Você está na página 1de 5

Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional de Braga

Departamento de Filosofia – Doutoramento em Filosofia da Religião


Disciplina: Imanência e Transcendência no Pensamento Português
Orientador: Professor Dr. José Gama
Orientando: Adriano Oliveira

Síntese dos textos de Fernando Pessoa relacionados à novíssima poesia portuguesa1

Afonso Rocha, na introdução de sua obra A filosofia da religião em Portugal (1850-


1910)2, fala da segunda metade do século XIX como o começo de um tempo de significativa
transformação e evolução do pensamento filosófico português. Tal mudança representou uma
maior aproximação e abertura aos novos horizontes de conhecimento, às abordagens
científicas e às correntes filosóficas. Ou seja, configurou-se como uma espécie de afinação e
ou harmonização tardia do pensamento lusitano ao modo mais próprio de pensar e refletir da
modernidade3.
Levando em consideração aqui somente as alterações percebidas no espaço do
relacionamento entre razão e fé, é possível afirmar que a entrada do pensamento filosófico
português no período moderno significou um profundo rompimento com as maneiras
tradicionais de compreender Deus e o religioso. Isto implicou numa passagem da concepção
da religião de matriz revelada, institucional e hierárquica a uma visão de Deus e da religião
fundamentada na razão e na perspectiva mística, desvinculada do estado e carente de
elementos institucionais4.
Ao que parece, os artigos escritos por Fernando Pessoa, relacionados à novíssima
poesia portuguesa, que foram publicados no decorrer de 1912, podem ser entendidos na
esteira do movimento de ruptura acenado anteriormente. De modo bastante resumido e direto,

                                                                                                               
1
Os textos aos quais nos referimos são: A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada (05/1912);
Reincidindo (05/1912); Uma réplica (09/1912); A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico (09-
12/1912). Exceto o terceiro, que foi impresso no jornal República, os textos foram publicados originalmente em
A águia. As versões utilizadas aqui encontram-se em QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando
Pessoa: textos de intervenção social e cultural. Lisboa: Publicações Europa-América, 1986, pp. 17-64.
2
Cf.: ROCHA, Afonso. A filosofia da religião em Portugal (1850-1910). Porto: UCP, 2013.
3
Cf.: ROCHA, A. A filosofia da religião em Portugal (1850-1910). pp. 7-10.
4
“(...) o pensamento filosófico português (...) se apresenta como um intrépido e inquebrantável defensor, quer
de uma sociedade baseada na racionalidade positivo-científica, na liberdade e no progresso, quer numa
religião de liberdade de consciência e de tolerância, religião esta que, no seu entender, só era possível enquanto
religião mística e da razão, por conseguinte, uma religião sem hierarquia e sem normas, tão alheia à revelação
positiva e ao caráter institucional e organizado como ao dogma da existência de uma religião verdadeira única e
universal, presentificada na Igreja de Roma.” ROCHA, A. A filosofia da religião em Portugal (1850-1910). pp.
10-11.

1/5
o que Pessoa almeja é demonstrar, ou melhor, provar aos seus interlocutores o valor e a
significação da produção poética portuguesa emergida no final do século XIX e que se
encontrava em efervescente evolução. Segundo o autor, este fenômeno não era um caso
isolado, mas sim uma corrente literária própria portadora de capacidade criativa,
nacionalidade, originalidade, proeminentes escritores e que aguardava o aparecimento de uma
grande figura poética, um super-Camões5.
No intuito de realizar o seu empreendimento, Fernando Pessoa propõe-se avaliar a
nova poesia portuguesa a partir de seus aspectos sociológicos, literários e psicológicos, tendo
como paradigmas de sua análise comparativa os períodos máximos da literatura poética
inglesa e francesa. No que tange aos resultados das considerações a partir da sociologia, a
renascença portuguesa é, para Pessoa, um movimento realmente nacional e único em termos
de ideias, sentimentos e modos de expressão, bem como traz consigo autores extremados.
Ademais, emerge no interior de uma época histórica pobre e de deprimida vida social, fato
que é percebido como sinal prefigurativo de um futuro glorioso para a nação lusitana6.

“(...) a actual corrente literária portuguesa é completa e absolutamente o princípio


de uma corrente literária, que que precedem as grandes épocas criadoras das
grandes nações de quem a civilização é filha. (...) Prepara-se em Portugal uma
renascença extraordinária e um ressurgimento assombroso.”7

Em termos de abordagem literária, Fernando Pessoa declara que tanto o isabelianismo


quanto o romantismo possuem três elementos que os distinguem em suas relevâncias poéticas,
a saber, a novidade, a elevação e a grandeza. Destarte, o autor afirma a absoluta analogia entre
as novas produções portuguesas e as referidas inglesas e francesas. Além disso, acrescenta
que Portugal se encontra em preparação para um período poético maximamente criador e para
uma profunda transformação social. Novamente, anuncia o aparecimento iminente do grande
poeta e aponta o novo republicanismo como realidade política que instaurará o célebre porvir
português8.
A aproximação de natureza psicológica é, por assim dizer, a mais detalhada e densa,
até porque é nela que os elementos filosóficos, metafísicos e religiosos são melhor
destacados. Num tipo de avaliação estética, Fernando Pessoa reconhece que o conteúdo
espiritual da produção literária em tela é vago, pois assume o indefinido como tema constante;
sutil, enquanto traduz a sensação simples em expressão vivida, minuciosa e detalhada; e

                                                                                                               
5
Cf.: QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 23-24.
6
Cf.: QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 22-24.
7
QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 24.
8
Cf.: QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 31-35.

2/5
complexo, à medida em que descreve algo simples por uma expressão que o complica, donde
se tem a intelectualização da emoção e a emocionalização da ideia. Ao que parece, a sutileza
e a complexidade presentes na poesia são indicativos da intensa vida interior e marcas de uma
poesia de alma 9 . Diante disso, o autor assevera que a novíssima poesia portuguesa é
espiritualmente mais complexa, excede o renascimento e, por conseguinte, ultrapassa o
isabelianismo. Os escritores da renascença portuguesa buscam também suas inspirações na
natureza. Neste sentido, suas realizações poéticas assumem uma perspectiva bastante objetiva,
incluindo os elementos de nitidez, plasticidade e imaginação10.
Embora o novo movimento traga consigo as importantes notas da subjetividade e da
objetividade, Pessoa considera que o auge do equilíbrio entre estas duas instâncias não foi
alcançado. Aliás, ele percebe nisto como outro indício de que o poeta português supremo está
prestes a chegar e ele levará a cabo tal tarefa. Além da questão do balanceamento, o autor
português põe em relevo os aspectos da mútua penetração e da influência recíproca entre as
dimensões de subjetividade e objetividade. Segundo ele, isto tem produzido, na nova poesia,
uma marca original e de profunda significação filosófico-metafísica que é a espiritualização
da natureza e a materizalização do espírito, incidindo numa comunhão superpanteísta.
Destarte, a produção poética da renascença portuguesa vem se definindo como poesia
metafísica e, enquanto portadora desta característica peculiar, revela-se como poesia
religiosa11.
Perante a dificuldade de precisar a identidade metafísico-espiritual da renascença
portuguesa, Pessoa decide considerar o problema no horizonte de uma análise diferenciada, a
partir do renascimento, vinculando, poeticamente, Portugal ao contexto da civilização
europeia12. Realizado o percurso analítico, o autor reconhece o caminhar evolutivo, em solo
europeu, da alma poética, que vai do mais simples ao mais complexo. Ou seja, a passagem do
espiritualismo ao panteísmo e deste ao transcendentalismo, para, então, desembocar no
transcendentalismo panteísta. Este último entendido como o sistema englobante, que
ultrapassa os anteriores e que tem a contradição como um de seus elementos fundamentais e
constituintes13.

                                                                                                               
9
“O característico principal da ideação complexa – o encontrar em tudo um além – é justamente a mais notável
e original feição da nova poesia portuguesa.” QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. p. 42.
10
Cf.: QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 37-44.
11
Cf.: QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 43-45.
12
Sobre os passos assumidos, confira QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 46-55.
13
Cf. QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 52-54.

3/5
Numa espécie de caracterização geral, Fernando Pessoa identifica o espiritualismo ao
renascimento, o panteísmo ao romantismo e assevera a presença do sentimento
transcendentalista nos textos poéticos do escritor português Antero Quental14. Em seguida,
certo de que transcendentalismo se instalou, assim, em Portugal, bem como tendo por
fundamento o fenômeno de complexificação espiritual da alma poética, o autor declara a
manifestação plena do transcendentalismo panteísta nos textos e nos poetas da novíssima
poesia, estabelecendo, portanto, a identidade e a matriz metafísico-espiritual-religiosa da
renascença portuguesa15.
“(...) materialização do espírito e espiritualização da matéria, choupos d’alma,
quedas são ascensões, folhas que tombam que são almas que sobem – não é preciso
mais, repetimos. Eis, em seu plano emotivo, o transcendentalismo panteísta. Quanto
mais se analisa, mas claramente isto se revela. Para os nossos novos poetas, uma
pedra é, ao mesmo tempo, realmente uma pedra, e realmente um espírito, isto é,
irrealmente uma pedra... (...) E quais são, enfim, as conclusões últimas de quanto
neste artigo expusemos? São aquelas em que através de todos os nossos artigos
temos insistido. Se a alma portuguesa, representada pelos seus poetas, encarna
neste momento a alma recém-nada (sic) da futura civilização europeia, é que essa
futura civilização europeia será uma civilização lusitana. Primeiro, porém,
consoante todas as analogias no-lo impõem, a alma portuguesa atingirá em poesia
o grau correspondente à altura a que em filosofia já está erguida. Deve estar para
muito breve, portanto, o aparecimento do poeta supremo da nossa raça, e, ousando
tirar a verdadeira conclusão que se nos impõe, pelos argumentos que o leitor já viu,
o poeta supremo da Europa, de todos os tempos.”16

É interessante considerar ainda que Fernando Pessoa fala das possíveis repercussões
do transcendentalismo panteísta na nova configuração sociológica da nação lusitana. Da
mesma maneira que na poesia, ela será marcada pela originalidade e pela habilidade em
conciliar de elementos contraditórios. Ou seja, a sociedade portuguesa se instalará como algo
de fusão entre o religioso e o político, o democrático e o aristocrático, o tradicional e o
vanguardista, tendo em vista a criação de um modelo civilizacional completamente novo. Ao
mesmo tempo, ela se colocará totalmente distante do cristianismo, sobretudo em sua versão
católica, e das formas modernas de governo e dos tipos tradicionais de articulação social. No
contexto da análise comparativa elaborada por Pessoa, este inaudito ordenamento da nação

                                                                                                               
14
Conforme Pessoa, no sentimento transcendentalista, “(...) o indivíduo sente-se, como panteísta, parte de um
Todo, mas com a diferença que, para ele, esse Todo é sentido como irreal, como ilusório. Decorre daqui que o
poeta transcendentalista (materialista ou espiritualista) fatalmente será um poeta pessimista. Mesmo que,
transcendentalista espiritualista, conceba vagamente espiritual o Transcendente, esse Transcendente, por sua
própria, concebida, natureza, é sentido como mistério, e mesmo onde levanta abate.” QUADROS, A. (Org.)
Obra em prosa de Fernando Pessoa. p. 55.
15
Cf. QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 53-55.
16
QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 55-56.

4/5
lusitana deve ser entendido como uma espécie de sequência natural do surgimento de uma
corrente poética altamente criativa que produz seus impactos culturais e civilizacionais17.
Encerrada a exposição das considerações de Fernando Pessoa sobre a renascença
portuguesa, admitimos que não é fácil precisar as possíveis questões filosóficas subjacentes
ao texto e ou as bases argumentativas do seu autor. Até porque os escritos tratados se
configuram como a apresentação e a defesa de um movimento literário e seus princípios
norteadores. Não obstante, certos aspectos se sobressaem: a) a defesa apologética da
emergência de um movimento poético genuinamente português, com potencial criativo e
impacto civilizacional singulares; b) a afirmação do transcendentalismo panteísta enquanto
arcabouço metafísico e religioso da renascença portuguesa; c) o anúncio profético do
surgimento do supremo poeta português e europeu; d) a certificação deveras esperançosa da
instalação de um novo e glorioso tempo na história lusitana.
Gostaríamos de afirmar ainda aqui que as posições assumidas e os argumentos
apresentados por Pessoa parecem justificar a “inclusão” dos textos sobre a nova poesia
portuguesa na esteira do movimento de ruptura com a tradição e abertura à modernidade,
acenado logo nos dois parágrafos introdutórios deste texto. Sobretudo, quando se tem em
vista as questões de natureza mística e religiosa, o empenho pelo afastamento do cristianismo
e a percepção da época - final do XIX e princípio do XX - como período revolucionário,
marcadamente, original e otimista.
Para finalizar, existem alguns pontos tratados por Fernando Pessoa nos textos de 1912
que, em razão do distanciamento temporal, seria interessante verificar as suas realizações. O
primeiro e mais óbvio é o aparecimento do grande poeta ou supra-Camões. O segundo diz
respeito à elevação da sociedade portuguesa e sua estadia no futuro glorioso. O último tem a
ver com a ruptura com o modelo espiritual cristão católico e a implantação da nova ordem
espiritual sem hierarquias ou instituições. A análise atual destas realidades auxiliaria na
identificação do Fernando Pessoa - anunciador e defensor da renascença portuguesa - como
visionário ou não.

                                                                                                               
17
Cf. QUADROS, A. (Org.) Obra em prosa de Fernando Pessoa. pp. 56-57.

5/5

Você também pode gostar