como o Direito Civil ou o


jifeito Administrativo, tendo, inclusive, prioridade esses outros mecanismos
fetutela, quando sejam suficientes109. Assim, na hipótese de conflito entre um
fflpeito fundamental de defesa e um direito fundamental de proteção, o princípio
| | | l proporcionalidade deve aplicar-se concomitantemente em suas funções de
proibição de proteção deficiente e de proibição de excesso, respeitando-se o
fhnbito de apreciação empírica e normativa do legislador110*. Verifica-se, desse
jóiodo, que apenas em casos extremos será possível concluir a prevalência da
proibição da proteção deficiente em matéria penal.
A ideia de proibição de proteção deficiente deve, portanto, ser lida
com reserva na esfera penal, pois quando a Constituição assegura direitos
fundamentais, obriga o ordenamento jurídico em geral a conferir meios à
efetivação dessa proteção. Isso logicamente não implica a imediata necessidade
da tutela penal. Se resta claro que, tratando-se da proteção de um bem jurídico
com dignidade penal, a descriminalização pelo legislador até pode ferir esse
desdobramento do princípio de proporcionalidade, tal raciocínio não poderá ser
levado a efeito aprioristicamente em sentido contrário (como dever automático
de tutela de um determinado valor constitucional por meio do Direito Penal
sob pena de se ferir a Untermassverbot), pois em tal caso ampliar-se-ia de forma
injustificada a intervenção penal.
De fato, a despeito do modelo de Estado Democrático de Direito assumido,
a Constituição Federal brasileira de 1988 reflete uma postura nitidamente
prevencíonista351. Nesse contexto, pretender transportar imediatamente as
prescrições constitucionais para a esfera jurídico-penal levaria à adoção de
um Direito Penal máximo, como instrumento de política governamental que
assume uma função meramente promocional, como mecanismo de pretensa
transformação social113.

109 Nesse sentido, v. ROXIN, Ciaus. Derecho penai, cit., p. 64; e GONZALEZ RUS, juan josé. Sier
ju rídico y constitución (bases para una teoria). Madrid: Fundación Juan March, 1978, p. 38.
no Cf. BERNAl PUUDO, Carios. Ei principio de proporcionalidad. cit., p. 805.
m No mesmo sentido, conclui e indaga Alberto Silva FRANCO: "O modelo gorantístico que éprópric
do Estodo Democrático de Direito já não se refletiu, deform a pleno e única, na Constituição Federa
de ig88, que se deixou invadir por posturas eminentemente prevenáanistas. Como entender que poss<
estarem consonância com o paradigma constitucional uma figura como a do crime hediondot Com<
considerarem coerência com um sistema democrático,fundado na dignidade da pessoa humana, tipo
imprescritíveis? Como admitir numa Constituição de inspiração liberai que se determine a espécie d
peno que. 0 legislador ordinário deve cominar para determinado delito? Como estabelecer, em níve
constitucional, que o legislador ordinário deve necessariamente criminalizar condutas ou atividade
lesivos ao meio ambiente ou o menores?" D o princípio da intervenção mínima ao principio da máxtm
r— ---------- prtrí.,<yiu>ía de Ciência Criminai, ano 6, fase. 2, abril-junho 1996, p. 179.
62 - B em J u r íd íc o -Penal

Observa-se, nesse sentido, que a criminalização de determinadas condutas


nem sempre significa a assunção eficaz da responsabilidade de tutelar interesses
constitucionalmente consagrados como fundamentais. Não raras vezes a falta
de compreensão quanto à origem dos problemas sociais impede uma resposta
jurídico-penal acertada. Essas dificuldades materializam-se claramente na
tentativa de articulação de meios de proteção penal dos interesses coletivos,
verificando-se com frequência a pretensão da criação de delitos contra tais
interesses quando na verdade se está a tipificar meras infrações formais, o que
leva à proteção de um modelo social, e não mais dos interesses sociais que o
compõem. No mesmo sentido, conclui Juan T E R R A D IL L O S B A SO C O
que converter reivindicações políticas em mandados moralistas implica o risco
de transformar a resposta penal em um castigo de caráter ético-retributivo,
incoerente com o modelo de Estado Democrático de Direito*113.
Nem todo bem, interesse ou valor estabelecido na Constituição pode ser
considerado um bem jurídico com dignidade penal. D e outro lado, nem todo
bem jurídico necessita de tutela penal, bastando muitas vezes a proteção por
outros ramos do Direito. Resta, assim, evidente o vício de se pretender fazer
derivar do reconhecimento de valores e interesses na Constituição a obrigação
do legislador de promover-lhes a tutela penal114. Portanto, em um Estado
Democrático de Direito, a força normativa da constituição em relação ao
Direito Penal volta-se obrigatoriamente à sua limitação (de modo a conferir-lhe
legitimidade), e não à sua fundamentação, em sentido positivo de determinação.

1.4. A P essoa c o m o D estinatária da N orma P enal


O personalismo característico do Estado de Direito vincula-se não só às
origens deste, como à própria ideia de Constituição. Após o fracasso reconheci­
do do modelo liberal para dar conteúdo real aos direitos e liberdades da pessoa,
a evolução do Estado, leva, porém, a duas possibilidades distintas, materiali­
zadas pela rejeição dessa base personalista, invertendo-se a relação indivíduo-

versão alemã). MU&OZ CONDE, Francisco {Coord, da versão espanhola). La ciência dei derecho
penai ante el nuevo milênio. Vaiencia: Tirant io Blanch, 2004, p. 76.
113 Cf. TERRADILLOS BASOCO, Juan. Constítución y ley penal. La imposibîe convergência, cit., pp.
657-661
1)4 Da mesma forma concluem MUNOZ CONDE, Francisco. Introducción al derecho penaL Barcelona:
Bosch, 1975, p. 74; BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito pénal.
Lineamentos de uma teoria do bem îuridïco. Trad. Ana Lucia SabadelL Revista Brasileira de
A na Elisa Uberatore Silva Bechara - 63

-sociedade, ou por sua manutenção, buscando-se, nesse caso, desenvolver no­


vos esquemas que superem as insuficiências da fórmula do Estado Liberal315.
Em âmbito brasileiro, a partir do estabelecimento dos princípios funda­
mentais decorrentes do Estado Democrático de Direito, bem como do teor da
Constituição Federal de 1988, o conteúdo da relação entre indivíduo e socie­
dade foi nitidamente pressuposto em favor do primeiro, haja vista o próprio
elenco dos valores fundamentais constante no art. I o do texto constitucional,
com destaque à dignidade humana e ao pluralismo político316-Nesse contexto,
há de se estabelecer o conceito de pessoa como destinatária da norma jurídíco-
-pênal, relacionando-o com a análise das teorias ético-políticas do liberalismo
e do comunitarismo.
Sob a perspectiva do liberalismo, o indivíduo possui um âmbito próprio
de liberdade sobre o qual o Estado não pode interferir, salvo para proteger a
liberdade dos demais, a partir do princípio de harm to othersn' . D aí decorre a
preponderância dos direitos individuais em relação ao interesse da maioria ou
à ideia de bem comum115*118, fixando-se os limites dentro dos quais a pessoa está
legitimada a afirmar livremente sua vontade para o fim de garantir a liberdade
necessária ao seu desenvolvimento, independentemente das valorações morais
dominantes119.
Essa exigência de neutralidade do Estado fundada no respeito à autonomia
privada implica, assim, a renúncia à fundamentação apriorística, religiosa ou
metafísica do Direito, estabelecendo-se um critério de legitimidade ancorado

115 No mesmo sentido, tratando dâ Constituição espanhola de 7978. v. BERDUGO GÓMEZ DE LA


TORRE, Ignacio- El consentimiento en las lesiones, cit., p. 66.
n6 A dignidade humana e o pluralismo político são consagrados como fundamentos do Estado
D em ocrático de Direito brasileiro, nos incisos 111 e V do art. i° da Constituição Federal,
respectivamente, ao lado da soberania, da cidadania e dos valores socais do trabalho e da livre
iniciativa. Sobre a ligação jurídico-positiva entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa
humana, v. MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e 3 unidade valorativa do sistema
de direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado luso-
-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 168.
J17 Conforme a denominação utilizada por John Stuart MILL para designara única finalidade peia qual
o poder pode legitimamente ser exercido sob re um m em bro da sociedade contra sua vontade,
afastando, inclusive, seu próprio bem com o justificativa suficiente. MILL, John Stuart. A liberdade.
U tilitarism o , trad. Isaiah Berlin. São Paulo: Martins Fontes, 2 0 0 0 , pp. 115 et seq. Referida obra
receb eu a inspiração da teoria do dano sociai d e W iiheim Von HUMBOLDT, em Id een zu einem
Versuch, die Grenzen d e r Wirksamkeit des Staates zu bestim m en (3792}. Cf. ROXIN, Claus. Zur
neueren Entwicklung d e r Rechtsgutsdebatte. In: HERZOG, Felix; NEUMANN, Uifrid. Festschrift für
W infried F fassem er H eidelberg: C.F. M ü lle r Verlag, 2010, p, 575.
nS Nesse sentido, v. RAWLS, John. Teoria de ia justicia. Trad. Maria Dolores Gonzalez. 1. ed., (reimpressão).
México: Fondo de Cultura Económica, 3997, pp. 19 et seq.
iiq Cf. FiABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho
6 4 - B em J urídico-P enal

nos interesses dos indivíduos, sujeitos de direito em uma sociedade laica e


liberal120*.
A partir do desenvolvimento dessa concepção, baseado em um individua­
lismo normativo característico do liberalismo político na linha de John
RAW LS, surge um conceito de pessoa identificado com a autonomia racional,
isto é, com a capacidade reflexiva de orientação para os próprios interesses.
Desse prisma, a pessoa é considerada indivíduo racional, capaz de valorar
criticamente, determinar e alterar suas concepções, com o fim de atingir seu livre
desenvolvimento. Para além dessa racionalidade, identifica-se no conceito de
pessoa também a ideia de autonomia política —ou razoabilidade relacionada
à cooperação social, no sentido de compromisso de respeito às decisões sobre
os conflitos de interesses nos moldes de um acordo social vinculante, de forma
a garantir-lhe a integridade125.
De outro lado, como reação frente às tendências liberais, em especial
ao neocontratualismo, tem-se o comunitarismo, a afirmar criticamente que o
individualismo no qual se apoia a postura liberal apresenta uma noção atomística
do sujeito, separado dos vínculos sociais e valorativos nos quais está naturalmente
imerso. Acentua-se, desse modo, a necessidade de consideração dos vínculos
comunitários estabelecidos pela pessoa por meio da participação democrática,
estabelecendo-se um sujeito moral arraigado em seu entorno social. Sob essa
perspectiva, não é a vontade dos indivíduos que constitui a sociedade, mas sim
o contrário: a comunidade é que outorga a identidade aos indivíduos, por meio
do processo de socialização122*. 0 comunitarismo estabelece, conforme observa
Rafael A L C Á C E R G U IR A O , o conceito de pessoa de forma absolutamente
integrada ao entorno social, estabelecendo-se sua consciência moral a partir
dos valores vigentes na sociedade à qual pertence. Ao indivíduo nega-se, sob
esse enfoque, a faculdade cognitiva de refletir criticamente sobre tais valores.
A esse ponto, é importante observar que a convivência social atual é ca­
racterizada pelo pluralismo, não sendo possível reconhecer que o indivíduo es-

120 Cf. ALCÁCER GUIRAO, Rafael. Los fines dei derecho penai. Una aproximación desde la filosofia
política. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2004, p. 158.
i2t Nesse sentido, v. RAWLS, John. Liberalismo politico. Trad. Sergio René Madero Báez. t. ed.
(reimpressão). México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 67 et seq., para quem “sabiendo
que ias personas son rackmales, no sabemos quefines persiguen; solo sabemos quepersiguen susfines
inteligentemente. Sabiendo que (as personas son ro/.onahies en lo que sc reftere o las demós personas,
sabemos que están dispuestas a regir su conducia por un principio o portir dei cuol ellasy los demós
personas pueden razonarunos (on oiros, y ía s personas razonables iomon en cuenta (as consecuencias
de sus ar tos en el bienestardelas demos" D essa forma, a autonomia plena da vida política distingue-
' 1 — *-----—:----nriç nnnfd»« nolihprali^mn
A na E usa ü bera to re S ilva B echara - 65

teja imerso em um universo fechado de convicções morais, como pretende o


comunitarismo, mas sim em uma realidade cuja complexidade lhe permite a
faculdade de reflexão e de dissenso, conduzindo a uma tendência de coopera­
ção social fundada no respeito e na tolerância125. Em consequência, a crítica do
comunitarismo ao conceito de pessoa deve ser rejeitada,justamente por negar
a prioridade dos direitos individuais sobre o bem comum ou o respeito à au­
tonomia a partir de concepções sociológicas ou psicológicas.
De fato, de modo contrário à ideia de que o sujeito não pode afastar-
-se de suas valorações adquiridas para contemplá-las criticamente, em razão de
seu plano de vida e seu processo de socialização articularem-se a partir de sua si­
tuação na comunidade, típica do comunitarismo, o liberalismo sustenta que, em­
bora referido processo de socialização seja dirigido pelo acúmulo de valorações e
tradições imperantes na sociedade, o sujeito pode desenvolver uma consciência
crítica acerca de tais valores, conforme sua capacidade racional124. A pessoa deve
ser tomada, portanto, como sujeito ética e politicamente autônomo, sendo tal
autonomia atribuída e reconhecida reciprocamente no âmbito intersubjetivo125.
Ressalta-se, porém, que a concepção de pessoa a partir do liberalismo po­
lítico de John RAW LS não é isenta de crítica, na medida em que esse autor
expõe a imagem de uma sociedade sem conflito, repressão ou violência, dei­
xando pouco espaço para o dissenso e manifestando uma forte tendência ho-
mogenizadora. A negação (ou ocultação) das diferenças valorativas por meio
da afirmação de princípios derivados de uma racionalidade universal acaba, as­
sim, por converter-se fatalmente em uma forma de coerção126.*•

123 Sobre a complexidade característica das sociedades atuais, v. IUHMANN, Niklas. Sociologia do
direito I. Trad. Gustavo Sayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 8; e HA8ERMAS,
jürgen. Faticidad y validez, cit., p. 125. Especificamente sobre a tolerância, é importante destacar
a crítica de José MARTÍNEZ DE PISÓN, para quem, no contexto atuai, nâo há mais que se faiarem
pluralismo, e sim em multiculturalismo, o que pode levara uma utilização repressiva dessa idéia,
que acaba por negar o reconhecimento e efetivação dos direitos dos diferentes grupos sociais.
Assim, buscar a solução de conflitos multiculturais no âmbito do pluralismo e da tolerância seria
um erro. Trata-se, na verdade, de uma luta peio reconhecimento da diferença, pela inclusão, e
?' não peia mera não discriminação ou igualdade de tratamento. MARTÍNEZ DE PISÓN, josé. La
f retórica sobre ia tolerância 0 las consecuendas üiberales de la teoria liberal. Direito e Democracio.
Revista de Ciências Jurídicas - ULBRA, v. 5, n° 2 ,20 Semestre de 2004, p. 316. Da mesma forma, v.
■' ALMEIDA, Luís Nunes de. Tolerância, constituição e direito penal. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, a. 53, n ° 2, abril-junho 2003, p. 162.
í 124 No mesmo sentido, v. ALCÁCER GUIRAO, Rafael. Los fines dei derecho penal, cit., p. 169.
• 125 Nesse sentido, v. RAWLS, John. Liberalismo político, cit., p. 40. Conforme adverte Rafael ALCÁCER
P GUIRAO, essa concepção de pessoa deve distinguir-se da noção fática de 'sujeito morai"
f’ socializado no âmbito de uma série de convicções concretas, pertencente ao universo do privado,
|| do subjetivo. Los fines de! derecho penal, cit., p. »72.
;a „ ., rÁD/~r>\/A rarioe Maria iiictir-ia cnmn pm lida d o sorfedad como coníHcto.
66 - Bem J urídico -P enai.

Na verdade, a característica fundamental de uma democracia pluralista


não reside na ausência de dominação ou violência, e sim no estabelecimen­
to de instituições e práticas comunicativas que permitam enfrentá-las. H á de
se observar, então, que ainda que a pessoa não possa mais ser tomada a par­
tir de uma perspectiva individualista, sua consideração como ente social há
de ser lida com cautela, e não de forma asséptica, independentemente de um
contexto político-social, encontrando, pois, seus limites no âmbito do Estado
Democrático de Direito. Analisado dessa forma o conceito de pessoa, atingem-
-se benefícios em relação aos mecanismos de tutela estatais, sem, contudo, le­
var a concepções equivocadas sobre a necessidade de um intervencionismo
desmedido de natureza moral e apriorística, que viole direitos fundamentais.
Transportando o conceito de pessoa para a esfera jurídico-penal, sua aná­
lise haverá de ser considerada sob uma perspectiva normativa, no sentido de
estabelecer os limites do tratamento conferido pelo Estado ao indivíduo nes­
se âmbito, o que não se releva tarefa fácil, haja vista a tensão permanente en­
tre faticidade e validez, ou, em outras palavras, entre eficácia penal e garantias
individuais.
De um lado, parece evidente que no âmbito de um Estado Democrático de
Direito o conceito normativo de pessoa não pode se basear no modelo hobbe-
siano de homem econômico137, e sim em uma idéia intersubjetiva de acordo
pelo qual os cidadãos tendem a cooperar sobre as normas que regulam a con­
vivência social. Essa imagem de pessoa cooperadora leva o indivíduo ao res­
peito às normas.
Referida cooperação não decorre, contudo, de um processo cognitivo
complexo, fundado na ponderação de todas as expectativas sociais, mas sim do
convencimento racional em relação ao benefício que o respeito às normas gera
para a convivência social, no marco de uma sociedade democrática na qual o
legislador é considerado legítimo. Observa-se, então, que a decisão individual
de respeito às normas não é motivada por razões deontológicas, segundo um
imperativo categórico, incondicionado, mas sim pelo interesse pessoal racio­
nal. Assim, no conceito de pessoa, o razoável depende do racional: o indivíduo
somente se dispõe a respeitar as normas porque pôde comprovar no âmbito da127*

127 Nio mesmo sentido, Com elius PRlTTWITZ critica, ao analisar a figura d o homo economicus. a
contraposição dos cidadãos como “egoístas racionais' e "leais em si ao direito" pois “desconoce
t/ijpel roiionai c.hoke opprooch suporte uno reconstrucdán en cuyo marco puederepresentorse tonto h
A na E lisa übera to re S ilva B ecmara - 67

convivência democrática que a cooperação constitui instrumento mais eficaz


para a manutenção de condições de desenvolvimento da liberdade pessoal12S.
Esse modelo que reúne o racional e o razoável, com raiz na concepção de John
RAW LS, é, portanto, apto a representar o conceito de pessoa em um ordena­
mento jurídico não apenas liberal, mas, também, democrático128129.
H á que se observar, em todo caso, que o contexto social democrático é ca­
racterizado pelo pluralismo e por situações concretas de desigualdade em dis­
tintas esferas. Assim, a regulação da convivência social não poderá deixar de
considerar o dissenso, devendo partir e destinar-se a pessoas reais, e não entes
abstratamente considerados.
A pessoa, tom ada a um só tempo como destinatária e fundamento da
norma jurídico-penal, deve, assim, ser entendida em sua dimensão concreta,
a partir de sua capacidade de relacionar-se socialmente, com o fim de atingir
seu livre desenvolvimento. E ssa concepção impede que o indivíduo seja con­
siderado objeto da norma ou da política pública do Estado, reconhecendo-
se sua condição de sujeito no contexto social. A partir desse entendimen­
to, mostra-se ilegítima a adoção de modelos de intervenção penai funda­
dos em uma visão apriorística da pessoa, justamente por desrespeitarem,
em qualquer caso, sua autonomia, considerada em sentido político-social.
Ê interessante observar, nesse sentido, que referida concepção de pessoa
como destinatária da norma retira, ainda, a legitimidade das formas de in­
tervenção penal na linha paternalista, representadas pela tutela autoritá­
ria de situações em que, na verdade, não se verifica violação relevante ao

128 Sobre a relação entre o racional e o razoável no conceito de pessoa, John RAWLS observa que "k>
raxonable (con su ideo de la reciprocidad) no es (o altruísta (lo imparcial que sólo actúa enfavor de los
intereses de los demos) n i tompoco es la preocupociân por elyo (y solo impulsionado p or fines personoles
y afectos). In una sociedadrazonoble, mós sencillamente ilustrada cn una sodedodde iguales en cuanfo
0 los asuntos básicos, todos b s ciudadanos tienen sus p raptos objetivos rucionoles que espetemfavorecer,
y todos estão dispuestos a proponer términos justos que se espera raxonahlemente acepten los demós, de
maneta que todos pitedan beneftciarseymejorar, según lo que coda cualpueda lograrpor si mismo. f sto
sociedad razonoble no es nr uno sociedad de santos ni una sodedod de egocêntricos, f.s, con macho, parte
de nuestro mundo humano ordinário, un mundo a! que no te atribuímos machas virtudes, hasta que nos
vemosfuero de ei Pero etpoder moral quesubyace en la capaddadde proponer, odesubscribir,y!uegode
ser impulsionados o actuor a panir de términos justos de coopcradón, por si mismos, canstituye de todos
modos una virtudsocial esenda!.". RAWLS, John. Liberalismo político, dt-, p. 71. No mesmo sentido,
v. ALCÁCER CUIRAO, Rafael. Los fines dei derecho penal, cit., pp. 255-259.
129 Da mesma forma, Albin ESER critica 0 que denomina de concepção "unidimensional" de pessoa,
considerando-a c o m o enre tridimensional, isto é, não apenas tomada individualmente, mas
também como ser social e membro de uma cadeia geradonal projetando-se, a partir da observância
d essas d imensões, 0 sistema penal. Cf. ESER, Aibin. Una j usticia pena I 'a la medida de! ser humano'’.
6 8 - B em J u r íd ic o -P enal

bem jurídico, em razão do interesse dos próprios indivíduos concretamen­


te envolvidos330.
Conclui-se, desse modo, que a concepção jurídico-penal de pessoa não
pode derivar nem de uma interpretação moral do indivíduo e de seus direitos
fundamentais nem de uma leitura ética da sociedade. A pessoa como destina­
tária da norma penal há de ser respeitada e reconhecida antes de qualquer ou­
tro valor ou interesse, não por corresponder à parte da coletividade, e sim por
sua dignidade, materializada na autonomia política dirigida à busca do livre
desenvolvimento no âmbito das relações sociais de que participa. Dessa forma,
mantém-se a posição preferencial da pessoa frente ao Estado, haja vista que
este último deve sua existência à primeira, e não vice-versa.

1.5. P rimeira A proximação à Função d o D ireito P enal e


ao C onteúdo M aterial d o D elito
A análise da evolução histórica do Direito Penal ou da própria aquisição
do conteúdo material do delito evidencia seu paralelo com as transformações
político-sociais do Estado. Assim, no período medieval, a justificação metafí­
sica da intervenção penal era coerente com a concepção religiosa do Estado,
constituindo-se o delito como pecado e a pena como exigência de justiça,
análoga ao castigo divino. A partir do Absolutismo, o Direito Penal converte-
-se em instrumento ilimitado de submissão dos súditos, num contexto de
terror estatal oriundo da atribuição de uma função de prevenção geral sem
limites à pena. A luta pelo Estado de Direito, de outro lado, levou inicial­
mente à preocupação de controle jurídico do poder, de forma a limitar a
intervenção penal proporcionalmente à sua utilidade estabilizadora do con­
trato social. Com o consequência, o conteúdo material do crime foi definido
pela verificação da ocorrência de lesões das liberdades asseguradas no pacto
social, transformando-se em um critério negativo à críminalização. Dentro
dessa concepção, o Direito Penal, mesmo como meio de repressão voltado à
prevenção de delitos, representava, antes de mais nada, um instrumento de
garantia da liberdade individual131.
Durante o século X IX , ao mesmo tempo em que se consolidavam as idéias
liberais, foram surgindo condições que acabariam por superá-las. Nesse senti­
do, a aparição do proletariado nas cidades serviu de base a movimentos sociais
A n a E u sa L iberatore S iiv a B echara - 6 9

dirigidos à reivindicação de um Estado que abandonasse o mero garantismo


neutro e interviesse na rida social em favor dos mais fracos. Tal exigência de
intervenção estatal produziu-se também no âmbito penal, que aumentou con­
sideravelmente sua incidência, e constituiu o ponto de partida da escola positi­
va italiana, iniciada por Cesare L O M B R O SO e posteriormente desenvolvida
por Enrico FERR1 e Rafael G A R O FA LO até o início do século X X , segundo
a qual a política criminal não pode se limitar a assegurar garantias aos agentes,
mas sim buscar combater eficazmente a criminalidade. Volta-se, nessa linha,
a enfatizar a ideia da prevenção penal - sobretudo como prevenção especial,
materializada no tratamento científico e individualizado do delinquente132.
N a primeira metade do século XX, assistiu-se à consolidação da tendência
intervencionista do Estado Social, conduzindo a sistemas políticos autoritários,
como 0 soviético, o fascista e 0 nacional-socialista, nos quais 0 Direito Penal
atinge seu limite máximo de endurecimento. A derrota de tais regimes políticos
na Segunda Guerra Mundial permitiu o estabelecimento de um novo modelo
de Estado que, a par de reforçar seus limites jurídicos em sentido democrático,
não abandonou seus deveres para com a sociedade. Surge, daí, conforme assevera
Santiago M IR PUIG, 0 Estado Democrático de Direito, no âmbito do qual
o Direito Penal assume funções específicas, legitimando-se como sistema de
proteção efetiva dos cidadãos, por meio da ideia de prevenção - o que leva à
tendência de tutela de uma quantidade crescente de interesses de titularidade
comum mas agora naturalmente limitada pelos princípios herdados da
tradição liberal do Estado de Direito, reforçados pela necessidade de seu
preenchimento com conteúdo democrático133.
Porém, ainda que se possa concluir que as raízes filosóficas do sistema
penal se situam no Iluminismo, não tendo sido substituídas ou esgotadas por
influências filosóficas posteriores, a tentativa de encontrar uma justificação
racional da função do Direito Penal não representa tarefa fácil, nem carente
de polêmica134.

132 No mesmo sentido, tratando do desenvolvimento do Direito Penal a partirda evolução dos modelos
de Estado, v. MIR PUIG, Santiago. Constitueión, deredio penai yglobaltzación, cit., p. 06.
133 Cf. MiR PUiG, Santiago. Constitución, derecho penal y globaiización, dt„ p. 07; e TOLEDO Y
UBIETO, Emílio Octavio ríe. Función y limites dei principio de exclusiva protección de bienes
jurídicos, cit., pp. 12-13.
134 Nesse sentido, tratando de forma aparentemente conjunta da função do Direito Penai e da
finalidade da pena, já advertia Tobias BARRETO, com alguma ironia, que ".Vo meio detaes questões
sem sabida, parvamente suscitadas, e ainda mais parvomente resolvidas, occupa lugar saliente 0 celebre
questão da origem ejundom ento do direito de punir. É uma espécie de adivinha, que OS mestres crém-se
7 0 - Bem Jurídico -P enai

1.5.1. Função d o D ireito P enal no Estado D emocrático


de D ireito
Ao se analisar a função social desempenhada pela intervenção penal135*1378,
o primeiro objeto de estudo que tende a se estabelecer é a pena, justam en­
te em razão dessa representar o fator diferenciador fundamental em rela­
ção a outros instrumentos formais de controle. D essa forma, a justificação
do Direito Penal depende em grande medida da própria legitimidade da
sanção penal. H á de se distinguir, portanto, entre os fins da pena e a fun­
ção do Direito Penal, estabelecendo-se entre ambos uma relação de meio e
fim13'’. Assim , o fim da pena corresponde em geral à prevenção de delitos,
o que constitui meio para um fim ulterior, relacionado ao próprio Direito
Penal (entendido de forma majoritária como de proteção de bens jurídi­
cos). De outro lado, como bem lembra SILV A S Á N C H E Z , a função do
sistema penal não apenas se verifica quando se impõe uma pena ou medi­
da de segurança, mas também quando não se aplica nenhuma sanção, di­
rigindo-se, nesse caso, à proteção dos agentes frente ao poder estatal. Tal
função estaria, portanto, ao lado da função principal de proteção de bens
jurídicos, sendo, inclusive, com essa conflitante, em razão de se voltarem a
direções e interesses opostos13'.
Tratando especificamente da função do Direito Penal, a partir do pri­
meiro terço do século X IX , e com base na herança utilitária do Iluminismo,
passou-se a considerá-la tradicionalmente como a proteção de direitos sub­
jetivos, depois traduzidos em bens jurídicos, ou bens jurídico-penaism , en-

no Direito Penal v. HASSEMER, Winfried. Direito penal. Fundamentos, estrutura, política. Org.
Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos. Trad. Adriana Beckman Meireíies; Carlos Oliveira de
Vasconcelos; Felipe Rhenius Nitzke; Mariana Ribeiro de Souza; e Odim Brandão Ferreira, Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, pp. 34-36,
135 Miguel POLAINO NAVARRETE destaca a controvérsia estabelecida entre as noções de "fins" e
"funções" do Direito Penal, haja vista que a primeira perspectiva se reiaciona com uma concepção
garantista teleológica, voltada às consequências, enquanto a segunda incide na própria essência
do ordenameníojurídico-penal, visando á configuração de determinado sistema normativo, e não
sua mera descrição, orientada por critérios axiotógicos ou teleológicos. Cf. POLAINO NAVARRETE,
Miguel. Naturaleza dei deber jurídico y función ético-social del derecho penal. Cuadernos de
Conferencias y Artículos, n° 31, Universidad Externado de Colombia, Centro de ínvestigación en
Filosofia y Derecho, 2004, p. 7.
Í36 Contrariamente a esse posicionamento, de forma a vincular os fins da pena com a função do direito
penal, v. BACICALUPO, Enrique. Princípios de derecho penal. Parte general Madrid: Akal, 1997, p. 7,
137 Nesse sentido, v. .SILVA SÁNCHEZ, Jesús Marta. Aproximación ai derecho penal contemporâneo,
cit., pp. (87-188.
138 Não se desconsidera que, para além da função de proteção de bens jurídicos, há inúmeras outras
funções atribuídas ao Direito Penai, como a simbólica; a de controle social; a promocional; e a
A na Elisa Liberators Silva Bechara - 71

tendidos em sentido amplo como aqueles bens e valores fundamentais da


pessoa e da sociedade539.
A identificação da função da intervenção penal com a proteção de bens
jurídico-penais, cumprida a partir da determinação do conteúdo material do
delito, impede, assim, que qualquer tipo de interesse ou convicção moral cuja
violação não tenha repercussão social negativa relevante possa servir de fun­
damento de incriminação, constituindo, portanto, garantia fundamental do
Direito Penal moderno.
E, porém, sob a perspectiva teleológico-racional que se chega à concepção
da função do Direito Penal amplamente aceita na atualidade, a saber, a de tutela
subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal139140, nos quais vem a se
concretizar jurídico-penalmente o conceito sociológico fluido da danosidade
social141. Nesse contexto, reconhece-se que o conteúdo material do crime não
poderia ser buscado em qualquer ordem extra-penal, devendo estar, no âmbito
da própria função conferida ao Direito Penal, no sistema jurídico-social142.
D e fato, a partir da concepção do Direito Penal como sistema racional-
-teleológico, em contraposição à referência ontológica do finalismo, a compre­
ensão e aplicação da intervenção penal são guiadas por suas próprias finalida-

139 Observa-se que embora a discussão sobre a reiaçào da função cio Direito Penai com a proteção de
bens jurídicos possa parecer ultrapassaria a partir do século XX, em âmbito alemão assistiu-se no
projeto governamental do Código Penai de 1962 a uma tentativa de exceção importante e perigosa,
a evidenciar que a discussão na verdade nunca foi superada:"embora na maior parte dos casos
as normas penais sirvam à tateia dc bens jurídicos, isso não exclui a possibilidade de cominar penas a
determinadasformas de comportamento espeaolmente reprováveis sob o ponto de vista ético, execráveis
poro o sentimento comum, mesmo se de sua realização não deriva imediatamente a tesão de um bem
jurídico." Essa concepção foi amplamente criticada peio grupo de penaiistas alemães responsáveis
peio denominado Projeto Alternativo, restando finalmente estabelecido no art. a0 do Código Penai
germân ico que "as penas c os medidas servem à proteção de bensjurídicos eòreinserçào socialdo outorí.
Cf. GARCIA R!VAS, Nicolás. El poder punitivo en eí estado democrático, cit., p. 47.
140 Sobre a função do Direito Penal com o instrumento subsidiário de proteção de bens jurídicos,
v., dentre outros, POLAiNO NAVARRETE, Miguel. Naturaleza deí deber ju rídicoy función ético-
-social dei derecho penal. Bogotá: Universidad Externado de Cofombia, 2004, p. 09; ANDRADE,
Manuel da Costa. A dignidade penal e acarência de tutela penal como referências de uma doutrina
teleoiógico-racíona! do crime. Revista Portuguesa de Ciência Crim inal ano 2, v. 2, abril-junho
1992, p 178; DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisítadas, cít.
p. 67; HASSEM ER. VVinfried; M UNOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por eí produeto en
derecho penal, cit., p. 20: MiR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte general, cit., p-137; e ROXIN,
Ciaus. D erecho penal. Parte general, cit., p. 54.
141 Nesse sentido, v. ROXIN, Ciaus. El legislador no lo puede todo. Trad. Manuel Abanto Vásquez. /ter
Criminis. Revista de Ciências Penales, n° ?2 (segunda época), 2005. p. 325. Observa-se, porém, que
embora façam parte de um mesmo juízo de dignidade penal, o referente material da dignidade
de tutela do bem jurídico não se confunde com a potencial danosidade social da conduta, como
lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos. Nesse sentido, v. ANDRADE, Manuel da Costa. A
j2 - B em J u r íd ic o -P enal

des. Busca-se o resgate valorativo, anteriormente procedido pelo neokantismo


por meio dos valores culturais, mas agora a partir das bases político-crimi­
nais da moderna teoria dos fins da pena143*. Nessa linha, a função do Direito
Penal seria a defesa da sociedade e do indivíduo frente a riscos sociopoliti-
camente intoleráveis544.
Nesse contexto, o sistema penal necessariamente terá seu conteúdo cons­
truído e interpretado normativamente, sob o prisma valorativo, à luz de sua
finalidade, voltada, como visto, à proteção dos interesses fundamentais à manu­
tenção e ao desenvolvimento social. Essa concepção funcionalista afasta—se do
mero estabelecimento apriorístico de conceitos fechados, aplicáveis de forma
absoluta aos fatos concretos por meio de uma operação lógico--formal545.
De outro lado, a funcionalização do Direito Penal nos moldes de uma política
criminal permite a interação da entre o sistema penal e o modo de funciona­
mento da sociedade, possibilitando a sempre renovada discussão acerca de sua
legitimidade e das alternativas para a concretização de sua função146.
Há, de outro lado, autores que refutam a função do Direito Penal de tutela
de bens jurídicos, merecendo atenção na atualidade a concepção sistêmica de
Günther JA K O BS, que propõe a ultrapassagem do dogma do bem jurídico,
substituindo-o por um princípio de danosidade social. Seguindo a linha de seu
mestre Hans W E L Z E L , JA K O B S considera que o Direito Penal apenas tem
sentido como mecanismo de manutenção da ordenação social e, assim, como
contribuição para o seu funcionamento sem perturbações. Neste contexto, a
disfuncionalidade do crime não residiria essencialmente na violação de um

14} Cf. ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general, cit., p. 203. Lucio Antonio CHAM ON JUNIOR
recorda, nesse sentido, que a alusão a "sistema" de ROXIN não pretende fazer referência ao
Direito nos moldes da teoria dos sistemas de Niklas LUHMANN, e sim à reunião, "sob o monto de
uma determinada idéia, sob determinadas princípios, os diversos conhecimentos da dogmático penal,
estruturando estes conhecimentos sob a luz desses princípios, permitindo, assim, que o teoria do delito
seja, em suas palavras, um todo ordenada." CH AMON JUNIOR, Lúcio António. Do giro finalista ao
funcionalismo. Embates de perspectivas dogmáticas decadentes. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 2004, p. 46.
)44 Nesse sentido, v. ROXIN, Claus. Sobre a fundamentação político-criminal do sistema jurídico-penai.
Trad- Luís Creco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 35, julho-setembro 2001, p. 16. Da
mesma forma, sobre a evolução do Direito Penal após a Segunda Guerra, e precisamente em
relação ao estabelecimento de uma política criminal voltada para as consequências, v. HASSEMER,
Winfried. História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra. Trad. Carlos Eduardo Vasconcelos.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, v, 2, n° 06, abr./jun. 1994, pp- 48 etseq.
145 Nesse sentido, v. ROXIN, Claus. Política crimina! e sistema jurídico-penal. Tradução por Luts
Greco. Rio de janeiro: Renovar, 2000, pp. 20 e seq. Também observa tais vantagens num sistema
pena! teieoiógico Píerpaolo Cruz BOTTINi. Crim es de perigo abstrato e princípio da precaução
rio risro São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 171.
A na Elisa Liberatore Silva Bechara - 73

bem jurídico, mas, antes, em seu sentido simbólico de denegação da fidelidade


ao Direito, por meio da p roble matização da vigência das normas necessárias à
orientação da ação e à estabilização das expectativas, sem as quais a interação
social não é possível147,
A partir de tal postura funcionalista sistêmica, pretende-se buscar a
legitimidade do Direito Penal não mais na necessidade social oriunda do
reconhecimento de valores, e sim na própria vigência da norma incriminadora,
que provê sua auto-proteção, fazendo submergir a ideia da proteção de bens
jurídicos em uma profunda crise. Nessa perspectiva, trata-se de preservar a
identidade normativa da sociedade, porém com ênfase não em seus fundamentos
acerca dos valores que a norma visa a proteger, e sim na própria reafirmação do
Direito como instrumento da sociedade a serviço da justiça, que em si mesmo
nem se protege e nem se deixa proteger, e que, a despeito de ser chamado a
cumprir funções de índole axiológica, normativa e político-criminal que lhe
são inerentes, não se identifica substancialmente com essas148.
O Direito Penal teria, então, por função garantir a identidade da sociedade,
respondendo ao fato punível que é tomado em seu significado comunicativo149150.
Quando a sociedade impõe uma pena, afirma sua recusa em alterar sua configuração
em razão do fato punível como ato de evolução, mantendo firme seu status quó1^.
A pena tem, assim, a função de restabelecer, no plano da comunicação, a vigência
perturbada da norma, contradizendo o projeto de mundo do infrator: “esteafirma
a não vigência da norma para 0 caso em questão, porém a sanção confirma que esse
afirmação é irrelevante A s normas são, portanto, definidas como os verdadeiro:

147 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penai. Coimbra: Coimbr;
Editora, 1991, pp. 109-127. Também de forma crítica à função do Direito Penal de proteção d<
bens jurídicos, Juan Ignacio PINA ROCHEFORT, afirma que o Direito Penal deve estar dirigido.
proteção de uma ordem valiosa, isto é, de um sistema de expectativas que permite a vida sociai
Nesse contexto, a função do bem jurídico seria manter orientada a operação do sistema pena
ao cumprimento dessa fonçào, porém não é seu cumprimento por si mesmo, isso não que
dizer, conforme o referido autor, que o princípio cumpra uma função menor no sistema. piN.-
ROCHEFORT, juan Ignacio. Aigunas consideraciones acerca de la (auto) legitimadón dei derecb
penal. Es ei problema de la legitimidad abordable desde uma perspectiva sistêmico-constructivisia
in: GÓMEZ-JARADÍEZ, Carios. Teoria de sistemas yderecho penal Fundamentos y posibiiidade
de aplicación. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 287.
148 Nesse sentido, v. POLAINO NAVARRETE, Miguei. Naturaieza del deber jurídico, cit., pp. o a -io
149 Nesse sentido, defendendo a garantia da identidade da sociedade como função do Direito Pena
v. CAMARGO, Antonio Luis Chaves, imputação objetiva e direito penal brasileiro, cit., p. io;
BOTTINt.Pierpaolo Cruz. Crim es de perigo abstrato e princípio da precaução, cit-, p. 171, embo:
ambos os autores não adotem integralmente a concepção funcionalista sistémica, na linha c
Günther jAKOBS.
150 Cf. jAKOBS, Günther. imputadón jurídico-penal. Desarroiio de! sistema a partir de las condiciona
de vigência de ia norma. Sn: Problemas capital es dei derecho penal moderno. Buenos Aire
'' r-----" ' t * ' n n o n c a m e n t o d e 1AKOSS,C A N C iO M ELi.
74 * B em J u r íd ic o -P enal

bens jurídico-penais tutelados, não sendo relevantes no processo da ratificação


do sistema as consequências psicossociais advindas da imposição da pena, à qual
se atribui, assim, exclusivo fim de prevenção geral sistêmica1511523.
Não se trata, porém, de proteger a identidade de um Direito Penal fiel
apenas a si mesmo, mas sim a identidade da sociedade da qual tal Direito é um
sistema parcial. Dessa forma, a expectativa contra cuja defraudação há a reação
deve ser, já com independência do Direito Penal, uma expectativa social, pois
de outro modo sociedade e Direito Penal não encontrariam harmonia entre si.
Existe, portanto, uma dependência recíproca entre a sociedade e o Direito Penal,
cabendo “cobrar ao Direito Penal que realise esforçospara assumir novosproblemas
sociais, até que o sistemajurídico alcance uma complexidade adequada com referência
ao sistema social; do mesmo modo, ao revés, o Direito Penalpode recordar à sociedade
que se devem ter em conta certas máximas que se consideram indisponíveis’^ 1.
A respeito da teoria sistêmica de JA K O B S, são feitas diversas críticas no
sentido de que, conforme essa concepção, o indivíduo acabaria fiincionalizado
ao Estado15’. De fato, o que se pretende é estabilizar normas, e, assim, a própria
sociedade, sem que haja preocupação sobre se tais normas garantem ou não
as liberdades individuais e sem se deixar espaço para nenhuma perspectiva
de evolução. Diante desta concepção, o indivíduo, a despeito de ser tido em
um contexto pretensamente comunicadonal, na qualidade de sujeito, surge
desprovido de garantias ante o Estado, que a ele se antepõe. D a mesma forma,
a justificação do Direito Penal apenas a partir de sua referência funcional
ao sistema social não confere referentes externos claros que permitam uma
valo ração crítica. Nesse passo, ao surgirem novas necessidades sociais, o Direito
Penal teria a obrigação dc assumi-las, a fim de adaptar-se ao novo sistema, sem

151 Cf. JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho pena! y ía configuration normativa de !a sociedad.
Trad, e recompüaçãojacoboLópez Barja deQuiroga. Madrid: Civitas, 2004, p. 77: do mesmo autor,
Sociedad, norm ay persona en una teoria de un derecho penal funcional. Trad. Manuel Cancio
Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez. Madrid: Cuadernos Civitas, 1996, p. 19. Conforme entende
JAKOBS, 0 próprio ordenamento jurídico impõe por vezes o sacrifício do bem jurídico, haja vista
que a sociedade não pretende a mera conservação de bens, e sim possibilitar os contatos sociais.
Conclui-se, nessa linha, que o bem jurídico não seria capaz de explicar a função do Direito Penal
na sociedade. JAKOBS, Günther. JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte General. Fundamentos
y teoria de ia ímputadón. Trad. Joaquin Cueilo Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de Murillo.
2, ed. Madrid: Marcia! Pons, 1997, pp. 250-251.
152 Cf, JAKOBS, Günther. Sociedad, norma y persona, cit, p. 21; e, do mesmo autor, Dogmática de
derecho penai, rit., pp. 75 <*í seq.
153 A esse respeito, José Joaquim Com es CANOTILHO adverte que a utilização abusiva da
funcionalização, mesmo no contexto de um Estado Democrático de Direito, é apta a conduzir
a censuráveis institutos como os da perda e da suspensão de direitos individuais fundamentais.
A na E lisa L iberatore S ilva B echara - 75

que possa restar evidenciado quais os critérios a permitir a consideração da tutela


de tais questões como afeta à esfera penal em lugar de outros ramos jurídicos154.
De outro lado, conforme se verificou, uma das diferenças fundamentais
entre o liberalismo e o comunitarismo consiste na exigência motivada pela
autonomia política, no âmbito do primeiro, de que 0 ordenamento jurídico seja
apto a ser reconhecido e aceito pelos intervenientes no tráfico jurídico-social.
Assim, na perspectiva do liberalismo é preciso que 0 Direito esteja assentado
em pressupostos racionais e responda aos interesses dos cidadãos. Na concepção
comunitarista, por sua vez, o Direito encontra sua origem e legitimidade na
identidade coletiva da comunidade, a partir de seus valores morais vigentes,
o que leva a fundar esse processo de legitimação em pressupostos irracionais,
portanto insuscetíveis de reflexão crítica15S. Essa oposição racional —irracional
é igualmente aplicável às concepções ideológico-racional e funcional sistêmica
sobre a função do Direito Penal.
De fato, a identificação da função do Direito Penal com a manutenção
da vigência do próprio sistema normativo, como um mecanismo estruturado
de forma autorreferencial, possui o efeito de reafirmar o Direito por si mesmo,
restabelecendo a confiança existente antes da prática do delito. Então, sob
essa perspectiva, a ausência de ofensa a bens jurídicos não é importante para a
manutenção da vigência da norma, mas sim a mera crença dos cidadãos de que
estes não sejam ofendidos. Surge, daí, conforme adverte Rafael A L C Á C E R
G U IR A O , o risco de esse modelo de intervenção jurídico-penal converter-se
em tecnocrático,por meio de uma estratégia política de desinformação, criando-
se a falsa percepção social de uma segurança materialmente inexistente156.
Não se pretende deixar de admitir a relevância da segurança das expecta­
tivas normativas como condição da liberdade individual em qualquer âmbito
social. Assim, a proteção da vigência das normas {entendidas como expecta­
tivas sociais institucionalizadas) deve ser mesmo um fim a ser legitimamente
buscado pelo Direito Penal, inclusive no contexto de um Estado Democrático
de Direito. Tal proteção da segurança cognitiva é, porém, necessariamente re­
lacionada à concreta proteção das condições materiais garantidas juridicamen­
te, entendidas como interesses do indivíduo para seu livre desenvolvimento,

154 No mesmo sentido, v. Cf. MENDOZA BUERCO, Blanca. £1 derecho penal en lasociedad dei riesgo.
.V /la /ír id - r i v i t a e o r> m r>n
76 - Bem Jurídico -P enal

pois são essas condiçoes, e não à estabilidade das normas que as garantem, que
possibilitam a efetiva participação do cidadão na sociedade557.
De outro lado, se é verdadeiro afirmar que a proteção de bens jurídi­
cos implica o respeito e, assim, a proteção da vigência das normas que os
garantem, o contrário não se dá necessariamente, vale dizer, a proteção da
vigência das normas não implica, por si, a efetiva proteção de bens ju rí­
dicos, mas apenas a crença de que isso ocorre. Apesar de guardarem cer­
ta compatibilidade, ambas as funções do Direito Penal não podem, então,
ser consideradas de forma autônoma e nem mesmo a partir de um vínculo
de reciprocidade no âmbito de um ordenamento penal democrático, mas
sim em uma relação voltada a uma única direção: a função de manutenção
de expectativas sociais institucionalizadas apenas se justifica se o Direito
Penal protege efetívamente os bens jurídicos correspondentes. Conclui-se
que a função primordial do Direito Penal é a proteção subsidiária de bens
jurídicos, possuindo papel apenas complementar e mediato a tutela da se­
gurança cognitiva a eles relacionada5Ss.
Na verdade, a partir da compreensão da divisão entre normas de conduta
e normas de sanção (na linha germânica), ou entre de normas primárias e nor­
mas secundárias (nas linhas espanhola e brasileira), a contradição teórica difun­
dida entre a proteção de bens jurídicos e a reafirmação da vigência das normas
revela-se apenas aparente. A ideia da confirmação da vigência da norma e, as­
sim, da estabilização do sistema normativo, embora seja fundamental ao Direito
Penal, relaciona-se mais com os fins da pena, que não se confundem com a
função da intervenção penal, voltada à proteção subsidiária de bens jurídicos.
De fato, para alcançar sua função de tutela de bens jurídicos, o Direito
Penal serve-se da cominação, imposição e execução da pena, esforçando-se,
assim., para garantir a observância das normas penais de conduta. O fim ime­
diato da pena constitui, então, justamente a estabilização ou a mera imposi­
ção das normas existentes para a proteção de bens jurídicos, perseguindo-se,
em geral, uma finalidade preventivo-geral e, ao mesmo tempo, preventivo-es-

157 No mesmo sentido, v. ANASTASOPOULOU, toanna. Deliktstypen zum Schutz kollektiver


Rechtsgüter. München: Verlag C.H. Beck, 2005, p. 178, e ROXIN, Claus. Zur neuren Entwicklung
der Rechtsgutsdebatie, eit., pp. 589-590.
558 Oa mesma forma, con clu i Rafael ALCÁCER G U IR A O que ~el derechopenaf solopuede asegurorof
dudadono que su* biene* na serán atacados en la medida en que ortieuie médios para proteger esos
biene*. {...) in cond asiún, elfin preventivo del derecho penal radica prímordiolmenteen la proíección de
1 J . .. '• i-r- //« //, r//>/o / tr r rm / t- firx>Q i n t i m r i n i p f í t p
A na E usa Liberatore S ilva B echara - 77

pecial, ao determinar ao agente em concreto a observância da norma159. Desse


modo, a manutenção da identidade normativa da sociedade e a reafirmação da
vigência do ordenamento infringido constituem, mais do que uma função le-
gitimadora em si, uma consequência essencial derivada daquela função essen­
cial preventiva do Direito Penal160.
D e outro lado, pode-se relacionar a discussão sobre a função do Direito
Penal diretamente com a evolução da teoria da norma em seus âmbitos
imperativo e valorativo, o que levou a uma evolução também de toda a teoria
do delito. Tem-se, na atualidade, o entendimento da norma penal não apenas
em seu sentido motivador, na linha de Enrique G IM B E R N A T O R D E IG 161162.
acrescentando-se como contrapeso na avaliação da intervenção jurídico-penal
um juízo de necessidade, a fim de que não se chegue à aplicação formal e
excessivamente rígida do Direito Penal em pretenso benefício da sociedade.
Referido juízo de necessidade somente poderá ser complementado com a idéia
valorativa presente na norma, entendida em seus sentidos objetivo (a relevância
da incriminação de determinada conduta depende da objetiva ofensa ao interesse
social tutelado pela norma), e subjetivo (a busca da motivação do indivíduo ao
cumprimento ou respeito à norma é, também, a busca de sua consciência em
relação ao interesse social dela contido), ainda que a motivação e a valoração
possam se dar em momentos distintos. Assim, a norma penal não pode possuir
a mera natureza de uma ordem, importando, antes de tudo, a significação de seu
conteúdo valorativo para a sociedade. A norma penal constitui, portanto, tanto
norma de determinação como norma de valoração, pois aquela baseia-se nessa362.

159 RUPOLPHI, Hans-joachim. Eí fin dei derecho penal dei estado y fas formas de imputadón jurídico-
penal. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Comp.). EI »sterna moderno del derecho penal: cuestiones
fundamentales. Estúdios en honor de Ciaus Roxin en su 5 0 o aniversario. Trad. Jesús Maria Silva
Sánchez. Madrid: Tecnos, 1991, pp. 82-83. No mesmo sentido, v. ANDRADE, Manuel da Costa.
A dignidade penal e a carência de tutela penai com o referências de uma doutrina teieoíógico-
-raciona! do crime, cit., p. 179.
160 No mesmo sentido, v. POLAINO NAVARRETE, Migyel. Naturaleza dei deber jurídico, cit., p. 10; e,
do mesmo autor, Proíección de bienes jurídicos y confirmación de la vigência de la norma: dos
funciones excluyentes? Cuadem os de Política Criminal, n° 93,2007, segunda época, p. 38-
161 Enrique GIMBERNAT ORDEIG entende a norma pena! fundamentalmente como norma de
motivação, a partir de um entendimento psicoanalítico das relações sociais, que explicaria
a observância das regras jurídicas em razão da inibição psicológica que a ameaça de sanção
correspondente produz. A pena é, entlo, concebida peio autor como um importante instrumento
de política social, voltado à prevenção geral positiva. GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Ttene futuro
ia dogmática juridicopenal? In: GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Estúdios de derecho penal. 3.
ed. Madrid: Tecnos, J990, pp. *46 etseq.; e, do mesmo autor. Ei sistema dei derecho penai en la
actualidad. !n: GIMBERNAT ORDEIG, Enrique, idem, p. 174.
162 No mesmo sentido, v. BACIGALUPO, Enrique. La función dei concepto de norma en la dogmática
penai. Estúdios de derecho pena! en homenaje a! profesor Luis Jimenez de Asua. Revista de ia
F a n ilta r i rio ne.rí»f-hft rio ia t Inrvorairíprl rV jm n ln to rx tp ti Innnnooráficrri ro fifi n A“ ' p í t J 7 r ) N
78 - B em J u r íd ic o -Penal

Por isso, a exteriorização de uma vontade contrária ao imperativo da norma


não basta para caracterizar como delitiva a conduta, requerendo-se, para além
disso, a materialização de uma lesão ou colocação em perigo do bem jurídico
tutelado1*'. De fato, se a norma penal não é apenas um imperativo, mas, antes,
uma valoração, deve responder a algo, materializado nas exigências de garantir
a existência, conservação e desenvolvimento da vida social. Contrapõe-se,
assim, conceitualmente o princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos ao
denominado princípio de desobediência, afirmando-se que o Direito Penal e
uma teoria do delito somente podem partir do bem jurídico163164*.
Consequentemente, apenas se pode avaliar de modo fundamentado uma
norma jurídica se se conhece quais interesses sociais são por ela protegidos
e como são em seu âmbito resolvidos eventuais conflitos. Portanto, sob a
perspectiva da teoria das normas, verifica-se que a tentativa de identificação
da função do Direito Penal com a reafirmação da vigência normativa reflete,
na verdade, uma concepção autoritária, que, a partir da consideração da
desnecessidade de motivá-las racionalmente (fazê-lo debilitaria, nas palavras
de Santiago M IR PU IG , a ideia de que basta a vontade do legislador para
impô-las e daria a entender que a legitimidade das normas não depende só do
poder, mas sim também da aceitação de sua valoração por seus destinatários),
não admite qualquer contestação do ordenamento vigente16’ .

Alberto ARROYO ZAPATERO, tratando da função de motivação da norma penai, partem da idéia
de que a ameaça constitui um momento lógico distinto do de interiorizaçâo no sujeito do valor
tutelado pela norma - o bem jurídico. Manual de derecho penal. Parte General. Instrumentos y
princípios básicos dei derecho penal. Barcelona: Praxis - Wolter Kluwer, 1994, pp. i4etseq. Sobre
a evolução da teoria da norma penal nas concepções imperativa e vaíorativa e sua relação com
a função do Direito Penal, v. BORJA JiMÉNEZ, Emiiiano. Algunas reflexiones sobre ef objeto, ei
sistema y la función ideológica dei derecho penal. Anuário de derecho penai y ciências penales,
t. LI, 1998, pp. 205-219.
163 Cf. SERRANO-PiEDECASAS FERNÁNDEZ, José Ramón. Conocimiento científico y fundamentos
dei derecho penai, cit., p. XXIíl (Introducción).
164 Cf. jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. Trad. Santigo Mtr Puig e
Francisco Mufioz Conde. Barcelona: Bosch, 1981, p.321; GONZÁLEZ CUSSAC, José Luis. GONZÁLEZ
CUSSAC, José Luis. Principio de ofensividad, apiicación dei derecho y reforma penal. Poder
judiciai, 2. época, n° 27, Septiembre 1992, p. 08; BETFIOL, G. institucionesde derecho penal y
procesal penai. Trad. F. Gutiérrez-Alvizy Conradi. Barcelona: 1987, p.36; e BUSTOS RAMÍREZJuan.
Contro! social y sistema penal. Barcelona: PPU, 1987, p.36. À conclusão próxima sobre a natureza
da norma penai chega SILVA SÁNCHEZ, também tratando da teoria das normas, quando afirma
a possibilidade de conciliação entre as concepções de norma como diretiva de conduta e como
expectativa institucionalizada. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Diretivas de conduta ou expectativas
institucionalizadas? Aspectos da atual discussão sobre a teoria das normas. Trad. Alamiro Veiiudo
Salvador Netto e Renato de Mello Jorge Silveira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 17,
n° 79, julho-agosto de 2009, p. 141.
A na Elisa Liberators Silva Bechara - 7«

N o contexto de um Estado Democrático de Direito, tem-se o dever d>


permitir que as normas penais sejam corretamente valoradas pelos cidadãos, j:
que sua legitimidade não depende do caráter imperativo, mas, antes, do con
senso social sobre a importância dos interesses por elas tutelados. Portanto, t
discurso de reafirmação da vigência das normas pode até encontrar algum fun
damento e aplicabilidade no Direito Penal contemporâneo, mas não como su:
função, haja vista a incapacidade de materializar um critério de limitação e le
gitimidade da intervenção penal.
A norma jurídica que define o injusto penal não é, assim, uma mera norm:
de reconhecimento, e sim uma norma de conduta, associada, por isso, à finalidad
de delimitação do poder punitivo do Estado a partir de um pressuposto matéria
que lhe trace os contornos de estabilidade566.

1.5.2 .0 C onteúdo M ateríal d o D elito


A partir da verificação da função do Direito Penal como instrumenú
subsidiário de tutela de bens jurídico-penais, surge naturalmente a indagaçã<
sobre 0 objeto de referida proteção, ou, em outras palavras, o conteúdo dc
delito16'. Em análise superficial, poder-se-ia afirmar que delito é o fatt
considerado positivamente pelo legislador como tal, fazendo coincidir seu
conteúdos formal e material. Na verdade, porém, o questionamento sobn
quais condutas podem ser proibidas e sancionadas pelo direito penal lev;
necessariamente à própria questão da legitimidade e dos limites da intervençã«
penal. Nesse sentido, o conteúdo do delito deixa de estar resumido ao aspect«
formal e, sob a perspectiva material, corresponde ao padrão crítico do pode
punitivo estatal1617168.
A importância da distinção entre o conceito formal e o material de delitc
cuja necessidade já fora sentida desde a obra de B E C C A R IA 169. deriva, entãc
da diferenciação das funções que cada um deles cumpre. Assim, enquanto <
conceito formal de delito descreve a extensão concreta da zona de intervençãt

166 No mesmo sentido, v. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto pena!, cit., pp. 179-180.
167 Sobre a evolução do conceito de delito, é digna de nota a concepção de Tiberius OfGANUS ni
século XVI, em seu Troctaius críminolis { ‘Factum homrnis, vel dictum aut scriptum, doía vel culpa a k g
vigente sub poena prohibitum, quod nuHa insta cousa excusort potest'), com impressionante precisai
técnica - embora não se fizesse ainda nenhuma referência à idéia de danostdarfe ou a interesse
dignos de proteção considerando-se que a elaboração teórica do Direito estava à época en
seus primórdios. SCHAFFSTEIN, Friedrich. La ciência europea dei derecho penal en la epoca de
l > M m 4 n t « m r v Tr—wd Iz s r Á \ D c t / b íc iu r iT n n t / n c - i i kic-I-Í t ■11 A n Crtiix-Jirtj- ta — ^ -
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