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Revista de Antropología
ISSN: 1515-2413
revista_ava@yahoo.com.ar
Universidad Nacional de Misiones
Argentina
Resumo
Este artigo tem por objetivo levantar algumas questões metodológicas sobre a
etnografia, como autoridade, validade, trabalho de campo, observação participante,
ética, escrita, entre outras. Lançando mão de uma análise comparativa interdisciplinar
com o trabalho de pesquisa de marketing realizado por Kozinets, e também com
trabalhos de “ciberantropólogos”, do Brasil e do exterior, a reflexão busca em casos
empíricos a fonte para diversas discussões.
Em um segundo momento, as idéias de importantes autores da antropologia
“convencional” servem de base teórica para a compreensão do momento atual da
antropologia e do papel científico da etnografia.
Subject
This article intends to rise up some methodological questions about ethnography, as
authority, validity, fieldwork, participant observation, ethics, writing, among others.
Making use of an interdisciplinary comparative analysis, with Kozinets marketing
research work and also with “cyberanthropologists” works, in Brazil and other
countries, this reflection search in empiric cases the font for many discussions.
In a second moment, the ideas of important authors of “conventional” anthropology
serve as a theoretical base to a deep comprehension of the recent anthropology and the
scientific role of ethnography.
Introdução
Quando Malinowski propôs, nas primeiras linhas de sua obra, que o leitor de
“Argonautas do Pacífico Ocidental” ocupasse por um momento o seu lugar,
possivelmente nunca acreditaria se lhe dissessem que, no futuro, uma situação mais
virtual do que a própria imaginação desafiaria a realidade. Muito menos poderia supor
que a distância entre o etnógrafo e o nativo chegaria, um dia, a ser incomensurável, mas
que, mesmo assim, seria possível a observação. Certamente, o diário por um tempo
secreto de Malinowski não relataria o desconforto físico e psicológico que suas
anotações anos depois revelariam, se ele ainda vivesse entre nós e decidisse trocar os
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trombriandeses por alguma comunidade virtual da Internet. Por outro lado, talvez este
mesmo diário estivesse repleto de incertezas quanto à autenticidade de uma cultura que,
para ser genuinamente virtual, simplesmente não poderia existir no mundo material.
À parte as suposições, este jocoso parágrafo de introdução tem a intenção de
provocar uma breve reflexão sobre a crise metodológica por que passa a antropologia,
colocando no centro do debate a produção etnográfica – teoria, trabalho de campo,
descrição, interpretação e escrita, entre outros aspectos . Desde as viagens colonialistas,
de onde surgiram os primeiros etnógrafos - “no sentido estrito do termo” -, até as
viagens cibernéticas, que procuram hoje ganhar legitimidade no campo, muitas questões
foram levantadas com relação ao método antropológico. O objetivo deste trabalho é
explorar analiticamente estas questões, tomando como base textos de diferentes autores,
com diferentes perspectivas, a partir de uma comparação entre o que se estabelece como
convencional na etnografia e uma emergente técnica de pesquisa, a chamada
“netnografia”.
O trabalho está dividido em três partes: na primeira, será feita uma descrição do
que é a “netnografia”, além de uma apresentação de trabalhos de antropólogos
estrangeiros e brasileiros que já fazem uso deste conceito metodológico para
desenvolver suas pesquisas pela Internet; na segunda parte, serão discutidas três
questões centrais do método etnográfico: autoridade, observação participante e ética; e
na terceira, a escrita etnográfica será analisada do ponto de vista da netnografia.
A maior contribuição deste trabalho está no aprofundamento teórico e analítico a
partir de uma diferente perspectiva, aquela que lida com os reflexos da tecnologia na
relação entre o produtor de conhecimento e as fontes de informação. Entre um e outro,
surgem novas implicações que podem desafiar paradigmas das ciências sociais. Ou
simplesmente levantar uma poeira que o tempo tratará de acomodar no firme chão da
antropologia convencional.
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Atualmente, Kozinets leciona marketing na Kellogg School of Management, na Northwestern University, em
Illinois, Estados Unidos. Sua formação inclui um bacharelado em Administração de Empresas em 1987 e um MBA
em 1988, ambos na York University, no Canada. Ele é PhD em Marketing e Comportamento Organizacional, pela
Queen´s University, no Canada, desde 1997.
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Entre 1996 e 1998, Kozinets realizou 3 netnografias de consumidores, utilizando o método que inaugurou.
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O autor utiliza a expressão “entrée”, que traduzi como “ingresso” para melhor compreensão. Em Kozinets (1998), é
utilizado, também, o termo “lurking”.
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Kozinets (1998) visitou WWWs, Usenets, Portais, IRC e MUD´s.
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MUD e IRC são ambientes em que os participantes dialogam direta e instantaneamente. As informações trocadas
podem ser tornadas públicas ou compartilhadas apenas entre as duas pessoas que dialogam. Muitas vezes, várias
pessoas “conversam” ao mesmo tempo.
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“A etnografia foi realizada a partir da perscpectiva da performance, buscando apreender a forma como os recursos
multimídia da plataforma Palace são apropriados e investidos de significado através do estudo das interações em seu
interior, e de que forma contribuem para a ´constituição de pessoa´ on-line” (Guimarães Jr., 2000).
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Para conhecer outros estudos sobre ciberespaço, visitar o site do “Grupo de Pesquisa em
Ciberantropologia”, do qual Guimarães Jr. faz parte.
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que não “acha mais o seu lugar no mundo”. Ele escreve: “A etnografia procura
conhecer e julgar o homem de um ponto de vista suficientemente elevado e afastado
para abstrair os contingentes particulares àquela sociedade ou civilização. As
condições de vida e de trabalho o desenraizam psicologicamente de seu grupo durante
longos períodos; pela brutalidade das mudanças às quais ele se expõe, o acomete uma
espécie de irracionalidade crônica: jamais ele se sentirá ele mesmo em nenhum lugar,
ele ficará psicologicamente mutilado. Como as matemáticas ou a música, a etnografia é
uma das raras vocações autênticas”.
Longe de se questionar a autenticidade da vocação do netnógrafo (que, o tempo
todo, precisa imprimir ao seu trabalho de pesquisa muito mais reflexividade do que o
etnógrafo tradicional), a situação descrita por Lévi-Strauss (1972) é impensável em se
tratando da realidade daquele que estuda comunidades virtuais. Ainda mais se já o é
para o etnógrafo tradicional de hoje, urbano, que não mais precisa mergulhar por longos
períodos na cultura estudada, mas trabalhar com uma espécie de “simulacro”, onde os
contatos são pontuais e profundos.
O tempo do netnógrafo é um instante. Diante de sua observação, as interações
sociais se dão ininterruptamente, de forma textual escrita (às vezes gráfica), e nenhuma
situação jamais se repetirá para observação. O “estar aqui” é o “estar lá”.
Kozinets (2002:8) apresenta a ética como uma das mais importantes diferenças
entre a etnografia tradicional e a netnografia. O motivo é a natureza dos dados
coletados: “a netnografia usa informação que não é fornecida especificamente, e em
confidência, ao pesquisador de marketing. Os consumidores que originalmente
geraram a informação não necessariamente têm a intenção ou gostariam que fossem
utilizadas em relatórios de pesquisa.”
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É neste ponto que ressurge o debate entre o que é público e o que é privado. O
autor lembra que discussões on-line “dissolvem as distinções tradicionais entre o que é
um lugar público ou privado, transformando pressupostos como anonimato,
confidencialidade e consentimento em algo pouco claro” (Kozinets, 2002:9).
Ele recomenda cinco “procedimentos éticos” que devem ser perseguidos por
quem deseja praticar a netnografia: (1) revelar sua presença, suas afiliações e intenções
para os membros da comunidade que pretende estudar; (2) garantir confidencialidade e
anonimato aos informantes; (3) solicitar um feedback e incorporar comentários dos
membros da comunidade virtual estudada; e (4) solicitar permissão para a publicação de
mensagens, materiais específicos como fotografias, poesia, entre outros, e qualquer
informação pertinente à vida particular dos membros do grupo.
Esta ética é o resultado da pressão de duas “forças normativas”: de um lado, a ética
da antropologia; do outro, a ética da Internet. Como Sá (2002:7) assinala, as listas de
discussão possuem códigos e normas que devem ser seguidos por seus participantes,
mesmo sendo o ambiente caracterizado como “aberto e inclusivo”. A autor observa em
nota de rodapé: “o novato deve estar atento para não enviar perguntas impertinentes,
conversas privadas devem ser evitadas; não se deve enviar mensagens muito extensas;
digitar mensagens em caixa alta significa que se está gritando; o uso de palavrões,
expressões ofensivas ou preconceituosas geralmente é reprovado assim como o envio
de publicidade – onde o papel do manager ou moderador de algumas listas, muitas
vezes, é o de garantir a obediência ao código, podendo inclusive punir com o
desligamento os reincidentes”.
A preocupação com a preservação da autenticidade das culturas observadas na
etnografia tradicional não escapa da inferência do observador, por mais cauteloso e
reflexivo que ele seja. Contrariando Lévi-Strauss (1975), que acredita que o sujeito que
produz conhecimento, o antropólogo, não deve aparecer na produção: deve-se colocar o
outro como fundante da informação. Mauss (1979), por sua vez, defendia uma
antropologia plena de “objetividade”, “exaustividade”, “clareza” e “sobriedade”. Porém,
o tempo e a experiência provaram que, pelo menos no item “objetividade”, a perfeição é
utopia. O diário de Malinowski (1978) revela, em incontáveis passagens, que o
“desenraizamento” do etnógrafo, como quer Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, é
impossível.
Observar e participar de uma cultura sem ser desvendada a sua identidade e suas
intenções é muito mais fácil na Internet do que no mundo real. Por este motivo, é
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Considerações finais
A netnografia está em fase de teste. Ainda não anda pelas próprias pernas, mas
sim apoiada nos ombros da antropologia convencional. Por isto, talvez ainda seja cedo
para dizer que a netnografia é um “método”. Mesmo assim, considerando o seu caráter
experimental, podemos comparar a inovação e a tradição, trazendo algumas conclusões:
Embora os dois métodos tenham muitas semelhanças, eles não são idênticos.
Suas diferenças aparecem em quatro pontos principais: (1) a natureza do objeto de
estudo da netnografia, o ambiente virtual, é totalmente intangível, embora isto não
signifique que é irreal. A realidade está presente, pois os grupos que se formam na
Internet existem de fato, mas só na Internet. Sua temporalidade é instantânea e o risco
de que a comunidade se desmanche de um dia para o outro é muito alto. Daí a
intangibilidade; (2) o pesquisador do ciberespaço se vê diante de um paradoxo inerente
ao material coletado, que é, ao mesmo tempo, público e privado; (3) a netnografia
analisa atos comunicativos; (4) a netnografia prescinde de notas de campo, embora elas
possam ser muito úteis para o vínculo entre o pesquisador e seu objeto de estudo.
Talvez a grande contribuição da netnografia para a antropologia seja a sua
necessidade, como método, de colocar em primeiro plano, explicitamente, o caráter
simbólico das relações sociais. Os atores sociais podem ser suas auto-representações na
Internet. No “mundo sensível”, material, esta “atuação”, certamente, seria um elemento
a mais e, por vezes, confuso para a análise etnográfica. Mas, na netnografia, a ausência
de uma identidade constituída no nível real é totalmente compatível e, mais do que isto,
fundamental, para a própria existência, seja ela real, virtual ou simbólica, das
comunidades on-line. Aí está a grande novidade da netnografia e o grande desafio de
quem se aventura a desfiar as tramas de uma rede que é tecida a cada fração de segundo.
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