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Capítulo5 vi outra coisa senão o campo, tento expressar da melhor

forma possível o que vi e o que senti quando trabalhava".2


A arte como um sistema cultural
Qualquer pessoa que seja sensível a formas estéticas
partilha d esse sentimento. Até mesmo aqueles entre nós que
não são nem místicos nem sentimentais, e nem dad os a
ímpetos de d evoção estética, se sentem pouco à vontade
quando discursam pro longadamente sobre uma o bra d e arte
1 na qual julgam ter visto algo de valor. Aquilo que vimos, ou
Como é notório, é d ifícil falar d e arte. Po is a arte parece que imaginamos ter visto , parece ser tão maio r e tão mais
existir em um mu ndo p ró prio, que o discurso não pod e importante que o que logramos expressar com nossa balbú-
alcançar. Isso acontece mesmo quando e la é composta de cie, que nossas palavras soam vazias, cheias de ar, até falsas.
palavras, como no caso das artes literárias, mas a dificuldade Após qualquer conversa sobre arte, a expressão "quando não
é ainda maio r quando se compõe d e pigmentos, ou sons, ou somos capazes d e falar, devemos ficar em silêncio" chega a
pedras, como no caso d as artes não-literárias. Po deríamos parecer uma doutrina bastante aceitável.
dizer que a arte fala po r si mesma: um poema não deve
À exceção d aqueles que são verdadeiramente indife-
significar e sim ser, e ninguém poderá nos dar uma resposta
rentes à Arte, no entanto , pouquíssimas pessoas, e entre elas
exata se quisermos saber o que é o jazz. os próprios artistas, conseguem manter esse silêncio. Ao
Artistas sentem isso mais do que ningué m. A maior parte co ntrário, a percep ção de algo importante em alguma obra
deles considera o que foi escrito e dito sobre sua obra, ou especial ou nas artes de um mo do geral, encoraja comentá-
sobre uma obra que admiram, quando muito, irrelevante e, rios incessantes, sejam estes falados ou escritos. Não pode-
no mínimo, uma d istração que os afasta d e seu trabalho. mos simplesmente esquecer em seu canto , banhando-se em
"Todos querem entender a arte", escreveu Picasso, "por que sua própria significância, algo que significa tanto para nós.
não tentam ente nder a canção d e um pássaro ... ? Quem tenta Portanto , descrevemos, analisamos, comparamos, julgamos,
explicar quadros, acaba se esforçando em vão." 1 Ou, se isto classificamos; elabo ramos teorias sobre criatividade, forma,
parece d emasiado avant-garde, pod emos citar Millet, quan- percepção, função so cial; caracterizamos a arte como uma
do se o pôs a que o classificassem como um saint-simo nista: linguagem, uma estrutura, um sistema, um ato, um símbolo ,
"Os comentários sobre meu livro Man with a hoe me pare- um pad rão de sentime nto: buscam os metáforas científicas,
cem mu ito estranhos, e lhe agrad eço por ter me informad o espirituais, tecno lógicas, políticas; e se nada d isso dá certo ,
sobre des, po is isso me deu mais uma o portunidade d e me juntamos várias frases incompreensíveis na expectativa d e
maravilhar com as idéias que me atribuem. Meus críticos são que alguém nos ajudará, tornando-as mais inteligíveis. À
pessoas de bo m gosto e educação, mas não sou capaz de inutilidad e superficial d e uma conversa sobre arte parece
colocar-me no lugar d eles, e como, desd e que nasci, nunca correspo nder uma necessidade profund a d e fal ar sobre ela

1. Cilado c m R. Go ldwatc r e M. Trcvcs, Arlists 011 a r/ . Nova Iorque, 1945, p . 42 1. 2. Cf. ibid., p. 292·93.

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incessante mente. E é esta situação bastante peculiar que de chegar à conclusão de que falar sobre arte unicamente
quero investigar aqui, parcialmente para explicá-la, e , mais em termos técnicos, por mais elaborada que seja esta discus-
importante , para tentar descobrir se o fato de que ela existe são, é o suficiente para entendê-la; e que o segred o total d o
tem ou não conseqüências. poder estético localiza-se nas relações formais entre sons,
Em quase todo o mundo, fala-se da arte em termos que imagens, volumes, temas ou gestos. Em qualquer parte d o
poderíamos chamar de artesanais - progressões de tonalida- mundo, e mesmo, como mencionei anteriormente, para
des, relações entre as cores, ou formas prosódicas. Esta uma maioria entre nós, outros tipos de discurso cujos ter-
tradição é ainda mais comum no Ocidente, onde temas mos e conceitos d erivam d e interesses culturais que a arte
como harmonia ou composição pictórica desenvolveram-se pode servir, refletir, desafiar, ou descrever, mas não, por si
d e tal forma que passaram a ser considerados como ciências só, criar, se congregam ao redor da arte para conectar suas
menores e onde o movimento moderno, orientado para um energias esp ecificas à dinâmica geral da experiência huma-
formalismo estético cujo melhor representante no mo mento na. "O objetivo de um pintor", escreveu Matisse, a quem
seria o estruturalismo, ou para os vários tipos de semiótica ninguém pode acusar d e d ar pouco valor à forma, "não d eve
que buscam seguir-lhe os passos, não são senão uma tenta- ser considerado separadamente de seus me ios pictóricos e
tiva de generalizar esta maneira de ver a arte, tornando -a por sua vez, estes devem ser tanto mais completos (e não ' '
mais abrangente, e elaborando uma linguagem técnica capaz quero dizer mais complicados) quanto m ais profundo for
de expressar as relações internas entre mitos, poemas, dan- seu p ensamento. Não consigo distinguir entre o sentimento
ças ou melodias em termos abstratos e permutáveis. Falar de que tenho pela vida e minha forma de expressá-lo."4
arte em termos artesanais, no entanto, como nos lembram O sentimento que um indivíduo, o u, o que é mais crítico,
as teorias elaboradas sobre musicologia indiana, coreografia já que nenhum homem é uma ilha e sim parte d e um todo,
javanesa, versificação árabe, ou gravuras iorubas não é uma o sentimento que um povo tem pela vida não é transmitido
abordagem característica unicamente do Ocidente ou da unicamente através d a arte. Ele surge em vários outros
Idade Moderna. Mesmo os aborígines australianos, que são segmentos da cultura d este povo: na religião, na moralidade,
sempre o exemplo mais citado quando se fala d e povos na ciência, no comércio, na tecnologia, na política, nas
primitivos, analisam seus desenhos corporais e suas pinturas formas d e lazer, no direito e até na forma em que organizam
no solo, utilizando inúmeros elementos formais espedficos sua vida prática e cotidiana. Discursos sobre arte que não
a que deram nomes também específicos, como gráficos sejam meramente técnicos ou espiritualizações do técnico -
unitários em uma gramática icônica d e representação.3 ou pelo menos a maioria deles - têm, corno uma de suas
O que é mais interessante, porém, e, a meu ver, mais funções principais, buscar um lugar para a arte no contexto
importante, é que só no Ocidente e talvez só na Idade das demais expressões dos objetivos humanos, e dos mode-
Moderna, surgiram pessoas (ainda uma minoria que, suspei- los de vida a que essas expressões, em seu conjunto, dão
tamos, está destinada a permanecer como minoria) capazes sustentação. Mais que a paixão sexual e o contato com o
sagrado, outros dois assuntos sobre os quais, mesmo quan-

3. Veja N.D. Munn, \'Va/biri l co11ograpbJ\ lthaca, N.I., 1973 .


' 4. Cicado cm Go ldwarcr e Trevcs, Arlisls 011 t1rl , p. 4 10.

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do necessário, também é difícil falar, não pode mos de ixar arte como eles, estudiosos, fal am , ou como gostariam que
que o confro nto com os objetos estéticos flutue, opaco e os objetos d e seus estudos fal assem: em termos d e suas
hermético, fora d o curso normal da vida social. Eles exigem propried ad es formais, de seu conteúdo simbólico, de seus
que os assimilemos. valores afetivos, e de seus elementos estilísticos.
O que isso implica, e ntre outras coisas, é que, e m qual- Não há dúvida, porém, de que esses povos falam sobre
quer sociedade, a d efinição de arte nunca é totalmente a arte, como falam sobre qualquer coisa fora do comum, o u
incra-estética; na verdade, na maioria das socied ad es e la só sugestiva, ou emocionante que surja em suas vidas - dizem
é marginalmente intra-estética. O maior problema que surge como deve ser usad a, quem é seu dono , quand o é tocad o ,
com a mera presença do fenô meno do po der estético, seja quem to ca, ou quem faz, que papel d esempenha nessa ou
qual fo r a forma em que se apresente ou a habilidade que o naquela atividad e, pelo que pode ser trocado, qual seu
pro duziu , é como anexá-lo às outras form as d e atividade nome, co mo começou, e assim por diante . Na maioria d as
social, como incorporá-lo na textura de um padrão d e vida vezes, po rém, essas informações não são consideradas um
específico. E esta incorporação, este processo de atribuir aos discurso sobre arte, mas sim sobre alguma outra coisa -vida
objetos d e arte um significado cultural, é sempre um proces- cotidiana, mitos, comércio, ou coisas semelhantes. Para
so local; o que é arte na China ou no Islã em seus períodos aquele que não sabe d o que gosta, mas sabe o que é arte, o
clássicos, ou o que é arte no sudeste Pueblo ou nas monta- que faz um Tiv quando passa horas costurando ráfia em um
nhas da Nova Guiné, não é certamente a mesma coisa, pedaço de tela antes d e ter a co ragem d e tingi-la (ele nem
mesmo que as gualidad es intrínsecas que transformam a examina o que já fez, até que o trabalho esteja completamen-
fo rça emo cional em~is as concretas (e não tenho a menor te terminado), ou o que diz, como um deles disse a Paul
intenção d e negar a existência destas qualidad es) _EOssa ser Bo hannan, "se o d esenho sair ruim, eu vendo para o s lbo;
universal. A varied ad e, que os antropólogos já aprenderam se sair bom, eu fico com ele; se sair muito , muito bom eu
a esperar, d e cre nças espirituais, d e sistemas d e classificação , dou p ara minha sogra", não parece estar relacio nado com
ou d e estruturas d e parentesco que existem entre os vários sua obra artística, mas sim com algumas d e suas atitudes
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povos, e não só em suas formas mais imediatas, mas também sociais. A abordagem que se u tiliza para a arte desce lado da
na maneira de estar no mundo que enco rajam e exempli- estética ocidental (que, como nos lembra Kristeller, só surgiu
ficam , também se aplica a suas batidas d e tambo r, a seus em meados do século XVIII, junto com nosso conceito
entalhes, a seus cantos e danças. bastante peculiar d e "belas artes") e por qualquer tipo d e
fo rmalismo a p rior i , nos cega para a própria existência dos
É a incap acidade de compreender essa variedad e que
d ados que possibilitariam a construção de um estudo com-
leva a muitos dos estudiosos da arte não-ocidental, princi-
parativo. O que nos sobra, como acontecia antes nos estudos
palmente d aquela a que chamamos d e "arte primitiva", a
sobre totemismo, casca, ou sistemas d e dotes, e acontece
exp ressar um tipo de comentário que ouvimos com freqüên-
ainda em estudos escruturalistas, é uma concepção externa-
cia: que os povos d essas culturas não falam, ou falam pouco,
sobre arte. O que ess<::s comentários, na verdade, querem
dizer, é que, a não s<::r de forma lacônica, ou críptica, como
se tivessem muito pouca esperança de serem compreendi·
dos, os povos qu <:: esses estudiosos observam não falam de S. P. Bo hanna n, ')\nist and critic in an african soclct)'", lnA11tbropologyn11 d rir/ , o rg.
C.M. O tten; Nova Iorque, 197 1, p. 178 .

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lizada de um fenômeno que, supostamente, está sendo quer dizer literalmente: "esta terra tem linhas em sua face".
inspecionado intensamente, quando, na realidade, não está '"Civilização' em ioruba," continua Thompson,
nem mesmo n a nossa linha de visão. é ilàjú - rosto com marcas de linhas. O mesmo verbo que
Pois, como não é nenhuma surpresa, Matisse estava civiliza o rosto com marcas que identificam os membros de
certo: os mt:ios através dos guais a arte se e (essa e o várias linhagens urbanas e citadinas, cíviliza a terra: ó sá k éké·
Ó sák o (ele talhou as marcas (da cicatriz]; ele limpa ~ m;to)~
sentimento pela vid a ue os estimula são inseparáveis, Assim
O mesmo verbo que abre marcas em uma face yoruba, abre
~orno não podemos con siderar a linguagem como uma lista
estradas ou fro nteiras na floresta: Ó làn(/n; ó /à ààlà; ó lapa
de variações sintáticas, ou o mito como um conjunto de (ele abriu uma nova estrada; ele demarcou uma nova fro n-
transformações estruturais, tampou co podemos entender teira; ele abriu um novo caminho). Na verdad e, o verbo
objetos estéticos como um mero encadeamento de formas básico para cicatrizar (/à) tem associações múltiplas relacio-
puras. Tomemos como exemplo um tema aparentemente nadas com a imposição de um padrão humano sobre a
tão transcultural e abstrato como a linha, e consideremos desordem da natureza: ped aços de mad eira, o rosto human o,
seu significado n a escultura ioruba, segundo a d escrição e a floresta, todos são 'abertos' ... para permitir que a quali-
6 dade interior daquele objeto ou substância surja e se desta-
brilhante feita por Robert Faris Thompson. A precisão li-
que . 7
near, diz Thompson, a mera clareza do traço, é a preocu-
p ação principal dos escultores ioruba e daqueles que
avaliam a obra do escultor. E o vocabulário de qualidades A preocupação constante que os escultores ioruba têm
lineares, que os ioruba usam coloquialmente e em referência com a linha, e com formas específicas de linha, n asce ,
a um esp ectro d e interesses muito mais amplo do que portanto, de algo mais que um prazer desinteressado em
simplesmente a escultura, é sutil e exten so. E não são só suas suas propriedades intrínsecas, ou de problemas técnicos d a
estátuas, potes e outros objetos semelhantes, que os io ruba escultura, ou mesmo de alguma n oção cultural generalizada
marcam com linhas: fazem o mesmo com seu rosto. Cortes que pod eríamos isolar e considerar como estética nativa. Ela
em forma d e linhas com profundidade, direção e compri- surge como conseqüência de uma sensibilidade específica,
mento variáveis, feitos no maxilar, tornam-se cicatrizes que em cuja formação participa a to talidade da vida - e, segundo
servem como indicadores da linhagem, da posição pessoal, a qual, o próprio significado das coisas são as cicatrizes com
e do status daqueles que exibem as cicatrizes em suas faces; que os homens as marcam.
e a terminologia usada p elo escultor e pelo especialista em
A compreensão desta realidade, ou seja, d e que estudar
cicatrizes - "cortes" são diferentes d e "t alh os " e "espetadla"
e
arte é explorar uma sensibilidade; d e que esta sensibilidade
ou "marca d e garras", de "fendas abertas" - são precisa e
é essencialmente uma formação coletiva; e de que as bases
exatame nte corresp o ndentes, nos d ois casos. Mas a impor-
de tal formação são tão amplas e tão _pro fund as como a
tância do traço n ão termina aí. Os ioruba associam a linha
próp ria vid a social, nos afasta daquela visão que considera a
com civilização: "Este país tornou-se civilizado", em ioruba,
fo rça estética como uma expressão grandiloqüente dos pra-

6. R.F. Tho mpson, "Yo ruba anistie criticism," in Tbe trnditio11al nrlisl i11 n/rica"
societies, o rg. W.L. d'Azaredo, Bloomingto n. Indiana, 1973, p. 19·6 1. - . fbid. , p. 35·36.

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zeres do artesanato. Afasta-nos também da visão a que cha- Para d esenvo lver o argumento de forma mais concreta
mamos de fun cionalista, que, na maioria das vezes, se opôs e para dissipar qualquer aura inte lectualista ou literária que'
à anterior, e para a qual obras de arte são mecanismos as palavras "ideacional" e "concepção" possam trazer consi-
elaborados para definir as relações sociais, manter as regras go, examinemos por um momento alguns aspectos de um
sociais e fortalecer os valores sociais. Nada muito mensurável dos outros poucos d ebates sobre arte tribal que consegue
aconteceria à sociedade ioruba se os escultores deixassem de ser sensível a preocupações semióticas sem desaparecer em
se interessar pela delicadeza da linha, ou, ouso afirmar, pela um nevoeiro de fórmulas: a análise feita por thony Forge
própria escultura. Certamente, n ão entraria em colapso. Ape- da pintura plana em quatro cores dos abelam da Nov~
9
nas algumas coisas sentidas não poderiam mais ser ditas e, Guiné. Nas palavras de Forge, o grupo produz "acres de
talvez, depois de algum tempo, deixassem até de ser s~ntidas pintura" nas folhas estendidas de estapes de sagu, todas
- e, com isso, a vida ficaria um pouco mais cinzenta. E claro produzidas em circunstâncias relacionadas a algum tipo de
que qualquer coisa pode ajudar uma sociedade a funcionar, culto. Em seus vários trabalhos, Forge esboça os d etalhes
~ inclusive a pintura e a escultura; como também qual~er coisa destas circunstâncias. O que para nós é de interesse imedia-
~ pode ajudá-la a se destruir totalment~. Aconexão central e~tre to, no e ncanto, é o fato de que, embora a pintura abelam vá
a arte e a vida coletiva, no entanto, nao se encontra neste tipo desde o figurativo mais óbvio até à abstração total (uma
de plano instrumental e sim em um plano semiótico. A não ser distinção que não tem qualquer significado para eles, já que
muito indiretamente, os rabiscos coloridos de Matisse (em suas
próprias palavras) e as composições de linhas dos ioruba não
sua pintura é declamatória e não d escritiva) , ela se relaciona
com os demais componentes do universo de experiências
7
celebram uma estrurura social nem pregam doutrinas úteis. dos abelam através de um motivo quase obsessivamente
Apenas materializam uma forma d e viver, e trazem um modelo recorrente : uma forma oval omiaguda, que tem o mesmo
específico de pensar para o mundo dos objetos, tomando-o nome que o ventre de uma ~r, e o representa. É claro
visível. que esta representação é ligeirameme1icônica/ mas, para os
Os sinais ou elementos simbólicos - o amarelo de Matis- abelam, o poder da conexão relacio na-se menos com a
se, o talho ioruba - que compõem um sistema semiótico que, técnica - que não é uma façanha assim tão extraordinária -
por razões teóricas, gostaríamos de chamar aqui de estético, e mais com o fato de que, a representação, em termos d e cor
têm uma conexão ideacio nal - e não mecânica - com a e formas (a linha tem, para eles, pouco valor como elemento
sociedade em que se apresentam. São, em uma frase de estético, enquanto que a pintura cem um poder mágico) lhes
Robert Goldwater, documentos primários; não ilustrações permite lidar com uma preocupação constante, preocu-
de conceitos já em vigor, mas sim conceitos que buscam, eles pação esta que abordam de formas distintas no trabalho nos
próprios - o u para os quais as pessoas buscam - um lugar ritos, e na vida doméstica: a criatividade natural da muÍher.
significativo em um repertório de outros documentos tam- O interesse pela distinção entre a criatividade feminina
bém primários. 8 que os abelam consideram pré-cultural, um produto d a'

~*~ 8. R. Goldwatcr. 'i\.n and anthropoloh'Y: some comparisons of mcLhodology," in


9. A: Forgc, ''Style and .meaning ln scpik art.", ln Primllive nrt and society, o rg.
l·orgc, p . 169-92. Veia também A. Forge. ''fhe abelam anist.", in Social orgm1I·
Primiliue nrt mui society, org. A. Fo rgc. Londres. 1973, p. 10. zatíon, org. M. Freedman, Chicago, 1967, p. 65·84.

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própria bio logia feminina, e, portanto, primário, e a criati- fi cam a natureza. Os vários tipos de árvores, por exemplo,
vidade masculina, que consideram cultural, depende nte d o são sujeitos a uma classificação elaborada mas... o critério
acesso que os homens tenham a poderes sobrenaturais utilizado na classificação são as semen tes e o formato das
folhas. Se a árvore dá o u não flo res, e a cor das flo res o u das
através dos ritos, e, portanto, d erivado, permeia toda a
folhas são raramente mencionados como um critério. De
cultura abelam. As mulheres criaram a vegetação e d escobri-
uma forma geral, os abclam s6 consideram importantes 0
ram o inhame que os homens comem. Foram as mulheres hibisco e uma flor amarela, ambos utilizados como decora-
que se encontraram pela primeira vez com os seres sobrena- ções Í rituais] para os homens o u para o inhame. Plantas
turais, d e quem se tornaram amantes, até que seus ho mens pequenas e suas flores, de qualquer cor, não despertam 0
começaram a suspeitar e, finalmente d escobrindo o que se menor interesse e são classificadas meramente como capim
passava, fizeram destes entes sobrenaturais - agora trans- ou vegetação rasteira. O mesmo sucede com os insetos: todos
formados em esculturas de madeira - o foco central d e suas aqueles que mordem ou ferroam são classificados cuidado-
cerimô nias rituais. E, é claro, as mulheres produzem home ns samente, mas as borboletas, por exemplo, formam uma
d a inchação d e seus ventres. O poder masculino, que depen- classe única e extremamente ampla, independente de seu
tamanho o u cor. Na classificação de espécies de pássaros, no
d e d os ritos - um assunto que hoje os homens escondem
entanto, a cor tem importância vital.. . pássaros, porém, são
zelosamente das mulheres-, está, portanto, encapsulado no
t6temes, e, ao contrário de borboletas e flores, são parte
pod er feminino, que d epe nde de fatores biológicos; e é este fund amental da esfera de ritos... Pareceria... que para que a .?
fato prodigioso que as pinturas cobertas de formas ovais cor seja descrita, é preciso que seja objeto de interesse ritual. 1"
vermelhas, amarelas, brancas e negras (Forge contou onze As palavras para as quatro cores são... n a realidade, palavras
destas formas em um pequeno quadro composto quase que para tintas. A tinta é uma substância essencialmente poderos~L
exclusivamente delas) "retratam". e talvez não seja tão surpreendente que o uso d as palavras "'JU
que se referem a cor seja restrito às partes do meio ambiente
Retratam d e uma forma direta, mas não ilustrativa. Pode-
que foram selecionadas como relevantes para o ritual ...
ríamos mesmo argumentar que ritos, mitos e a o rganização
da vida familiar ou da divisão d o trabalho são ações que A associação entre cor e importância ritual pode também ser
observada na reação dos abelam a importações européias.
refletem os conceitos d esenvolvidos na pintura d a mesma
Revistas coloridas chegam, às vezes, até a aldeia, e, ocasio-
forma que a pintura reflete os conceitos subjacentes da vida
nalmente, algumas de suas páginas são destacadas e pregadas
social. Todas essas questões são relacionadas com uma visão às esteiras que forram a parte inferior da fachada da casa de
do mundo segundo a qual a cultura foi gerada no útero da cerimôn ias. As páginas selecionadas são as d e cor mais vi-
natureza, como o homem foi gerado no venere da mulher, e brante, geralmente anúncios de comidas ... [e 1os abelam não
todas elas lhe d ão um tipo específico de expressão. Como as tinham n enhuma id é ia d o que aquelas fi guras repre-
linhas talhadas das esculturas ioruba, as formas ovais colori- sentavam , mas achavam que com suas cores vivas e suas
das das pinturas abelam fazem sentido porque se relacionam figuras incompreensíveis, aquelas páginas só poderiam ser
com uma sensibilidade que elas mesmas ajudam a criar. No (desenhos sacros) dos europeus, e, portanto, deveriam ter
muito poder. 10
caso dos abelam, em vez d e cicatrizes como sinais d e civili-
zação, temos pigmentos como símbolos do poder:
Em geral, palavras refere ntes à cor (ou mais estritamente a
tintas) são u tilizadas somente para elementos relacio nados 10. A. F~rgc. "Leaming t o See in Ncw Guinca", in Socinliznt/0 11, 1beApprot1chfrom
com os ritos. Isso fica claro na forma co mo os abelam classi· Soctnl Anlhropology, org. P. Maycr, Lond res, 1970. p . 184-86.

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Vemos, portanto, que pelo menos em dois lugares, dois pouco mais à frente. No momento, quero concentrar-me no
elementos tais como traço e cor que, à primeira vista, p are- segundo tipo de erro, examinando sucintamente a matriz da
cem ser tão resplandecentes por si mesmos, extraem sua sensibilidade em dois empreendimentos estéticos bastante
vitalidade de algo mais que o apelo estético neles contido, desenvolvidos e bastante distintos: a pintura do quattrocen-
por mais real que este seja. Sejam quais forem as capacidades to e a poesia islâmica.
inatas de reagir à delicadeza da escultura ou ao drama Para referências à pintura italiana, utilizarei como fonte
cromático, essas reações está~ ligadas a interesses mais principal o livro recente dc!Michad
1
Baxan~ 'binting and
lU all.!..\11
_!!llplos, menos genéricos e cor_n cont~údos mais profundos, experience in fifteenth century italy, que usa exatamente o
e é essa conexão com o que e a realidade local que revela mesmo tipo de abordagem que defendo neste ensaio. 11
seu poder construtivo. A unidade da forma e do conteúdo Baxandall busca definir o que ele chama d e "o o lhar da
é , onde quer que ocorra, e seja em que grau ocorra, um feito época" - ou seja, "a bagagem intelectual que o público de
cultural e não uma tautologia filosófica. Para que possa um pintor do século XV, isto é, outros pintores e as 'classes
existir uma ciência semiótica da arte é preciso que esta patrocinadoras ', trazia no confronto com estímulos visuais
explique este feito. E, para explicá-lo, terá que dar m ais complexos como quadros." 12 Um quadro, diz ele, é sensível
atenção - do que normalmente se predispõe a dar - ao que aos vários tipos de habilidade interpretativa - estruturas,
se fala e ao que se fala além do discurso reconhecidamente categorias, inferências, analogias - que a mente lhe traz:

-estético.

II r
A capacidade que um homem possa ter para distinguir uma
certa forma, ou uma relação entre formas, 'irá influenciar a
atenção com que ele examina um quadro. Se ele é capaz de
notar relações proporcionais, por exemplo, ou se tem algu-
Uma reação comum a esse tipo de argumento, especia- ) ma prática em reduzir formas complexas transformando-as
lmente quando surge entre antropólogos, é a que diz que em conjuntos de formas mais simples, ou se possui um
conjunto amplo de categorias para tonalidades diferentes de
esta união de forma e conteúdo pode ser adequada para
vermelho e de marrom, estas habilidades podem levá-lo a
povos primitivos que, sem muita reflexão, fundem os vários ordenar sua experiência da Anunciação de Piero della Fran-
domínios de sua experiência em um todo gigantesco, mas cesca de uma maneira diferente daquela que seria utilizada
que não se aplica a culturas mais desenvolvidas onde a arte por pessoas que não possuam estas habilidades, e de uma
emerge como uma atividade diferenciada, que responde maneira muito mais rápida e profunda que a utilizada por
principalmente a su as próprias necessidades. Como a maior pessoas cuja experiência de vida não incluiu tantas técnicas
parte destes contrastes fáceis entre povos que se enco ntram relevantes ao quadro. Pois é evidente que algumas qualidades
em lados opostos da revolução da escritura e da leitura, este perceptivas são mais relevantes para um determinado quadro
também é falso, e para ambos os lados: é tanto uma subes- que outras: um virtuosismo em classificar a maleabilidade de
timação da dinâmica interna da arte em - Como as chama- linhas flexíveis - uma técnica que muitos alemães, por exem-
remos? Sociedades iletradas? - como uma sobrestimação da
sua autonomia nas sociedades letradas. Deixemos de lado o
primeiro tipo de erro - a noção de que as tradições artísticas
11. M. Baxandall, Pai11ti11g and e.\perien ce i11fiftee11tb cenlury /tal)\ Londres, 19 72.
como as dos io ruba e dos abelam não têm uma cinética
própria - calvez com a intenção de tratar do assunto um 12. lbid., p. 38.

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pio, possuíam nessa época - não encontraria muito campo XV era religiosa, não somente em seu tema, mas também nos
de ação na Anunciação. Muito daquilo gue chamamos de fin s que se destinavam a servir. Qu adros tinham a função de
"bom gosto" reside n isso, nessa conformidade entre as dis- tornar os seres humanos mais pro fundamente conscientes
crimina,ÇQes cxig1da~.E,Qr um ~ad ro e os talentos discrimi- das dimen sões espirituais da vid a; eram um convite visual a
.nat6rios ~o ob~ervador possui". refl exões sobre as verdades do cristianismo. Frente a uma
O que, no entanto, é ainda mais importante, é qu e estas imagem atraente da Anunciação, d a Assun ção da Virgem, d a
habilidades apropriadas, tanto no caso do observad or como Adoração dos Reis Magos, da Exortação a São Pedro, o u da
do pintor, não são, em su a maioria, inatas, como a sensibi- Paixão, o observador deveria complementá-la, refletindo
lidad e retínica para distância focal, mas sim adquiridas atra- sobre seu próprio conhecimento do evento, ou sobre seu
vés da experiência total de vida, neste caso, a d e viver uma relacionamento pessoal com os mistérios que a pintura
vida quatrocentista, vendo o mundo de um modo também registrava. "Po is uma coisa é adorar um quadro" - como se
quatrocentista: expressou um pregador do minicano defendendo a pureza
.. . parte da bagagem intelectual com a qual um homem da arte -, "e outra bem diferente é apre nder o que adorar
ordena sua experiên cia visual é variável, e grande parte desta através d e uma narrativa p intada." 15
bagagem variável é culturalmente relativa, no sentido de que Ap esar disso, a relação entre idéias religiosas e imagens
é determinada pela sociedade que influenciou a experiência pictóricas (e p essoalmente creio que isso se aplica à arte de
d~ vida deste homem. Entre essas variáveis estão as categorias
um modo geral) não era meramente expositiva; quad ros n ão
com as quais ele classifica seus estímulos visuais, o conheci-
mento que utilizará p a.ra complementar aquilo que a visão
eram ilustrações do catecismo. O p intor, ou pelo menos o
imediata lhe fornece, e a atitude que ele irá adotar com pintor religioso, tinha como objetivo encorajar seu público
relação ao tipo d e objeto artifi cial que vê. Ao olhar o quadro, a interessar-se pelas coisas primeiras e últimas, e n ão forne-
o observador tem que utilizar to das as habilidades visuais que cer uma receita ou um substituto para este interesse, nem
possui; p oucas delas são normalmente específi cas para a uma transcrição dele . Su a relação, o u mais exatamente a
pintura, e provavelmente ele utilizará as habilidades que sua relação que su a pintura apresentava com a cultura a seu
sociedad e mais valoriza. O pintor reage a tudo isso; a capaci- redor, era interativa, ou , como diz Baxandall, complementar.
dade visual de seu público deve ser seu veículo transmissor. Referindo-se à Transfiguração de Giovanni Bellini, uma
Sejam quais forem suas habilidades e especializações profis- representação da cen a que é bastante indefinid a, quase
sionais, ele próprio é um membro d a sociedade para a qual tipo lógica, mas, ao mesmo tempo, maravilhosam ente p lásti-
.~ . . . 14
trabalha e partilha de sua expenenc1a e costumes visuais.
ca, ele a chama de uma relíquia da cooperação entre Bellini
e seu público - "a exper iência que o sécu lo XV tem da
O primeiro fator (embora, como d izem os abelam, so- Transfiguração era uma interação entre o quadro , a confi-
mente o primeiro) a ser con siderado n este argumento, é, guração na p ared e, e a atividade de visualização na mente
obviamente, que a maior parte d a pintura italiana do século do público- uma mente com equipam ento e predisp osições

13. lbid., p. 34.


14. lbid ., p . 40. 1 5. Citado c m ibid., p. 4 1.

156 157
diferentes das nossas. " 16 Bellini p odia contar com a colabo- certa imperfeição. É por essa razão que dizemos: .. Deus me
ração de seu público, e desenhou seu painel para atrair essa livre de um lombarda de cabelos ruivos'' ou "Deus me livre
de um alemão com cabelos negros" ou de um "espanhol com
colaboração, e não para re presentá-la. Sua vocação era cons-
cabelos louros" ou ..de um belga seja lá de que cor". Maria
truir uma imagem a que uma espiritualidade específica tinha uma fusão de cores na cútis, tendo uma parte de todas
pudesse forçosam ente reagir. Como observou Baxandall, o elas, porque uma face que tem parte de todas essas cores é
/ público n ão necessita aquilo que ;_á poss~i. Necessit_a, sim, uma face linda. Por essa razão, declaram as autoridades
um objeto precioso, no qual lhe se1a poss1vel ver aqmlo que médicas que uma cútis que seja composta de vermelho e
sabe; precioso o bastante, para que, ao ver nele o que sabe, branco pálido fica melhor quando se adiciona uma terceira
~ 1 possa apro fundar esse seu conhecim ento. cor: o negro. Mas apesar disso, diz Albertus, temos que
admiti-lo: ela estava mais para a cor escura. Há três razões
- Existiam, na Itália d o sécu lo XV, vários tipos de institui- para pensarmos assim - primeiro, por questão de cútis, pois
ções culturais ocupadas em formar a sensibilidade do públi- os judeus tendem a ser morenos, e ela era judia; segundo,
co, que convergiam com a pintura para criar o "olhar da devido a testemunhas, já que são Lucas fez os três retratos
época"; e n em todas eram religiosas, assim também como que existem dela, hoje em Roma, Loreto e Bolonha, e esses
nem todos os quadros tinham motivos religiosos. Entre as são todos de tez escura; terceiro, por rv.ões de afinidade. Um
instituições religiosas, calvez as mais importantes fossem os filho normalmente sai a sua mãe, e vice-versa; Cristo era '11 L
sermões p opulares, que classificavam e subclassificavam os moreno, portanto ..." 18 'uU
eventos revelatórios e os personage n s da mitologia cristã, e
estabeleciam os tipos de atitude - inquietação, reflexão,
questionamento, humildade , dignidade, admiração - apro-
Entre as outras áreas da cultura renascentista que con-
tribuíram para a maneira como os italianos d o sécu lo XV
----------
priados para cada caso, bem como ofereciam máximas sobre olhavam a pintura, as duas que Baxandall considera mais
como d everiam ser as re presentações visuais desses temas. importantes são uma outra arte, embora uma arte m enor, a
"Pregadores populares ... treinavam suas congregações em dança social; e uma atividade b astante prática que ele chama
um conjunto de habilidades interpretativas que eram cen- d e "avaliação" - isto é, fazer estimativas de quantidades,
trais para a resposta que o secu, lo XV d ava a' pintura.
. " 17 O s volumes, proporções, razões e outras m edidas semelhantes,
gestos eram classificados, as fisionomias caracterizadas, as com objetivos comerciais.
cores transformadas em símbolos, e a aparência física das
A dança era relevante para a observação de quadros
figuras principais discutida com um cuidado apologético.
porque não era, na época, uma arte temporal relacionada
"Vocês me p erguntam", um outro pregador dominicano
com a música como é entre nós, e sim uma arte mais gráfica,
anunciava, relacionada com espetáculos - procissões religiosas, festas
a Virgem era morena ou loura? Albertus Magnus diz que ela de m áscaras n as ruas, e assim p or diante. Como tal, relacio-
não era só morena, n em simplesmente ruiva, nem só loura. nava-se com o agrupamento de figuras, e não, ou p elo menos
Pois qualquer uma dessas cores, sozinha, dá à pessoa uma

16. lbid ., p. 48.


18. Cf. BaxandaJI, op. cit., p . 57.
17. lbíd.

158 159
AVrt.,,.•r-ÇÁ.o
não principalmente, com o movimento rítmico. A dança, sentimento de ... intercâmbio psicológico, é o problema: é
portanto, não só dependia da capacidade de distinguir o pouco provável que nós tenhamos a predisposição adequa-
2
intercâmbio psicológico entre figuras estáticas agrupadas em da para perceber espontaneamente alusões tão sutis. : _ _ _ - - - - -
desenhos sutis, uma espécie de organização de corpos, Na sociedade como um todo, e principalmente entre as
como aguçava essa capacidade - uma habilidade que os classes mais educadas, existe uma tendência a cons iderar a
pintores também possuíam e usavam para provocar uma maneira como as pessoas se agrupam, a posição de cada uma
resposta do público. Especialmente a bassa danza, uma ' delas em relação às outras, os ordenamentos da postura em
dança de passos lentos e movimentos geométricos que era que se colocam quando na companhia de outro, não como
popular na Itália da época, tinha configurações de agrupa- acidental e sim como resultado do tipo de relacionamento
me nto dFiigurãS que pintores tais CQ.!!10 Botticelli, na sua que existe entre essas pessoas. É esta tendência que serve
Primavera (que, como sabemos, gira em torno da dança das como pano de fundo e ao mesmo tempo aprofunda a
Graças) ou em seu Nascimento de Wnus, utilizou para concepção de danças e pinturas como padrões de agrupa-
organizar seu trabalho. 1
_ --...
mentos de corpos com um significado específico e implícito.
A sensibilidade que a ~as~ da_n.zalrepresentava, d~ No entanto, esta penetração mais profunda dos hábitos
BaxandaU, "compreendia uma capac1âade por parte do pu- visuais na vida social, e da vida social em hábitos visuais, é
blico d e irtterpretar as configurações de figuras, e uma mais aparente na segunda atividade que, na~o de Baxan-
experiência generalizada de arranjo semidramático [de cor- dall teve urna influência formativa na maneira como os
pos humanos] que permitiu a Botticelli e a outros pintores
'
renascentistas viam sua pintura: aquilo que chamamos de
presumir que este mesmo público fosse igualmente capaz avaliação.
19
de interpretar os grupos que pmtavam.
· " D ad a uma amp la
Foi importante para a história da arte, observa BaxandaU,
fam iliaridade com formas altamente estilizadas de dança, que só a partir do século XIX (e, ainda assim, só no Ocidente)
que consistiam essencialmente em seqüências individuais de começassem a embalar mercadorias em recipientes com um
tableaux vivanls, o pintor podia contar com uma compreen- tamanho padrão. ''Antes d isso, um recipiente - barris, sacos
são visual imediata do tipo de quadros de figuras ,~ ou fardos - eram únicos, e, portanto, a capacidade de
compreensão ão é tão comum em uma cultura como calcular o volume de cada recipiente de forma rápida e
--;; nossa onde a dança é mais uma questão de movimento precisa era uma condição essencial para que qualquer em-
emóídurado entre poses que poses emolduradas entre mo- presa progred isse."2 1 O mesmo acontecia . com compnm . e n-
vimentos e onde não existe muita sensibilidade para o gesto
1
tos como no caso do comércio com tecidos ; proporções, no
tácito. ''A transmutação de uma arte social e popular de '
caso da corretagem; ou índices, no caso de inspeções. Não
ag.r upamentos, em um tipo de arte onde um grupo de era possível sobreviver no mundo do comércio sem essas
pessoas - pessoas que não estão gesticulando ou investindo,
o u fazendo trejeitos - ainda consegue estimular um forte

20. lbid., p . 76.

19. lbid., p. 80. 21. lbid., p . 86.

160 161
técnicas, e na maioria das vezes eram os mercadores quem se o resultado po r 14 ~ou seja, multiplique p or PV4): o
comissionavam os uadros, ou até mesmo os pintavam. Esse resultado final é 7236001 4432. Esta é a medida cúbica do
era o caso d Piero della Francesca[9ue chegou a escrever ba.rril. 22
um manual de matemática sobre avaliação. Como diz Baxandall, esse é um mundo intelectual muito
De qualquer forma, tanto os pintores como os merca- específico; mas é nesse mundo, em lugares como Veneza e
dores que os patrocinavam tinham formação semelhante Florença, que viviam todas as classes cultas. A conexão deste
nesses assuntos - não ser analfabeto significava também tipo de habilidade com a pintura, e com a percepção d e uma
te r comando dos vários tipos de técnicas para avaliar a pintura, não depende tanto dos processos de cálculo pro-
priamente ditos, mas principalmente d e uma capacidade de
dime nsão de objetos existentes na época. No caso de
ver a estrutura de formas complexas como combinações de
sólidos, essas técnicas compreendiam a capacidade de
formas mais simples, mais regulares e mais compreensíveis.
d ecompor massas irregulares ou d esconhecidas em gru-
Até os objetos incluídos nas pinturas - cisternas, colunas,
pos de o utras mais regulares e conhecidas - cilindros,
torres de tijolo, assoalhos revestidos, entre outros - eram os
cones, cubos, e assim po r diante; no caso d e objetos
mesmos que os manuais utilizavam para que estudantes
bidime nsionais, era preciso uma capacidade semelhante praticassem a arte d e avaliação. Portanto, quando Piero, em
para analisar superfícies não uniformes e m termos de sua outra profissão d e pintor, coloca a Anunciação em um
formas mais simples: quadrados, círculos, triângulos, he- pórtico de Perúgia, com colunas, em vários níveis, que
xágonos. Uma passagem do manual d e Piero della Fran- avançam e recuam, ou a Madona em um pavilhão de tecido,
cesca, citada por Baxandall, mostra a que níveis de arredondado e com cúpula, como uma segunda roupagem
complexidade esse tipo de exercício podia chegar: emoldurando o próprio manto da Vtrgem, ele apela para a
Um barril tem, em cada uma de suas extremidades, um capacidade que seu público tem de ver tais formas como uma
4
diâmetro d e 2 bracci; o diâmetro na altura da rolha é de 21! composição de várias outras e, portanto, d e interpretar- ou
bracci e, a meio caminho entre a rolha e a extremidade, de poderíamos dizer avaliar - seus quadros, captando seu sig-
2 2f) bracci. O barril tem 2 bracci de comprimento. Qual é nificado.
sua medida cúbica?
Para o comerciante, quase tudo se reduzia a figuras geomé-
Trata-se de uma forma semelhante a dois cones cortados por tricas subjacentes às irregularidad es da superficie - aquele
um plano secante. Obtém-se o quadrado do diâmetro das monte de grãos passava a ser um cone, o barril um cilindro,
extremidades: 2 x 2 = 4. A s;Juir obtém-se o quadrado do ou um grupo d e cones truncados, a coberta de um círculo
diâmetro mediano 22f) X 2 = 47618 1. Soma-se os dois de mercad orias p odia transformar-se cm um cone de merca-
7618 1 419
resultados, o que dá 8 . Multiplica-se 2 x 219 = 4 . A este dorias, a torre de tijolo passava a ser um corpo cúbico,
31181
valor, soma-se os 8 76181 = 13 . Divide-se por 3 = 4 11 21243 ... composto de um número calculável de corpos cúbicos me-
Agora obtém-se o quadrado de 2 114 que seria 5 1116 . Soma-se nores, e ... esta forma de análise é muito semelhante à análise
isto ao quadrado do diâmetro mediano: 5 1116 + 4 7618 1 = que um p intor faz de aparências. Assim como um homem
101/129 . Multiplica-se 2219 x 2 114 = 5. Soma-se este valo r ao qualquer avaliava um fardo, o p into r inspecionava figuras .
resultado anterior, obtendo-se 15 11129 . Divide-se por 3 (o que
dá~ 5 e 113888. Some-se isto ao primeiro resultado obtido... =
9 1 9213888. Multiplique-se este valor por 11 e a seguir divida-

22. cr. 133.X:lndall, op. cit., p . 86.

162 163
11f?TE [- ( U-77J,l?.LJ
Nos dois casos existe uma redução consciente d e massas der a ler1 exatamente como temos que aprender a ler um
irregulares e vazios, em combinações de corpos geométricos texto d e uma cultura diferente da nossa. f"Se observ~s
passíveis de manipulação. Como [os italianos do século XV] que Piero della Francesca se inclina para um tipo d e pintura
tinham prática s uficiente na manipulação de índices e cm
relacionada com a avaliação, Fra Angelico com a pregação
analisar o volume ou a área de objetos compostos, tinham
também uma certa sen sibilidade para pinturc1s que aprescn-
religiosa, e Botticelli com a dança, não só estaremos obser-
rasscm traços de p rocessos semelhantes. 23 vando algo sobre esses artistas, mas também sobre a socie-
dade em que viveram." 25 ,]
A famosa inteligê ncia lúcida da pintura renascentista A capacidade de uma pintura de fazer sentido (ou de
o riginou-se pelo menos parcialmente em algo mais que as poemas, m elodias, edifícios, vasos, peças teatrais, ou está-
p ro priedades inerentes à re presentação de áreas planas, às tuas) , que varia de um p ovo para outro, bem assim com o de
leis da m atemática e à visão binocular. um indivíduo para outro, é, como todas as outras capaci-
dades plenamente humanas um produto da experiê ncia
Na verdad e, e este é o fator fundamental, todos esses coletiva que vai bem m ais além d essa própria experiência. O
temas culturais mais amplos e outros que não mencio nei se mesmo se aplica à capacidade ainda mais rara de criar essa
entrelaçaram para gerar a sensibilidade na qual a arte do sensibilidade onde não existia. participação no sistema
quattrocento foi criada e subsistiu. (Em um trabalho ante- particular que chamamos d e arte só se torna possível através
rior, Giotto and the orato1·s, Baxandall relaciona o desen- da participação no sistema geral de formas simbólicas que
volvimento da composição pictó rica a formas de n arrativa da chamamos de cultura, pois o primeiro sis_tema nada mais é
retórica humanista, especialmente à frase p erió dica; a hie- que um setor do segundo. \Uma teoria da arte, portanto, é,
rarquia gramatical d e um o rador, isto é, p eríodo, oração, ao mesmo tempo, uma teoria da cultura e não u~ empreen- .Jt__
e. r
frase e palavra, foi conscientemente contraposta, por Alberti
e o utros, à hierarquia d o pinto r: quadro, corpo, m embro e
plano.)24 Pintores diferentes jogavam com aspectos difere n-
dimento autônomo. E, sobretudo se nos referimos a uma --,....._
teoria semiótica da arte, esta deverá descobrir a existência
desses sinais na própria sociedade, e não em um mundo \
fl
tes dessa sensibilidade, porém o moralismo da pregação fi ctício de dualidades, transformaçõ es, paralelos e equiva-
religiosa, as configurações da dança popular, a astúcia da lências.
avaliação comercial e a grandiloqüência da oratória em latim,
juntaram-se para formar aquilo que é o veículo genuíno d e
um pintor: a capacidade que seu público tenha de entender
III
o s ignificado de seu s quadros. Um quadro antigo, disse
BaxandaU (embora a p alavra "antigo" pudesse ter sido o mi- Não há m elhor exemplo - para o argumento d e que um
tida) é um registro d e atividade visual que temos que apren- artista trabalha com sinais que fazem parte d e sistem as
semió ticos que transcendem em muito a arte que e le pratica
- que o p oeta no islã. Um muçulmano que escreve versos se

2j. lbid., p . 87-89, 101.

24. M. Oax:rndall, Giollo and tbe omtors, Oxford, 197 1. 25. Baxandall, Pai11ti11g and e.:i:períence. p. 152.

164 165
depara com um conjunto d e realidades culturais tão objeti- uma coisa viva, a poesia islâmica é uma arte tanto musical e
vas para seus prop ósitos como rochas ou chuva, n ão menos dram ática como literária. E a terceira, e também a mais difícil
substanciais p or serem abstratas, e não menos convincentes de esboçar em um espaço limitado, é a natureza mais geral
por serem criadas pelo próprio homem . Ele op era, e sempre da comunicação interpessoal na sociedad e marroquina, que
operou , em um contexto o nde o instrUmento d e su a arte, a chamarei d e agonística. Juntas, essas dimensões fazem da
linguagem, tem um status peculiar e elevado, e uma signifi- poesia uma espécie de ato paradigmático da expressão ver-
cância tão especial e tão misteriosa quanto a pintura para os bal, um arquétipo da fala, que para ser d ecifrado n ecessita-
abelam. Da metafísica à morfologia, da escritura à caligrafia, ria, se tal coisa fosse con cebível, uma análise ele toda a
cios padrões com que se recita em público aos estilos de cultura muçulmana.
conversa informal, tudo conspira para dar à p alavra e ao Mas seja onde for que termine o assunto, ele se inicia com
próprio falar uma importância que, se não é única na história o Corão. O Corão (qu e não significa "testamento", ou "ensina-
humana, é certamente bastante fora do comum. O homem mento" nem sequer "livro" mas sim "recitação") difere das
que desempenha o papel d e poeta no islã faz o tráfico - n ão outras escrituras mais importantes do mundo porque não
totalmente legítimo - da substância moral de su a cultura. contém relatos sobre Deus feitos por um profeta ou seus
Para que possamos sequer tentar demonstrar esta pre- discípulos, e sim a palavra direta d 'Ele, as sílabas, palavras e
missa, é preciso primeiramente reduzir o assunto a um frases de Alá. Como Alá, o Corão é eterno e não foi criado, é
tamanho operacional. Não tenho a intenção d e examinar um de Seus atributos, como Piedade ou Onipotência, e n ão
todo o processo do d esenvolvimento poético desde a Profe- uma de Suas criaturas, como o homem na Terra. A metafisica
cia em diante, e s im fazer uns poucos comentários gerais e é obtusa e elaborada de uma forma pouco consistente, e a
não muito sistematizados, sobre o lugar que a poesia ocupa justificativa é que o Corão seria a tradução feita por Alá de
na sociedade tradicional islâmica - principalmente a poesia trechos de um texto eterno, a Tábua Bem Guardada, em prosa
árabe, mais particularmente em Marrocos, e ainda mais árabe rimada. Estes trechos traduzidos foram, por sua vez,
particularmente com referência à poesia popular e oral. A ditados um por um, sem nenhuma ordem estabelecida e
relação entre a poesia e os estímulos centrais da cultura durante vários anos, por Gabriel a Muhammad, e mais tarde
muçulmana é, creio eu , bastante similar em quase todas as por Muhammad a seus seguidores, os chamados "recitadores
regiões, e mais ou menos desd e seu início. Ao invés de tentar do Corão", que os memorizaram e os transmitiram para a
demonstrar tal afirmação, tentarei apenas partir do princípio comunidade em geral. Estes ú ltimos, repetindo-os diaria-
que ela é correta e prosseguir com o argumento, utilizando mente, continuam a transmiti-los desde então. O mais impor-
como base um material um tanto o u quanto especial, para tante, no entanto, é que os que cantam os versos do Corão -
sugerir quais parecem ser os termos desta relação incerta e sejam eles Gabriel, Muhammad, os recitadores, ou qualquer
difícil. muçulmano vivendo treze séculos à frente, nessa longa corren-
Desta perspectiva, existem três dimensões do problema te - não canta palavras sobre Deus, mas sim as palavras d 'Ele,
e, portanto, como essas palavras são Su a essência, cantam o
a serem examinadas e inter-relacionadas. A primeira, como
sempre quando se trata de temas islâmicos, é a n atureza e o próprio Deus. O Corão, como foi dito por Marshall Hodgson,
status peculiar do Corão, "o único milagre no islã." A segun- não é um tratado ou uma declaração de fatos e normas, mas
da é o contexto em que a poesia é declamada, pois, como sim um evento e um ato:

166 167
O Corão não foi criado para ser uma fonte de informação ou vos seculares, é profundamente ambíguo. Pois estes utilizam
até mesmo de inspiração, mas sim para ser recitado como um a linguagem de Deus para fins próprios, algo que n ão sendo
ato de fé no culto religioso. Não se estudava o Corão mas sim exatamente um ato sacrílego, dele se aproxima; por outro
fazia-se um ato de devoção através dele; não era recebido lado, demonstram o poder incomparável d as palavras em
passivamente, e sim, ao recitá-lo, fazia-se, para si mesmo, uma
suas obras, algo que, n ão sendo propriamente um ato de
confirmação de sua existência : o ato da revelação se renovava
cada vez que um fiel, em um ato de devoção, revivia ~i sto é,
devoção, dele se aproxim a. A p oesia, cujo único rival é a
pronunciava uma vez mais ! a afirmação nele contida. 6 arquitetura, tornou-se a bela arte mais importante da civili-
zação islâmica, principalmente n as regiões de língua árabe,
mas sempre sob o risco d e ser considerada, a qualquer
Essa visão do Corão tem várias implicações, entre elas o
mom ento, a forma mais séria de blasfêmia.
fato de que seu equivalente m ais próximo no cristianismo
não é a Bíblia e sim o próprio Cristo. Para nossos propósitos, A percepção do árabe corânico como um modelo para a
no entanto , a mais importante é que a linguagem em que foi linguagem, aliada a uma crítica permanente da maneira
escrito, o árabe da Meca do século VII, se destaca por ser não com o as pessoa:s realmente falam, é reforçada por tod a a
só o veículo da mensagem divina, como o grego, o pali, o estrutura da vida muçulmana tradicional. Quase todos os
aramaico ou o sân scrito, mas como sendo ela própria um meninos (e, m ais recentemente, muitas m eninas) são envia-
objeto sagrado. Um texto específico do Corão, ou partes dos a uma escola específica, onde aprendem a recitar e a
dele, são considerados entidades que nunca foram criadas, decorar versos do Corão. Se a criança for competente e
algo que intriga os devotos de outras religiões, cuja fé cem estudiosa, con seguirá decorar todos os 6.200 versos e tor·
como base seres divinos. No caso da fé islâmica, cujo ponto nar-se-á um qãfq ou "decorador" trazendo uma certa fama
central é a retórica divina, a linguagem é considerada sagrada para seu s pais; se, como é mais provável, não é nem uma
porque é semelhante à palavra d e Deus. Uma das con se- coisa nem outra, aprenderá pelo me nos o suficiente para
qüências desta crença é a conhecid a esquizofrenia lingüística administrar su as próprias preces, ou matar galinhas, e para
dos povos de língua árabe: a permanência de um árab e acompanhar sermões. Se especialmente devoto, poderá até
escrito "clássico" (mutj,ãri) ou "puro" ifu~IJã) , arquitetado ser enviado para uma escola secundária em algum centro
para ser tão idêntico ao árabe corânico quanto possível, e urbano como Fez ou Marrakech e lograr obter um conheci·
nunca utilizado verbalmente a n ão ser em contextos relacio- mento mais preciso do significado daquilo que decorou . No
nados ao culto religioso, ao lado de uma linguagem popular entanto , se um homem termina com um punhado de versos
e oral, chamada de "vulgar" @mmiya') ou "comum" (dárija), mais ou m enos entendidos, ou com um conhecimento ra-
que é considerada incapaz de expressar verdades sérias. zoável d e todos eles, dá-se sempre mais importância a su a
Uma segunda conseqüência é que o status daqueles que capacidade de recitá-los, e ao esforço mecânico que lhe foi
buscam criar através d e palavras, especialmente com objeti· necessário para aprendê-los. O que Hodgson disse do islã
medieval - que todas as afirmações são consideradas ou
verdadeiras ou falsas ; que o saber é a soma de todas as
afirmações verdadeiras, um corpo d eterminad o qu e irradia
do Corão, o qual , pelo menos implicitam ente, conteria todas
das ; e que para obter este saber é necessário m emorizar as
26. M.G.S. l lod(.:So n. 7be Ve11/11re o/l s/m11. vo l. 1. Chicago, 197-., p. 367. frases com que foram ditas estas afirmações verdadeiras -

168 169
pode ser dito sobre a maior parte do Marrocos, onde a decorei o Corão", disse um desses poetas, tentando d eses-
paixão pelas verdades recitáveis que a fé propaga não dimi- peradamente explicar sua arte. "Depois esqueci os versos e
nuiu, por mais que a própria fé se tenha enfraquecido. 27 só me lembrei das palavras."
Tais atitudes e tal formação faz com que a vida cotidiana Esqueceu-se dos versos em uma meditação de três dias
seja pontuada por linhas do Corão e outras citações clássicas. de duração, ao lado do túmulo de um santo conhecido por
Além das situações especificamente religiosas - as preces seu poder de inspirar poetas, mas lembra as palavras quando
diárias, o culto das sextas-feiras, os sermões nas mesquitas, tem que recitá-las. No contexto islâmico, a poesia não é
os cânticos acompanhando os rosários nas irmandades mís- escrita primeiro e depois declamada. Compõe-se à medida
ticas, a recitação completa do Corão em ocasiões especiais que se declama, e as várias partes vão sendo unidas no
tais como o mês do) ejum, a oferenda de versos em funerais próprio ato de cantá-las em algum lugar público.
casamentos e circuncisões - a conversa cotidiana é tão
'
intercalada com fórmulas do Corão que até os assuntos mais Normalmente este lugar público é um espaço, iluminado
mundanos parecem estar inseridos em uma moldura sacra. apenas por uma lâmpada, em frente à casa de alguém que
Os discursos públicos mais importantes - como por exemplo celebra um casamento ou uma circuncisão. O poeta fica em
os do trono - são preparados em um tipo de árabe tão pé, aprumado como uma árvore, no centro da área, tendo
clássico que a maior parte daqueles que os escutam só são ajudantes que o acompanham tocando tamborim, à sua
capazes de compreendê-los muito superficialmente. Como direita e à sua esquerda. O público masculino acocora-se a
jornais, revistas e livros são também escritos em um árabe sua frente, e ocasionalmente algum dos homens se levanta
semelhante o número de pessoas que os podem ler é míni- e coloca dinheiro no turbante do poeta; enquanto isso as
mo. A demanda por arabização - uma demanda popular, mulheres espiam discretamente das casas vizinhas, de den-
levada no roldão de paixões religiosas, que exige que o árabe tro, pelas frestas das janelas, ou de cima, escondidas na
clássico seja ensinado nas escolas e usado no governo e na escuridão dos telhados. Atrás do poeta, duas fileiras de
administração - é uma força ideológica potencial que dá homens dançam lateralmente, cada um apoiando suas mãos
lugar a muita hipocrisia lingüística por parte da elite política nos ombros dos companheiros a seu lado, balançando as
e a uma certa inquietação pública quando esta hipocrisia cabeças enquanto dão dois meio-passos para a direita, e dois
torna-se muito óbvia. É em um mundo como esse, onde a para a esquerda. O poema é cantado, verso a verso, com uma
linguagem é tanto símbolo como veículo trans~issor, onde voz falseteada, metálica e chorosa, seu ritmo marcado pelos
o estilo verbal é uma questão moral, e onde a experiência tamborins; as vozes dos ajudantes só acompanham o poeta
da eloqüência divina compete com a necessidade de comu- no estribilho que é normalmente fixo e só vagamente rela-
nicar-se, que o poeta oral vive, e cujo sentimento por cânti- cionado ao texto; os dançarinos, como uma ornamentação
cos e fórmulas ele explora, como Piero della Francesca extra, em determinados momentos soltam estranhos lamen-
explorava os sentimentos italianos por sacos e barris. "Eu tos rítmicos.

Como os famosos iugoslavos de Albert Lord, é claro que


o poeta não tira o texto de alguma mera fantasia sua, e sim
que o constrói, molecularmente, pedaço por pedaço, como
em algum processo de Markow artístico usando um número
27. lbid., vol. 2, p . 438 . limitado de fórmulas estabelecidas. Algumas destas são te-

170 171
máticas: a inevitabilidade da morte ("mesmo que vivas sobre prazer. Assim, a palavra para poesia, SCir, significa "saber'', e
um tapete de preces") ; a não-confiabilidade das mulheres ainda que nenhum muçulmano assim se expresse explicita-
(Deus lhe ajude, ó amante, que se deixa envolver pelos mente, ela é uma espécie de contraparte secular, uma nota
olhos") ; a desesperança da paixão ("tantos foram para o de rodapé mundana para a própria Revelação. Enquanto
túmulo por causa do ardor") ; o orgulho do ensino religioso que, no Corão, o homem ouve sobre Deus e as obrigações
("onde está o estudioso que é capaz de caiar o ar?") . Outras que Lhe são devidas, fatos que são estabelecidos pelas pala-
são figurativas: jovens mulheres são jardins, o amor, jóias, vras, na poesia, ele ouve sobre os seres humanos e sobre as
os poetas, cavalos. Outras são formais-esquemas mecânicos conseqüências de ser um deles.
e precisos de rima, metro, linha e estrofe. O canto, os A estrutura performática da poesia, seu caráter de ato de
tamborins, os dançarinos, o papel desempenhado pelo pú- discurso coletivo, só é capaz de reforçar sua qualidade mista,
blico segundo seu gênero, e os gritos de aprovação ou intermediária - meio música ritual, meio conversa comum -
assobios de censura emitidos por este, dependendo do grau porque, se suas dimensões formais e quase-litúrgicas a fazem
de sucesso com que todos esses elementos se combinaram semelhante ao cântico corânico, seus elementos retóricos e
ou não, formam um todo integrado do qual o poema não quase-populares a fazem semelhante à linguagem cotidiana.
pode ser abstraído, assim como o Corão não pode ser Como já mencionei anteriormente, não me é possível des-
abstraído de sua declamação. Temos, aqui também, um crever aqui, com qualquer exatidão, o caráter geral das
evento, um ato; constantemente novo, permanentemente relações interpessoais no Marrocos; só podemos afirmar, e
renovável. ter esperança de que me creiam, que essas relações são antes
E, como ocorre com o Corão, também neste caso as de tudo combativas, um testar constante de arbítrios, à
pessoas, ou pelo menos muitas delas, intercalam sua fala medida que os indivíduos lutam para obter o que cobiçam,
cotidiana com linhas, versos, tropos e alusões extraídas da defender o que possuem, e recobrar o que perderam. No
poesia oral, algumas vezes de um poema específico, outras que se refere à linguagem, essa dá a todo tipo de conversa
associadas com um poeta cuja obra conhecem e apreciam, que não seja totalmente fútil uma qualidade de um pega-
outras do corpus poético como um todo, o qual, embora pega com palavras, uma colisão frontal de imprecações,
extenso, concentra-se em um número limitado de fórmulas promessas, mentiras, desculpas, rogos, ordens, provérbios,
bastante definidas. Nesse sentido, e vista como um todo, a argumentos, analogias, citações, ameaças, evasões, lisonjas,
poesia, que é declamada e cantada nesse tipo de evento de que não só valoriza enormemente a fluência verbal como dá,
forma regular e em todas as regiões, mas principalmente no à retórica, um poder inequivocamente coercivo: ándu klãm,
campo e entre as classes menos privilegiadas das cidades "ele tem palavras, oratória, máximas, eloqüência'', também
menores, forma um tipo de "recitação" que lhe é própria, quer dizer, e não só metaforicamente, "ele tem poder, in-
uma outra coleção de verdades a serem memorizadas que fluência, peso, autoridade."
embora menos enaltecidas, não são menos preciosas que ' as'
Este espírito polêmico está presente em todos os ele-
verdades do Corão: a luxúria é uma doença incurável, as mentos do contexto poético. O conteúdo daquilo que o
mulheres são uma cura ilusória; a controvérsia é a base da poeta diz é não só argumentativo - ataca a superficialidade
sociedade, a capacid ade de reivindicar, sua virtude-mestra; dos citadinos, a d esonestidade dos mercadores, a perfídia
o orgulho é a mola para a ação, a abstração do mundo, uma das mulheres, a avareza dos ricos, a traição dos políticos, e
hipocrisia moral; o prazer é a flor da vida a morte o fim do
' '

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a hipocrisia dos moralistas - mas dirige-se a alvos esp ecíficos, Oh, o curador não é mais um homem razoável.
normalme nte presentes e atentos. Um professor local que Ele seguiu a estrada que o faria poderoso,
ensinava o Corão, e fez críticas às festas de casamento (e à E tornou-se um traidor enlouquecido.
poesia que se cantava nessas festas), considerando-as peca- Ele seguiu a profissão do diabo; ele disse que tinha sucesso, mas
minosas, foi severame nte censurado e expulso da aldeia: 28 não creio nisso.

Veja quantas coisas vergonhosas o professor fez;


Ele só trabalhava para encher seu bolso. E assim por diante . O poe ta não cnuca unicamente
Ele é ambicioso e corrupto. indivíduos (ou pode ser pago para criticá-los, pois a maioria
Por Deus, com toda essa confusão. desses assassinatos verbais são feitos sob contrato) : critica
Dê-lhe logo seu dinheiro e diga-lhe que "vá embora"; os habitantes d e uma aldeia rival, um grupo ou uma família;
"Vá comer carne de gato e depois coma carne de cachorro". um partido político (o confronto poético entre membros
Descobriram que o professor só tinha decorado destes partidos, cada um deles com seu próprio poeta,
quatro capítulos do Corão [uma referência a sua afirmação de muitas vezes teve que ser interrompido pela polícia, pois as
que tinha decorado o Corão inteiro]. palavras levaram os presentes à luta corporal); até m esmo
Se ele soubesse o Corão de cor, e pudesse se chamar de douto, classes inteiras, como padeiros, ou funcionários públicos,
Ele não diria as preces com tanta pressa. pode m ser alvo do poeta. Além disso, durante o espetáculo,
Ele tem pensamentos maus em seu coração. ele pode selecionar, e ntre o público presente, aqueles a
Pois, mesmo no meio de orações, ele só pensa em mulheres; que m especificamente se dirige. Quando lame nta a incons-
ele correria atrás de uma, se pudesse encontrar alguma.
tância das mulheres, fala para as sombras nos telhados;
quando ataca a promiscuidade dos homens, seu olhar recai
Um anfitrião avarento não tem melhor sorte: sobre o grupo a seus pés. Na verdade, em seu conjunto, o
Quanto a ele que é avarentç e fraco, que só fica ali sentado e espetáculo poé tico tem um caráter agonístico na m edida e m
não ousa dizer nada. que o público grita em aprovação (e cobre o poeta de
Os que vieram jantar, estavam como em uma cadeia [a comida dinheiro) ou assobia e vaia, desaprovando-o, às vezes até
estava tão ruim], obrigá-lo a sair de cena.
O povo teve fome a noite toda e ninguém lhes satisfez.
Talvez a expressão m ais genuína deste caráter seja os
A esposa do anfitrião passou a noite fazendo o que bem queria,
Por Deus, ela nem queria se levantar para preparar o café. combates entre poe tas que te ntam superar um ao outro
com seus versos. Escolhe-se qualque r assunto - um s im-
ples objeto como um copo ou uma árvore - para dar início
E um curador, antes amigo do poeta, mas com quem este ao processo, e a seguir os poetas se alternam e m seus
havia brigado, ganha trinta linhas do tipo d e crítica que se cânticos, algumas vezes durante toda a noite , enquanto a
segue:
multidão grita seu parecer, até que, sobrepuj ado pelo
outro, um dos poe tas d esiste. Cito, a segu ir, uns poucos
trechos extraídos de um combate d e três horas. Infeliz-
mente, p e rde-se quase tudo na tradução, exceto o espírito
da atividade. -.-
28. Agradeço a Hild red Geertz, q ue coletou a maior pa.r te destes poemas, pela
permissão de usá-los. /2CfC'N ÚJ.
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já no meio da batalha, o poeta A, desafiante, "fica de pé Eu ia responder ao que disse: ··suba até o céu e veja qual é a dis-
<:: diz": tância de céu a céu, pela estrada."
Eu ia llie dizer, "Conte todas as coisas que estão na Terra para
Aquilo que Deus lhe concedeu [ao poeta rival] ele gastou para mim:"
comprar roupas de nylon para uma garota; ele encontrará Vou responder ao poeta, embora ele seja louco.
o que está procurando, Diga-me, quanta opressão já tivemos, quem será punido na vida
E ele comprará o que quer [isto é, sexoj e depois desta?
irá a muicos tipos de lugares [de má reputação). Diga-me, quantos grãos existem no mundo, com os quais pode-
mos nos banquetear?
Diga-me, quanta madeira existe na floresta, que pode ser quei-
O Poeta B responde:
mada?
Aquilo que Deus lhe concedeu [isto é, concedeu a ele próprio, Diga-me, quantas lâmpadas elétricas existem do oeste ao leste?
poeta B) ele usou em oração, dízimos e caridade Diga-me quantos bules estão cheios de chá?
E ele não seguiu as más tentações, nem as garotas elegantes
nem garotas tatuadas; ele se lembrou de correr do fogo do inferno.
A essa altura, o Poe ta A, insultado, vaiado, furioso e
vencido, diz:
Quase uma hora depois, o Poeta A, ainda desafiante, e
Me dê o bule de chá
ainda recebendo respostas à altura, muda o estilo para
Vou banhar-me para as preces
e nigmas metafísicos:
Já me cansei desta festa.
De um céu ao outro céu levaríamos 500.000 anos,
e depois disso, o que iria acontecer?
e se retira.

Pego de surpresa, o poe ta B não responde diretamente, Em suma, em termos de linguagem, ou mais precisamen-
e, para ganhar tempo, irrompe em ameaças: te em termos de linguagem atuada, a poesia se encontra
entre os imperativos divinos do Corão e o e mpurra-empurra
Leve-o [o Poeta A] para longe de mim,
da vida cotidiana, e é isso que lhe outorga seu status incerto
ou eu pedirei bombas
e seu estranho poder. Por um lado, ela forma uma espécie
eu pedirei aviões
e soldados de aparência assustadora. de complemento do Corão, cantando verdades que são mais
que transitórias e menos que eternas em um estilo lingüís-
Eu farei , oh senhores, eu farei guerra agora, tico mais culto que o coloquial e menos e rudito que o
Mesmo que seja uma guerra pequena. clássico. Por outro, ela faz com que o espírito da vida
Vejam, eu tenho maior poder.
cotidiana atinja, se não a esfera do sagrado, pelo menos
Ainda mais tarde, o Poeta B, que tinha sido provocado, aquela dos inspirados. A poesia é moralmente ambígua
se re cupera e dá uma resposta ao enigma sobre os céus, sem porque não é sacra o suficiente para justificar o poder que
responder diretamente mas sim com uma sátira contendo realmente tem , nem secular o bastante para ser comparada
uma série d e contra-enigmas, cujo objetivo seria expor o tipo com a eloqüência comum. O poeta oral marroquino habita
de tolice de "anjos-em-cabeça-de alfinete" dos enigmas de uma região entre espécies de linguagem que é, simultanea-
seu adversário. me nte, uma região entre mundos, e ntre o discurso de Deus

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e a briga dos ho mens. E, sem compreender isso, nem ele terminados indicadores - ela não ode ser uma ciênciª-
nem sua poesia po dem ser compreendidos, por mais que formal como a lógica o u a matemática e sim uma ciência _
nos ocupemos em d eslindar estrururas latentes o u em ana- social como a história ou a antropologia. Neste caso, a
lisar gramaticalm ente as formas do verso. Poesia, o u pelo harmo nia e a prosódia são tão importantes como a compo-
~
menos esta poesia, constrói uma voz com as vozes que a sição e a sintaxe, e não pod em ser dispensadas. No entanto ,
~
JS ro deiam. Se é possível dizer que ela tem uma função, esta é expor a estrurura de uma obra artística e explicar seu impac-
~ a sua função. to são coisas bem diferences. Aquilo qu~on Goodmaó
~ ch amou de "o mito absurdo e inoportuno da insularidade
- ''.A arte", diz meu dicionário, que por sinal é apropriada-
~~
\ mente medíocre, é "a produção consciente, ou arranjo de da exp eriência estética", a idéia de que a mecânica da arte
~ cores, formas, movimentos, sons ou outros elementos d e gera seu significado, não será capaz de produzir uma ciência
~ uma forma que toca o sentido d e beleza", uma maneira d de indicadores ou de qualquer o utra coisa a n ão ser um
_expressar que p~ sugerir que os hom~s nascem com o virtuosismo de análise verbal sem nenhum sentido. 29
poder de apreciar, como nascem com o poder de entender Se quisermos elaborar uma semiótica da arte (ou de
piadas, e só precisam que se lhes dê ocasiões para exercitar qualquer sistema de indicadores que não seja axiomatica-
esSe"Pod er. Como o que disse aqui deve demonstrar, não me nte independente) teremos que nos d edicar a uma espé-
creio que isso seja verdade (nem sequer creio ser verdad e cie de ~ his tória natural de indicadores e d e símbolos, uma
no caso do humor); ao contrário, o dito "sentido d e be l~ etnografia dos veículos que transmitem significados. Tais
ou seja lá que nome se d ê, a essa h abilid31de de responder_ indicadores e símbolos, tais transmissores d e significado,
inteligentemente a cicatrizes em faces, a formas ovais pinta- desempenham um papel na vida de uma sociedade, ou em
das, a pavilhões com cúpulas, ou a insültos rfmados, ~ algum setor da sociedade, e é isso que lhes permite existir.
me nos um artefato culrural que os objetos e instru~s Neste caso significado também é uso , o u, para ser mais
inventados para "sensibilizá-la". O artista trabalha com a preciso, surge graças ao uso. Somente p esquisando esses
capacidad e de seu público - capacidade de ver, de ouvir, de usos com o mesmo afinco com que estamos acostumados a
tocar, às vezes até de sentir gosto e de cheirar, com uma certa escudar técnicas de irrigação ou costumes matrimoniais,
compreensão. E embora alguns elementos destas capaci- seremos capazes d e descobrir algo mais profundo sobre eles.
dades possam ser realmente inatos - normalmente é uma E isso n ão é uma d efesa do ind~mo , pois não temos a
vantagem não ser daltônico - elas são ativadas e passam a menor necessidade de um catálogo de instâncias. O que
existir verdadeiramente com a experiência c;fe uma vida que d esejamos é que os poderes analíticos da teoria semiótica -
se passa entre determinados tipos de coisas para serem sejam esses os d e \Peifce, Sãti'Ssu~ Lévi-Strauss, o u Good-
olhadas, ouvidas, tocadas, administradas, e sobre as quais se ~ - não sejam utilizados em uma investigação de indica-
possa pensar, ou as quais se possa reagir; variedades es ec'- dores abstratos, e sim no tipo d e investigação que os
~ ficas de repolho, tipos individuais d e reis. arte e os instru- examine em seu habitat natural - o universo cotidian o em
T
mencos para entende-la são feitos na mesma fábrica. que os seres humanos olham, nomeiam, escutam e fazem .
Esta visão da arte sugere que, para que uma abordagem
da estética possa ser chamada de semiótica - ou seja, uma
abo rdagem cujo objetivo seja explicar o significado de de-
29. N. Goodman, Languages of ar/, lndl:in:ipolis, 1968, p . 260.

179
Tampouco é um argumento em defesa da negligência além de um sentimentalismo etnocêntrico, na ausência de
pela forma. Trata-se, ao contrário, de buscar a raiz das formas qualquer conhecimento sobre o que significam aquelas ar-
não em alguma versão atual izada da psicologia acadêmica, tes, ou qualquer compreensão da cultura onde se origina-
mas sim naquilo que, no segundo capítulo deste livro, ram. (O uso que o Ocidente faz das obras de "primitivos",
chamei de "história social da imaginação" - ou seja, na deixando de lado o valor que essas obras certamente pos-
construção e destruição de sistemas simbólicos, à medida suem em seus próprios termos, contribuiu para acentuar
em que indivíduos, ou grupos de indivíduos tentam fazer essa ausência d e conhecimento; estou certo de que a maioria
sentido da profusão de coisas que lhes acontece. Quando das pessoas considera a escultura africana como um Picasso
um chefe Bamileke tomou posse, nos relata Jacques Maquet, do mato, ou ouve a música javanesa como se fosse um
ordenou que lhe escu lpissem uma estátua; "após sua morte, Debussy barulhento.) Se é que existe algo em comum, é que
a estátua ainda era respeitada, mas pouco a pouco foi em qualquer lugar do mundo certas atividades parecem
destruída pela intempérie, à medida em que a memória do estar especificamente destinadas a demonstrar que as idéias
chefe ia sendo apagada das mentes do povo."3º Onde está a são visíveis, audíve~e ::Será preciso inventar uma palavra -
forma neste caso? No formato da estátua, ou no formato de tactíveis; que podem ser contidas em formas que permitem /
sua trajetória? É claro que está em ambos. Mas nenhuma aos sentidos, e através destes, às emoções, comunicar-se ~
análise da estátua que não leve em consideração seu destino, com elas de uma maneíra reflexiva. A variedade da expres-
um destino tão intencional como tinha sido o cálculo de seu são artística é resultado da variedade de concepções que J
volume ou o brilho em sua superfície, poderá entender seu os seres humanos têm sobre como são e funcionam as
significado ou captar sua importância. coisas. Na realidade, são uma única variedade.
Afinal de contas, não é só com estátuas (ou pinturas, ou r Para que possa estudar a arte de forma eficaz, a semiótica <
poemas) que temos que trabalhar, mas sim com os fatores terá que ir além do estudo de sinais como meios de comu-
que tornam esses objetos importantes - melhor d ito , que nicação, como um código a ser decifrado, e considerá-los
"afetam" de maneira importante aqueles que os fazem ou os J como formas d~ensamento , um idioma a ser interpretado.
possuem - e esses são tão variáveis como a própria vida.k_ O que necessitamos não é uma nova criptografia, rinc~l:-f
é que existe algo em comum entre todas as artes em todos mente se esta consistir em substituir uma cifra por outra l\
os locais onde as descobrimos (em Bali fazem estátuas com ainda menos inteligível, mas sim um novo diagnóstico, uma
moedas, na Austrália desenhos com lixo) que justifique ciência que seja capaz de determinar o sentido que as coisas
incluí-las sob uma única rubrica inventada no mundo oci- têm para a vida a seu redor. Os que elab orarem este diagnós-
dental, certamente não será o fato de que afetam algum tico terão que ser treinados em significação e não em pato-
sentido universal de beleza. Esse sentido pode ou não existir, logia, e o tratamento terá gue ser feito com idéias, n ão com
mas se existe, em minha experiência, não parece tornar as Sintõmas. Relacionando estátuas cinzeladas, folhas de sagu
pessoas capazes de reagir às artes exóticas com outra coisa pigmentadas, paredes cobertas de afrescos, ou versos canta-
dos, com a limpeza da floresta, os ritos totêmicos, a inferên-
cia comercial ou a discussão de rua, é possível que este
diagnóstico comece por fim a localizar, no significado do
30. J. Maquct ... l ntroduclion 10 Acs1hctíc Amhropology", in A Macaleb Module i11
contexto onde surgem essas artes, as origens de seu poder.
A111/Jrop o l ogy. Rcading, Mass.. 197 1, p. 14.

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