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A Comunhão na mão

A pandemia do coronavírus levou a uma disputa acirrada sobre qual forma de receber a comunhão
seria mais contagiosa: diretamente na boca ou na mão do fiel. Medidas de bispos, notadamente
exageradas, vêm obrigando a comunhão somente pelas mãos, com a presunção de que na boca o
contágio seria maior. Consequência quase lógica desse debate é o reaparecimento das discussões
sobre se a comunhão na mão está de acordo com a prática da Igreja antiga, se ela é
intrinsecamente má e se foi conveniente e prudencialmente boa a introdução da comunhão na
mão na Igreja a partir do final da década de 60. Vamos tratar sobre cada um desses pontos nesse
artigo.

A introdução da comunhão na mão foi conveniente e prudencialmente boa ?

A verdade é que a comunhão na mão foi introduzida na Igreja Católica como um ato de rebelião.
Quem se debruçar nas páginas de Michael Davies em sua obra A Missa Nova de Paulo VI irá
conhecer todo o histórico dessa gênese assustadora. Escreve o autor:

"Começou na Holanda como um ato arbitrário de desafio à autoridade legítima.


Normas litúrgicas obrigatórias foram desobedecidas e a Comunhão foi distribuída
em algumas igrejas católicas da maneira que, desde a Reforma, passou a ser
caracteristicamente protestante. Foi um abuso e deveria ter sido tratado como tal
pelos bispos, de maneira imediata e efetiva. Padres que se recusassem a se
conformar com a lei da Igreja deviam ter sido suspensos. Essa ação não foi
tomada, e a prática espalhou-se na Alemanha, Bélgica e França. Nesses países, os
bispos também traíram seus ofícios e permitiram que o abuso continuasse sem
contenção. Assim, uma prática que já tinha se tornado inaceitável para os
católicos, por causa de sua adoção por protestantes para simbolizar sua rejeição
eucarístico católico, veio a ser duplamente inaceitável quando se tornou um
símbolo da rejeição da autoridade eclesiástica por clérigos liberais. As
consequências dessa rebelião tornaram tão sérias, que o Papa consultou os bispos
do mundo e, após obter suas opiniões, promulgou a Instrução Memoriale Domini
em 1969". (A Missa Nova de Paulo VI, pp. 400-401).

Que a comunhão na mão foi adotada pelos protestantes para simbolizar sua rejeição à presença
real de Cristo na Eucaristia é uma verdade inconteste. O protestante Martin Bucer (1491 - 1551)
expressou o consenso protestante nesse sentido em sua obra Censura. Suas palavra são claras:

"De fato, não tenho a menor dúvida de que o costume de não colocar esses
sacramentos nas mãos dos fiéis tenha sido introduzido a partir de uma dupla
superstição: primeiramente a falsa honra que quiseram mostrar para com esse
sacramento, e em segundo lugar a odienta arrogância dos padres que reivindicam
para si uma santidade maior que a do povo de Cristo, pelo poder do óleo da
consagração".
São Paulo VI consultou os bispos do mundo sobre o tema da comunhão na mão, e a resposta dos
bispos foi consideravelmente contrária a essa inovação, como podemos ver na Instrução
Memoriale Domini de 1969:

1. Você acha que se deve dar atenção ao desejo de que, além da maneira
tradicional, deve ser admitido o ritual de recebimento da Santa Comunhão nas
mãos?

Sim: 597

Não: 1.233

Sim, mas com reservas: 315

Votos inválidos: 20

2. É de seu desejo que esse novo ritual seja primeiramente experimentado em


pequenas comunidades, com o consentimento dos bispos?

Sim: 751

Não: 1.215

Votos inválidos: 70

3. Você acha que os fiéis receberão bem esse novo ritual, após uma adequada
preparação catequética?

Sim: 835

Não: 1.185

Votos inválidos: 128

A própria Instrução de São Paulo VI foi uma defesa enérgica ao mantimento da maneira tradicional
de receber à Sagrada Comunhão. Entre as razões para o mantimento da comunhão na boca
argumenta o Papa que essa tradição foi um progresso importante litúrgico, intrinsecamente
relacionado à compreensão mais profunda da presença real e da reverência devida a esse
sacramento, vejamos:

"Posteriormente, com uma compreensão mais profunda da verdade do mistério


eucarístico, de seu poder e da presença de Cristo nele, sobreveio um maior
sentimento de reverência para com esse sacramento e sentiu-se que se
demandava uma maior humildade quando de seu recebimento. Foi, portanto,
estabelecido o costume do ministro colocar uma partícula de pão consagrado
sobre a língua do comungante".
Motivo pelo que conclui: "Esse método de distribuição da Santa Comunhão deve ser conservado,
levando-se em consideração a situação atual da Igreja em todo o mundo, não apenas porque
possui por trás de si muitos séculos de tradição, mas especialmente porque expressa a reverência
do fiel pela Eucaristia".

Por mais que São Paulo VI se expressasse pelo mantimento da prática da comunhão na boca, ele
abriu uma brecha sem precedente no documento surpracitado. Ele permitiu que as Conferências
Episcopais pudessem decidir sobre o tema com maioria de dois terços, nos lugares onde a
comunhão na mão já tinha se desenvolvido, e determinou que mandassem suas decisões para a
confirmação de Roma. A Santa Sé julgaria conveniente ou não dar um indulto para que a prática da
comunhão na mão pudesse ser seguida regularmente em cada região. Os indultos da Santa Sé se
multiplicaram, pois os abusos também. A comunhão na mão se generalizou e, por outro lado, a
comunhão na boca hoje em dia é quase clandestina quando não negada por muitos padres para o
maior constrangimento do fiel... Em resumo: a prática da comunhão na mão se instalou contra os
desejos de São Paulo VI, mas por conta de abusos e pressões dos bispos ao redor do mundo.

E mais: a instrução Memoriale Domini não foi publicada em vários países, portanto, os fiéis
desconheciam os reais sentimentos do Papa sobre a questão, se fiando sobre a propaganda
"oficial" que lhe foi passada pelas autoridades.

É difícil não pensar que essa prática da comunhão na mão deu ocasião para o "obscurecimento" da
reta fé sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, obscurecimento que foi observado (não a
ocasião que tratamos) por São João Paulo II décadas depois:

"A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente. De facto, há lugares onde se
verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num
contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a
recta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes
transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado
do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor
de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do
sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes
obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do
anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecuménicas que, embora bem
intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à
Igreja para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo
isto?" (Encíclica Ecclesia de Eucharistia).

Por todo o exposto parece que podemos responder afirmativamente a questão colocada: sim, a
introdução da comunhão na mão foi algo inconveniente, além disso, prudencialmente ruim, um
fracasso.

Comunhão na mão e Igreja antiga


O outro ponto é discutir se a comunhão na mão foi praticada no passado. Muitos tradicionalistas
negam esse ponto. No entanto, é preciso franqueza ao lidar com esse tema. Não se pode mutilar a
história da Igreja para que se conforme com os nossos desejos e nem essa questão da prática no
passado é tão relevante para uma crítica à introdução da comunhão na mão nos dias atuais. Como
diz o tradicionalista Michael Davies: "Os interessados em defender a prática tradicional devem se
concentrar em expor a falácia desse argumento e não devem ser desviados para discussões sobre
se a prática da Comunhão na mão já foi universal, quanto tempo durou, quão genuínos foram os
textos apresentados para provar que foi uma vez o costume, ou mesmo as razões pelas quais foi
abandonado em favor da comunhão na língua dos leigos. . . . A questão-chave do debate sobre a
imposição crescente da Comunhão na mão não é se ela já foi difundida na Igreja primitiva, mas se
deveria ser introduzida nos dias atuais".

É difícil negar que a comunhão na mão foi praticada no passado. Pode-se discutir se ela foi
praticada tal qual é praticada nos dias atuais, mas que foi praticada é consenso ao menos entre os
especialistas e parece clara nos escritos antigos.

Seguem alguns testemunhos da Igreja antiga sobre a prática:

Há uma inscrição encontrada na Ásia Menor, dita "de Pectório" e datada do século II, que diz:

"Ó estirpe divina do Peixe Celeste... recebe o alimento doce como o mel do
Salvador dos santos; come segundo a tua fome; traze o Peixe nas mãos".

Tertuliano repreendeu cristãos que tinham sacrificado aos deuses, dizendo que tais cristãos se
atreviam a "estender ao corpo do Senhor as mesmas mãos que haviam levado corpos (carnes
imoladas) aos demônios... O mãos dignas de ser amputadas!" (De idol. 7).

Ainda escreve:

“Portanto, a Eucaristia faz cessar o obséquio oferecido a Deus ou antes o confirma? Não será mais
solene tua estação se estás de pé junto ao altar de Deus? Recebido do Senhor e reservado, se
salvam ambas as coisas: a participação do sacrifício e o cumprimento do dever (A Oração, c. 6, 19)

Jesús Solano comenta a passagem acima:

“A solução que oferece Tertuliano para os que desejam levar o rigor do jejum até esse extremo é
que recebam o corpo do Senhor na mão e o guardem para comungar mais tarde, depois da hora
nona. Naturalmente que a comunhão não se recebia então com uma pequena e ligeiríssima
partícula, como agora o fazemos... Aparece aqui o uso litúrgico da comunhão primitiva, que era
receber o comungante na mão o corpo do Senhor; logo bebia do cálice consagrado". (Textos
eucharisticos primitivos edicion bilingue de los contenidos en la Sagrada Escritura y los Santos
Padres, B.A.C, 1952, vol. 1, p. 92).

Santo Hipólito diz:

"Isto também nos ensinou primeiramente o profeta Moisés por meio da páscoa e do cordeiro
imolado; estabeleceu que com o sangue se manchasse o dintel e as duas jambas (cf. Ex. 12,22),
mostrando-nos a fé que agora temos, que nos foi dada pelo cordeiro perfeito, com o qual,
assinalando nossa frente com nossas mãos, seremos guardados de todos os que nos querem
matar".(Tradição Apostólica, Dix; Funk, 119).

Jesus Solano comenta o trecho acima:

“Este texto nos parece eucarístico. Algumas linhas antes fala de "o cordeiro perfeito", e o relaciona
com "o pão que desce do céu". Da Eucaristia fez menção várias vezes neste mesmo escrito.
Ademais conheceremos o costume de receber na mão a Eucaristia e o tocar a frente e as várias
partes da cara". (ibid. p 123).

É famosa a descrição de São Cirilo de Jerusalém sobre o tema:

"Quando te aproximares, não caminhes com as mãos estendidas ou os dedos


separados, faça com a mão esquerda um trono para a mão direita, que está para
receber o Rei; e logo, com a palma da mão, forma um recipiente; recolhe o corpo
do Senhor; e dize: 'Amém'. A seguir santifica com todo o cuidado teus olhos pelo
contato do Corpo Sagrado, e toma-o. Contudo cuida de que nada caia por terra,
pois, o que caísse, tu o perderias como se fossem teus próprios membros.
Responde-me: se alguém te houvesse dado ouro em pó, não o guardarias com
todo o esmero e não tomarias cuidado para que não te caísse das mãos e para que
nada se perdesse? Sendo assim, não deves com muito esmero cuidar de que não
caia nem uma migalha daquilo que é mais precioso do que o ouro e as pedras
preciosas?" (Catequese Mistagógica V,21s).

Muitos tradicionalistas negam a autenticidade do escrito acima... Mas muitos autores católicos
defenderam sua autenticidade. Temos no site um artigo de Salaville, do ano de 1915, que
apresenta muitas razões a favor da autenticidade da obra:
http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/895-sobre-a-
autenticidade-das-leituras-catequeticas-de-cirilo-de-jerusalem

São Basílio:

"E mesmo na igreja, quando o sacerdote dá a porção, o destinatário toma com


total poder sobre ele e o leva aos lábios com a própria mão".

http://www.newadvent.org/fathers/3202093.htm

São João Crisóstomo:

“Diga-me, você escolheria ir ao sacrifício com as mãos não lavadas? Suponho que
não. Mas você prefere não vir, do que vir com as mãos sujas. E então, tão
escrupuloso como você é nesta pequena questão, você vem com a alma suja e se
atreve a tocá-la? E, no entanto, as mãos a seguram por um tempo, enquanto na
alma ela se dissolve completamente. (João Crisóstomo Homilia 3 sobre Efésios
(347-407 aC)).

São João Damasceno:

“Vamos nos aproximar dela com um desejo ardente, e com as mãos na forma da
cruzes, recebamos o corpo do Crucificado. : e apliquemos nossos olhos, lábios,
sobrancelhas e participemos do carvão divino ”(John Damascene Uma Exposição
do Livro da Fé 4 Ch 13 (676-749 aC)).

Eusébio de Cesaréia:

“Mas não me atrevi a fazer isso; e disse que sua longa comunhão era suficiente
para isso. Pois não ousaria renovar desde o princípio aquele que ouvira
agradecimentos e se juntara à repetição do Amém; que estavam de pé junto à
mesa e estenderam as mãos para receber a comida abençoada; e quem a recebeu,
e participou por muito tempo do corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. ”
(Livro 7 da História da Igreja de Eusébio (265-340 aC))

Santo Agostinho:

“A isto podemos acrescentar que me refiro a um homem que morava com você,
cujo aniversário você costumava celebrar com tão grandes assembléias, com quem
você se uniu no beijo da paz nos sacramentos, em cujas mãos você colocou a
Eucaristia a quem, por sua vez, estendeu suas mãos para recebê-la de seu
ministério ”(livro Agostinho contra Petiliano, o Donatista 2 cap 23, par 53 (354-
430))

São Dionísio de Alexandria, escrevendo para um dos papas de seu tempo, fala enfaticamente de
"alguém que ficou de pé junto à mesa e estendeu a mão para receber o Alimento Santo" (Eusébio,
Hist. Eccl., VII, ix)

Venerável Beda:

"No entanto", disse ele, "traga-me a Eucaristia." Tendo recebido isto em sua
mão,. . . ( Venerável Bede [672-735], História Eclesiástica da Inglaterra , Livro 4,
cap. 24)

São Cesário de Arles (470-542):

“Todos os homens que desejem comungar, devem lavar as suas próprias mãos. E
todas as mulheres devem trazer um pano de linho, sobre o qual recebem o Corpo
de Cristo” (Sermo227, 5 (PL 39, 2168))

Vejamos agora o que os especialistas e liturgistas falam sobre a questão:


Philip Schaff:

“Os elementos foram colocados nas mãos (não na boca) de cada comunicante
pelos clérigos presentes, ou, segundo Justino, pelos diáconos, em meio ao canto
de salmos pela congregação (Salmo 34), com as palavras: "O corpo de Cristo;" "O
sangue de Cristo, o cálice da vida;" para cada um dos quais o destinatário
respondeu "Amém". (eminente historiador da Igreja Philip Schaff , História da
Igreja Cristã: Cristianismo Ante Niceno: 100-325 AD [Vol. II], Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1976, quinta edição de 1889, capítulo cinco: “Adoração
cristã” : § 68. Celebração da Eucaristia , 238-239)

Enciclopédia Católica:

"Que, na Igreja primitiva, os fiéis se levantaram ao receber nas mãos a partícula


consagrada dificilmente pode ser questionada. . . . São Dionísio de Alexandria [d.
265], escrevendo para um dos papas de seu tempo, fala enfaticamente de "alguém
que ficou de pé junto à mesa e estendeu a mão para receber o Alimento Santo"
( Eusébio [263-339], Hist. Eccl ., VII, ix). O costume de colocar a partícula sagrada
na boca, e não na mão do comunicante, data em Roma a partir do sexto e na Gália,
no século nono (Van der Stappen, IV, 227; cf. São Greg., Dial ., I, III, c. Iii).
( Enciclopédia Católica : "Genuflexão" )

De Augustine Through the Ages: An Encyclopedia:

"A distribuição do pão e do vinho ocorreu no trilho da capela-mor, onde o povo se


adiantou para levantar e receber das mãos do bispo e / ou diáconos. O pão foi
colocado nas mãos unidas com as palavras 'O Corpo de Cristo', às quais o
destinatário respondeu: 'Amém'. . . O copo foi oferecido a cada um por outro
ministro, com uma troca semelhante. (de Augustine Through the Ages: An
Encyclopedia , editor geral: Allan D. Fitzgerald, Grand Rapids, Michigan: WB
Eerdmans Pub. Co., 1999; "Liturgia Eucarística", p. 338; este artigo escrito por
Robin M. Jensen e J. Patout Burns).

`Padre Lidvino Santini:

"Outro fato, não menos singular, era que naqueles tempos os fiéis comungavam
pelas próprias mãos. O sacerdote depunha nas palmas das mãos a hóstia; as
mulheres tinham aberto a mão um pano branco, dominical, porque destinado a
receber o corpo do Senhor - Domini." (Lidvino Santini S.J, A Santa Missa na História
e na Mística, Vozes, Ed. Vozes, Petrópolis RJ. 1948, p. 352)

Dom Antonio Coelho:

"Excepcionalmente, porém, clérigos e fiéis comungavam fora da Liturgia solene,


mesmo em casa. S. Justino já menciona o costume de se levar a Comunhão aos
ausentes. Os que viviam longe, os que estavam retidos em suas casas pelos seus
trabalhos, os solitários, recebiam no domicílio o pão eucarístico e por vezes
também o vinho consagrado, que lhes era levado, ou que eles mesmos trouxeram
da última sinaxe litúrgica e conservaram cuidadosamente. Inútil dizer que para
estas Comunhões fora da Igreja não havia nenhum ritual prescrito. É de crer que
cada um imitasse o que fazia na Missa. Assim tomariam o Pão consagrado nas
mãos e pronunciando com fé as palavras da Liturgia: Corpus Domini, Amen,
comungariam reverentemente as sagradas espécies, acompanhando este rito com
as preces que a sua devoção lhes inspirasse. (Dom Antonio Coelho, Curso de
Liturgia Romana, ano 1950, p. 529).

Fr. Amiot:

"Depois, é a vez dos fiéis. O papa deixa o trono e dá ele próprio a comunhão à
nobreza e o arquidiácono, o cálice; voltando ao trono, dá a comunhão aos
ministros inferiores ·elo altar. A mesma função é desempenhada em r elação ao
povo, pelos sacerdotes e diáconos; os que não comungam podem retirar-se.
Recebe-se a Eucaristia ele pé, na mão direita colocada sobre a esquerda e, para as
mulheres, coberta a mão por um véu. Cada qual se dá a comunhão sob a espécie
do pão, depois, num cálice que o diácono apresenta, toma por meio de um
pequeno tubo, um pouco de vinho comum ao qual se juntaram algumas gotas do
precioso Sangue. Já se esboça a tendência à comunhão sob uma só espécie". (Fr.
Amiot, A Missa e sua História, 1958, p. 22)

É fácil estabelecer, portanto, que a comunhão na mão foi praticada no passado.

É duvidoso que a forma de comunhão atual seja idêntica a do passado. Pelos escritos acima, vemos
que a comunhão na mão existia concomitante a outros costumes: purificação das mãos, tocar os
órgãos dos sentidos com a hóstia e as mulheres traziam um pano de linho.

É claro que os defensores da comunhão na mão podem argumentar que é controvertido que tais
costumes foram praticados desde o início da Igreja ou que foram tão gerais. Pode-se citar que
Jungmann parece implicar que existe alguma controvérsia sobre o assunto da purificação das
mãos: “Não é claro se essa lavação das mãos foi exigida somente em casos de necessidade ou se
ela era uma norma ritual fixa: o último é provável, pois sempre era costume antigo lavar as mãos
antes da oração”. (Missarum sollemnia, 1947, p. 820).

Na mesma página, Jungmann restringe a obrigatoriedade do uso do pano de linho para mulheres
em Gália: “Na Gália, mulheres não tinham permissão de receber o corpo de Cristo na mão nua,
precisavam cobri-la com um paninho branco”. Além disso, o Sínodo de Trullo anatematiza qualquer
um que viesse a receber a Eucaristia com algum tipo de material ao invés de sua mão . Embora seja
verdade que esse Sínodo não foi aceito por Roma, ele demonstra o costume da igreja de
Constantinopla. O problema do referido Sínodo não foi os costumes apontados nos cânones, mas o
fato de querer anatematizar os costumes divergentes de Roma, demonstrando uma atitude hostil
para com o Ocidente1.

Tocar a hóstia com os olhos não parece que foi uma prática universal, embora por algum tempo
difundida em vários lugares.

Mas tudo isso comprova que a prática da comunhão na mão foi introduzida goela abaixo sem que
seus proponentes estivessem preocupados com essas dúvidas razoáveis. Em última análise: É
possível (embora incerto, sejamos honestos) que a prática da comunhão na mão atual só possua a
prática dos protestantes como antecedente histórico de maneira idêntica. Tudo isso é suficiente
para somar os argumentos de que a reintrodução dessa prática na Igreja foi inconveniente.

Dom Athanasius apresenta uma suposta prática habitual dos fiéis lavarem as mãos após a
comunhão, em sua obra, famosa sobre o assunto, Dominus Est. Não pude encontrar (o que não
significa que não exista) qualquer referência sobre o assunto. Dom Athanasius parece querer se
firmar em Jungmann: “O conhecido liturgista J. A. Jungmann explicava que, por causa da
distribuição da Comunhão directamente na boca, se eliminaram várias preocupações... a
necessidade de purificar as palmas das mãos, depois da recepção do sacramento”. Mas o autor
mencionado não refere isso como um costume estabelecido, mas relata como uma preocupação
que “se precisava pensar” (Ibid, p. 821). Seria oportuno um aprofundamento nesse assunto (se é
que já não existe).

Mas mesmo que todos esses pontos não fossem tão antigos quanto à própria existência da
comunhão na mão, parece que podemos afirmar que a forma atual é diferente por uma simples
razão: naquele tempo a hóstia era levada pela própria mão que a recebeu e não pincelada pela
outra mão até a boca (raros fiéis atualmente comungam pela própria mão que recebem a hóstia) e
era mão esquerda que fazia um trono para a direita e não o contrário. A própria Congregação para
Doutrina da Fé reconhece: «Insistir-se-á, como faziam os Padres da Igreja, sobre a nobreza que
deve comportar o gesto do fiel... de estender as duas mãos, fazendo “da mão esquerda um trono
para a mão direita, dado que esta deve receber o Rei”. Na prática, deve aconselhar-se o contrário
aos fiéis: a mão esquerda sobre a direita, para que depois peguem facilmente na hóstia com a
mão direita e a levem à boca» (Congregação do Culto Divino, Notificação acerca da Comunhão na
mão, de 03/04/1985, n. 1 e nota 4; EDREL 2981).

Os defensores da comunhão na mão argumentam que o pão naquele tempo era um pedaço
grande, razão pela qual a hóstia era colocada na mão direita do fiel, com a qual ele levava à boca e
a comia pouco a pouco. Hoje, por outro lado, o pão é muito pequeno e fino, o que implica que
para levar a hóstia à boca se deva fazer o contrário, pegar com os dedos polegar e indicador da
mão direita, pois esta fica livre para colocar a hóstia diretamente na boca 2.

Seja como for, não se pode negar que a Igreja possui autoridade para permitir uma nova forma. A
recepção da Eucaristia numa só espécie foi uma inovação que ninguém duvida. A prática de

1
Shahan, Thomas. "Council in Trullo." The Catholic Encyclopedia. Vol. 4. New York: Robert Appleton
Company, 1908. <http://www.newadvent.org/cathen/04311b.htm>.
2
https://www.liturgia.pt/questoes/questao_v.php?cod_quest=40
recebê-la na boca ou ao menos de joelhos também. Fr. Amiot diz sobre isso: "A Eucaristia era
recebida de pé, salvo talvez nos dias ele jejum. Quando os pães se tornaram muito reduzidos,
foram depostos na boca dos comungantes e não em sua mão direita, e, desde então, a comunhão
se faz de joelhos, o que, considerando as concepções modernas, é certamente mais respeitoso (A
Missa e sua História, 1958, p. 110).

A comunhão na mão é intrinsecamente má e sacrílega?

Coisa diferente de discutir a conveniência ou prudência de uma disciplina ou prática é discutir se a


disciplina ou prática é, em si mesma, má. A comunhão na mão é intrinsecamente má? Ela é
sacrílega? Muitos tradicionalistas têm afirmado esses pontos. A comprovação de que a comunhão
na mão foi praticada no passado, admitida pelos Padres da Igreja, é uma prova que ela não pode
ser considerada má em si mesma ou sacrílega. Se a afirmação é que a forma atual é que é má e
sacrílega, o argumentador precisará provar o seu ponto. Qual diferença substancial que torna a
prática atual intrinsecamente má e sacrílega?

Por outro lado, há argumentos de peso para se negar esses entendimentos radicais.

Papa Gregório XVI diz que a Igreja não concede e não permite nada que conduza a ruína das almas
e a desonra e detrimento de um Sacramento instituído por Cristo: "Tanto mais deplorável é a cega
temeridade destes homens que querem reformar radicalmente o santíssimo instituto da
penitência sacramental, difamam insolentemente a Igreja e quase a acusam de erro como se
tivesse prejudicado esse mesmo saudável instituto e abalado sua eficácia e virtude, ORDENANDO
a confissão anual, CONCEDENDO indulgências com a condição de que se pratique a confissão e
PERMITINDO o culto privado e as missas cotidianas. Poderia a Igreja que é a coluna e fundamento
da verdade e a quem o Espírito Santo como consta ensina sempre todas as verdades, ORDENAR,
CONCEDER, PERMITIR aquelas coisas que conduzem a ruína das almas e a desonra e detrimento
de um Sacramento instituído por Cristo? Não será próprio de uma insolentíssima loucura, como
dizia Santo Agostinho, disputar se se deve fazer o que se costuma fazer por todo o orbe da Igreja?”
(Quo Graviora).

Ademais, se o Magistério ordinário e universal não se opõe a uma prática dos fiéis e a autoriza, ele
tacitamente se manifesta, e, portanto não pode haver erro contra a fé e bons costumes. O Padre
Goupil explica: "O Magistério ordinário. 23. O que é e como funciona. - Este é o ensinamento dado
diariamente, sob a direção do Papa, por todos os bispos espalhados pelo mundo. Este Magistério é
exercido: ... tacitamente, quando ele permite que certas crenças ou práticas se espalhem entre
os fiéis. (...)" (GOUPIL : La règle de la foi. Vol. I : Le Magistère vivant, la Tradition, le
Développement du Dogme, 3ème éd., Laval, 1953). Dublanchy afirma: “O magistério ordinário
universal pode ainda a ser exercido pelo ensino implícito manifestamente contido, como
mostramos anteriormente, na disciplina e na prática geral da Igreja, pelo menos em tudo que é
realmente ordenado, aprovado ou autorizado pela Igreja universal; pois nesse ensino, assim que
ele realmente existe, a Igreja não é menos infalível do que nas definições solenes de seus
conselhos”. (Dictionnaire de théologie catholique, 2194-2195).
Por outro lado, isso não retira que, dado o processo histórico e a análise canônica, a análise
teológica e a observação dos frutos, ainda é necessário sustentar que essa prática é descartável e
que acarreta - na maioria dos casos - múltiplas desvantagens, tanto para a pedagogia cristã quanto
para a vida e o conteúdo da fé e o respeito pela presença real.

Um dos argumentos de parte dos que defendem que a comunhão na mão é intrinsecamente má é
que ela permite que Jesus Cristo seja pisoteado, quando as partículas com muito mais facilidade
podem ser espalhadas pela comunhão na mão.

Embora seja verdade que a reverência e piedade para com esse sacramento possa apontar ao fiel
que devemos evitar que os fragmentos se espalhem, não é verdade que Jesus Cristo seja
pisoteado. Na hóstia consagrada, Deus está presente sem extensão externa, sensível e local, de
modo que não ocupa espaço, ainda que inteiro em todas as partes das espécies sensíveis que o
contêm como uma substância. Por exemplo, quando nossos corpos são movidos de um lugar para
outro, nossas almas também são movidas, por acidente, embora a alma seja incapaz de ocupar
qualquer espaço. Quando alguém tropeça na rua ou é atropelado não se diz que a alma tropeçou
ou foi atropelada3. Uma objeção protestante contra a presença real é que Cristo seria triturado
com os dentes. A resposta dos teólogos católicos é a que segue: “Porquanto, as espécies
eucarísticas podem ser divididas com os dentes, mas o próprio Cristo não se divide, porquanto, em
virtude do que acima fica dito, o seu corpo é inextenso na Eucaristia, e, por isso mesmo,
inalterável”. (Tanquerey, Compendio de teologia dogmatica especial, 1902, t. III, Vol VI, p. 135).

Outro argumento é que Santo Tomás disse: “Em reverência para com este Sacramento, nada Lhe
toca, a não ser o que é Consagrado”. (SumaTeológica, Pars III, Q. 82, Art. 3, ad 8). Donde concluem
que a comunhão na mão é irreverente.

Mas essa interpretação da passagem não parece a melhor. De novo, a comunhão na mão (ainda
que diferente da atual) existiu na Igreja antiga, aprovada pelos Padres da Igreja. Santo Tomás não
desconheceria esse fato.

Pode-se interpretar a passagem no seguinte sentido: Para demonstrar reverência a esse


Sacramento, a Igreja determinou que nada lhe tocasse, a não ser o que é Consagrado. Não
necessariamente que o toque do que não é Consagrado seja irreverente em si mesmo.

Santo Tomás diz que a Igreja faz uso do incenso “ para reverenciar este sacramento: para,
que o bom cheiro do incenso, expulse algum mau odor do local, que pudesse provocar
repugnância”. (Suma Teológica, Pars III, Q. 82, Art. 5, ad 2). Mas sem dúvida o uso do
incenso não existiu sempre na Igreja. O Padre Réus, em seu Curso de Liturgia, diz que
"os cristãos, para evitar a suspeita de idolatria, no princípio, não empregavam o
incenso na Liturgia, mas sim na vida profana. Desde o século IV foi usado como
perfume para os lugares litúrgicos”. (1944, p. 72).

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Para mais sobre o assunto veja a explicação de Santo Afonso Maria de Ligório:
https://sensusfidelium.us/apologetics/history-of-heresies-their-refutation-st-
alphonsus/the-philosophical-objections-of-the-sacramentarians-answered/  
Outro argumento utilizado para provar que a comunhão na mão é intrinsecamente má
é uma fala atribuída a Santa Teresa de Calcutá onde diz: “O pior mal de nosso tempo é
a Comunhão na mão”.

O problema é que não são apresentadas fontes diretas sobre essa frase. O site Mother
Teresa of Calcuta entende que essa frase não é autêntica:
https://www.motherteresa.org/portu/receiving-communion.html

Além disso, Santa Teresa recebia a comunhão na mão:


https://www.praytellblog.com/wp-content/uploads/2018/02/Mother-Teresa-1.jpg

Tudo isso é o que se tem a dizer sobre o assunto. Questões complexas de teologia dificilmente são
resolvidas com uma visão binária sobre o assunto. Esse tema, muitas vezes, foi tratado de maneira
superficial pelos tradicionalistas, o que não contribui realmente para a causa da defesa da prática
tradicional da comunhão e empobrece o debate. Aliás, os padres que negam a comunhão na boca
e de joelhos, por vezes, foram enfrentados com argumentos falsos sobre o tema, o que lhes
chocou, embora claro nada justifique o ataque contra o direito milenar do fiel de receber a
comunhão na língua e de joelhos. Por outro lado, as razões para o fiel não comungar na mão, dado
tudo que foi exposto, são tão claras e múltiplas, que é difícil compreender como até hoje os
católicos que amam a Igreja preferem persistir nessa prática.

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