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artigos e ensaios Das biografias urbanas à cultura das cidades:

Richard Morse e a formação da metrópole paulista

Ana Claudia Veiga de Castro


Arquiteta e Urbanista, doutora pela Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo, docente no
Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU/USP, Rua do Lago,
876, Cidade Universitária, Butantã, São Paulo, SP, CEP 03178-200,
+55 (11) 3091-4795, anacvcastro@usp.br

Resumo

O artigo trata das referências do campo da história urbana do livro De


comunidade à metrópole: biografia de São Paulo (1954), mais conhecido como
Formação histórica de São Paulo: de comunidade à metrópole (1970). Essa
obra de Richard Morse constitui um olhar para a história e cultura urbanas
paulistas, estabelecendo relações com as biografias urbanas publicadas nos
Estados Unidos e com as reflexões de Lewis Mumford sistematizadas em The
culture of the cities (1938). Busca-se compreender a obra no cruzamento de
olhares e perspectivas entre São Paulo e Nova York, como uma história cultural
urbana fundamental para a metrópole paulista.

Palavras-chave: história urbana, história cultural, Richard Morse, Lewis


Mumford.

O primeiro contato de Richard Morse (1922-2001) –


autor do livro De comunidade à metrópole: a biogra-
para o fenômeno da urbanização paulistana. Ba-
seando-se “um pouco na intuição, outro tanto nas
fia de São Paulo – com o objeto de seu livro, a cidade poucas leituras disponíveis na região de Nova York e
1  Para pesquisar material de São Paulo, é anterior a sua pesquisa de campo na lembrança que tinha das horas passadas em São
para sua tese de doutorado,
“São Paulo under the Empire
e nada planejado1. Ainda durante a graduação na Paulo em 1941”, o historiador diria posteriormente
(1822-1889)”, New York: Universidade de Princeton (1941-1944), aproveitando que o que o motivou a estudá-la foi justamente a
Columbia University, 1952
(Rare Books & Manuscripts
uma das paradas do navio que o levava a um tour vontade de compreender a originalidade de seu
Library, Columbia University), em uma viagem de férias pela América Latina, o processo urbano, uma cidade que “brotou do
Richard Morse ficaria pouco
mais de um ano no Brasil, de
estudante de história passaria algumas horas pela sol”, mas que “era também muito velha”. Dupla
setembro de 1947 a dezem- cidade que começava a ficar famosa pela intensidade perspectiva que o intrigava, levando-o a buscar
bro de 1948, a maior parte
do tempo em São Paulo. A
e rapidez de seu crescimento: “explicar se [São Paulo] era uma ‘Chicago da América
tese foi a base para o livro De do Sul’ ou um outro gênero urbano desconhecido”
comunidade à metrópole: bio-
Em Santos deixei o navio e fui conhecer São (MORSE, 1990, p.150). Assim, perguntava em outra
grafia de São Paulo publicado
em 1954, e que, na segunda Paulo... A cidade logo me espantou porque era oportunidade:
edição em 1970, ganha o
muito moderna, achei-a demasiadamente grande,
título: Formação histórica de
São Paulo: de comunidade à interessante, mas não gostei muito: tinha tráfego Aquela coisa de São Paulo havia ficado na minha
metrópole, tornando-se um
demais, gente apressada correndo nas ruas... mente: por que surgira aquela cidade enorme que
clássico da história da cidade.
A respeito da fortuna crítica (MORSE, 1990, p.147) todo o mundo dizia ser a Chicago da América do
do livro e a discussão do es-
Sul, e que forças econômicas teriam eliminado de
tatuto de “livro clássico”, cf.
CASTRO, 2013b. Essa primeira impressão seria invocada posterior- sua paisagem quase todos os sinais de uma tradição
mente como a centelha que lhe atiçou a curiosidade arquitetônica anterior? (MORSE, 1989)

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Das biografias urbanas à cultura das cidades: Richard Morse e a formação da metrópole paulista

2 Textoapócrifo republicado Richard Morse compara São Paulo a Chicago, cidades em suas especificidades mas também o seu
em As Others See Chicago:
Impressions of Visitors, 1673- a “metrópole instantânea”, pois em seu surto papel de condutoras do desenvolvimento nacional.
1933, volume organizado de urbanização também a capital paulista se in- Compreender melhor a formação do campo da
por Bessie Pierce, que reve-
la como Chicago era vista dustrializara e crescera de maneira impressionante, história urbana na academia norte-americana permite
como fenômeno urbano já tornando-se um dos fenômenos urbanos do mundo não apenas inserir os interesses de Richard Morse
contemporaneamente ao seu
crescimento. moderno. Em meados do século 19, o crescimento dentro desta perspectiva, mas nos leva a vislumbrar
desenfreado de Chicago havia impactado sobre- com mais clareza os caminhos que o autor percorre
3  T r a t a v a - s e
da crônica
“As serenatas”, publicada maneira os contemporâneos: para elaborar a sua história urbana de São Paulo. Com
no Correio Paulistano em o fim da Guerra, Richard Morse, que havia servido
09/12/1919, p.4, assinada
por Helios, pseudônimo do
Em 1850, [Chicago] tinha uma população de 26 no Pacífico, retorna a Nova York e, após concluir
escritor modernista Menotti mil habitantes. Em 1856, quando afirma ser o um mestrado sobre o primeiro século paulista na
del Picchia. Essa é uma entre
várias crônicas publicadas na-
primeiro mercado de grãos no mundo, o primeiro Universidade de Columbia4, decide continuar sua
queles anos com tal temática. mercado de madeiras no mundo, a terceira maior pesquisa estudando a história da evolução urbana
4 Trata-se do mestrado “São
cidade em rendas com serviços postais no país, a de São Paulo até o século 20. Mas quais eram suas
Paulo, The Early Years”, by melhor comunicação ferroviária no país – que é a referências para propor tal tema de investigação?
Richard M. Morse. Submitted
in partial Fulfillment of the
melhor do mundo –, sua população é de mais de 90
Requirement for the Degree mil habitantes e seu lema é “ainda AVANTE, e seu As biografias de cidade e uma nova
of Master of Arts in the Facul-
ty of Political Science, Colum-
destino está entre as estrelas”. (apud PIERCE, 1933)2 história urbana
bia University, June, 1947,
Rare Books & Manuscripts
Mas a comparação de São Paulo com as cidades Se as cidades norte-americanas já vinham sendo
Library, Columbia University.
Essa espécie de aproximação norte-americanas não era propriamente uma no- esquadrinhadas detidamente no campo da sociologia
à história paulista permite
vidade. Já em 1890, no auge da imigração estrangeira desde o fim do século 195, o primeiro trabalho
ao autor tomar contato com
uma historiografia clássica (principalmente italiana) para a capital paulista, um considerado fundador dos “estudos de história
sobre São Paulo, recuperando
viajante dizia que “São Paulo [era] a expressão do urbana” naquele país é o livro The Rise of the City
autores que construíram uma
imagem de São Paulo condu- espírito yankee amenizado e perfumado pela graça 1878-1898, de Arthur Schlesinger, publicado em
tora dos destinos da nação
do gosto italiano” (RAFFARD [1890], 1977, p. 81). Na 19336. Partindo do seminal estudo de Frederick
desde o período colonial.
década de 1920, na pena dos escritores modernistas, Jackson Turner, que via na conquista do oeste o
5 É conhecido o desenvolvi- a comparação se tornaria corrente, e Nova York ou elemento fundamental da formação da nação7, o
mento da sociologia urbana
na chamada Escola de Chica- Chicago seriam invocadas constantemente como historiador buscaria reescrever a história da América a
go, surgida na Universidade espelho para o crescimento da capital paulista.
de Chicago, fez daquela cida-
partir do ponto de vista urbano. Desse modo, apoia-
de seu primeiro laboratório. São Paulo se americanizava com seus arranha- va-se na tese que defendia que o país não se explicava
(Cf., entre outros, BULMER, céus e reformas urbanísticas, as casas brotavam
1984; EUFRÁSIO, 1998).
pela ocupação da costa leste, e sim pelo avanço da
“feito cogumelos após a chuva”, e se deixava fronteira oeste, mas buscava compreender o papel,
6 Cf. HANDLIN e BURCHARD,
definitivamente para trás “a cidade das rótulas e das até então totalmente menosprezado, da fundação
1963 e STAVE, 1977, entre
outros. estudantadas”, para se transformar numa cidade das cidades nesse movimento (SCHLESINGER, 1933).
“prática, elétrica, yankeezada” (HELIOS [1919] apud Em um artigo que condensava sua perspectiva sobre
7  A fronteira, para Turner,
definia-se como a zona ainda CASTRO, 2005, p. 114)3. o tema do ponto de vista historiográfico, Schlesinger
não colonizada pelo euro- citava uma carta recebida do próprio Turner, na
peu, fronteira imaginária que
marcou o caminho dos pio- No meio do século 20, entretanto, tal percepção qual este último dizia já ser necessário àquela altura
neiros em direção ao Oeste demandava explicações. Entender como e porque – 1925 – “uma reinterpretação da história urbana
norte-americano, trazendo a
idéia do limite extremo entre São Paulo se tornava uma das principais cidades dos Estados Unidos” (TURNER apud SCHLESINGER,
a terra colonizada e a terra da América Latina, com um crescimento tão im- 1940, p.43), para mostrar-se impelido a explorar
não explorada. Cf. Frederick
J. Turner, “The significance pactante como o que se dera em Chicago um século um campo de estudos até então quase inexistente,
of the frontier in American antes, inscrevendo a sua evolução urbana num buscando atentar para a constante interação entre o
History” (1893), artigo apre-
sentado num encontro da amplo recorte temporal, era o mesmo que alguns campo e a cidade naquele alargamento das fronteiras
American Historical Associa- historiadores norte-americanos vinham se propondo que definira o país como nação. Com efeito, não se
tion na World’s Columbian
Exposition em Chicago, pos- a fazer desde os anos 1930 não apenas com aquela tratava de desenvolver uma interpretação da história
teriormente incorporado no metrópole industrial, mas com diversas cidades dos da América que desprezasse a “tese da fronteira”8,
livro The Frontier in Ameri-
can History (1920). Segundo Estados Unidos. Na década seguinte uma série de mas de avaliar e defender o papel das cidades no
Bruce Stave, para Turner e “biografias de cidade” já havia aparecido à público, mesmo processo. Para Schilesinger, as cidades sempre
...continua próxima página... buscando justamente dar conta de descrever aquelas haviam sido uma “válvula de escape”, o “lugar

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Das biografias urbanas à cultura das cidades: Richard Morse e a formação da metrópole paulista

... continuação da nota 7 ... da reforma social”, onde “as responsabilidades a própria história do país, flagrando a formação
seus seguidores, as cidades coletivas eram encorajadas” em contraste com o nacional através do que acontecera nas cidades. Dito
tiveram então um pequeno
individualismo característico da marcha para o oeste. de outro modo, buscava-se com eles compreender a
papel na formação da nação.
Deste modo, “a ‘frontier Por isso a importância da cidade como formadora do formação do próprio ethos americano. Note-se aqui
thesis’ deu o tom para uma
caráter americano – em seu papel civilizador, pode- que essa é a forma que Morse quer entender São
geração ou mais de historia-
dores americanos e seus estu- se acrescentar. A cidade, não menos que a fronteira Paulo, a partir da formação de um ethos paulista
dantes”, que negligenciaram
era, desse ponto de vista, uma força fundamental na formulado na cidade colonial seiscentista, que vai se
aquele campo de estudos (Cf.
STAVE, 1977, p.17). formação do caráter da nação. Pois tanto no passado transformando em alguns momentos decisivos da
como ainda hoje, a cidade história. Mas vejamos brevemente de que maneira
8 Pouco mais que uma déca-
da depois, era ainda a partir estes estudos se desenvolveram, de modo a termos
dessa tese que a historiadora era um lugar onde os homens encontravam uma série mais elementos para a compreensão da tese de
Constance M. Green iniciava
seu curso sobre o crescimen- de oportunidades para seus talentos, oportunidade Morse sobre a capital paulista.
to das cidades nos EUA para para cultivar as artes e os negócios da vida. Porta
os ingleses da Universidade
de Londres: “O rápido cres- de entrada de colonos e de bens vindos da Europa, Uma das cidades estudadas nesses anos pela his-
cimento das cidades é uma a cidade também foi o maior porto de entrada toriadora Constance Green, Holyoke (no estado de
característica história norte-
-americana não menos sig- para os ideais e os padrões europeus de gosto. Massachusetts), permitia compreender, por exemplo,
nificante e dramático que a (SCHLESINGER, 1940, p.43) o desenvolvimento da economia industrial baseada
rápida marcha para o oeste”
(GREEN, 1957, p.2). nas fábricas de tecidos na Nova Inglaterra, e com
Uma espécie de luta da civilização contra a bar- isso, a própria industrialização norte-americana, e
9 Penso no caso da Argentina
(talvez o mais conhecido), que bárie, que já caracterizava, não custa lembrar, a por consequência, o estabelecimento do espírito
desde o Facundo (1845), de compreensão do papel das cidades do lado de capitalista no Novo Mundo, o surgimento do self-
Sarmiento, cujo subtítulo é
Civilización y Barbárie, contra- baixo do Equador desde meados do século 199. Se made man, e outros tópicos da identidade norte-
punha o gaucho bárbaro do na Europa, diria Schlesinger, o desenvolvimento americana. Ao observar a evolução urbana de
interior, e portanto o próprio
pampa, ao homem civilizado urbano havia se dado de forma lenta e gradual, Chicago, em outra oportunidade, a mesma autora
que só a cidade – entendida na América “pulavam[-se] etapas” e deste modo retomava a formação desse espírito industrioso
em sua genealogia europeia –
podia formar. Mas podemos já se vivia ali em um novo momento, não mais de e ousado, que era visto em pequenos exemplos
nos remeter às discussões do competição, mas de colaboração entre o mundo cotidianos, mas que mostravam como a cidade
início do século 20 no Brasil,
que Monteiro Lobato levará rural e o urbano, o que demandaria o surgimento de pudera sobreviver aos desafios colocados ao longo
à frente em relação ao jeca um novo campo de estudos (SCHLESINGER, 1940). de sua história por conta de seus habitantes que –
tatu, notando sua mudança
de perspectiva numa certa diferentemente dos de Holyoke – teriam sabido se
altura, por repensar o papel A partir daí surge nos anos seguintes uma série “reinventar” a cada novo desafio13. A forma que
do interior enquanto porta-
dor de uma tradição original de estudos e biografias de cidade, buscando com- Green descrevia a população de Chicago, sobretudo
e não mais lugar do atraso, preender a evolução urbana das cidades em todo o seus líderes, lembra de perto a descrição de Morse
frente às cidades litorâneas,
entendidas como o lugar da país, das metrópoles como Nova York ou Chicago à sobre a liderança paulista: o espírito empreendedor,
cultura postiça e não mais menos conhecida Holyoke, nascida no século 19 no a vontade de colocar a cidade como protagonista
da modernidade. Mas aqui
fugimos do nosso ponto. bojo da revolução industrial. Segundo Bruce Stave, num cenário nacional, a sabedoria em lidar com as
estes primeiros estudos seguiam as linhas traçadas adversidades... Seria mesmo São Paulo a Chicago
10 Entre eles, A History of Chi-
cago (Bessie Pierce, 1937, 3 v.);
por Schlesinger, enfatizando os acontecimentos da América do Sul? Vejamos adiante como Morse
Pittsburgh: a History of a City nacionais dentro de uma estrutura urbana, o que responderá a isso.
(Leland Bal-dwin, 1937); New
York, an American City (Sidney
gerou um grande número de trabalhos sobre
Pomeranz, 1938); Holyoke, cidades específicas, parte deles sobre cidades cres- Por ora, vale dizer que se é apenas nos anos 1930
Massachusetts: a Case History
of The Industrial Revolution
cidas no último século, que eram a maioria das que os norte-americanos começam a buscar entender
in America (Constance Gre- cidades americanas10, mas também sobre cidades a história do desenvolvimento urbano em seus
en, 1939); The Biography of
a River Town: Menphis, Its
coloniais (STAVE, 1977, p.18)11. Tais trabalhos variados aspectos, apenas duas décadas depois
Heroic Age (Gerald Carpers, buscavam compreender as cidades como “entidades já há um artigo de revisão bibliográfica sobre os
1939); Baltimore, 1870-
1900: Studies in Social History
orgânicas”12: se um biógrafo estudava o crescimento estudos históricos urbanos, ainda que apenas cinco
(Charles Hirschfeld, 1941); e o desenvolvimento de um ser humano desde o seu historiadores ensinassem ou conduzissem seminários
Rochester: the Growth of a
City (Blake McKelvey, 1945-
nascimento, também os biógrafos urbanos deveriam e cursos em universidades americanas no campo da
61, 4 v.); Three centuries of investigar o crescimento e o desenvolvimento de história urbana14, demonstrando a maturidade do
New Haven, 1638-1938 (Rollin
Osterweiss, 1953).
cidades específicas em suas trajetórias urbanas a campo. Neste artigo, de autoria de Blake McKelvey,
partir de sua fundação. E permitiriam ainda entender defende-se a especificidade dos estudos históricos em

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Das biografias urbanas à cultura das cidades: Richard Morse e a formação da metrópole paulista

11 Schlesinger citaria os se- relação aos outros campos de estudo das cidades. em inglês em 195817, e também quer entender
guintes trabalhos como pio-
neiros no estudo das cidades
Afirma-se ali que a principal tarefa do historiador a cidade como um organismo, como Schlesinger
coloniais: Cities in the Wil- ao estudar as cidades é a de traçar “as forças e sugerira. Mas se não foram as biografias urbanas
derness, The First Century
of Urban Life in America,
as direções do movimento social humano”, para sua principal inspiração, de onde Morse partia
1625-1742 (Carl Briden- entender o papel da vida urbana no desenvolvimento para estudar a cidade? O historiador aponta outra
haugh, 1938); History of
American City Government.
de uma determinada sociedade, e não buscar definir referência, reconhecendo uma filiação mais direta
The Colonial Period (Ernest S. “padrões inflexíveis”, como faziam os sociólogos de outra faceta, digamos, dos estudos urbanos
Griffith, 1938); The New York
Merchant on the Eve of the
já há muito mais tempo, como por exemplo em norte-americanos. Tratavam-se dos escritos de
Revolution (Virginia D. Har- “Urbanism as a Way of Life” (1938), artigo de Louis crítica urbana de Lewis Mumford. Em mais de uma
rington, 1935); Intercolonial
Aspects of American Culture
Wirth, expoente da Escola da Chicago, que consolida vez, Morse faria questão de reconhecer sua dívida
on the Eve of the Revolution a perspectiva da “ecologia urbana” (MCKELVEY, com o trabalho daquele intelectual (MORSE, 1976;
with Special Reference to
the Northernt Towns (Mi-
1952)15. Como explica Bruce Stave, num balanço MORSE, 1989):
chael Kraus, 1928); Charles- feito no final da década de 1970 por meio de uma
ton Business on the Eve of
the Revolution (Leila Sellers,
série de entrevistas com historiadores urbanos norte- Eu não conhecia muito a história urbana, e minha
1934). (Cf. SCHLESINGER, americanos de várias gerações, em paralelo com maior influência foi realmente o livro de Mumford
1940, p. 44).
o desenvolvimento das “biografias urbanas” (que sobre a cultura das cidades, que é um livro de
12 Poderíamos invocar duas perduraria pelo menos por três décadas, de 1930 a muita sensibilidade escrito por um planificador que
referências, Patrick Geddes
1950, de modo particularmente profícuo na seara dos acreditava no potencial dos seres humanos de fazer
e Louis Wirth, para o termo.
O primeiro, mestre de Lewis historiadores), e com o desenvolvimento da sociologia cidades. Ele começou com as cidades pré-históricas
Mumford, e Wirth, como
urbana, passariam a ser considerados tópicos de e clássicas, Atenas, Roma etc., até nossos dias, e
se sabe, um dos pais da Es-
cola de Chicago. Mas vale estudos tanto na história como na sociologia as tinha uma avaliação de que a cidade grega era
lembrar também de Marcel
“rivalidades entre cidades”, os “transportes”, as boa, a romana era péssima, a medieval era boa, e
Pöete, urbanista francês, que
já havia esboçado uma visão “reformas municipais”, a “imigração urbana”, a cidade industrial fora obviamente uma tragédia.
evolucionista e organicista da
entre outros, o que deixa claro que diversas linhas Mumford pertencia àquele grupo que queria refazer
cidade, tomando-a como um
ser vivo a ser regulamentado de pesquisa dos estudos urbanos se desenvolveram a idéia de comunidade, um pouco na linha dos
pelo urbanismo.
concomitantemente. ideais urbanos que temos agora, e por isso em meu
13  Cf.os capítulos sobre estudo, ao invés de seguir uma orientação mais
Holyoke e Chicago no volume Assim, na década seguinte, 1960, as “biografias marxista, ou mesmo economicista, na perspectiva
sobre as cidades americanas
de GREEN (1957). de cidade” passariam a ser vistas como a “velha de Henri Pirenne, optei por uma orientação mais
história urbana”, em contraposição ao surgimento culturalista, sem dar muita atenção à dialética da
14 Seriam eles os já citados
Arthur Schlesinger e Bessie L. de uma “nova história urbana”, cujo marco teria sido história. (MORSE, 1989)
Pierce, além de Allan Nevins, a publicação de Nineteenth-Century Cities, editado
W. Stull Holt, e Bayard Still,
mas o que mostra que o cam- por Stephan Thernstrom e Richard Sennett, em 1969. Trata-se de uma lembrança muito posterior, e o
po se configura naqueles anos. O volume reuniu artigos de diversos profissionais historiador inclusive confunde os livros ao recuperar
15 McKelvey afirma ainda que presentes numa conferência ocorrida em 1968 na a história das cidades desde a Antiguidade, o que só
“o despertar do interesse Universidade de Yale e levaria a consolidação de aparece num trabalho posterior de Mumford, The
acadêmico, o que logo ocor-
reu neste campo de estudos,
novos caminhos para os estudos históricos urbanos City in History: Its Origins, Its Transformations, and Its
é evidenciado pela publicação dali em diante (STAVE, 1977, p.18 e ss.)16. Prospects (1961). Mas isso não é o mais importante.
desde 1930 de ao menos 40
volumes que poderiam ser O que pretendemos discutir a partir daqui é em
chamados de biografia urba- Richard Morse, que não buscava definir padrões – que medida Mumford inspira a biografia de São
na - todas as obras de caráter
acadêmico que lidavam com
como os sociólogos – nem discutir temas específicos Paulo que Morse empreende nos anos 1950, nesse
mérito com determinadas – como os novos historiadores – mas justamente trabalho que contribuiu de maneira fundamental
cidades - além de outra deze-
na de bons livros de história
discutir a especificidade de uma urbanização em para a formação da história urbana paulista.
urbana com um escopo mais certa área das Américas, observando a sua história ao
amplo. Bons artigos sobre as
longo de quatro séculos, ao ser questionado numa
cidades têm aparecido em Lewis Mumford e a cultura urbana
várias revistas históricas, e entrevista feita muito tempo depois se havia partido da metrópole
ainda o professor Bayard, que
está preparando uma extensa
das biografias urbanas que surgiram na década de
bibliografia sobre o assunto, 1930 para empreender sua pesquisa sobre São Paulo, Ainda que a Academia nunca tenha sido seu
listou pelo menos vinte e cin-
co títulos de teses de douto-
dirá que não, ainda que não as desconhecesse. Ora, verdadeiro campo de atuação, Lewis Mumford
rado sobre temas urbanos em seu livro se vale da palavra “biografia”, tanto na é ainda hoje uma referência obrigatória para
...continua próxima página... edição brasileira de 1954, como na sua publicação aqueles que estudam cidades. Esse intelectual

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... continuação da nota 15 ... quase autodidata, que falava sobre cidades desde seu método de pesquisa e seu entendimento do
andamento ou recentemente a década de 1920, exerceu grande influência nos urbano, fundamentado em “observações diretas
concluídos em várias escolas
de pós-graduação em todo estudos urbanos e de planejamento, mas também levadas à efeito em muitas regiões diferentes,
o país” (MCKELVEY, 1952). nos trabalhos sobre a história das cidades ao longo tendo como ponto de partida um estudo detido
Bruce Stave nos lembra, à
guisa de comparação, como de todo o século 20. Como intelectual engajado, de [sua] própria cidade e região, Nova York e seus
já desde pelo menos o início extrapolou o campo da reflexão estritamente arredores” (MUMFORD [1938], 1961)22. Mumford
do século 20 os sociólogos
de Columbia e de Chicago acadêmica, exercendo sua veia de polemista em falava a partir de Nova York, ou seja, a partir da sua
tinham a cidade como labo- textos que buscavam uma real intervenção no própria experiência urbana na metrópole, e era desde
ratório para seus estudos,
enquanto os historiadores, no mundo, debatendo temas contemporâneos dentro esse lugar e dessa experiência metropolitana que
mesmo período, ainda pouco de uma perspectiva histórica, e buscando influir nas ele pretendia descrever a “cultura das cidades”, e
prestavam atenção nos temas
urbanos (STAVE, 1977, p.16). decisões sobre os caminhos das cidades (MULLER, propor alternativas para elas. Estes dois caminhos se
1992)18. reconhecem de saída como dois grandes movimentos
16  Apenas em 1974 é que
surge na América o Journal no livro: uma primeira parte de descrição da evolução
of Urban History. Vale aqui Autodescrevendo-se como um “generalista”, urbana das cidades, desde a comunidade medieval
notar que Morse dará aulas
em Yale entre as décadas de Mumford se recusaria a ceder aos impulsos de até a metrópole moderna, e uma segunda na qual
1950 e 1960 e que esteve especialização que foram se tornando mais e apontava os caminhos possíveis para as cidades
presente na conferência pro-
movida pelo Yale’s Office of mais fortes sobretudo a partir da Segunda Guerra, no presente. Talvez uma tentativa de se contrapor
Urban Studies and Programs. e, mesmo não sendo arquiteto, considerava a à crescente especialização, talvez resquício de sua
17 Publicado pela Florida Uni- arquitetura a base da cultura da sociedade. Não formação pouco ortodoxa e autodidata, essa forma,
versity Press com o título da à toa, suas análises de cidade dedicavam-se contudo, não deixava de esboçar também alguma
edição brasileira: From com-
munity to metropolis: a bio- também a analisar a arquitetura produzida em vontade de “teorização”. Logo na Introdução
graphy of São Paulo, Brazil. cada época. Seus primeiros escritos foram sobre Mumford dá a sua definição para “cidade”:
18 Sem chegar a se formar,
o desenvolvimento metropolitano de Nova York,
Mumford frequentou o City as construções contemporâneas e o planejamento é o ponto de máxima concentração do vigor e da
College e a New School for
Social Research em Nova
urbano necessário para organizar a vida dessa grande cultura de uma comunidade (...), a forma e o símbolo
York na década de 1920. cidade. E após uma breve interrupção durante a de um conjunto integrado de relações sociais: é a
Muito rapidamente adquire
proeminência como crítico e
Guerra, Mumford volta à ativa comentando também sede do templo, do mercado, da corte de justiça,
jornalista, e já nessa década a cena arquitetônica internacional, o desenvolvimento da academia de ensino” (MUMFORD, 1961, p.13)
publica ensaios e artigos em
revistas e jornais de ampla
e o planejamento urbano no pós-Guerra europeu e
circulação, como The Free- questões de preservação nos Estados Unidos. Diversos Buscando a “evolução” das cidades na história,
man, The New Republic, The
pesquisadores da obra mumfordiana destacam mas não tendo em vista qualquer perspectiva de
American Mercury e ainda no
The Journal of the American em seus trabalhos as ideias do planejador Patrick aprimoramento ou de progresso – antes o contrário,
Institute of Architects – o
Geddes, a quem Mumford sempre chamaria de “meu deve-se dizer – Mumford as reconhece como o
que não deixa dúvida sobre a
importância de seus escritos mestre”19, reconhecendo-o como uma referência principal produto da terra, “representação dessa
naqueles anos, inclusive no
importante. Mumford, assim como seu “mentor” vida estável que começa na agricultura permanente:
meio especializado. Em 1931
torna-se crítico de arquitetura – e diferentemente de outra conhecida crítica das uma vida que se vive com o auxílio dos abrigos
da revista New Yorker, per-
metrópoles alguns anos depois, já na ressaca do permanentes, vinhedos e obras de irrigação, e de
manecendo ali até os anos
1960, a frente da coluna “Sky desenvolvimento violento da década de 1950, a edificações permanentes para a armazenagem”
Line” (MUMFORD, 1956).
jornalista Jane Jacobs20 –, sempre acreditou no (MUMFORD, 1961, p.13). E em seguida, apresenta o
19 Cities in evolution (1915) planejamento urbano como forma de controle da lugar da arquitetura para a compreensão da história
e “Indore Report”, em Town das cidades – como um documento material tão ou
metropolização, tendo sido não apenas um dos
Planning Towards City De-
velopment, 2v. (1918) se- fundadores da Regional Planning Association como mais importante que os documentos escritos. O
riam as obras de Geddes “tempo se torna[ria] visível” na própria arquitetura,
um dos inspiradores do New Towns movement inglês,
que Mumford considerava
as mais importantes. Geddes no pós-Guerra. (THOMAS, 1988; MILLER, 1992). já que
teria sido responsável ainda
por apresentar a Mumford
a obra e o pensamento de O livro The Culture of the Cities – que é o que os edifícios, os monumentos, as vias públicas, mais
vários “humanistas vitoria- nos interessa mais de perto aqui, por ter sido a claramente que o testemunho escrito, mais
nos”, tais como Ebenezer Ho-
ward, William Morris e John referência nomeada por Morse – foi lançado em sujeitos ao olhar de muitos homens do que os
Ruskin, que de certo modo 1938, ainda antes da Guerra21, e cobria a história artefatos dispersos do campo, deixam uma impressão
“inspiravam” os pensamen-
tos expressos no Cultura das das cidades ocidentais desde o período medieval até nas mentes até mesmo dos ignorantes ou dos
Cidades (Miller, 1992). o mundo contemporâneo. Ali, o autor explicitava indiferentes. (MUMFORD, 1961, p.14, grifo meu)

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Das biografias urbanas à cultura das cidades: Richard Morse e a formação da metrópole paulista

20 Autora de The Death and As obras construídas eram “marcas do tempo, Mumford, como se disse, vivia em Nova York e
Life of Great American Cities
(1961).
testemunhos de intenções e realizações”, não era a partir dali que “teorizava”. Ele não escrevia
apenas em sua dimensão material, mas também sobre um mundo abstrato, ao contrário, queria
21 Publicadoem Nova York
no campo simbólico das representações. E são influir nos planos urbanos que estavam sendo
pela Harcourt, Brace and
Company, Inc.. as duas dimensões, a concreta e a simbólica, que gestados24. O autor descrevia os períodos históricos
Mumford mobiliza ao longo de todo o livro para das cidades através de uma denominação emprestada
22 Todas as citações são da
edição brasileira A cultura recapitular o curso da civilização ocidental do século de Geddes e apresentava uma síntese histórica de
das cidades, traduzida por quinze até aquele presente, mostrando como a fases de desenvolvimento da cidade, da polis à
Neil R. da Silva, e publicada
em 1961. “integração mecânica” e a “decadência social” necrópoles, uma espécie de ciclo vital quase que
teriam caminhado lado a lado para uma “cristalização da própria civilização. Mas é na segunda parte
23  Deste modo, os quatro
primeiros capítulos apresen- do caos”. De seu ponto de vista, a desordem se do livro que ele efetivamente apresentava um
tam em linhas gerais esse manifestava de modo pleno na cidade industrial, documento de intenções e proposições explícitas,
caminho histórico das cidades
até a metrópole contempo- cujas consequências eram absolutamente visíveis onde se nota desdobramentos de seu pensamento
rânea: “Proteção e a cidade nos anos 1930 (MUMFORD, 1961, p.14 e ss.). Esse sobre planejamento urbano e intervenção social,
medieval”, “A corte, a para-
da, a capital”, “A insensível longo ciclo se resumia da seguinte maneira: a cidade definindo ali o que ele entendia por regionalismo
cidade industrial” e “Apogeu medieval – a do início da idade Média – apresentava e comunidade25. O livro de Mumford, já se disse,
e decadência de megalópo-
les”. E os três finais tratam as boas características da vida comunitária: relações seria devedor da leitura simmeliana que via a cidade
de propor eixos de interven- face-a-face, tamanho reduzido, equilíbrio entre campo como um “determinante da cultura”, mas, partindo
ção e possíveis caminhos de
planejamento para as cidades e cidade, organicidade e união. A partir da decadência de um Simmel lido numa chave anti-urbana, através
dali para frente: “A estrutura daquela cidade, e na verdade, daquela sociedade – da Escola de Chicago, acabaria por ver a metrópole
regional da civilização”, “A
política do desenvolvimento que coincide com o início do capitalismo –, via-se a como o “âmbito destruidor das relações e da cultura
regional” e “A base social da progressiva desintegração do espírito comunitário, da comunidade” (BALLENT, GORELIK E SILVESTRI,
nova ordem urbana” – como
os próprios títulos já indicam que culminaria na atual vida urbana, simbolizada na 1993, p.23 e ss.).
(Cf. MUMFORD, 1961). atomicidade, no desequilíbrio, no gigantismo, na
24 Vale notar que Nova York
fragmentação e na desintegração das relações sociais, Richard Morse, num certo sentido, reproduz algo desse
ganhou nas vésperas do crack fazendo-nos conviver então com os resultados físicos movimento em seu livro sobre São Paulo. Partindo da
da Bolsa de 1929 um plano
para a área metropolitana de-
e morais decorrentes desse percurso: pacata vila colonial sem maior importância no interior
senvolvido pelo Regional Plan da América Portuguesa – a comunidade – buscava
Association (RPA). O plano
reuniu pioneiros do planeja-
Paisagens arruinadas, distritos urbanos desordenados, chegar na metrópole dos anos 1950 – a principal
mento urbano e permitiu-lhes focos de doenças, trechos de desertos, milhas e cidade industrial latinoamericana. Deixava reservado
produzir um dos estudos mais
aprofundados de uma área
milhas de cortiços padronizados, enxameando em seu capítulo final, “Anatomia da metrópole”
metropolitana já realizados. nas áreas que circundam as grandes cidades e se (MORSE, 1954, pp. 285-304), um espaço para tam-
Mumford analisaria esse do-
cumento minuciosamente
confundindo com seus subúrbios inúteis. Em resumo: bém falar do presente, reconhecendo porém na
em dois artigos publicados malogro geral e a derrota do espírito civilizado. história de São Paulo um sentido distinto do que
na New Republic (em 15 e
22/ 07/1932). Cf. JOHNSON,
(MUMFORD, 1961, p.18) Mumford dera para a história das cidades em geral,
1998. pois a decadência implícita naquela leitura era recusada
25  O
Pode-se afirmar que o propósito do livro de 1938 por Morse pelo fato de São Paulo estar num momento
historiador John Tho-
mas, num artigo sobre o parece ter sido menos uma história das cidades fundamental de sua história, um momento, digamos,
significado do regionalismo
per si e mais uma história como possibilidade de de escolha de caminhos. Ainda que o foco do trabalho
para Mumford, descreve as
suas propostas, sobretudo compreensão do presente e como plataforma para de Morse não fosse propor tal ou qual caminho para
dos anos 1930, como uma
se pensar rumos para o futuro, na medida em São Paulo, é evidente em seu texto a preocupação com
espécie de “caminho do
meio”, entre o marxismo da que, como ele mesmo diz, “a tarefa de traçar uma os destinos da metrópole que se delineava naquela
esquerda e o corporativismo
cidade implica a tarefa maior de reconstruir uma década. Suas conclusões caminhariam assim para
da direita – e de fato, nota-se
este “tom” no livro de 1938, nova civilização” (MUMFORD, 1961, p.19). Como buscar dar à metrópole paulista um lugar diferente
em vários momentos. Cf.
planejador que também era, Mumford se via na da metrópole mumfordiana, ao ver em São Paulo
THOMAS, 1988.
posição de quem pode ajudar a traçar estes rumos a não a confirmação da desagregação comunitária
partir da compreensão e da identificação dos pontos progressiva a partir de um idílico núcleo colonial, mas
positivos do passado para auxiliar numa proposição justo o contrário: a possibilidade da manutenção do
futura, a partir da identificação e da compreensão sentido comunitário visível na cidade desde os anos
dos pontos negativos para serem descartados ou de sua fundação reposto a cada nova fase ou ciclo
evitados dali em diante23. histórico até a formação da metrópole.

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Das biografias urbanas à cultura das cidades: Richard Morse e a formação da metrópole paulista

Morse fazia sua pesquisa em fins dos anos 1940, la, observando-a, Morse – que também tem a
quando São Paulo definitivamente deixava para experiência urbana novaiorquina como background
trás seus ares de vila, e, num primeiro olhar, trans- – de algum modo refaz esse trajeto quando escreve
formava-se numa verdadeira metrópole, se pensada sobre São Paulo, buscando percorrê-la, passando
a partir dos referenciais centrais, ou seja, dos países seus primeiros meses “praticamente só falando
industrializados. A verticalização no centro e o com pessoas para tentar formar uma imagem do
26 Vale dizer que se trata aqui espraiamento da mancha urbana se intensificavam, a trabalho que faria” (MORSE, 1989)26, deixando-se
de uma experiência direta,
distinta do conceito de ex-
industrialização era uma realidade, e sua fisionomia se levar pela capital paulista e por seus novos amigos –
periência de Walter Benja- modernizava por meio de novos edifícios modernistas intelectuais preocupados em definir o lugar de São
min, para quem a própria
experiência metropolitana
que se construíam dia-a-dia apagando os vestígios da Paulo na nação –, envolvendo-se e encantando-se
constitui a dissolução de toda velha São Paulo, alterando a imagem provinciana que com a cidade desde seu primeiro contato.
a possibilidade de “experiên-
cia”, cf. BALLENT, GORELIK,
se tinha da cidade, impondo uma outra, cosmopolita
SILVESTRI, 1993, p.19. e moderna. Explicar esse “súbito” desenvolvimento A dimensão da experiência portanto é indissociável
havia sido seu impulso inicial, e portanto, Morse não dessa história urbana. A idéia de se aproximar e se
podia escapar de pensar o presente, era dele que apropriar da cidade pela experiência se explicitava
ele partia. Por isso, ao finalizar o livro, o historiador em Mumford em muitos momentos, quando dizia
indicaria a importância da discussão do planejamento por exemplo que “os principais documentos sobre
urbano e da arquitetura, cobrando dos arquitetos as cidades são, perante a própria cidade, secundários
paulistas que se posicionassem e atuassem mais como documentos” ou ainda, “só após a imersão geral
intensamente na cidade até então cuidada por no cenário urbano é que se deve tentar explorá-lo
engenheiros, numa referência explícita a Prestes sistematicamente” (MUMFORD, 1961, p.519). Em seu
Maia e ao Plano de Avenidas que vinha sendo trabalho, Morse “aceita” a recomendação e propõe
parcialmente implementado naqueles anos, ecoando uma interpretação que, partindo disso, toma a própria
posições críticas que eram ventiladas na cidade cidade como um documento da cultura. Encara a
àqueles anos (MORSE, 1954, pp.298 e ss.). Alertava cidade e a toma como objeto a partir do momento
que a cidade não poderia cair nos descaminhos em que, ele diz,
de um crescimento desordenado ou mesmo “mal
planejado”, que traria, fatalmente, as mazelas já seus líderes e seus cidadãos, particularmente e
notadas nos países centrais. associados, defronta[ra]m, na maioria dos planos
da experiência, com uma necessidade muito mais
Ressaltando ao longo de seu trabalho o fato de intensa de enunciar as esperanças e os problemas
que a capital paulista soubera manter um sentido da vida em termos intelectuais e abstratos, e de
comunitário durante sua evolução urbana, era por constantemente planejar, tomar decisões e fazer
estar justamente em um momento decisivo de sua novas avaliações nessa base racional (MORSE,
27 Morse citava diretamente existência, diante de escolhas que poderiam definir 1954, p.15)27
Spengler, mas notam-se aí
ecos de Simmel, Park e Wir-
seu futuro, que se tinha que ter consciência aguda de
th, que separam a cidade sua história para definir esse futuro de forma a não Tratava-se de reconhecer o momento em que os
do mundo rural justamente
pelo desenvolvimento do
repetir os erros das outras metrópoles. A aposta de habitantes tomavam consciência da cidade. Como
pensamento abstrato que a Morse era que o ethos original – ibérico e católico e essa abordagem era “tese a ser comprovada”, mas
primeira proporciona.
estruturado organicamente na comunidade colonial antes, devia ser entendida como um conceito que
– garantisse a possibilidade de outros caminhos, “no decorrer da pesquisa, mais adaptado parec[eu]
de uma outra modernidade que, numa via distinta a dar a unidade e coerência aos materiais diversos”
de desenvolvimento, pudesse ensinar ao mundo que lhe chegavam às mãos, Morse afirmava que
como tornar-se metrópole sem desintegrar sua não pretendia tratar da metrópole – ou da “vida da
comunidade. cidade moderna” – como “desintegrativa” (como de
certo modo Mumford fez), pois o que ele buscava em
A despeito de Mumford não aparecer na bibliografia seu trabalho era mostrar a permanência do sentido
do livro de Morse, é como método de abordagem de comunidade na vida da metrópole. Desse modo,
que se deve reconhecer a sua presença. Se Mumford seu objetivo foi mostrar que aquela “comunidade
escreve a partir da sua própria experiência urbana em agrária” formada no período colonial se transformou
Nova York, e antes de tudo se propõe a percorrê- em “cidade” sem perder totalmente seu sentido

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Das biografias urbanas à cultura das cidades: Richard Morse e a formação da metrópole paulista

comunitário, e por isso valia a pena estudá-la. E mais Wars”. In: SCHAFFER, Daniel (Ed.). Two centuries of
American Planning. Baltimore: The John Hospkins
que isso, divulgar tal experiência como um caminho University Press, 1998, pp. 167-196.
para o mundo moderno ocidental – a cultura urbana
MCKELVEY, Blake, “Urban History Today”. In: The Ame-
paulista como uma espécie de sabedoria metropolitana.
rican Historical Review, Vol. 57, No. 4 (Jul., 1952),
pp. 919-929.
Mas Lewis Mumford, pensando bem, ao fim e ao
MILLER, Donald. Lewis Mumford: a life. Pittsbourgh:
cabo não via a metrópole de modo unívoco, e University of Pittsbourgh Press, 1992.
também para ele tratava-se de apontar os pontos de
MORSE, Richard, De comunidade à metrópole: biografia
manutenção desse sentido comunitário. E quando de São Paulo. São Paulo: Fundação do IV Centená-
eles não existissem mais, reconstruí-los, pois a rio, 1954.
experiência da metrópole não podia ser substituída. _______. From Community to Metropolis: a Biography
Assim, pode-se dizer que a lição aprendida com of São Paulo, Brazil. Gainsville: Florida University
Press, 1958.
Mumford serve a Morse como um caminho de
leitura que o guia a construir um olhar que confirma _______. Formação histórica de São Paulo: de comunidade
à metrópole. São Paulo: Difel, 1970.
a compreensão da cidade como uma metrópole,
mas que também lhe permite pensá-la como uma _______. “A Conversation with Richard M. Morse – Paul
alternativa que se colocava ao mundo do pós-Guerra, Goodwin, Hugh Hamill & Bruce Stave”, Journal of
Urban History, Vol. 2, No. 3, May, 1976, pp.331-357.
onde a comunidade ainda se fazia presente. Portanto,
mais que a Chicago da América do Sul, São Paulo _______. “Uma Entrevista com Richard Morse a Helena
Bomeny”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2,
era para Morse naqueles anos de 1950 a realização n. 3, 1989, s/p.
de uma nova forma da metrópole moderna.
______. “Depoimento”. In: MEHY, José Carlos Sebe
Bom (org.), A colônia brasilianista (História Oral de
Vida Acadêmica), São Paulo: Nova Stella, 1990, pp.
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