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Cozinha da Beira Litoral - Enquadramento Histórico e Receitas - Alfredo Saramago - Assírio e Alvim - 2002

COZINHA DA BEIRA LITORAL - ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E RECEITAS -


ALFREDO SARAMAGO
1.
O homem tem dois imperativos de vida: comer e reproduzir-se. Tudo o que vive põe-
se em movimento para se alimentar e para se reproduzir, o fim é o mesmo. É necessário que
a vida não termine, é preciso que se mantenha e que crie.
Desde a aurora dos tempos que a humanidade, para procurar os seus alimentos,
traçou os caminhos do conhecimento do mundo. A fome tem sido o motor de uma marcha
sempre em frente. A necessidade de alimento tem sido a fonte de todas as energias, boas ou
más, o motivo de progresso, a origem de conflitos, a razão da paz. À volta dos alimentos
construíram-se civilizações, fizeram-se e desmoronaram-se impérios, elaboraram-se leis,
trocaram-se saberes. O resto, podemos ousar dizer, que pouco passa de literatura.
Colheitas, caça, sal, cereais, criação, vinho, especiarias, açúcar, batatas ou
proteínas... são indicações imperativas de um caminho que, de etapa em etapa, transformou
o mundo.
Dizia um vietnamita quase no fim da sua longa e dramática luta: «Após trinta anos de
ocupação e de guerra, os nossos hábitos alimentares são as únicas coisas tangíveis que nos
fazem existir como povo.» Esta afirmação podia ser o enunciado fundamental e a génese de
uma qualquer história da alimentação.
A relação do homem com a alimentação pode considerar-se análoga à sua relação
com a linguagem: ambas parecem «naturais», obedecem a regras indiscutíveis e
inconscientes que são aprendidas no ambiente familiar desde a infância. Tal como a
linguagem, a alimentação pode modificar-se com a alteração do ambiente e reflectir
determinadas situações sociais, económicas e religiosas.
Qualquer que seja a sociedade, a alimentação não é apenas a satisfação de uma
necessidade fisiológica, é também uma forma de comunicação, uma ocasião de trocas e de
actos simbólicos, um conjunto de sinais que constitui, para determinado grupo, um critério de
identidade. Em nenhuma sociedade se come qualquer coisa com qualquer pessoa ou em
qualquer ocasião: a alimentação segue regras muito rígidas, e a cada alteração atribui-se um
sentido, associa-se uma acção, «natural», ou «sobrenatural».
As escolhas alimentares são determinadas por um código cultural que estabelece que
certos alimentos são comestíveis e outros não. Se este código, como o código linguístico, é
em grande parte inconsciente, embora muitas vezes racionalizado por uma ideologia, a sua
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aplicação é associada a uma profunda consciência da identidade cultural e étnica. A


complexidade desta relação entre aspectos conscientes e inconscientes pode contribuir para
explicar porque é que a alimentação não tem sido até agora, para alguns estudiosos, um
sistema cultural coerente.
A maior parte dos estudos diz respeito aos aspectos tecnológico e económico da
alimentação. Muitas vezes estuda-se a utilização de um determinado alimento numa certa
área geográfica ou numa determinada época, de um processo especial de cozinhar ou de um
determinado utensílio de cozinha. São desenhados mapas de distribuição destes elementos
numa área geográfica e num determinado momento e procura-se desta maneira reconstruir a
evolução. O defeito destes estudos está em considerar cada fenómeno separado do conjunto
a que pertence. Entendemos que só o estudo de complexos inteiros pode dar uma ideia
adequada da alimentação, mesmo que se queira considerá-la sob o ponto de vista material e
tecnológico. O papel de um mesmo elemento pode ser diferente em complexos diferentes.
Conforma as épocas, as regiões, as classes e os grupos sociais, um mesmo alimento pode
fazer parte da alimentação destinada a períodos de escassez, da alimentação quotidiana ou,
ainda, da alimentação festiva e da alimentação humana ou animal. Este método atomizante é
acompanhado por uma incerteza fundamental que diz respeito à própria natureza do seu
objecto: deverá a alimentação ser tratada como um aspecto da cultura material, ou como um
aspecto, talvez inferior e residual, da cultura «espiritual»? Será necessário estudar as
técnicas e os utensílios para a preparação dos alimentos ou o texto das receitas, tratadas
neste caso como uma variedade da literatura oral? E ainda: é a alimentação apenas
interessante enquanto objecto de crenças, superstições e tabus de que deveriam ocupar-se,
apenas, os folcloristas?
De um modo geral os estudiosos preferiram limitar-se a tratar um ou outro aspecto, ou
a considerar a alimentação como um conjunto de aspectos diferentes, dos quais se ocupam
diversas disciplinas. Embora o aspecto técnico-económico tenha sido o mais estudado, o
ponto de vista segundo o qual as tradições alimentares devem ser consideradas como uma
categoria de tradições orais tem muitos defensores. A persistência das tradições alimentares
depende, em grande parte, da memória, visto que. as receitas escritas só apareceram
recentemente entre camponeses, pescadores ou operários. As técnicas de preparação
alimentar são sujeitas aos mesmos fenómenos da literatura oral: esquecimento, mal-
entendidos, improvisação, imprecisão, simplificação, adaptações, mistura de elementos
pertencentes a diferentes receitas. Não é fácil estudar a história da alimentação... Nela se
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pretende opor o material e o espiritual, a técnica à crença, a acção à ideologia, a infra-


estrutura à super estrutura. A alimentação não pode aceitar tais oposições porque, além do
mais, o acto aparentemente mais «fisiológico» e «material», comer -, é também um acto
profundamente impregnado de cultura e de simbolismo, e é inútil estudar separadamente os
aspectos «material» e «espiritual» da cultura. A alimentação diz respeito tanto à sensibilidade
como ao pensamento mas a antropologia tradicional sempre quis separar estes dois campos.
Estudada como um todo que não pode ser reduzido a nenhum outro campo - económico,
técnico, sociológico, ideológico - a alimentação pode revelar aspectos inesperados, ou, de
outra forma, invisíveis. Um dos motivos de interesse do estudo da alimentação está,
precisamente, no facto de ela reflectir relações sociais e económicas, formas de pensamento
e hierarquias de valores que muitas vezes só são visíveis nela e por meio dela.
No entanto, para que isto seja possível, é necessário adoptar um ponto de vista
hoIístico, sem o qual não podemos avaliar a importância relativa dos diversos elementos do
sistema alimentar e dos valores que lhes estão associados e sem o qual é impossível
compreender, por exemplo, porque é que determinados alimentos são comidos em certas
ocasiões da vida social e não noutras; porque razão aparecem nas refeições que se fazem
com determinadas categorias de pessoas e estão ausentes noutras, e assim por diante.
Considerada como um sistema, a alimentação reflecte uma distribuição dos homens,
das relações sociais e dos alimentos em categorias que têm um valor cosmológico e
sociológico. Esta categorização reflecte-se, por sua vez, em tudo o que aparece como
«natural», «psicológico» e individual: o gosto, o prazer, o desgosto, e todas as categorias
sensíveis que identificam os alimentos e determinam a sua hierarquia na consciência
individual. Desta forma, o estudo da alimentação deveria permitir fazer todo o percurso do
social ao psicológico. Estamos ainda bem longe de uma ciência integrada da alimentação
como facto cultural.
Pareceu-me necessária esta breve introdução para situar, sem equívocos, o que é
importante nos volumes já editados da Colecção «Coração, cabeça e estômago / especial».
Os volumes editados nesta colecção não são livros de receitas. Estas aparecem como
corolário natural da sumária investigação sobre a alimentação das regiões.
A Cozinha da Beira Litoral é o oitavo volume - da Doçaria Conventual, do Alentejo, de
Trás-os-Montes, da Gastronomia e Vinhos do Alentejo, do Minho, do Algarve e da Beira
Interior -, colecção que pretende ser um sinal para que se faça, com alguma urgência, uma
História da Alimentação em Portugal. Temos esperança de completar a Colecção com mais
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dois volumes: a Cozinha de Lisboa e do Vale do Tejo e, num só volume, a Cozinha da


Madeira e dos Açores.
2. Tal como já o dissemos no volume anterior dedicado à Beira Interior 1, foi com o
rigoroso conceito de região que entendemos agrupar, nesse mesmo volume, as terras da
Beira Baixa e da Beira Alta que formam uma identidade à qual chamámos Beira Interior.
Referimos também que, por oposição a esta Beira, reconhecemos a existência de uma Beira
Litoral com características que a individualizam. E da história da alimentação dessa Beira
Litoral que iremos tratar.
Quais as regiões e sub-regiões que fazem parte dessa Beira Litoral, que nós
entendemos com uma identidade que a diferenciam das outras beiras?
Situemo-nos em primeiro lugar nos limites dessa região: na orla marítima começa em
Esmoriz, a que se segue Cortegaça e Furadouro; mais abaixo S. Jacinto, Barra, Tocha, Cabo
Mondego, Buarcos, Figueira da Foz até Vieira de Leiria. No interior, pertencentes ao antigo
distrito de Aveiro, inclui os concelhos de Ovar, Vale de Cambra, Oliveira de Azeméis,
Murtosa, Estarreja, Sever do Vouga, Águeda, Ílhavo, Vagos, Anadia e Mealhada. No distrito
de Coimbra a região vai mais para o interior até ao limite do concelho de Arganil, incluindo
Góis, Lousã, Penela, Condeixa-a-Nova, Cantanhede, Montemor-o-Velho e Soure. Do distrito
de Leiria fazem parte da Beira Litoral, entre outros, os concelhos de Ansião, Pombal, Figueiró
dos Vinhos e a própria capital de distrito, Leiria. Uma identidade esbatida encontra-se nas
zonas limites do interior coincidindo com faixas de transição.
A Geografia de Launtensach2 baseado nas características originais de Portugal
consideradas em conjunto, permitiu-lhe dividir o País em unidades geográficas reunidas
numa região a que chamou Centro Litoral ou Beira Litoral.
REGIÕES
A identidade de aspectos comuns de cada uma delas estão relacionadas com as
condições gerais do clima e posição, particularidades da natureza do relevo e do solo, manto
vegetal, marcas de presença humanas, o que nos dá o sentimento de não sairmos da
mesma terra. Pela consciência destes factos os habitantes criam e aceitam uma apelação
regional. Nem sempre a Geografia esteve preparada para interpretar e modificar os seus
conceitos em relação a algumas regiões. Um rio, por exemplo, pode constituir, para as
relações humanas, um obstáculo ou um limite, pode ser conveniente utilizá-lo como fronteira,

1
Alfredo Saramago, Cozinha da Beira Interior, Assírio e Alvim, Lisboa, 2002
2
Hermann Launtensach, Geografia de Portugal, IV Volume, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1991

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como limite de uma região e, no entanto, as características das duas margens são idênticas.
Dizia Amorim Girão3 que a tríplice divisão do país pelos rios Douro e Tejo - norte do Douro,
entre Tejo e Douro e Sul do Tejo -, tinha sido fatal aos estudos geográficos em Portugal.
Nem sempre as divisórias das águas são limite às diversidades regionais.
As divisões das regiões principais em Portugal foram determinadas pelos contrastes
entre as influências atlânticas e mediterrânicas e, nestas, pelo afastamento do litoral. A Beira
Litoral ocupa um lugar singular na divisão de regiões porque é aqui que, quem vem do Norte
encontra o princípio do Sul e quem vai do Sul encontra o começo do Norte.
É aqui, nesta orla litoral que podemos chamar de transição, que se atenuam as
diferenças entre Norte e Sul. Desde um pouco antes do Mondego até ao Tejo, vão-se
sentindo as duas influências: quem vem do Norte é o Mediterrâneo que aparece e quem vem
do Sul sente a invasão atlântica. Diferenças sentidas no clima, na vegetação e nos modos de
vida e tipos de cultura.
Algumas características da Beira Litoral 4: pequena unidade de muito baixa altitude
entre as montanhas e a costa arenosa na qual o Vouga construiu um delta interior, a Ria de
Aveiro; muito parecida com o Norte pelo clima e vegetação com grandes extensões de
pinhal; sub-região da Bairrada com extensão da vinha em terreno de saibro e barro, olival,
campo-prado de milho e grande densidade de população.
Gândara: arroteias recentes, rega de poços, manto freático muito alto, campo-prado,
batata; solo arenoso muito pobre mas fertilizado pelo estrume, o moliço e o caranguejo;
povoações antigas e colonizações recentes. Um tipo especial de povoamento: grandes vilas
e aldeias coesas e alongadas ao longo dos caminhos; campos estreitos e alongados
perpendiculares às casas e caminhos. Comércio e feiras frequentes.
Utilização da Ria: sal, apanha de moliço, navegação interior em embarcações à vela e
remos. Pesca sem porto de abrigo no areal batido pelas ondas.
Baixo Mondego: terras de «monte» e «campo», várzea alagada por onde penetrou a
cultura do milho; arrozais e, no monte, olival e vinha. Figueira da Foz, porto de pesca com
grande praia. Entre o maciço Antigo e a Orla secundária e terciária, o vale encaixado e
alargado do Mondego comanda uma área extensa onde existiu uma forte presença desde a
aurora do homem.

3
Amorim Girão, Geografia de Portugal, III Volume, Edições João Sá da Costa, Lisboa 1991
4
Orlando Ribeiro, Geografia de Portugal, III Volume, Edições João Sá da Costa, Lisboa 1991

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3.
Para se falar da história da alimentação nas culturas do litoral seria necessário saber,
de maneira exacta, o que se pretende significar com o termo litoral. Região, ambiente,
paisagem, território, fixação, população? Onde começa e onde termina o «litoral»? Ou, se
assim entendermos, as regiões do litoral?
Região, tal como domínio ou território, é uma palavra usada para designar um dos
níveis dentro de uma taxionomia. No entanto, esta designação varia de disciplina para
disciplina, duma classificação para outra. A tradição, estabelecida em particular pela
geografia no início do século XX, transmitiu o hábito de juntar um adjectivo à palavra
«região» de forma a poder qualificar, deste modo, o grupo de fenómenos que traduz a
unidade territorial. Regiões naturais, regiões históricas, regiões económicas, regiões
administrativas, regiões urbanas, regiões rurais, regiões ribeirinhas, e algumas outras, são
habitualmente referenciadas.
Tentar o estudo nas regiões do litoral suscita algumas dúvidas que, sem o seu devido
esclarecimento, não permite grandes avanços ao conhecimento. Por exemplo, qual é a
dinâmica das regiões litorâneas? Quais são as formas e as áreas de influência que se
exercem a partir da região inicial?
Se reflectirmos um pouco sobre as primeiras fixações do homem, é fácil entender que
foi junto à água que ele procurou organizar o seu quotidiano. Abrigou-se nos cabeços para
melhor se defender de todos os predadores, escolheu grutas para descansar mas nunca
perdeu a água de vista para sobreviver em melhores condições. Desde a caça-recolecção à
agricultura-sedentarização a água foi matriz de vida. Agente físico e químico presente nas
actividades humanas, a água é indispensável ao desenvolvimento de qualquer forma de vida.
A sua existência na fixação do homem condicionou profundamente todas as sociedades
obrigadas a compensar, desde sempre, a sua falta ou a conter os seus excessos. Fixação
feita junto das nascentes, à beira de lagos, nas margens dos cursos de água e no litoral
oceânico.
Dada a necessidade de assegurar o abastecimento de água, que todas as sociedades
humanas necessitam para se alimentarem, é razoável perguntar como e em que medida
essa total dependência se reflecte, num dado momento, na sua organização social e na sua
história em geral. É evidente que as consequências sociais de uma tal dependência são
muito variáveis conforme o lugar ocupado pelos fenómenos relativos à água na vida
quotidiana, mas, exagerando um pouco, podemos falar de um determinismo da água.
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Determinismo que assume o aspecto de um condicionalismo fundamental mas que,


rapidamente, se atenua ou integra noutros, esses de natureza cultural. A relação
água/sociedade é muito complexa e os resultados ao longo da história são muito diversos.
Se quase todas as primeiras grandes cidades e os primeiros impérios nasceram junto à
água, não quer dizer que essa relação, água/sociedade, explique o aparecimento de
civilizações particularmente florescentes. Houve pequenos povoados e aldeias que, ao
contrário de um desenvolvimento que pareceria natural, não souberam ou não puderam
crescer, tendo algumas delas desaparecido.
As regiões do litoral tiveram diferentes percursos, de acordo com factores múltiplos, e
as suas histórias de alimentação evidenciam, na maioria dos casos, características
diferenciadas. Seria fácil encontrar um nexo comum em todas as regiões do litoral e o
consumo de peixe5, por exemplo, poderia ser o elemento congregador de uma pretendida
identidade. No entanto, se o peixe fazia parte integrante da dieta alimentar de todas essas
regiões nascidas junto à água, foram evidentes, desde sempre, diferenças que importa
considerar.
Por exemplo: na margem esquerda do Tejo fixou-se uma comunidade judaica 6
importante que, como é natural, respeitava rigorosamente os seus interditos alimentares.
Como sabemos, a religião judaica proíbe o consumo de peixes que não vivam de acordo
com os seus princípios de verdade natural. Essa religião entende que todos os animais
pertencem a um universo e foram criados de acordo com esse mesmo universo. Os peixes
devem ter barbatanas para que possam nadar e todos aqueles que não as possuírem são
sinal de erro, não estão de acordo com a harmonia do universo e, por essa razão, são
interditos. Por exemplo, as enguias, o congro, a lampreia, todos os mariscos que vivem no
mar; mas que se arrastam pelo fundo das águas, providos de patas são interditos. Sabemos,
por vários documentos de época séculos XIV e XV -, que o valor destas espécies era muito
baixo, algumas delas, como o congro, ou safio, eram dadas como contrapeso e contrapartida
na venda de outras variedades. Na mesma época, em quase todas as póvoas marinhas do
norte e do centro litoral, o congro atingia os maiores valores de venda na lota e nos
mercados. Era considerado um peixe nobre e consta de obrigações contratuais no paga-
mento de dízimos e de outros encargos. Em Vila do Conde, o Real Convento das Clarissas,
senhor do porto e das pescas, recebia os maiores congros e as maiores lagostas. Também

5
Massimo Montanari, Alimentazzione nel litoral, Bolonha 1984.
6
João Lúcio de Azevedo, Épocas do Portugal Económico, Lisboa, 1929.

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na Póvoa, em Esposende e em Coimbra, os mordomos os funcionários da coroa recebiam o


maior congro e os maiores pargos. Este exemplo evidencia que os hábitos alimentares das
regiões litorais eram diferentes e tributários de culturas diferenciadas. O gosto pelas
lampreias, enguias, congros e mariscos é uma das características da dieta alimentar dos
povos da região litoral que agora estudamos, gosto que se tem mantido até aos nossos dias.
Basta ver, através dos tempos, as inúmeras receitas que contemplam essas variedades,
principalmente as receitas de enguias que sempre tiveram um preço mais conveniente para
bolsas pouco providas.
O que comiam, afinal, as gentes do litoral e as gentes que viviam mais no interior da
região?
Uma vulgata, pouco atenta, tem mantido a convicção que as regiões ribeirinhas, eram
povoadas, na maioria, apenas por gente ligada ao mar ou ao rio e que a sua alimentação se
baseava no consumo exaustivo de peixe. Não nos parece que assim tenha acontecido. Por
várias razões. Como já referimos, as regiões ribeirinhas não tiveram todas igual dinâmica e,
por essa razão, as áreas de influência que se exerceram a partir da região inicial foram
diversas. Na maioria dessas regiões cedo apareceu um exterior distinto do interior, cada um
com características próprias. Ocorreram extensões periféricas do «habitat», novas casas,
novos caminhos, novos comércios, espaços diferenciados socialmente que foram
consequência de uma primitiva actividade que se desenvolveu em áreas diferenciadas. Em
relação às regiões do litoral, que têm sido objecto de um estudo profundo, verifica-se a
existência de uma população ligada à pesca, à navegação do largo, à extracção do sal, à
apanha do sargaço, à construção de embarcações e a outras pequenas actividades
relacionadas com a proximidade quotidiana da água. No entanto, em todas essas regiões
ribeirinhas, a componente rural, ou agrícola, teve uma real importância. Alguns sociólogos e
etnólogos têm tentado opor, com grande veemência, os costumes das gentes do mar e das
gentes ligadas à terra. Muitos se têm entretido a enfatizar uma divisão nítida entre saberes,
usos e costumes, comportamentos, crenças, superstições de pescadores e de camponeses.
Uns e outros são referidos, se não como inimigos, pelo menos como membros de
sociedades antagónicas7. Não há dúvida que em muitos lugares as relações sociais eram
dominadas pela oposição entre pescadores e lavradores. As diferenças socio-económicas
entre eles foram origem de conflitos e de atitudes hostis, de uns e de outros. Havia
desigualdade na posse da terra, nas casas, na economia familiar e, principalmente, nos
7
Sally Cole, As Mulheres da Praia. O Trabalho e a Vida numa Comunidade Costeira Portuguesa, D. Quixote, Lisboa, 1994.

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modos de vida. A pesca ocupava as tarefas dos estratos sociais mais baixos, dos que não
possuíam terra para cultivar. E ocupavam homens e mulheres. Até há pouco tempo os
antropólogos marítimos supunham que nas comunidades pesqueiras havia uma dicotomia na
divisão do trabalho entre os sexos, que o trabalho do homem era no mar e o das mulheres
em terra. Suposição que era consequência da também dicotomia que esses antropólogos
faziam entre mundo terrestre e mundo marítimo e da sua perspectiva segundo a qual o mar
constituía um domínio masculino e as margens um território feminino 8. Vários trabalhos
recentes revelam que não existe uma divisão rigorosa no trabalho das sociedades marítimas
mas uma grande diversidade no trabalho efectuado pelas mulheres. Em muitos lugares e
segundo as épocas do ano havia mulheres que apanhavam sargaço e iam à pesca enquanto
os homens ficavam em casa, consertavam redes e preparavam refeições.
Esta situação ajuda a explicar a razão porque nas zonas do litoral e, neste caso na
Beira Litoral, existem tantas receitas com nomes de homens - pescadores. É reconhecido
que os homens do mar são, habitualmente, bons cozinheiros.
Pelas diferenças que eram nítidas, os lavradores e pescadores desenvolveram uma
ideia negativa recíproca, conceitos que têm permanecido até aos nossos dias. Os lavradores
afirmam que os pescadores são mal-educados, porcos preguiçosos e bêbados. Dizem que
os pescadores não sabem trabalhar a terra e que não sabem poupar. Na verdade, os
pescadores não têm terras, nem capital, nem recursos que lhes permitam acumular riqueza
ao mesmo tempo que os lavradores assumem a sua posição privilegiada na estrutura social.
Os lavradores não gostam do tipo de vida pública dos pescadores e o contraste é evidente.
Os pescadores vivem na praias, têm casas muito pequenas e passam a maior parte do
tempo na rua, conversam, riem, discutem, brigam, fazem pazes enquanto trabalham na
pesca, na apanha do sargaço, ou no amanho das redes. Vão à taberna e bebem um copo de
vinho, jogam à «sueca» e ao dominó. As mulheres, em vez de ficarem em casa como as
mulheres dos lavradores, saem, vendem peixe, contam e recebem novidades e, por norma,
fazem a sua comida na rua, em fogareiros. Os lavradores são homens sisudos, ditos
«sérios», contidos, têm uma vida calma, vão ao campo e vivem isolados. Quando bebem,
porque também bebem, como dizem os pescadores, é na sua própria adega, longe dos
olhares dos outros. Os pescadores chamam aos lavradores bichos-da-terra e dizem que só
saem de casa para ir à missa «beijarem a mão do padre». Pensam que os lavradores são

8
R. Andersen e C. Wade, North Altantic Fisherman: Anthropological Essays of Modern Fishing. São João da Terra Nova,
1972.

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pessoas cheias de inveja porque gostariam de ter a liberdade o à-vontade dos pescadores
que não têm que se preocupar com as terras e o seu cultivo. Não valerá a pena alongarmo-
nos em considerações sobre esta situação, diremos apenas que, tanto o Estado como a
Igreja têm legitimado esta situação. Os padres da freguesia sempre viveram ao lado do
dinheiro, neste caso dos lavradores, que foram seus aliados. A elegibilidade para cargos
políticos estava relacionada com os rendimentos e os lavradores mais abastados dominavam
a política. A relativa independência e liberdade das mulheres, confundia, a Igreja,
estigmatizando as famílias dos pescadores tidas como mais livres de costumes. Smith 9 diz
que as comunidades de pescadores tendem a ser «um segmento denegrido, se não mesmo
menosprezado, das sociedades a que pertencem». Em muitas zonas da Europa, a pesca era
vista como uma ocupação própria das classes sociais mais baixas 10. Assim aconteceu em
Portugal até quase aos nossos dias. Quando Lofgren 11 estudou o aparecimento de comuni-
dades de pescadores na Suécia, no século XIX, dizia que os pescadores eram recrutados
entre os estratos mais baixos da hierarquia local. «Ocupavam frequentemente uma posição
social, económica e política inferior à dos proprietários locais».
Nadel12 fala dos pescadores de Ferryden, na Escócia, separados do resto do povoado
por diferenças respeitantes ao trabalho, à habitação e à imagem social sendo descritos como
«simples e pobres de espírito, porcos, grosseiros, espertalhões, impulsivos, belicosos e
bêbados. Eram objecto de escárnio, exploração, afastamento e, ocasionalmente, de caridade
bem intencionada».
Na Apúlia, na Povoa de Varzim, em Vila Chã, em Buarcos, em Aveiro não se passaria
o mesmo?
Apesar de uma barreira entre conceitos de vida e de uma barreira física, pescadores e
lavradores não viviam de costas voltadas. Tinham necessidade de trocar mercadorias,
serviços, favores, bens essenciais à vida de cada um.
Na maioria das regiões do litoral o trabalho do mar não Só se cruzava com o trabalho
do campo como as mesmas pessoas, em muitos lugares, se ocupavam, sazonalmente, de
uma e outra ocupação. Quem se der ao trabalho de ir investigar, por exemplo, a lista dos
impostos referidos nas Inquirições de Afonso III, vai encontrar o pagamento de «direituras»
da seguinte forma: «Se forem pescar, pagam o décimo do pescado se for do rio, o terço se
9
M. F. Smith, Those Who Live from Sea: Study in Maritime Anthropology, Sth Paul, 1977.
10
J. R. Coull, The Fissheries of Europe, Londres 1972.
11
O. Logfren, Marine Ecotypes in Preindustrial Sweden, A Comparative Discussion of Swedish Peasant Fishermen,
Andersen, 1979.
12
J. Nadel-Klein, To Work and to Weep: Women in Fishing Economies, São João da Terra Nova, 1988

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for do mar e quando não pescarem e forem para a terra paga cada um homem dois
quarteiros de trigo e o terço do linho. Se forem para o sal, pagam a décima» Nas Inquirições
de 1258, a região ribeirinha da foz do Mondego pagava, além do nabão e mealha, dois
impostos sobre o pescado e a décima sobre «farinha, trigo, cevada, milho alvo e painço,
legumes, cabritos ou cordeiros se tivessem reixelos, galinhas, ovos, manteiga e queijo,
quando tinham vacas».
É necessário ter presente que os pescadores durante o Inverno e nas semanas de
mau tempo durante o qual não podiam ir ao mar, trabalhavam de jorna para os lavradores,
não só nessas ocasiões mas também em épocas de plantações e de colheitas. Também os
lavradores exerciam uma actividade junto do mar e, mesmo vivendo a alguns quilómetros de
distância da costa, tinham um barco que os ajudava na apanha do sargaço, estrume
riquíssimo para os seus cultivos. Já Baldaque da Silva13 dizia que os «lavradores afluem à
praia para colheita do sargaço, os quais empregam jangadas e barcos e, ao mesmo tempo,
servem-se das embarcações para lançar redes de pesca com o fim de alcançarem peixe
para seu consumo e não poucas vezes também para negócio».
Também os taraqueiros, população sem terra, ou, caso mais geral, possuindo uma
gleba cuja área não vai além de 0,1 hectare e com redimento insignificante, recorrem ao
salário em múltiplos trabalhos: exploração agrícola, apanha de sargaço e pilado e mesmo à
pesca. Vemos que todas as classes estão condicionadas ao campo e ao mar e que a sua
dieta alimentar é consequência dessa interdependência.
Só um estudo aturado de cada região pode dar indicações sobre os seus regimes
alimentares mas podemos adiantar que, contrariamente ao que está erradamente
estabelecido, as comunidades do litoral tiveram, desde sempre, uma alimentação variada
resultante de trocas de produtos entre a costa e o interior. Lembremos apenas o sal, produto
essencial não só para o tempero como também para a salga e conservação dos alimentos,
dos quais o mundo rural dependia: esse sal, assim como as sardinhas salgadas, era pago
com os produtos das explorações agrícolas do interior da região.
Esse estudo, essencial para se poder fazer uma história da alimentação da Beira
Litoral, terá que consultar a documentação disponível em arquivos que refiram Inquirições,
impostos, portagens, cartas de foral com listas de isenções e de pagamentos, cartas de
instituição de feiras, lista de pagamentos de décimas e dízimos, arquivos das alfândegas,
lista de carregamento de navios, enfim, toda a documentação que possa iluminar sobre um
13
Baldaque da Slva, Estado actual das pescas em Portugal, Lisboa, 1892

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produto, uma data, uma época, um uso ou um costume. Infelizmente, não temos em Portugal
livros de receitas que nos possam ajudar. Só muito tarde, no fim do século XVII, Domingos
Rodrigues escreveu a sua Arte de Cozinha, mas, tal como a maioria dos raros livros que
mais tarde se editaram, apenas tratavam da alimentação da corte, das gentes do poder e
não reflectem a dieta alimentar do homem comum. Também se lamenta o facto dos nossos
melhores antropólogos e etnólogos, terem esquecido a alimentação. Quiseram saber de
tudo, questionaram tudo, em alguns casos até a cor e o tamanho dos botões de uma ceroula
foi motivo da sua preocupação e, no entanto, raramente, muito raramente, tentaram saber
alguma coisa sobre a alimentação das gentes que estudaram. Sobre ela, nem uma
lembrança, nem uma palavra. Custa a acreditar que homens brilhantes como Ernesto Veiga
de Oliveira ou Jorge Dias tivessem passado ao lado do interesse pela alimentação. Jorge
Dias, na sua vasta obra, apenas dedica duas ou três páginas a uma matança de porco em
Trás-os-Montes e, o que verdadeiramente lhe interessou, pouco teve a ver com a
alimentação mas o facto da matança representar um exemplo de troca de serviços entre
vizinhos.
Sem grandes suportes documentais, quase sem história, a história da alimentação em
geral e, neste caso, a história da alimentação da Beira Litoral, tem dificuldade em ser feita.
Mas terá que ser feita. Por várias razões e, uma delas, talvez a mais importante, está
relacionada com a proximidade que essas regiões têm com a água. De todos os recursos
terrestres, a água é o único que, em certa medida, é inesgotável, pois circula constantemente
entre os oceanos, a atmosfera e os continentes. Torna-se cada vez mais evidente que a
humanidade se verá obrigada a extrair dos mares uma parte cada vez maior dos seus
recursos alimentares. Do mar nasceram todas as formas de vida mas teremos de estar
atentos à sua possível destruição e esse permanente alerta talvez seja o único laço
verdadeiramente importante entre a água e a História.
4.
Desde o mais remoto passado pré-histórico que o mar, com os recursos da pesca, da
apanha de marisco, da apanha de sargaços e da extracção de sal, exerceu forte atracção
sobre as populações.
Desde o Paleolítico que sociedades humanas se implantaram no litoral da agora
designada Beira Litoral, território que teve no Oceano Atlântico um elemento estruturante e
que originou, ao longo dos séculos, uma distinção entre regi5es litorais, ou alcançáveis por
um rio navegável, e o interior mais isolado do exterior. A existência dessas sociedades,
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atestadas historicamente por diversas formas, caracterizava-se por um estilo primitivo de


talhar a pedra, usada pelas populações que percorriam o litoral à procura de marisco para a
sua alimentação.
Desde essa época, seguindo depois pelo Neolítico, pela Idade do Bronze, que
começou na Península cerca de 2500 a. c., até à fixação dos povos vindos do Mediterrâneo,
que a forma de povoamento nesta região se distribuía pelo disperso, localizado
principalmente na faixa litoral entre o Minho e o Mondego. Devido à sua posição no extremo
sudoeste da Europa, Portugal não só sofreu influências vindas por terra - celtas e romanos -,
como também recebeu fortes influências vindas do mar. Celtas e romanos foram muito mais
determinantes do que gregos e fenícios. A invasão celta data do século VI a. C. mas embora
os documentos se refiram à sua presença apenas a norte do rio Douro e a sul do rio Tejo, os
nomes de lugares, principalmente os que terminam em briga, como por exemplo Conimbriga,
mostram que a sua influência também se exerceu entre os dois grandes rios. No entanto, os
povos do Mediterrâneo, à procura de minério, chegaram ao nosso território e deixaram
marcas determinantes.
Portugal era rico em cobre e estanho e esse facto pode explicar que a Idade do Ferro
se tenha instalado aqui muito tarde, apenas no século VI, a. C. Portugal, no período anterior
à Idade do Ferro, seria apenas uma faixa atlântica que entrava periodicamente em contacto
cultural, mais ou menos estreito, com os vizinhos de Espanha e França. Hoje sabe-se que
não. Já antes da Idade do Ferro navios fenícios teriam navegado ao longo das costas
portuguesas à procura de estanho, âmbar e outros minérios. Para provar, com algum vigor, a
presença desse povo semita no nosso território, alguns antropólogos disseram ter
encontrado entre os pescadores do Algarve, da região de Aveiro e da Póvoa de Varzim, um
tipo dolicocéfalo, de nariz adunco, que atribuem a sangue fenício. No entanto, são poucos e
pobres de informação os textos acerca dos primeiros contactos entre os povos do
Mediterrâneo Oriental, Fenícios e Gregos, com as populações indígenas do Ocidente.
Há uma escassez de fontes documentais até aos contactos com a civilização romana, no
século, II a. C., facto que limita reconstituições históricas e que leva a investigação para o
campo dos trabalhos arqueológicos, cada vez mais esclarecedores. No entanto, mesmo com
as suas preciosas informações, o carácter específico da arqueologia e a forma
descontinuada e não - sistematizada das pesquisas, limitam uma visto mais concertada
acerca das sociedades humanas da época pré-romana.
Na primeira metade do século VIII, a. C., os Fenícios de Tiro começaram a instalar-se
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nas costas meridionais da Península Ibérica e parece que só dois séculos mais tarde
chegaram os Gregos, Samitas e, principalmente, os Focenses. São populações de origem
oriental que foram atraídas ao extremo ocidental da Europa pela grande riqueza em recursos
mineiros da região. Foram eles os primeiros e principais responsáveis pelas transformações
culturais que marcaram, de forma definitiva, a existência das populações peninsulares. Em
primeiro lugar englobaram essas mesmas populações na órbita do mundo mediterrânico e
imprimiram os seus modos de vida e de civilização. Mais tarde, o processo de romanização 14
e o enquadramento da Península Ibérica na realidade supra-regional que foi o Império
Romano, culminou um longo caminho de imposições e assimilações de modos de vida
mediterrânicos cujas raízes se encontram em épocas anteriores.
Na sua expansão para o Ocidente os Fenícios construíram uma larga rede de
interesses, relações e interdependências regionais com o apoio de povos e culturas
diversificadas, que tinham na metalurgia do bronze a sua principal actividade. Os recursos
mineiros adquirem particular importância, assumem um carácter integrador e o cobre e o
estanho são procurados para a fabricação de ligas metálicas. Ouro e prata são igualmente
objecto de interesse para, entre outros destinos, servirem à confecção de objectos de adorno
que estabelecem uma diferenciação social.
Os primitivos povos da região que hoje é a Beira Litoral deveriam ter uma actividade
dividida entre a sua ligação ao mar e uma actividade agro-pastoril muito incipiente.
Recolheram-se elementos que provam essa ligação ao mar, como amontoados de conchas
utilizadas na alimentação, entre os quais aparecem com maior importância lapas, ostras e
mexilhões e um conjunto de pesos de rede que indica o aproveitamento de recursos
marinhos.
O aparecimento de uma foice metálica, de mós manuais de rebolo e de sementes de
cereais como milho-miúdo, centeio e de leguminosas como favas e ervilhas, evidenciam uma
actividade agro-pastoril. A actividade relacionada com o mar, seria secundária e a agro-
pastoril a mais importante. A alimentação, de origem vegetal, seria completada com frutos e
caça e, como atestam ossos encontrados em diferentes sítios arqueológicos, comeriam gado
bovino, vacum, porcino, cavalar e caprino.
Outras informações sobre a sua vida quotidiana: foram encontrados pesos de tear,
que atestam a prática da tecelagem e fragmentos de moldes de fundição que levam a aceitar
que a população produzia os seus próprios utensílios metálicos e tinha controle sobre as
14
J. Alarcão, O Domínio Romano Em Portugal, Publicações Europa América, Mem Martins, 1988.

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jazidas minerais onde ia buscar as matérias-primas. Desta época também foi encontrada
olaria, com grandes e pequenos recipientes. Teriam sido os fenícios que trouxeram a
metalurgia do ferro, a roda de oleiro, a técnica de fabrico de condimentos para a salga do
peixe e melhoria no fabrico de vinho e de azeite.
A bacia do Vouga era rica em cobre, assim como a rede hidrográfica de Coimbra e as
relações com os povos mediterrânicos foram determinantes na ligação do interior ao litoral
em virtude da necessidade de transporte do minério extraído.
Nas imediações da Figueira da Foz, próximo da desembocadura do Mondego, foi
escavado e estudado um sítio arqueológico, o outeiro de Santa Olaia 15. São três povoados
que foram implantados, provavelmente, num outeiro situado numa ilha do estuário do
Mondego. Existem nestes povoados semelhanças com os povoados de influência
orientalizante dessa época. Foram encontrados, entre outros objectos, um conjunto de mós
que indicam uma agricultura, mós manuais e mós de rebolo assim como as mais antigas mós
circulares, giratórias, também manuais, as mais antigas recolhidas até à data em território
português. Também se encontraram restos de animais que permitem deduzir a existência de
uma pecuária de bovinos e ovicaprinos. Retirando vantagem da sua localização, as
populações de Santa Olaia exploraram recursos marinhos, fazendo a recolecção de variados
moluscos em relação aos quais se encontraram conchas nas lixeiras das áreas residenciais.
Tinham também uma actividade de pesca documentada pelo conjunto de fragmentos
cerâmicos com entalhes laterais simétricos que indicam, pelo desgaste, uma utilização como
pesos de rede de pesca. Os habitantes de Santa Olaia completavam a sua dieta alimentar
com o recurso às espécies cinegéticas, como coelhos, veados e javalis, cujos ossos se
conservaram. Muitos fusos e pesos de tear foram encontrados, o que prova uma prática
corrente de fiação e tecelagem. Foram igualmente recolhidas escórias de fundição, o que dá
a indicação que neste povoado se fundiu ferro.
Muito surpreendente nos povoados de Santa Olaia é o número de cerâmicas
encontradas, importadas das áreas de influência mediterrânica, assim como artefactos
metálicos e um conjunto de contas em pasta vítrea com a mesma proveniência. Vários
grafitos sobre recipientes cerâmicos, aparentemente correspondendo às letras dos nomes
aos seus proprietários, revelam ocupações típicas do «período orientalizante». É natural que
estes povoados de Santa Olaia correspondam à instalação de povos provenientes de

15
A. S. Rocha, Memória e Explorações Arqueológicas II, estações pré-romanas da Idade do Ferro nas imediações vizinhas
da Figueira da Foz, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1971

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paragens mais meridionais e que, na foz do Mondego, encontraram porto de apoio às rotas
de navegação e comércio atlânticas. Devem ter sido estas condições que teriam estado
subjacentes à implantação do habitat destas populações e às características da arquitectura
doméstica, e o número inusitado de materiais importados são prova dessa circunstância.
Também foram encontradas cerâmicas de fabricação local, algumas correspondendo a
recipientes montados ao torno, reproduzindo protótipos de origem meridional.
Estes povoados de Santa Olaia, pelo tipo de materiais recolhidos, devem ser
enquadrados num período de tempo compreendido entre o século VII e os séculos IV-III a. C.
A presença de cerâmicas áticas, que foram objecto de intercâmbio com as populações
indígenas, permitem datar desta forma.
As populações de Santa Olaia, como a de outros povoados da costa atlântica, não
deveriam ser Fenícios, nem Cartagineses. O comércio atlântico dessa época fazia-se com a
intervenção de diversos intermediários e, desta maneira, os fenícios deveriam ter contacto
directo com os Tartéssicos16 e estes com as populações dos estuários dos rios. Seriam estes
últimos os navegantes que rumavam para paragens mais setentrionais. Era uma longa
cadeia de comércio interactiva cujo principal elemento dinamizador seria a procura das
riquezas mineiras. Dados arqueológicos e fontes literárias confirmam esta hipótese.
É inegável que o outeiro de Santa Olaia foi um importante pólo difusor dos elementos
orientalizantes ao longo do vale do Mondego. E, talvez por isso, nos povoados indígenas de
Crasto e Chões, os dois na zona da Figueira da Foz, recolheram-se diversos materiais
orientalizantes, possivelmente difundidos a partir de Santa Olaia. Em Crasto foi encontrado
um fecho de cinturão do tipo «Arcebuchal», do século VII, a. C., e algumas cerâmicas. Mais
para o interior, em Conimbriga, recolheram-se vários objectos que indicam uma ocupação
desta época17. Entre os materiais encontrados de origem mediterrânica destaca-se um
fragmento de um pente de marfim com diversos motivos gravados, com uma qualidade que
faz supor tratar-se de uma peça de fabrico oriental, fenício, mais do que uma imitação local.
O pente, datável do século VIL a. C., juntamente com o cinturão de Crasto, é o mais antigo
indício de importações orientalizantes no vale do Mondego. A rota de penetração para o
interior ao longo do vale do Mondego, que os achados de Conimbriga documentam, pode
indicar uma das vias do comércio atlântico de matérias-primas. Outra via que pode ter sido
eventualmente utilizada pelos povos da foz do Mondego é a setentrional, que conduzia ao

16
T. J. Gamito, Social complexity in Sothwest Ibéria 800-300 b. C., The case of tartesos, Oxford, 1988.
17
J. Alarcão, R. Etienne, Fouilles de Conimbriga, Paris, Dif. Bocard, 1974-1979.

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cobre do Baixo Vouga.


Os Fenícios introduziram importantes modificações na exploração de produtos
marinhos. A recolecção de moluscos deve ter sido remetida para actividade secundária a fim
de dar lugar a uma mais desenvolvida actividade de pesca. Não só foi importante a mudança
nas formas de pescar como foi igualmente importante o tratamento do peixe. A partir do
pescado passaram-se a produzir condimentos de peixe, com uma parte do peixe conservado
em salmoura. As comunidades locais iniciaram a produção de preparados piscícolas que se
destinavam ao consumo local e, principalmente, à exportação para outras regiões do
Mediterrâneo. O peixe em salmoura e os condimentos de peixe eram fortemente apreciados
e foi grande a difusão destes produtos na Antiguidade. O Atlântico sempre foi mais rico em
peixes do que o Mediterrâneo e o sal produzido, Utilizado em profusão e fortemente
apreciado, era de uma qualidade muito superior. O clima quente e as amplas regiões
costeiras estariam também na origem dessa actividade pesqueira.
Tanto o vinho como o azeite, os preparados piscícolas e as salgas de peixe
destinados ao comércio, levaram a que fosse criado um recipiente próprio para o seu
transporte por via marítima. Estes produtos tinham como destino vários locais mas,
principalmente, eram as regiões da bacia do Mediterrâneo que os importavam em maior
quantidade. Criaram-se as ânforas, uma espécie de contento r cerâmico grosseiro, com duas
asas laterais, cujo desenho obedece principalmente à necessidade de um bom
acondicionamento dentro de um navio. A sua forma não se adequa para armazenar
produtos, embora tenham sido utilizadas também para esse serviço. A grande necessidade
dessas ânforas teve como consequência o nascimento de uma indústria cerâmica para a sua
fabricação, fabricação que obedecia a certas matrizes, a um determinado desenho e a
características que as distinguiam. Pela forma da ânfora, pelo selo, pelas letras marcadas no
barro e outros sinais, era possível dizer-se se era uma ânfora grega, fenícia ou cartaginesa e
que produto era transportado. As primeiras que chegaram à Península Ibérica eram fenícias,
ainda no século VIII e generalizaram-se ao longo do século VII, a. c., Dois séculos mais tarde
iniciou-se a fabricação local. No povoado do outeiro de Santa Olaia foi encontrada a ânfora,
tiRo ibero-púnica, que evidencia o uso destes artefactos habituais em habitats do litoral,
como é o caso deste povoado da foz do Mondego.
5.
Políbio, juntamente com Estrabão, Appiano, Diodoro da Sicília e Pomponius Mela, dão
preciosas informações sobre Portugal, datadas dos dois últimos séculos, a. C., grande
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contraste cultural entre Norte e Sul, com uma grande zona de transição e fixação de bastante
gente no litoral. Políbio diz que existia nessa região abundância de fruta durante todo o ano,
trigo, cevada, vinho, figos e carne, tudo produtos muito baratos.
Desde sempre que as populações são atraídas pelo litoral e não é por acaso que se
encontram, em restos das mais antigas praias quaternárias, os primeiros seixos trabalhados
pelo homem. Durante toda a Pré-História a apanha de mariscos deve ter constituído um dos
mais importantes recursos alimentares do homem, Seixos desbastados, em forma de picos,
serviriam para arrancar as lapas das rochas e seixos com dois entalhes ao meio onde se
deveria prender um fio, funcionariam como pesos de rede e, por essa razão, a possibilidade
de praticarem uma pesca sem navegação.
Desde o começo da era dos metais que se estabeleceram, através do mar, relações
de civilização com outros litorais europeus que devem ter sido o advento das grandes
navegações oceânicas. Por aqui chegaram Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos,
povos bárbaros e Muçulmanos. A Reconquista proporcionou um maior desenvolvimento ao
longo da costa, ajudada por armadas de cruzados que faziam caminho do mar do Norte para
o Mediterrâneo.
A reconstituição da Geografia Histórica de uma região deve apoiar-se em
investigações de tipo muito variado: as históricas baseadas na interpretação dos textos; as
arqueológicas que estudam os restos de materiais das sociedades do passado; as
paleontológicas que tratam dos fósseis humanos, animais e vegetais; as etnográficas,
sociológicas e linguísticas que, através dos usos actuais, permitem atingir, a persistência de
tradições de raiz muito antiga; e, evidentemente, no estudo da paisagem actual, com as suas
cambiantes mais naturais ou mais humanizadas, que reúne, num palimpsesto nem sempre
fácil de entender, a marca das fases mais criativas ou mais destruidoras da organização do
espaço.
O território que hoje é a Beira Litoral recebeu influências externas e assimilou-as às
formas indígenas de desenvolvimento. Portugal alternou, ao longo dos séculos, influências
vindas do Norte e do Sul, vindas pelo continente ou por mar. Por um lado ou por outro, o
litoral foi ,m fim do mundo onde se adorava o Sol-poente, ao mesmo tempo que era um início
de viagem e de aventura.
Por mar ou por terra, o interior ficou mais perto da costa, as complementaridades
surgiram e a «troca», mantida pela navegação oceânica desenvolveu-se. Nessa época a
parte vestibular dos vales estava pouco assoreada e deixava penetrar até ao fundo dos
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longos estuários os barcos de mar empurrados pela maré e pelos ventos do oeste. O interior
estava mais perto do mar e o comércio com o litoral foi factor de desenvolvimento. A troca de
produtos de uma agricultura nascente e de um pastoreio um pouco mais instalado com os
produtos do mar equilibraram uma dieta alimentar que basicamente deve ter ficado fixada
desde essa época. Peixe, marisco e sal em troca de carne, leite, queijos e caça.
Foi sempre evidente, ao longo da Antiguidade, o interesse das populações
mediterrânicas pelas riquezas mineiras do Noroeste, particularmente pelo estanho e pelo
ouro. Este interesse levou ao estabelecimento de uma importante e activa rota de comércio
atlântico com a colaboração de intermediários. Parece que as populações, numa
determinada época, quiseram tomar controle eficaz de toda a actividade comercial e, por
essa razão, instalaram postos avançados destinados a apoiar essa actividade ao longo do
trajecto. Explica-se desta maneira o povoado do outeiro de Santa Olaia e a expedição
empreendida pelos Túrdulos.
O território que hoje pertence à Beira Litoral estava dentro do território da Lusitânia
que os autores clássicos enquadram na região de entre Douro e Tejo. Mais tarde, apoiados
na distribuição de vestígios de certos cultos registados em inscrições feitas com caracteres
latinos, mas numa língua indígena normalmente considerada a lusitana, fazem crer que o
limite meridional do seu território ultrapassava o Tejo estendendo-se pela província de
Cáceres. Plínio dá-nos uma descrição geográfica da Lusitânia que refere, ao longo do litoral,
as seguintes cidades, de norte para sul: Talábriga, provavelmente implantada no Cabeço do
Vouga (Águeda); Emínio, sob a actual cidade de Coimbra; Conímbriga perto de Condeixa e
Colipo na região de Leiria, em lugar incerto. Em Talábriga e Emínio só se conhecem
vestígios romanos mas em Conímbriga, durante as escavações que se fizeram para pôr a
descoberto as ruínas da cidade romana, apareceram elementos que dão notícia de uma
anterior ocupação. Para além da identificação de um conjunto de casas, no domínio dos
materiais apareceu uma foice do Bronze Final e um conjunto de artefactos que sugere a
existência de ligações estreitas com o universo mediterrânico. Este facto evidencia uma
continuidade nos contactos meridionais, documentada pelo achado de cerâmica grega do
século IV, a. C. Foram encontradas tigelas de paredes polidas iguais às suas congéneres de
períodos anteriores, com a única diferença de terem sido fabricadas ao torno.
O litoral, por influência das navegações efectuadas pelas populações meridionais,
encontrava-se povoado com núcleos urbanos de feição mediterrânica que pouco têm a ver
com o mundo indo-europeu.
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Que povos habitavam essa região Centro Litoral que hoje chamamos Beira Litoral? A
informação epigráfica e fontes literárias informam que ao sul do Douro, junto dos antigos
Túrdulos, viviam os Pesuros, instalados na região interior, entre o Douro e o Vouga. Viviam
os Lusitanos e outros povos como os Colamos, Arabrigenses e Meidubrigenses, instalados
na margem esquerda do Douro até ao Mondego. Foram estas gentes que os romanos
encontraram quando aqui chegaram, uns a viverem em castros, para melhor se defenderem,
outros em barracas junto ao mar. Uns e outros demoraram pouco tempo a deixarem-se
romanizar e iniciar uma nova vida como agentes activos de uma nova civilização.
Os minérios da Península constituíram um poderoso atractivo para as potências do
Mediterrâneo18. Foi essa a razão que trouxe os Fenícios e foi essa razão que levou os
Romanos a estabelecerem-se na Península Ibérica.
Nas proximidades de Arganil, no sítio da Lomba do Canho, existe um estabelecimento
militar dos meados do século I, a. C., que foi instalado para controlar a extracção de ouro e
cassiterite dos aluviões do rio Alva. No entanto, um dos ideais romanos era a glorificação da
agricultura e a exaltação dos valores da ruralidade. Grandes senhores romanos viviam no
campo, com hábitos de cidade, rodeados de todos os luxos e confortos. Conímbriga 19 é um
exemplo, com a sua «casa dos Repuxos», a «casa de Cantaben», para banhos e culto, salas
para banquetes e grandes refeições.
Não só de abastadas villae era composto o mundo agrícola romano na Península.
Havia outras formas de exploração agrária. No Centro e principalmente Centro Litoral,
predominava o pequeno aglomerado constituído por famílias que viviam do amanho da terra.
O abandono do cimo dos montes trouxe as populações aos vales e ao litoral onde havia
melhores terrenos agrícolas. Alguns castella e vici, referidos em inscrições epigráficas,
deviam ser aglomerados rurais, com um tipo de vida baseada na auto-suficiência.
6.
Com os romanos as populações foram abandonando os seus habitats no cimo dos
montes e vieram fixar-se nos vales e junto à costa procurando uma vida tranquila, sem
guerras, dedicando-se à procura do seu sustento, no mar, na agricultura e no pastoreio.
Algumas populações fixaram-se provisoriamente junto da água e aí permaneceram,
constituindo-se em povoações fixas, dependendo da pesca e de alguma agricultura,
possibilitada pela transformação dos terrenos arenosos através da adubação com os

18
I. Edmonson, Two industries in Roman Lusitânia: winning and garum, Oxford, 1987.
19
Alarcão op. Cit.

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sargaços.
O domínio romano incrementou a cultura cerealífera com a introdução de diferentes
espécies de trigo, centeio, cevada e milho-miúdo. Vestígios botânicos da era romana, como
caroços de pêssegos, cerejas, romãs e nozes, atestam a existências dessas espécies. A
criação de gado foi melhorada através da prática de afolhamento rotativo dos campos e dos
largos períodos de pousio que proporcionavam boas pastagens.
A faixa, Mondego - Serra da Estrela, limite de factos naturais e de factos de
civilização, representa uma pausa muito longa no movimento da Reconquista.
A região de Coimbra foi disputada por mouros e cristãos durante dois séculos.
Documentos incontroversos informam que, a despeito das guerras, ruínas e mudança de
senhores, as povoações persistiram e os cristãos donos das terras tinham assegurado a
posse dos seus bens. Os mosteiros, embora tivessem perdido influência, com as doações
dos fiéis chegaram a comprar propriedades aos muçulmanos.
Os primeiros documentos da Reconquista informam sobre o formigueiro de gente
desde o Minho até ao Mondego. Pomares, hortas, casas, vinhas, gados de lavoura, grande
comércio vende-se, compra-se, herda-se e divide-se cada vez mais. A pequena exploração e
parcelamento podem constatar-se pela enumeração de bens pertencentes a mosteiros e
senhores de fortuna, constituídos por muitas glebas disseminadas.
O domínio mouro teve uma duração diferenciada nas diferentes regiões portuguesas e
a intensidade da sua influência foi desigual. O espaço entre Douro e Tejo foi durante quatro
séculos lugar de sucessivas guerras entre a Cruz e o Crescente. Com Almansor, os mouros
subiram mais a norte mas, a partir do século XI, as terras até ao Mondego ficaram na posse
dos cristãos no reinado de D. Fernando I de Leão e Castela. Mais tarde, com D. Afonso
Henriques, as terras a norte do Tejo passaram para o domínio da recente monarquia
portuguesa. A Geografia do Mundo de Edrici, do século XII, refere Coimbra como uma das
regiões que sofreram uma notável influência árabe até ao século XI e as hortas regadas,
abundância de figos, pomares, uvas, etc., são prova dessa influência.
Os mouros reforçaram o tom mediterrânico que os romanos haviam começado a
imprimir à agricultura. Introduziram plantas como o limoeiro, laranjeira, arroz e
desenvolveram a cultura da oliveira. Veja-se o nome que deixaram à colheita (safra), ao fruto
(azeitona) e ao óleo extraído (azeite).
No progressivo povoamento medieval do Baixo Mondego a arqueologia mostra que o

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primeiro estabelecimento da foz do Mondego foi o castro de Santa Olaia 20, dos séculos, VIII e
VII, a. C., e que uma série de villae romanas pontuou as duas margens do campo de
Coimbra (a planície inundável). Coimbra, o entreposto fluvial de Montemor e o porto marítimo
de Buarcos organizaram uma vida comercial activa, escoada ao longo do Mondego, com um
crescimento contínuo em tempo romano e tempo mouro.
Entre os factores humanos do repartimento da população, a vida rural aparece como o
mais poderoso. Todos os estuários e recessos da costa têm as suas vilas mas estas abrem-
se, quase sempre, para um subúrbio rural intensamente cultivado.
O povoamento da Beira Litoral expandiu-se a partir dos antigos núcleos de Aveiro,
Montemor e de Coimbra. Numa primeira fase povoou-se a margem direita do rio Mondego,
menos ameaçada pela insegurança fronteiriça e é só a partir do século XII, quando os
cristãos dominam a linha do Tejo, que as terras meridionais são desbravadas, povoando-se
no século seguinte. O ponto mais alto da secagem de pauis e de arroteamentos terá
acontecido cerca de 1330, seguindo-se um período de depressão económica e demográfica
marcada pela peste negra (1348).
O povoamento mais comum baseava-se nas famílias associadas que cultivavam
autonomamente as terras próprias e tinham direito ao uso de montes e bosques colectivos
em torno de terrenos cultivados. Havia diversas formas de uso colectivo de outros
instrumentos de produção como seria o caso da eira, do moinho, do lagar, do forno, do touro
reprodutor, como também da associação de vários proprietários para o cultivo comum de
campos de cereal.
O povoamento ao longo do limite entre a planície aluvial (o Campo) e as colinas
circundantes. (o Monte) prosseguiu. Nas terras férteis do campo as parcelas muito talhadas e
alongadas levavam, alternadamente, trigo e milho-alvo. Nos melhores solos do Campo do
BoIão, a jusante de Coimbra, chega a intercalar-se um único ano de pousio em dois anos
seguidos de cultura (afolhamento trienal).
Há grande silêncio histórico sobre o tempo muçulmano. É só a partir da primeira
conquista de Coimbra21 (879) e, principalmente, a partir da segunda (1064), que se
multiplicam as referências a vilas e lugares do Baixo Mondego.
Em relação à fixação das gentes durante e depois da Reconquista, organização
espacial fazia-se com as habitações e terras cultivadas (ager) juntas num núcleo central

20
A.S. Rocha, op. Cit.
21
Edmonson e Paulo Merea, «Territórios portugueses do sec. XI», in Revista Portuguesa de História 3, 1943.

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rodeado pelos montes e pelos bosques (altus).


Como em todos os países do Mediterrâneo, a vida rural tem ocupado, através dos
tempos, o primeiro lugar no trabalho do homem: a agricultura propriamente dita, a criação de
gado e a exploração das matas.
Descrições dos geógrafos confirmam que o litoral centro com um clima ameno e solo
fértil tinha uma população densa de camponeses. Até essa época predominava a pequena
propriedade, que continuou depois da Reconquista. No entanto, como nesta região as
guerras entre mouros e cristãos se instalaram durante muitas dezenas de anos, depois da
conquista definitiva, D. Afonso Henriques doou grandes propriedades não só aos nobres que
o ajudaram na guerra, como também às ordens militares e à Igreja.
Nesta época deu-se a rarefacção da pequena propriedade como consequência da
fixação de grandes proprietários no campo, fossem eles guerreiros ou monges. Quem
possuía algumas terras via-se na necessidade de as trocar pela protecção de um senhor
poderoso, leigo ou eclesiástico, adoptando a forma romana de dependência. O aumento do
poder fundiário da Igreja e dos grandes senhores foi evidente.
Os reis de Portugal fizeram grandes doações aos mosteiros, às ordens monástico-
militares, aos grandes senhores e até mesmo aos municípios. Todas estas condições
ocasionaram uma estrutura agrária da região Centro - Litoral, a que agora chamamos Beira
Litoral, que aparece delineada desde o fim da Idade Média até aos nossos dias.
Nas zonas onde já predominava um ambiente cultural de tipo mediterrânico, as
principais modificações para uma chamada romanização da agricultura resultaram no
aumento de produção e no aumento das áreas de cultivo. O largo número de lagares
encontrados fazem-nos crer que a oliveira e a vinha se desenvolveram muito, embora haja
dificuldade em distinguir, através dos caroços analisados, a oliveira do zambujeiro. Não vale
a pena alongarmo-nos muito sobre a importância do azeite na Antiguidade, não só como
combustível de iluminação, como também como óleo alimentar e ingrediente em práticas de
higiene.
Vinha e olival desenvolveram-se primeiro à roda de Coimbra, expandindo-se para
jusante. A vinha aparece em toda a região no século XIII mas o olival à volta de Montemor
aparece apenas nos séculos XIV-XV.
Os subúrbios apresentam as características da influência atlântica dominante onde
predominam as hortaliças, batata, árvores de fruto, como macieiras, pereiras, nespereiras e
cerejeiras. Os cereais dominantes são o milho, mais ou menos irrigado no litoral e nos vales
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largos, e o centeio.
Todos os cereais panificáveis se produziam na Beira Litoral: trigo da variedade
mourisco, galego ou tremês, além de trigos moles, que eram cultivados nas boas terras. O
milho também era produzido em terras de mais qualidade e o centeio e a aveia iam ocupar
as terras de monte, mais pobres e menos generosas em produção.
A agricultura caracteriza-se pela cultura intensiva do milho nas planícies, bacias e
vales graças à rega abundante a partir dos ribeiros e rios. Feijões e abóboras aparecem
como culturas intercalares e o centeio e os prados de gramíneas alternam com o milho. Perto
do litoral estruma-se com sargaço e detritos de peixe e no interior com o mato das camas do
gado. As pastagens cobrem todas as alturas desarborizadas e parreiras e vinhas de
enforcado limitam ou dividem os campos de milho. Hortas produzem couve-galega que
garante o caldo verde de todos os dias. Entre campos e encostas encontram-se pequenas
manchas de olival onde sobreiros e eucaliptos se misturam com pinheiros-bravos e mansos.
Cada casal tem a sua horta com hortaliças, macieiras, ameixeiras e laranjeiras. Os rebanhos
de ovelhas e cabras pastam em altitude e uma pequena parte da colheita de milho é dada
como alimentação a porcos e aves de capoeira.
Mais a sul do Mondego a horta toma o lugar do pasto e é destino, no Verão, da água
disponível tirada do poço com a cegonha. Aparece agora a vinha baixa, olival, pomar e
grandes manchas de pinhal e mato que restringem o cultivo. Cria-se pouco gado bovino e
muitas ovelhas e cabras nos terrenos maninhos. A rega ainda tem importância mas perdeu a
sua pujança e os campos aproximam-se da policultura mediterrânica, com árvores de fruto,
parcelas de vinha e de cereais de sequeiro, misturadas com pequenas manchas de olival
onde o milho, no entanto, continua a ser considerado.
A atracção do litoral exerce-se menos pelo mar do que pela presença de terras baixas
marginais, abertas ao trânsito, e de rochas impermeáveis e massas de ar atlântico que
favorecem a rega e, com ela, a agricultura intensiva em que assenta a ocupação do solo.
Numa economia de base rural a natureza do solo deve exercer grande influência no
repartimento da população. Os terrenos da costa, de composição e aptidões variadas, têm
sempre população superior aos relevos de xisto com que confinam, sendo geralmente as
argilas, margas e solos de alteração de rochas eruptivas mais ocupados do que os calcários
arenitos.
A avassaladora expansão da cultura do milho, conjuntamente com a da vinha e das
culturas hortenses, permitiu a subsistência vivaz e até o incremento da pequena exploração
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agrária.
A batata, plantada no fim do Inverno, escassamente regada, arrancada no começo do
Verão, intercala-se entre os prados e os campos de milho, alternando na mesma terra com
estas culturas. O arroz, cereal de Verão por excelência, requer grandes quantidades de água
corrente, precisamente durante a maior estiagem. É uma cultura alagada. Semeia-se na
Primavera, dentro de água, e ceifa-se no fim do Verão. O arroz, desde a sua introdução na
região, tornou-se numa cultura muito importante e, ainda em 1950, a Beira Litoral fornecia
quase 40% do arroz cultivado em Portugal, arroz que vinha do Baixo Vouga e do Mondego, a
jusante de Coimbra.
A pressão demográfica, as condições agrológicas propícias e o clima determinaram
um aproveitamento intensivo do solo. As unidades agrárias são diminutas e os proprietários
rurais abastados possuem muitas pequenas parcelas dispersas. Tratava-se de explorações
intensivas de pequenas propriedades favorecidas pelas condições de culturas variadas e
rendosas, abastecendo núcleos populacionais relativamente densos e próximos. No entanto,
nos territórios ao Sul do Mondego, logo com a Reconquista, surgiram latifúndios por
necessidade de defesa, de povoamento e de arroteio de vastas áreas sem culturas e
escassa povoação que a guerra assolara e dizimara. A terra estava repartida por senhores,
pelos mosteiros e pela Igreja, que necessitavam dos camponeses e com eles estabeleciam
contratos para a exploração das terras. Mosteiros que recebiam terra dos seus benfeitores,
que chegavam a ter milhares de camponeses na sua dependência, assegurando assim a sua
sobrevivência e trazendo para o mosteiro os produtos para sustento dos monges, dos seus
trabalhadores domésticos, dos numerosos hóspedes e dos pobres que acorriam à portaria.
As explorações agrícolas contavam com largos campos de milho, com regas, sachas
e culturas intercalares de horta. Fazia-se o tratamento de árvores de fruto e de vinhas. Várias
culturas estão presentes, escasseando o espaço para o pastoreio; os gados criam-se em
grupos pequenos, resguardados e vigiados sem pastores. É uma forma diferente da
economia agrária que reflecte estruturas sociais distintas: cultura extensiva e pastoreio e
cultura intensiva e variada. A criação de gado, sem vida pastoril, ocorre com a exploração
familiar, com a população disseminada, onde a falta de vizinhança afrouxa os laços
comunitários. A propriedade pequena formiga de gente nos campos, as casas de cada
família abrem para as leiras onde nelas procuram sustento à força de muito trabalhar,
estrumar e regar a terra. Foi a introdução do milho de regadio que permitiu generalizar este
estilo de ocupação de solo, embora já existisse antes da chegada deste cereal. As melhores
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terras do campo constituíam reguengos ou pertenciam ao mosteiro de Santa Cruz e à Sé de


Coimbra. Para facilitar a exploração das terras e a recolha de rendas, estas duas instituições
esforçavam-se, nos finais do século XIV, por constituir aforamentos estáveis, uma espécie de
morgadios camponeses, capazes de assegurarem a continuidade da exploração.
O milho foi no século XVI factor de enriquecimento do património agrário. Ao norte do
Mondego, a faixa atlântica muito povoada, onde já se praticava a rega e a poli cultura,
recebeu sem custo a nova planta e dela aprendeu a tirar proveito. No Campo do Baixo
Mondego o milho maís, introduzido no século XVI, tornou-se numa verdadeira monocultura
que nos anos quarenta do século XX era ainda dominante, ocupando o arroz, entretanto, os
terrenos mais pantanosos.
O milho maís: que veio da América, foi ensaiado por volta de 1500, em Sevilha, e
durante vários anos a sua cultura ficou confinada ao vale do Guadalquivir. Daí, veio para os
campos de Coimbra, entre 1515 e 1525, e só depois se propagou no nosso território. Em
1533 já tinha ultrapassado os preços correntes do centeio, cevada, milho-miúdo, vindo logo a
seguir ao preço do trigo. Era o mantimento comum na Beira Litoral porque as searas de
regadio, a fundirem muito bem, tornavam o milho barato e davam abastança a todos. Em
muito pouco tempo o novo cereal ganhou as terras baixas atlânticas. Tinha condições
favoráveis de desenvolvimento22. Por várias razões, entre as quais as seguintes: i) numeroso
gado bovino que dava estrume para as terras e força para trabalho; ii) existência de uma
população densa que assegurava mão-de-obra e estimulava, pela necessidade de consumo,
a produção; iii) prática usual da rega dos prados onde no Verão se fazia a sua cultura de
forma intercalar.
Os prados, regados com água de lima, proporcionam erva abundante, tenra e fresca,
para alimentar o gado. O pasto é semeado, em parte colhido e em parte utilizado para
pastagens dos animais que se deixam em liberdade. Nestes lameiros da região da Beira
Litoral criam-se uma grande parte das reses bovinas de Portugal. Assim se passa, por
exemplo, nos vales do Paiva e do Vouga onde a analogia com a realidade do Minho é
evidente.
7.
As populações que mais se desenvolveram em Portugal estão na faixa atlântica da
Beira Litoral. A circulação marítima, um comércio intenso, boas terras para a agricultura e
uma fauna marítima diversa e abundante fixaram as gentes destas regiões centro.
22
Orlando Ribeiro, Geografia de Portugal, Volume III

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As primeiras referências literárias à pesca e aos condimentos de peixe das áreas


meridionais da Península são do século V, a. C.
A exploração de recursos marinhos implicava várias actividades complementares:
pesca, produção de grandes quantidades de sal, exploração de salinas, apanha de sargaço,
fabrico de condimentos de peixe, construção naval e fabrico de ânforas para transporte dos
produtos. Faziam conservas de peixe, que não eram mais do que peixe cortado às postas e
conservado em sal ou numa calda de salmoura. Para a preparação de condimentos
utilizavam-se peixes de várias espécies, vários tipos de vísceras, tudo macerado com muito
sal. A mistura era depois aquecida e deixada a repousar para acelerar o processo de
decomposição. Quando adquiria uma consistência colóide, ou líquida, era metida em ânforas
e exportada. O consumo destes condimentos tem a ver com uma tradição é cultural e com
um conceito dietético. A predominância vegetal na alimentação mediterrânica provoca no
organismo a necessidade de complementos, como o peixe e, sobretudo, o sal.
A pesca foi uma actividade que, durante largo tempo, só se praticou nas águas
mansas e sem perigo de uma parte do litoral, como, por exemplo, a foz do Vouga. À medida
que as embarcações melhoraram assim as saídas se tornaram mais frequentes e maiores
foram as distâncias percorridas para capturar mais peixes e mais variedades. O peixe
chegava à praia e era vendido segundo regras que se estabeleceram desde muito cedo.
Algum ia para os mercados, através de intermediários, outro era vendido às pescadeiras,
regateiras, sardinheiras e marisqueiras que o vendiam na rua, de porta em porta. Outro ainda
era carregado nas bestas dos almocreves que o transportavam para as terras e para as
instituições às quais deviam obrigações. Em muitos casos, como no caso dos almocreves da
Universidade de Coimbra, estes homens tinham direito a comprarem em primeiro lugar e, se
não houvesse peixe porque alguém já o tivesse comprado, esses compradores eram
obrigados a restituí-lo para que os almocreves saíssem com a carga devida, pagando o
preço justo que tivesse corrido nesse dia.
O ocidente peninsular foi mais importador que exportador de produtos agrícolas.
Nenhum autor clássico se refere aos produtos do nosso território. No entanto, dois tipos de
produtos sustentaram um comércio regular importante: a mineração 23 e a produção de peixe
salgado e de preparados piscícolas.
A pesca tem constituído, através dos séculos, uma das primeiras actividades das
gentes da faixa atlântica da Beira Litoral. Portugal tem sido um dos maiores consumidores de
23
Edmonson, op. Cit.

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peixe da Europa e, como informação e exemplo, temos notícia das variedades e das
quantidades de peixe capturadas na Beira Litoral nos anos de 1927:
Atum rabilho: 100 exemplares (Thunnus thinus); cachucho: 2,1 mil toneladas (Dentex
macrophtalmus); amêijoa, (diversas espécies): 3,8 milhões de exemplares (Mpes); cavala:
2,1 mil toneladas (scomber japonicus); espadilha: 3 mil toneladas (Sprattus sprattus); pargo:
1,1 mil toneladas (Paggus paggus); sável: 19,5 milhares de exemplares (Clupea alosa);
sardinhas: 35 mil toneladas (Sardina pilchardus); vários tipos de carapaus: 10,1 mil toneladas
(Trachurus trachurus); vários tipos de pescadas: 4,8 mil toneladas (Merluccius, merluccius);
caranguejo: 1,7 mil toneladas (Cancer pagurus); lagosta, lavagante, lagostim: 527 mil
unidades (Palinuris vulgaris).
Em relação às enguias vem uma nota dizendo que são tantas que quem quer as
apanha em grande quantidade e como há muita captura particular a estatística não pode ser
feita.
Foram recenseadas mais de cinquenta espécies de peixe, todas elas fazendo parte,
em maior ou menor quantidade, da alimentação dos portugueses. Além da pesca o mar
fornecia outros recursos: algas, moliço, ou sargaço que se usava para fertilizar as terras,
crustáceos e outros animais marinhos. O pilado, (caranguejo miúdo24) também era utilizado
para o mesmo fim com a vantagem de ser três a seis vezes mais rico em componentes
minerais do que as algas.
Todas as pequenas terras do litoral, assim como as comunidades de pescadores de
Aveiro e de Buarcos, viviam das águas mansas e só a partir do século XV começaram a
arriscar o mar quando o assoreamento se tornou irreversível. Para melhor entendimento da
importância do pescado, não só para alimentação das populações como também como fonte
de rendimento da coroa, analisemos os impostos sobre pescado em 1269, lançados por D.
Afonso III.
Uma lampreia pagava um dinheiro, um sável uma mealha, uma mealha também por
uma dúzia de peixotas, uma mealha por uma dúzia de congros secos. Mulher que vendesse
pescado «coyto ou frito» pagava um dinheiro por dia. No tempo de D. João I, as melhores
lampreias eram as de Penacova, o sável e as trutas do Mira, a sardinha e marisco de Aveiro,
Vagos, Sousa e Buarcos.
Outro recurso marinho de grande importância neste litoral foi o sargaço. Os primeiros
documentos que falam da apanha do sargaço são do século XIV, em diplomas de várias
24
O pilado era feito com caranguejo miúdo: portunnus puber.

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espécies que aludem a essa actividade como sendo praticada «desde tempos imemoriais»,
Existem notícias e referências em forais, reclamações, sentenças, ordens, publicadas em
livros de memórias, de lembranças, de usos e costumes de visitações, etc. Os sargaceiros
pagavam dízimos e outros impostos do sargaço e a Igreja, omnipresente, regulamentava a
sua apanha que era interdita aos domingos e dias santos, excepto se o valor da venda da
apanha desses dias revertesse a favor da sagrada instituição... As restrições eram severas e
quem não cumprisse ficava sujeito a penas diversas, chamadas «multas pecuniárias do
sargaço», com perda do produto apanhado a favor da Igreja e, em certos casos, à aplicação
de castigos eclesiásticos. Normalmente os párocos ficavam-se pelas multas pecuniárias mais
convenientes para os cofres das paróquias.
O sargaço era tão importante que o Padre Carvalho Costa 25 diz de muitas terras
litorâneas que «os vizinhos são quase todos ricos pela grande quantidade de sargaço 26 que
tiram do mar...» Num inquérito, de 1758 em que se perguntava quais eram os frutos da terra
que os moradores recolhem em maior abundância, a resposta foi: «também não é menos
que a agricultura a colheita de uma erva criada nas pedras do mar chamado sargaço que
para adubo de seus campos tiram os lavradores e para venderem extraem os jornaleiros» 27.
O tempo interdito para a apanha do sargaço ia da meia-noite de sábado até à meia-
noite de domingo, mas com uma particularidade: a Igreja determinava que a interdição se
prolongava até duas horas depois do sol nascer, na segunda-feira, porque a apanha que
fosse feita até essa hora também era em seu proveito. Refira-se, como curiosidade, uma
Provisão de D. Maria I, de 1789, ordenando que a contagem do tempo interdito fosse feita
tendo em atenção que «onde não há relógios, como não há nas aldeias, fica sendo incerta e
arbitrária a hora da meia-noite, cuja baliza é a que divide os dias uns dos outros». Através
desta pequena nota ficamos a conhecer a astúcia da Igreja, o seu voluntarismo na
arrecadação de rendas e a pobreza das aldeias que não dispunham de relógio!
Apanhavam uma grande variedade de algas entre as quais as mais procuradas eram
o botelho (Choudrus crispus), a francelha (Gelidinum sesquipedale) e tabarrão (Laminaria
succarina). Estas algas contêm uma grande quantidade de azoto, ácido fosfórico, potássio e
cálcio que se tornam três vezes mais concentrados durante o processo de secagem. Foi com
estas algas que os homens e mulheres do litoral transformaram muita areia em área

25
Padre Carvalho Costa, Chorografia Portuguesa, 1706.
26
Argaço ou Sargaço
27
Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Perreira, Actividades Agro-maritimas em Portugal, D.
Quixote, Lisboa, 1990.

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cultivável. A adubação sistemática das areias com as algas, transformou-as em terra


produtiva. Alguma dessa terra, antes do seu benefício com as algas, foi comprada por
cabaneiros, homens pobres que viviam no interior mas que exerciam na praia a actividade de
apanha do sargaço. Fixaram-se nessas novas terras e foram a génese de algumas
povoações nascidas à beira-mar. Atrás deles vieram populações congéneres e igualmente
pobres, oriundas de outras áreas rurais, e são eles que estão na base da formação de certos
aglomerados que encontramos hoje já constituídos e estabilizados.
O sal é outro dos recursos marinhos desta região da Beira Litoral com relevada
importância e, embora produto modesto, é indispensável na vida quotidiana. O seu comércio
explica-se pela amplitude dos seus usos: consumo doméstico, larga e sistemática utilização
na cozinha, tratamento de peles, salgações de peixe, carne, manteiga e queijo. Eram o sal e
o peixe os produtos principais e de primeira necessidade que saíam da costa para o interior.
Na Beira Litoral situavam-se duas explorações de sal importantíssimas: Aveiro e Figueira da
Foz28. As salinas de Aveiro são referenciadas pela primeira vez num documento em que a
rica e poderosa Mumadona dava ao seu Mosteiro de Guimarães terras e salinas em redor de
Aveiro. Nas margens do delta do Vouga era proprietário, em 1044, D. Gonçalo Viegas. Em
Esgueira prosperava a extracção do sal segundo uma doação feita ao Mosteiro da Vacariça
em 1057. À medida que se disseminava o povoamento e as pequenas comunidades criavam
raízes, com um pé no mar e outro em terra, os sapais da laguna, riscados por inúmeros
esteiros e canais, ofereciam ao pioneiro medieval um território ideal para a construção de
salinas. Com um tipo de clima favorável e uma população em acelerado crescimento, as
salinas prosperavam e o salgado do Vouga foi lugar privilegiado para a exploração e o
comércio do sal. O Mosteiro de Santa Cruz tinha salinas deixadas em testamento desde
1177 e o negócio do sal era apetecido porque proporcionava uma corrente de tráfego
rendosa e, em Aveiro, a embocadura do Vouga ligava-se a todos os lugares costeiros onde
as pescarias e o comércio faziam do sal um produto de primeira necessidade, ao mesmo
tempo que a navegação acorria ao local onde ele abundava. Os principais locais de
produção eram Cabanões, Franco, Gaivotos, Morrecosa e Junqueiro. O desenvolvimento e a
abundância de sal na região de Aveiro foi tal que ocasionou a inevitável decadência ou até, o
desaparecimento de outros centros produtores de sal além - Douro. Ao mesmo tempo
progrediam os salgados do Vouga e do Mondego 29

28
Virgínia Rau, Estudos sobre a História do sal Português, Ed. Presença, 1980.
29
Virgínia Rau, op. Cit.

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O sal foi, com toda a certeza, o principal traço de união entre a costa e o interior; a
proximidade das várias salinas da Beira Litoral com o interior agrícola e pastoril favoreceu o
trânsito entre as duas sub-regiões.
Rememoremos rapidamente as várias utilizações 30 do sal que saía da costa: tempero
permanente na cozinha; componente de alguns remédios caseiros; salga de peixe, salga de
carne, salga de queijos, salga de manteiga, salga de azeitonas, curtição de peles, etc. A
dependência deste produto era absoluta e ela ocasionou o nascimento de um comércio forte,
não só à escala supra-regional como também numa rede de tratos e trocas de carácter inter-
regional, que foi factor decisivo de desenvolvimento de lugares no interior.
Se a pesca era um dos produtos indispensáveis vindos de uma actividade marítima, o
sal era igualmente importante para os regimes alimentares 31 de todas as populações, tanto
da costa como das regiões do interior da Beira Litoral.
Alguns estudos sobre o centro litoral defendem que, à excepção dos lugares onde a
maré chegava e fertilizava os campos com plantas e animais extraídos do mar, não havia
grande relação com a vida foral, que muitas vezes tem vivido com as costas voltadas para o
oceano. Nunca assim aconteceu. Houve sempre uma troca permanente de produtos que se
foi incrementando através dos séculos, tecendo uma malha de caminhos por onde se fazia o
trânsito de pessoas e mercadorias.
8.
Em Portugal a documentação é escassa em relação à História da Alimentação.
Apenas um estudo detalhado daquela que existe pode dar as informações que permitem um
estudo sistematizado. É através da investigação efectuada nos cartórios das instituições,
civis, militares ou religiosas, onde eram exigidas contas da vida quotidiana, que é possível
um maior conhecimento sobre as práticas alimentares dos nossos antepassados.
A conceituada medievalista, Maria Helena da Cruz Coelho 32, estudou com rigor o
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e, num texto sobre o «Senhorio crúzio do Alvorge na
centúria de trezentos», refere muita matéria que interessa à História da Alimentação, dando
indicações valiosas para permitir um maior conhecimento da alimentação dessa época.
A herdade do Alvorge, doada ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, foi arrendada
por cinco anos a Geraldo Afonso por cerca de 1420 libras anuais, em 1364. Não tendo pago
30
Mário Vieira de Sá, «O sal na conservação do peixe e outros produtos alimentares, Vários processos de conservação», in
Boletim das Pescas, nº 36, 1952.
31
Manger et Boire au Moyen Âge, Cates du Colloque de Nice, 1982
32
Maria Helena da Cruz Coelho, Homens, Espaços e Poderes, séculos XI-XVI, Domínio Senhorial, Livros Horizonte,
Lisboa 1990.

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as rendas combinadas foi-lhe instaurada uma acção e os bens foram leiloados. Pela lista do
leilão podemos tomar conhecimento dos objectos de cozinha que um rendeiro vilão, com
uma certa comodidade, dispunha para seu uso na segunda metade de trezentos. A lista: uma
cadeia para fogo, duas caldeiras, uma panela, uma sertã com a sua rapadoira, três
toucinhos, uma almotolia grande velha para azeite, três espetos de ferro, uma gamela, dois
grales33 de pedra uma almarcova34, um cutelo, um funil, uma tina, quatro masseiros, duas
peneiras, dois salseiros, dois agomis, três pichéis para vinho, um de Málaga e outro de
estanho, duas colheres de ferro, dezassete escudelas, dois talhadores 35, uma bacia, um
bacio36, chamba cortida37 um salseiro, um cortiço38 com favas, outro com hervanços39 e outro
com tremoços, um tabuleiro, um fole com pimenta, uma panela com manteiga e carne de
porco fumada.
Com esta lista de utensílios não se pode inferir seja o que for sobre a dieta alimentar
deste rendeiro, no entanto, refira-se que existiam mais espetos que panelas, apenas uma
sertã e dois grales. Os grelhados e os assados no espeto seriam mais frequentes do que os
guisados? Os condimentos seriam de uso comum e frequente para justificar os dois
almofarizes? É estranho não haver referências a cerâmicas de cozinha ou de mesa, tão
comuns e necessárias nessa época mas, no entanto, esta lista dá informações de muito
interesse que nos permitem confirmar ou reconfirmar algumas informações facultadas por
outros documentos.
i). A almotolia de azeite indica que, apesar da oliveira ser referenciada na região de
Coimbra apenas a partir do século XV 40, havia um comércio de produtos mediterrânicos
vindos do sul
ii) a existência de carne seca permite deduzir que, além da salga e da fumagem da
carne, a secagem também era escolhida como processo de conservação;
iii) a existência de três pichéis de vinho indica que esta bebida era de uso corrente;
iv) as favas e o grão-de-bico, seriam legumes secos de consumo corrente;
v) o consumo de três gorduras41 - toucinho, azeite e manteiga permite-nos imaginar uma
33
O mesmo que almofariz.
34
Objecto cortante parecido com cutelo.
35
Prato grande onde se trincha a carne.
36
Uma Travessa
37
Carne curada
38
Recipiente cilíndrico de cortiça
39
Grão-de-bico
40
Orlando Ribeiro, op. Cit.
41
Jean Louis Flandrin, «Le gôut et la necessité sur l’usage des graisses dans la cuisines d’Europa Ocidental, (XIV-XVIII) in
Annales, E.S.C. 1983.

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dieta alimentar sem interditos, rica, em escolha de gorduras e com um receituário alargado 42;
vi) um fole com pimenta43 diz-nos que esta especiaria já andaria pelas cozinhas vilãs
muito tempo antes da sua vulgarização com a Expansão.
O livro de receitas e despesas do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra 44, do ano
económico de 1534-1535, permite-nos um melhor conhecimento sobre esta casa religiosa, e
os seus registos sobre compra e venda de produtos podem ajudar a entender não só alguns
hábitos alimentares dos ricos cónegos crúzios como também podem dar indicações
aproximadas sobre características da alimentação das classes trabalhadoras e da população
em geral.
As informações recolhidas do Livro de Despesas do Convento de Santa Cruz de
Coimbra e os números recolhidos de documentação consultada de outras instituições
situadas na Beira Litoral, permitem-nos adiantar alguma coisa sobre produtos da alimentação
e seus custos no século XVI.
Em relação a todas as despesas do Mosteiro, 32,1% são despesas de alimentação.
Refira-se que o segundo lugar das despesas, com 14,7%; foram as relativas a obras de
manutenção da casa e ao Estudo. Para panos, vestuário e calçado a verba gasta
correspondeu a 13,1 %.
Embora a alimentação tivesse sido a maior despesa, temos que ter em conta que o
Mosteiro não se governava apenas com estas compras. Recebiam trigo das rendas das suas
importantes e grandes propriedades para encherem os celeiros. Das rendas que o Mosteiro
detinha nas Beiras recebia aves, marrãs e fruta em quantidade suficiente para não ter
necessidade de comprar qualquer destes alimentos. As hortas que os cónegos exploravam
nos arredores de Coimbra abasteciam-nos das hortaliças e legumes secos necessários
embora uma vez, durante o ano que estamos a analisar, tivessem comprado 7,5 arráteis de
lentilhas. Uma rubrica refere o carreta de trigo vindo de Condeixa, Murtede, Cadima e
Verride; só o carreta de Condeixa trouxe 10 moios de trigo. Tenha-se em conta, que no
Mosteiro encontravam sustento, não só os cónegos como também hóspedes, criados,
pobres, etc.
As despesas totais com a alimentação, nesse ano, (Junho de 1534-Junho 1535)
tiveram os seguintes valores, em reais:
Trigo: 35 940; vinho: 63.790; arroz: 3430; lentilhas: 525; mel: 5601; açafrão: 4550;
42
J. Bieder, la consumation cde graisse au XIV XV siecles, Paris, 1988.
43
B. Lourioux, Spices in Medieval Diet, a new approach, 1985.
44
Também da autoria de Maria Helena Cruz Coelho, op. cit

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figos: 4960; passas: 1000; amêndoas: 300; bois: 41.120; vacas: 3000; ovelhas: 400;
carneiros: 114.771; pescadas: 32.660; cações: 1870; sardinhas: 3020; sáveis: 4792; total de
compras: 333.759 reais
Analisemos:
i) Compras de carne: 159.281 reais, cerca de 47% do total das compras totais;
ii) O carneiro era a carne mais prezada e as contas reflectem essa realidade. A verba
destinada à compra de carneiros corresponde a 72% das compras totais de carne;
iii) Compras de peixe: 42.342 reais cerca de 12% do total de compras. Também não seriam
só estes os peixes consumidos no mosteiro porque algumas rendas e foros do mosteiro eram
pagas em pescado;
iv) As compras de carne revelam valores quatro vezes superiores às compras de peixe. Num
mosteiro com perto de 150 dias de abstinência, por ano, interditos ao consumo da carne,
esta proporção surpreende;
v) Note-se a importância da verba correspondente à compra de vinho. O consumo seria
muito superior porque se sabe que o mosteiro tinha as suas próprias vinhas e vinificava as
suas uvas. No mês de Outubro a comunidade abasteceu a adega com vinho novo, que
constituiu a principal compra desse mês, embora tivessem feito uma grande compra de vinho
em Fevereiro desse ano. Estas quantidades de vinho não eram suficientes porque todos os
meses aparecem notas de compra desta bebida. No total, compraram 915 almudes e sete
meias, nesse ano, o que equivale a 19,1 % dos gastos da alimentação 45.
Lista da compra de pescado: 11,5 dúzias de pescadas a 260 reais a dúzia; 12
milheiros de sardinhas a 150 reais o milheiro; 17 dúzias de cações a 110 reais a dúzia; 21
sáveis frescos a 45 e 40 reais a unidade; 22 dúzias de pescadas a 260 reais a dúzia; 23
dúzias e meia de pescadas a 260 reais a dúzia; 3 dúzias e sete sáveis frescos a 500 reais a
dúzia; 34 dúzias de pescadas a 260 reais a dúzia; 4 dúzias de pescadas a 300 reais a dúzia;
5 dúzias de sáveis a 420 reais a dúzia; 8 milheiros de sardinhas a 152 reais o milheiro
Só aparecem na lista de compras quatro variedades de peixes: pescada, sardinhas,
sável e cação. Temos conhecimento que um dos peixes que fazia parte do pagamento de
obrigações de rendas e foros era o congro; os maiores que fossem apanhados eram para o
mosteiro, assim como pargos que eram dados em determinadas datas da Quaresma e do
Advento. Lampreias e mariscos também faziam parte da dieta alimentar dos cónegos embora
não apareçam referenciados na lista de compras de peixes. Um reparo: o peixe mais
45
Pelas mediadas de Coimbra o almude de vinho correspondia a 16,74 litros. Os cónegos compraram 15.317 litros de vinho.

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consumido era a pescada, o peixe mais caro o sável, o mais barato a sardinha e o cação. O
consumo de sardinha é fraco proporcionalmente ao consumo de pescadas mas sabemos
que a sardinha não era muito frequente em certas mesas mais fartas. Note-se ainda o
consumo de cação, que se pensava ser apenas consumido no Alentejo.
Veja-se a ração diária de peixe que os cónegos tinham: 0,3 sáveis; 0,5 cações; 3,8
pescadas; 54 sardinhas.
Como já foi referido, no mosteiro havia mais ded120 dias de abstinência por ano, dias
durante os quais a carne era interdita e o consumo de peixe aumentava. Dias de abstinência
eram todos os dias da Quaresma, do Advento, das vésperas de santos de nomeada e outros
do regime e regra do mosteiro.
Lista das compras de carne 27 bois pesaram 6750 kg é custaram 41 120 reais; 3vacas
pesaram 450 kg e custaram 3000 reais; 906 carneiros pesaram 18 120 kg e custaram
114.771 reais; Total: 25.390 kg. de carne comprada num ano..
Veja-se a ração de carne que os cónegos tinham por dia: carne de boi: 20,7 kg.; carne
de vaca: 1,3 kg., carne de carneiro: 55,7 kg.
Podemos perguntar: e a carne de boi, vaca, borrego e carneiro recebidas por rendas,
foros e outras obrigações? E a carne de porco, e as galinhas, frangãos e patos, e a caça?
No primeiro quartel do século XVII os conimbricenses comiam uma média de 30 kg.,
de carne por ano, enquanto os cónegos de Santa Cruz se confortavam com mais de 60 kg.
Os números da ração de peixe e de carne igualam os números que foram encontrados
em algumas das mais ricas casas monásticas de França e Itália 46.
A carne de carneiro era alimento fundamental dos mais ricos e o «preço da sua carne
era superior à de vaca»47. A prova disso mesmo é dada pelas compras de carneiro que o
mosteiro fez durante o ano económico 1534-1535. Mais de dois carneiros por dia, mais os
que recebiam de rendas e foros. Sabe-se que algumas rendas eram pagas em carneiros em
número significativo, como a renda da quinta da Atinha 48, propriedade de Santa Cruz, que
era estabelecida na paga de 200 carneiros de dois anos. Facilmente se conclui que cerca de
1000 carneiros eram consumidos no convento. Notar a exigência que o mosteiro fazia para
que os carneiros tivessem dois anos de idade. Nesta época, talvez ainda por influência da
permanência árabe que apreciava a carne de ovinos e caprinos com mais idade, a carne de
carneiro «velho» era a mais apreciada. A tradição da chanfana, que veio até aos nossos
46
Montanari Máximo, op. Cit.
47
António Oliveira, A vida económica e social de Coimbra de 1537-1640, Coimbra, 1972.
48
Maria Helena Cruz Coelho, op. Cit.

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dias, pode fundar-se nessa escolha.


Para calcularmos o peso de cada boi em cana 49, considerámos que, depois de limpos,
cada boi pesaria 250 quilos, peso médio inferior ao peso em canal de qualquer animal adulto
de qualquer raça portuguesa.
Para o cálculo das vacas considerámos um peso em canal de 150 quilos e para os
carneiros adultos, pelo menos com dois anos de idade, como vem recomendado numa nota
que refere a renda de uma herdade como sendo 200 carneiros de dois anos, considerámos
um peso em canal de 20 quilos por animal, peso que está também abaixo da média de
qualquer exemplar das raças portuguesas.
Os cónegos completavam a sua dieta com ovos, queijos, manteigas, legumes frescos
e secos, fruta, ervilhas e favas criadas nas hortas e almuinhas, com terras irrigadas e muito
bem estrumadas. Todas estas espécies são iguais às dos nossos dias. À sua mesa
chegavam diferentes variedades de couves, espinafres, alfaces, cenouras, rábanos, nabos,
beringelas, salsa, feijões, cebolas, alhos, etc. Árvores de fruto como pereiras, macieiras,
ameixeiras, figueiras, pessegueiros, laranjeiras, cerejeiras, castanheiros e nogueiras davam
a fruta necessária.
9.
Analisando e comparando indicadores do Livro de Despesas do Mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra50 conseguimos alguma informação acerca da dieta dos trabalhadores.
Preços de alguns produtos alimentares e indicação de algumas profissões e seus
respectivos salários referidos no Livro de Despesas do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,
do ano de 1534-153551.
PROFISSÃO SALÁRIO52 PRODUTO PREÇO
barbeiro 415 r./mês trigo 60 r./alqueire
boieiro 300 r./mês cevada 30 r./alqueire
cozinheiro 500 r./mês arroz 12 r./ arrátel53
porteIro 300 r./mês lentilhas 70 r./alqueire

almocreve 450 r./mês azei te 300 r./pipa


ferrador 600 r./mês mel 175 r./alqueire
santelro 1000 r./imagem açafrão 1400 r./ arrátel

49
Bruno Lourioux, Le Moyen age á table, Paris, 1989.
50
Maria Helena da Cruz Coelho, «Receitas e despesas do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 1534-1535», in Homem
Espaço e Poderes, Séculos XI-XVI. II – Domínio Senhorial, Livros Horizonte, Lisboa, 1990.
51
Este Mosteiro tinha nesta data cerca de 75 cónegos. D. Manuel, no século XVI, ordenou que o mosteiro deveria ter uma
população conventual de 72 membros.
52
Alguns dos salários indicados devem ser considerados como salários «a de comer» além do valor em dinheiro o mosteiro
fornecia, pelo menos uma refeição
53
Pelas medidas de Coimbra o arrátel correspondia a 450 gramas.

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mestre de
gramática 450 r./mês vinho 60-85 r./almude54
tanoeIrO 450 r./mês azêmola 10000 r./unidade
físico 610 r./mês cerejas 100 r./ canasta
forneiro 150 r./mês figo «dou do» 200 r./ canasta
carpmteIrO 50 r./dia passas de uva 300 r./ arroba
capelão 1000 r./ mês carneIro 125-150 r./unidade
lavadeira 400 r./ mês bode 115 ,t. unidade
hortelão 250 r./mês boi 1500-2000 r./unidtde
escudeiro 250 r./mês vaca 1000 r./unidade
tosador 300 r./ mês ovelha 200 r./unidade
cordoeiro 400 r./ mês pescada 300 r./dúzia J!
pescada seca
260 r./ dúzia
pelxotas 60 r./dúzia
cação 110 r./ dúzia
sável 500r./dúzia
sardinha 150 r./milheiro
pescadinhas 60 r./dúzia
O que comeriam os trabalhadores neste terceiro quartel do século XVI? Os
trabalhadores podiam ser contratados «a de comer» a seco, quer dizer, o contratado r era
obrigado a dar refeições ou comedorias referentes às refeições, juntamente com um salário
que era inferior ao salário dos trabalhadores que apenas recebiam a sua jorna em dinheiro.
Vejamos alguns exemplos:
i) O Cabido da Sé de Coimbra dava aos homens que cavavam e podavam a vinha, 2,5
kg. de trigo, 2,7 litros de vinho e 8 sardinhas por dia, a cada um;
ii) Em terras do senhorio do Mosteiro de Santa Cruz, do Mosteiro de Celas e da Sé de
Coimbra, os homens tinham direito, além da jorna, a 1,6 kg de pão, 0,8 litros de vinho, e
conduto no valor de 4 dinheiros, que podia ser uma posta de carne ou de peixe;
iii) Outros jornaleiros e foreiros que davam jeiras no trabalho das vinhas tinham direito a
2,4 dinheiros, 1,3 kg. de pão e 2 litros de vinho;
iv) Em Aveiro, os homens que trabalhavam numas salinas tinham direito a 1 litro de vinho,
1,8 kg. de pão e a uma ração de peixe com 0,5 kg.;
v) Em Pombal, Luís de Melo Palmeirim dava aos homens que trabalhavam na sua quinta
durante todo o ano, 0,8 litros de vinho, 1 kg. de pão, 4 kg. de toucinho por semana e duas
dúzias de sardinhas salgadas por semana;
vi) Em Arganil os trabalhadores recebiam 1,4 litros de vinho, 1,2 kg. de pão e em dias

54
Pelas medidas de Coimbra o almude correspondia a 16,74 litros

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alternados da semana, ou toucinho, ou sardinhas salgadas ou 250 gr. de carne de borrego;


vii) A Colegiada de S. Pedro dava uma ração diária aos seus trabalhadores de 1,6 kg. de
pão e 0,6 litros de vinho;
viii) A Rainha D. Isabel55 dava a 15 homens e a 15 mulheres do seu hospital 32 onças de
pão cozido, uma tagra56 de vinho e dois arráteis de carneiro, porco ou vaca e, nos dias de
abstinência, pescado.
Em relação aos homens e mulheres do hospital da rainha vemos que a ração de pão
diminuía quando aumentava a ração de carne e dois arráteis de carneiro equivaliam a 918
gramas de carne. Quanto mais se desce na hierarquia social maior é o consumo de pão e
quanto mais se sobe nessa hierarquia maior é o consumo dos acompanhamentos ou dos
«condutos».
Estas rações nada tinham a ver com a mesa dos mais ricos e, no nosso entendimento,
a mesa do Mosteiro de Santa Cruz era uma mesa rica 57. Um exemplo: em relação à dieta dos
eclesiásticos, como curiosidade, refira-se o que determinava o Prior do Mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra, em 1267, para os cónegos doentes: «dois frangos, um de manhã e outro à
noite, e, logo que pudessem comer outras carnes, uma galinha, 1/4 de cabrito»!
A alimentação sempre foi um símbolo distintivo de classes e já no século XIV, a mesa
constituía um lugar onde marcavam posições. Os exageros chegaram a ser de tal ordem que
D. Afonso IV teve necessidade de refrear os gastos na alimentação dos poderosos e fê-lo
através da Pragmática58, de 1340, que nos dá valiosa informação sobre usos e costumes
dessa época. A distinção de classes, mais uma vez, fazia-se através do refinamento da
mesa.
Vejamos algumas notas surpreendentes da Pragmática: o rico - homem tinha direito,
ao jantar59, a 3 pratos de carne ou pescado e à ceia a 2, o fidalgo tinha direito a 2 ao jantar e
a 1 à ceia mas, com receio que alguém entrasse em fraqueza, o rei dava autorização para
que as refeições se completassem com todas as carnes, caça, aves, pescado, marisco,
viandas de leite e frutos, desde que fossem dados em serviço e não comprados!
Como é evidente, em relação às classes mais desfavorecidas, não podemos utilizar as
informações sobre as comedorias dos trabalhadores para delas deduzir o que seria a
55
Maria Helena da Cruz Coelho, «Apontamentos da comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos», in
Homens, Espaços e Poderes, séculos XI-XVI, Notas do viver social, Livros Horizonte, Lisboa, 1990
56
Uma traga era igual a uma canada, que nas medidas de Coimbra correspondia a 1,4 litros.
57
L’Alimentazione nell’antichita, obra colectiva Parma, 1986
58
H. Oliveira Marques, «A pragmática de 1340», in Ensaios de História Medieval de Portuguesa, Lisboa, 1980.
59
O jantar era ao meio-dia.

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alimentação dos menos abastados. Embora Marc Bloch afirmasse que não se podem
estudar as sociedades passadas sem a antítese: «o povo do campo em estado de perpétua
subalimentação e os ricos sobrealimentados», teremos de aceitar que em muitas sociedades
e em muitas épocas, o povo viveu períodos com uma alimentação se não rica, peio menos
suficiente, como tem sucedido na região da Beira Litoral. Lembremos as muitas situações de
autoconsumo, efectivo que permitia um certo conforto à mesa 60.
Dizia Louis Stouff61 que a hierarquia das pessoas se define pela cor do seu pão e pela
qualidade da sua bebida. O pão do camponês era escuro, de mistura, meado, terçado ou
quartado, de acordo com o número de cereais que o compunha. Pão branco, de primeira, só
para ricos. A padeira da freguesia de Santa Justa cozia pão branco e de segunda assim
como «relam» e «massamilho», respectivamente pão de rala, com muito farelo e pão com
uma grande mistura de milho.
Enquanto os cónegos se regalavam com abundância e variedade de alimentação, o
que comeriam os trabalhadores e as classes menos favorecidas?
O camponês comia pão, bebia vinho, comia alguma carne, algum peixe, legumes e
fruta. Muitos criavam frangos, galinhas e patos, tinham ovos e consumiam o que lhes
sobrava dos pagamentos às instituições e aos senhores. Carne de vaca e de carneiro, que
era a mais prezada, andariam sempre por longe do prato do pobre e do camponês. Criavam
um porco que constituía a despensa de todo o ano, donde retiravam alguma carne e a
gordura para temperarem. Em algumas zonas do interior da província, como nas freguesias
de Pombal, por exemplo, era hábito os trabalhadores trocarem os presuntos do seu porco
por mantas de toucinho dos porcos dos mais abastados. Completavam a ração de proteínas
com caça, aquela que lhe era destinada e a que conseguiam iludir à vigilância dos guardas
de defesas e de coutos pertencentes às classes possidentes: coelhos, lebres, perdizes,
pombos-bravos, abetardas, grous, túrteres e, muito raramente, veado, gamos ou javalis.
Vinho, outros dos alimentos base da dieta dos camponeses e dos mais pobres, era
proveniente das vinhas que circundava pequenas parcelas, hortas e casas. Vinha, em maior
extensão, produzia-se em quase toda a província, no campo e na orla marítima, em
consociação com a oliveira ou em áreas extremes. Vinificava-se vinho vermelho, assim se
chamava o tinto nessa época, e branco, consumidos simples ou cortados com água, um
terço de água e dois terços de vinho 62, ou metade água, metade de vinho, consoante a
60
J.J. Hermandiquer, Pour une histoire de l’alimentation, Paris, 1970.
61
Louis Stouff, Ravitaillement et alimentation en Provence au XIV et XV eme siecles. Paris, 1970.
62
A. I. Pini, Viti e vine nel medievo, Bolonha, 1989.

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fartura ou a escassez de cada um. Nesta região sempre se bebeu vinho não só às refeições
como também para matar a sede, durante e fora das horas do trabalho. Pagar uma jorna a
um trabalhador e dar-lhe uma determinada porção de vinho por dia foi uma prática que se
tem conservado até aos nossos dias.
O consumo de peixe era menor do que o consumo de carne, exceptuando as
povoações do litoral que tinham acesso a maior variedade de pescado a um preço mais
acessível. Na alimentação entravam com frequência os peixes de rio, corvio a lampreia, o
sável, as trutas e as enguias. Do mar, vinham muitas espécies mas as mais vendidas eram
as peixotas, os congros e, naturalmente, as sardinhas, o peixe mais vulgar não só nas mesas
dos trabalhadores como na de todas as classes. Sardinhas que D. João II elogiava pela sua
abundância, sabor e barateza.
O consumo preferencial por sardinhas das classes que trabalhavam não pode ser
analisado apenas pela perspectiva do preço. O peixe, em geral, era considerado um alimento
fraco, imperativo nos largos períodos de abstinência, bom para doentes, e, por isso, não
compatível com o desgaste de trabalhos pesados como eram os trabalhos da agricultura 63.
Para um camponês, uma «peixota» não proporcionava a «substância» de um bom naco de
toucinho e, algumas vezes, o peixe estaria ausente da mesa dos trabalhadores por escolha e
não em função do preço.
Podemos tentar estabelecer uma equivalência entre salários, atribuições habituais de
alimentos e preços desses mesmos alimentos. É o processo utilizado por Vauban 64 que tenta
deduzir uma dieta alimentar partindo de dois ou três produtos essenciais para a alimentação,
como, por exemplo, o pão, o vinho e a carne.
Quadros com rações diárias de trabalhadores e a sua correspondência em calorias:

PRODUTO 'QUANTIDADE CALO RIAS


pão 2,5 kg. 5100
vinho 2,7 1500
sardinhas 8 unido 2100
total 8700
PRODUTO QUANTIDADE CALORIAS
pão 1,6 kg. 1400
vinho 0,8 500
conduto 4 dinheiros 2500
total 4400

63
Massimo Montanari, Alimentazione contadina nell alto medievo, Nápoles, 1979.
64
Vauban, Project de dixme royale, Paris

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PRODUTO QUANTIDADE CALO RIAS


pão 32 onças 1300
vinho uma tagra 1800
carne 2 arráteis 2400
total 5100

CALO RIAS I
PRODUTO QUANTIDADE/ GR.
pão 800 2704
carne 40 66 a 140]

peIxe 20 27 I

vinho 1,7 litros 910


total 860 3707/378165

Para tentarmos calcular a dieta quotidiana de alguns trabalhadores, iremos relacionar os


seus salários com os preços de alguns produtos.

PRODUTO PREÇO PRODUTO PREÇO


carneIro 6,3 rlkg pescada seca 21 r.lunidade
vaca 6,5 r.lkg. pelxota 5 r.lunidade
boi 6 r.lkg arroz 25 r.lkg
pescada 22 rlunidade vinho 4,1 r.llitro
sardinha 0,15 r.lunidade azel te 3 r.llitro
sável 41 r.lunidade mel 10,45 r.llitro
cação 9 r./unidade tngo 6 r.lkg
Analisemos uma ração tipo diária, para se poder comparar, não só a dieta de todos os
dias, como os valores que eram necessários para assegurar essa dieta.

PRODUTO PREÇO CALORIAS


1 kg. pão por dia 180 r./ mês 3000
1 litro de vinho/dia 123 r./mês 600
2 kg., carne de carneiro/semana 50,4 r./mês 980/dia66
2 peixotas por semana67 40 r./ mês 307/ dia
Total 393 r./mês

Se numa determinada situação estas dietas podem ser entendidas como largamente
suficientes e muito longe de uma subalimentação, noutras a dieta é pobre e perto da
pobreza.
Com um dispêndio de 393 r./mês esta ração era possível para os seguintes
65
Se era de porco ou de carneiro
66
A ração de carne e de 280 gramas por dia, durante os sete dias da semana. Cada 40 gramas de carne de carneiro tem 140
calorias.
67
Cada 20 gramas de peixotas tem 27 calorias. Cada peixota tem 800 gramas de peso médio. O que corresponde a 228
gramas por dia.

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rendimentos mensais: barbeiros (415r/mês), físicos (610 r./mês), cozinheiros (500r./mês),


carpinteiros (50 r/dia), almocreves (450 r/dia), ferradores (600 r./mês), tanoeiros (450r./mês).
Esta ração não era possível para tosadores (300 r./mês), cordoeiros (400 r./mês),
escudeiros (250 r./mês), lavadeiras (400 r./mês), porteiros (300 r./mês), boieiros (300 r./mês)
e forneiros (150 r./mês).
Se estes trabalhadores tivessem mulher e um filho, ou dois, a quantidade de comida
que era possível comprar com estes salários era largamente insuficiente. É muito difícil,
como dizíamos anteriormente, saber se cada um dos assalariados tinha uma horta com
couves, legumes, fruta e outros produtos vegetais; se tinha galinhas, patos ou frangãos, se
este salário era salário a «seco» ou salário «a de comer».
A asserção de Marc Bloch fica comprometida, em parte, porque analisando as rações
dos trabalhadores na época da qual vimos falando, chegamos a valores máximos de 8700
calorias por dia (ver quadro) e a médios de 4356 a 5520 calorias diárias. Não se pode dizer
que são valores que caracterizam uma subalimentação embora se fique longe das mesas
ricas de nobres, de ricos - homens e mesmo de frades de austeras ordens.
Convertendo a situação de uma ração diária a calorias, podemos considerar que um
trabalhador com um trabalho de esforço médio necessitava de 2400 calorias por dia e com
um esforço maior cerca de 4000 calorias. Estes valores eram habitualmente atingidos
através do consumo de cereais que proporcionavam uma abundância e, em certas situações,
uma superabundância de glúcidos. No entanto, lembremos que pouco se sabe sobre as
doses de sais minerais, proteínas, lípidos, etc. Também é necessário ter em conta que,
mesmo com uma ração normal, nem sempre era possível que ela estivesse disponível para
todos e todos os dias. Nos anos de carestia havia perturbações e a situação agravava-se,
muitas vezes até à condição de miséria. Tal como aconteceu com todos os finais de século:
XVI, XVII e XVIII, anos, de grande carestia que alteraram as dietas quotidianas. Na Beira
Litoral essas situações eram mais sentidas em relação aos cereais. Havia crise de pão mas,
em relação a outros produtos, todos os que resultavam de uma policultura intensiva e da
pesca ficavam longe da condição de escassez e a fome não se fazia sentir de maneira tão
marcante. O autoconsumo, característico desta região, evitava que a situação chegasse a
termos dramáticos. Uma couve pronta para a panela, um peixe a saltar para as brasas e a
criação de aves domésticas ao alcance da faca, resolveram muita situação de carestia:
Podemos perguntar novamente: o que comia, afinal, essa população, a maioria do
povo? Esta pergunta despertou sempre muita curiosidade e as respostas raramente têm
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saído da vulgata conhecida que tanto se fascina pelos banquetes e festins de reis e
senhores, como mostra comiseração pela magra alimentação do povo. Ir além disto é
perigoso porque não dispomos de elementos suficientes. O conhecimento das rações diárias
de um soldado, de um marinheiro pode gente que trabalha no campo por conta de outrem,
nem sempre permite generalizações por falta de representatividade. Podemos ter notas de
despesas de colégios, hospitais, asilos, quartéis, mas ficamos sempre longe da informação
correcta que pretendemos. Porque há sempre situações que não são contempladas nos
documentos: esquecimentos de notas, ofertas, doentes com tratamento especial, carências
temporárias de produtos, abundâncias, sazonais de outros produtos, maus anos agrícolas,
doenças no gado, escassez de cereais, tudo isto obriga a mudanças na alimentação do
quotidiano e dificulta uma certeza.
10.
Coimbra estava ligada, por um conjunto de vias, a Viseu, ao Porto, a Leiria, a Figueiró
dos Vinhos, a Santarém e a Lisboa. Todas estas vias eram percorridas por almocreves e
«caminhantes» e era através desses caminhos que transportavam, além de peixe e sal,
vinho e azeite. O azeite saía das terras coimbrãs em direcção à região de Entre - Douro e ao
Minho. O porto de Aveiro, devido à sua riqueza em sal e pescado, tinha relações comerciais
com diversas localidades do interior e até do litoral, como é o caso do Porto. Se as terras do
interior tinham uma necessidade absoluta de peixe e sal, as povoações do litoral esperavam
com inquietação a chegada dos produtos do interior como farinha para fabrico de pão, muitas
vezes pão já cozido, carne de porco, enchidos, carne de vaca, e queijos. Era prática, nos
portos de Aveiro e outros com pesca e sal, alguns intermediários irem ao caminho dos
almocreves para, a uma ou duas léguas de distância, trocarem os produtos do interior pelos
da costa, facto que afectava as populações e encarecia esses mesmos produtos vindos do
interior. Várias vezes houve petições para que a coroa impedisse tais tratos e nas Cortes de
Évora de 1390, elas foram apresentadas pelo povo da vila de Aveiro e da Esgueira que pedia
justiça.
O peixe fresco dos almocreves chegava em condições ao destino não só porque
compravam o melhor e o mais fresco como também pelos cuidados que tinham com as horas
de saída e a escolha de caminhos e veredas para encurtar distâncias. O peixe que era
vendido pelas peixeiras nem sempre passava pelo almotacé, pois furtavam-se ao pagamento
de impostos e iludiam a qualidade. Muitas vezes as regateiras molhavam o peixe para
parecer mais fresco, misturavam peixe de linha com peixe de rede, e misturavam o peixe
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estragado com o peixe fresco e, para ganhar mais uns reais, vendiam-no a olho, sem o
pesarem.
Os principais eixos situavam-se em Coimbra e Aveiro e enquanto Coimbra se
distinguia por estar situada numa encruzilhada de estradas em várias direcções, Aveiro,
situada no litoral, constituía um centro rico em peixe, em sargaço e em sal.
Outras instituições, como a Universidade de Coimbra 68, tinham almocreves que
recebiam privilégios reais. D. João lII, em 1538, concedeu privilégios aos almocreves que
iam buscar peixe para a Universidade, em atenção ao reitor, lentes, estudantes e oficiais.
Sempre que se dirigissem a qualquer porto de mar ou de rio onde houvesse pescado
compravam primeiro que qualquer outra pessoa a quantidade que fosse necessária para a
Universidade e pagavam pelos preços correntes. Para se entender melhor o que seria a
alimentação das populações no litoral e no interior da Beira Litoral, é necessário ter
conhecimento da importante actividade dos almocreves.
Quase todos os mosteiros, consoante a sua riqueza e condição, tinham um ou mais
almocreves para o seu serviço de abastecimento. Normalmente os reis isentavam o
almocreve do pagamento de peitas, fintas, talhas, pedidos, serviços de empréstimo,
condução de presos e transporte de dinheiro. Também estavam isentos de comparecer em
alardo ou de prestar serviço militar e não deviam dar hospedagem a ninguém na sua
residência. Os seus animais de sela ou de albarda apenas carregariam mercadorias para os
conventos. Por todas estas isenções pode-se imaginar a importância dos almocreves numa
aldeia, vila ou cidade, ou em instituições como os mosteiros. Os almocreves, quando
trabalhavam para as casas monásticas, tinham que se comprometer, perante o Evangelho, a
levarem as cargas exclusivamente para essas casas.
Os exemplos da alimentação que era dada aos trabalhadores por conta de outros dão-
nos indicação que a dieta de um trabalhador do litoral era quase igual às dos trabalhadores
do interior. Em alguns casos do interior o toucinho aparece com frequência, as mesmas com
que aparece o peixe nas terras do litoral. Fundamentalmente, como dizia Vauban, já citado,
pão, vinho, alguma carne e algum peixe, são os alimentos que unem as dietas dos
trabalhadores, do interior ou do litoral.
Os produtos circulavam e as riquezas do mar que o interior necessitava eram trocadas
por aquelas que o interior produzia através de uma agricultura que andou sempre ao sabor

68
H. C. Baquero Moreno, A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-regionais portuguesas nos
fins da Idade Média. Brasília Ed. Porto, 1979.

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das circunstâncias, uma agricultura bem diferente, da policultura intensiva do litoral. Por esta
razão as populações do litoral puderam usufruir de um regime alimentar mais rico e mais
completo que o regime das populações do interior. Podemos dizer que uma faixa alargada da
Beira Litoral teve uma alimentação mais variada e mais rica que as sub-regiões do interior da
província. Outra razão, igualmente importante, interessando apenas as sub-regiões
litorâneas, é o facto da proximidade do mar ter permitido ao homem retirar alimento fácil para
a sua subsistência. O homem tem sido durante todos os tempos tributário do seu habitat
natural e o homem da Beira Litoral é um exemplo dessa circunstância.
Não vale a pena perguntar quais eram as mercadorias mais importantes, se as que
seguiam da costa para o interior ou as que vinham do interior para a costa. Falamos, como é
evidente, apenas de alimentos e tanto umas como outras eram necessárias ao governo das
populações. No entanto, tanto, historiadores, como antropólogos, sociólogos, etnólogos e
outras gentes interessadas no homem e na sua vida, sempre tiveram um conceito que o
«interior» é lonjura, solidão, escassez, austeridade, dependência e atraso. Num país como
Portugal, com uma costa atlântica vastíssima, é natural que o mar tenha sido caminho para
as pessoas e coisas que chegaram. Foi do mar que vieram as mudanças e o
desenvolvimento, realidades que só mais tarde, sempre mais tarde, chegavam ao interior. No
entanto, durante muitos anos, foi atribuído à agricultura, necessariamente mais praticada no
interior que no litoral, o papel preponderante no fornecimento de produtos de que se
alimentavam as pessoas e que proporcionou o aparecimento de uma actividade comercial já
durante a primeira dinastia. Era a «Monarquia Agrária» de Lúcio de Azevedo 69 que Jaime
Cortesão iria contestar com a publicação de «Os factores democráticos na formação de
Portugal. Com esta obra, Cortesão transformou a análise do panorama agrário esboçado
anteriormente e provou que «A actividade marítima está não só nas raízes da nacionalidade,
donde sobe como a seiva para o tronco, mas é como que a linha medular que dá vigor e
unidade a toda a sua história»70. Para este historiador as vantagens geográficas oferecidas
pelo litoral português, com a abundância de abrigos, a penetração do mar nos estuários dos
rios, o número De portos que se dedicam ao comércio marítimo, favoreciam e condicionavam
na Idade Média o povoamento e a actividade económica. Os recortes da costa ofereciam
vastos terrenos propícios às salinas, águas - piscícolas, numerosos abrigos para a pesca e
cabotagem e teriam favorecido a distribuição dos habitantes assim como a fusão, numa larga
69
João Lúcio Azevedo, Épocas do Portugal Económico, Lisboa 1929.
70
Jaime Cortesão «Os factores democráticos na formação de Portugal», in História do Regime Republicano em Portugal,
Lisboa.

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escala, de duas actividades diferentes: a poli cultura e a marítima.


Um outro historiador contesta Lúcio de Azevedo, António Sérgio, que em 1929
assinalava pela primeira vez a importância da economia marítima durante a primeira dinastia.
Num prefácio que escreveu a um livro de Gilberto Freire 71, Sérgio dizia, «o que havia de
prometedor e de tónico na nossa raça vinha-lhe essencialmente do sal, do comércio marítimo
e da pesca.» António Sérgio, mais tarde, em 1941, na introdução à sua História de
Portugal72, afirmou: «o que nos permitiu prosperar no mundo não foi a terra pela sua
agricultura, mas sim a exploração do mar: o sal, a pesca, o comércio marítimo.» E afirmava
depois que na Idade Média a maioria das explorações do país consistia em riquezas tiradas
do mar.
11.
Só o estudo aturado de documentos permite o conhecimento da dieta alimentar de
uma determinada região, documentos que umas vezes nos dão indicação de produtos
alimentares e outras de objectos para a confecção desses mesmos produtos. Só tivemos o
primeiro livro de cozinha no último quartel do século XVII e não sabemos as maneiras de
cozinhar, apenas conhecemos os produtos que eram utilizados.
Considerando todos os elementos recolhidos, não podemos retirar grandes e definitivas
conclusões. Uma delas, no entanto, e de importância significativa, é a que nos permite
concluir que na região da Beira Litoral nunca houve miséria alimentar. Utilizando os ratios
habituais para determinar limiares de suficiência, pobreza e miséria, pode concluir-se que a
miséria nunca apareceu como fenómeno social que tivesse afligido, durante longos períodos,
a maioria da população. Uma outra conclusão, é possível: a partir dos meados do século XIV
podemos afirmar que a dieta das populações da Beira Litoral estava definitivamente fixada,
sem grandes alterações depois dessa data, a não ser aquelas que foram consequência da
Expansão. As variedades de peixes, de carnes, de legumes, de frutas que essas populações
comeram são as mesmas que fazem parte, hoje, da nossa dieta alimentar. Refira-se o
aparecimento de três produtos que só bastante mais tarde se divulgaram: açafrão, pimenta e
açúcar. Na tentativa de se poder concluir sobre as características fundamentais da
alimentação na Beira Litoral, consultaram-se forais, privilégios, ordenações, cartas de
instituições de concelhos, vários cartórios, arquivos paroquiais, listas de portagens,
instituição de feiras, livros de despesas de várias instituições, como hospitais, quartéis,

71
Gilberto Freire, O Mundo que o Português Criou, Rio de Janeiro
72
António Sérgio, História de Portugal, Lisboa, 1941.

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conventos e seminários. Nada do que foi recolhido permite uma sistematização de longa
duração que nos leve a afirmar com rigor como comeram, através dos tempos, as gentes da
região da Beira Litoral. O que foi estudado apenas pode dar informação parcial, embora se
tenham verificado situações semelhantes em períodos distintos. Algumas consultas a
documentos do século XIV tiveram como resultado a constatação de factos e de realidades
parecidas ou iguais a algumas retiradas de documentação dos séculos XV, XVI e XVII. As
notas retiradas da investigação a documentos dos séculos XVIII e XIX, confirmam as
situações de épocas anteriores. Voltamos a afirmar que no regime alimentar das populações
da Beira Litoral não se manifestam alterações significativas desde o século XIV.
Desde os tempos mais remotos que uma situação de autoconsumo se desenvolveu na
região que hoje é Beira Litoral e tem sido essa situação que tem condicionado, até aos
nossos dias, a característica fundamental da dieta desta região. Por razões geográficas,
climáticas e pela determinação das populações, instalou-se uma policultura intensiva que
permitiu um regime de auto-suficiência. O homem tem sido durante todos os tempos
tributário do seu habitat natural e o homem da Beira Litoral é um exemplo dessa
circunstância.
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