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Sinésio Ferraz Bueno

Semicultura e educação:
uma análise crítica da revista Nova Escola

Sinésio Ferraz Bueno


Universidade Estadual Paulista – Campus Marília, Departamento de Filosofia

Durante o exílio nos Estados Unidos, o filósofo trevistas clínicas, uma equipe de trabalho formada por
alemão Theodor W. Adorno dedicou-se a pesquisar filósofos, sociólogos e psicanalistas elaborou a “Es-
os apelos dirigidos pela indústria cultural a seus con- cala F”, indicador empírico por meio do qual se bus-
sumidores, especialmente no campo da música. Esse cou aferir o potencial fascista dos indivíduos em uma
pensador voltou-se igualmente para a pesquisa da sociedade de massas. Partiu-se do pressuposto de que
manipulação da subjetividade exercida pela indústria isso poderia ser possível por meio de indagações in-
cultural também em outros campos, e esse é o caso de diretas acerca de questões como anti-semitismo, ra-
sua análise da coluna astrológica do jornal Los Angeles cismo, etnocentrismo e conservadorismo social e po-
Times, entre 1952 e 1953. Partindo do evidente ana- lítico. Segundo Adorno, o fascista em potencial, ou
cronismo da existência de colunas astrológicas em um seja, o tipo psicológico radicado nos níveis mais eleva-
mundo secularizado, Adorno procurou compreender dos da Escala F, caracteriza-se pela tendência irracio-
as necessidades inconscientes que levam os indiví- nal de identificação com grupos sociais superiores,
duos à consulta do horóscopo. Tais necessidades se sentimento complementado pelo realismo exagerado,
mostraram condizentes com o perfil da personalida- entendendo-se essa segunda característica não como
de autoritária, definidas durante o célebre estudo dos uma busca de compreensão do mundo pela razão, mas
frankfurtianos junto à população norte-americana na como a tendência de reconhecer a superioridade ab-
década de 1940. Assim como na pesquisa sobre o soluta da realidade ante o indivíduo. O realismo da
horóscopo, o ponto de partida da pesquisa sobre a personalidade autoritária é, sobretudo, antiutópico,
personalidade autoritária, ou fascista, foi a existência implicando a absoluta submissão diante do existente.
de um tipo humano que combina comportamentos Para o fascista em potencial, cada indivíduo não tem
secularizados do mundo moderno a tendências irra- outra escolha que não seja submeter-se “a uma adap-
cionais de pensamento, típicos de sociedades ante- tação que implica resignação perante a impossibili-
riores à era moderna. Por meio de questionários e en- dade de lograr qualquer melhora essencial, que te-

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mos de abandonar todo sonho e nos moldarmos até terado, por meio de locuções e estereotipias rígidas,
nos convertermos em um acessório a mais da máqui- traduzidas em conhecidos conselhos sobre a necessi-
na social” (Adorno, 1965, p. 650). dade de sobriedade nos gastos pessoais, cuidados com
Analogamente, o conteúdo da coluna astrológi- a saúde, a esperança da ajuda inesperada de um ami-
ca do Los Angeles Times revelou a presença das mes- go ou do sucesso na vida amorosa. Sobretudo, é da
mas necessidades subjetivas que se mostraram laten- vida fetichizada de cada um que se fala, mas os feti-
tes na personalidade autoritária. Segundo Adorno, a ches reais, deslocados para um plano transcendente,
consulta aos astros reflete a dependência e impotên- tornam essa vida menos duramente suportável.
cia dos indivíduos em uma sociedade de massas diante Em resumo, podemos afirmar que a análise da
do aparato econômico. A aceitação inflexível dos im- coluna astrológica feita por Adorno nos revela os
perativos de uma totalidade repressiva, que a todos é motivos do prestígio paradoxal de apelos claramente
cobrada como condição para a socialização, é masca- falsos e anacrônicos no mundo contemporâneo. Pelo
rada nas consciências por meio da idéia confortadora horóscopo, os indivíduos satisfazem necessidades re-
de que tal submissão ocorreria ante a ordem cosmo- gressivas típicas da personalidade autoritária: a iden-
lógica inalcançável. Os conselhos astrológicos, cum- tificação com o status quo, a submissão ao sistema
prindo uma função entorpecedora, permitem que os capitalista e a explicação dos motivos que podem le-
poderes objetivos, que efetivamente submetem os in- var ao sucesso, ou, mais comumente, ao fracasso na
divíduos, sejam elevados a uma esfera situada acima hierarquia social, como um problema exclusivamen-
da conduta e da psicologia individuais, subtraídos a te individual, não condicionado pela hierarquia so-
toda crítica, revestidos de dignidade metafísica duvi- cial. A coluna astrológica aparece, assim, como um
dosa. Por meio de apelos ao superego de cada um, o ícone representativo da forma pela qual a indústria
astrólogo atua como agente da totalidade, atendendo cultural reitera, exaustivamente, pelas mais diversas
a necessidades regressivas criadas por essa mesma estereotipias, a mesma mensagem essencial, para a
totalidade, que, assim, se torna imune à crítica. qual as consciências semiformadas foram severamente
treinadas: o apelo para que aceitem inflexivelmente a
E o convite constante a criticar-se a si mesmo, e não totalidade como se fosse um dado da natureza. As es-
às condições dadas, corresponde a um aspecto do confor- tereotipias astrológicas são construídas mediante um
mismo social, em cujo megafone se converte, definitiva- vocabulário operacional que o filósofo alemão Marcuse
mente, o horóscopo; pois se as notas individuais por este caracteriza como marca da linguagem no mundo uni-
produzidas não deixam de apontar, mesmo que palidamen- dimensional. Procura-se fazer do indivíduo e do seu
te, a uma totalidade defeituosa, seus conselhos procuram comportamento termos inteiramente ajustáveis e em
sem demora remendar de novo o existente. (Adorno, 1965, condição de harmonia com o existente, prevenindo
p. 209) toda crítica conceitual aos fatos sociais. Na verdade,
a crença sobre a veracidade das locuções não é o as-
Com engenhosidade, o astrólogo reduz as con- pecto decisivo: “o novo toque da linguagem mágico-
tradições econômicas e sociais a denominadores co- ritual é, antes, o de as pessoas não acreditarem nela,
muns que as convertem em dicotomias naturais su- ou não se importarem com ela, mas não obstante, agi-
postamente regidas pelos astros, como a oposição rem em concordância com ela” (Marcuse, 1969,
entre trabalho e ócio ou entre vida pública e vida pri- p. 107).
vada. As contradições objetivas, uma vez subtraídas No interior do pensamento de Adorno, um outro
da dimensão material, são reduzidas a oposições atri- caminho que nos conduz à compreensão e crítica do
buídas à esfera natural, de maneira que possam ser ajustamento social alienado consiste na análise da
reconciliadas. O estado objetivo de coisificação é rei- decadência dos processos formadores da cultura em

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sua caricatura unidimensionalizada, denominada por muitos pretendem, uma iniciação à formação, mas seu
Adorno como semiformação, ou semicultura. Esse inimigo mortal (idem, p. 255).
processo de declínio cultural, acelerado nas primei- A análise adorniana da semiformação apresenta
ras décadas do século XX, pode ser compreendido a um aspecto central que remete diretamente às modali-
partir de suas duas faces complementares. dades regressivas da personalidade autoritária: “a
1) Pelo processo de espiritualização da cultura semicultura é a esfera do ressentimento” (idem, p. 261).
burguesa, por meio do qual os conteúdos críticos, ne- Se no capitalismo tardio a lei do mais forte repercute
gativos e emancipadores da cultura burguesa foram internamente por meio dos traços da personalidade
neutralizados em seu potencial de negação, converti- autoritária – a saber, antiintelectualismo, convencio-
dos em mero “valor” espiritual (Horkheimer & Ador- nalismo, identificação com as elites econômicas e pre-
no, 1971, p. 235). sença de fortes tendências destrutivas inconscientes –,
2) Destituída das qualidades transcendentes in- o modelo fascista e semiformado de personalidade, em
separáveis da formação, a cultura pôde então ser vez de canalizar sua hostilidade inconsciente contra as
instrumentalizada como meio de entretenimento, estruturas sociais que a geraram, o que poderia viabilizar
predicado explorado de maneira muito eficiente pela a crítica negativa da realidade, o faz contra a própria
indústria cultural na administração do tempo de lazer cultura: “a raiva se voltou contra a própria promessa
dos indivíduos. A massificação da semicultura pela ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa
indústria cultural acarretou a homogeneização da cul- promessa não deveria existir” (Adorno, 1995, p. 164).
tura entre as classes sociais. Pois, enquanto as elites Isso aponta o núcleo da personalidade autoritária: o
burguesas têm o tempo ocioso ocupado com valores sadomasoquismo.
culturais que testemunham a própria impotência da A caracterização adorniana da semicultura como
cultura, aos proletários restou a passagem direta de esfera do ressentimento remete, em termos freudianos,
uma forma de heteronomia a outra, com a substitui- aos elementos anticivilizatórios da própria civiliza-
ção da autoridade da Bíblia pelos fetiches da indús- ção, que convertem cada ser civilizado em um inimi-
tria cultural. Como conseqüência, a incultura origi- go potencial da sociedade que o gerou. Esse tema,
nal, que ainda guardava a possibilidade de superação, que é recorrente nos escritos dos filósofos da teoria
é substituída por conteúdos massificados que, embo- crítica, recebe de Adorno uma abordagem especial-
ra sejam caricatura da formação, se apresentam em mente valiosa para nossas reflexões no artigo “Sobre
seu nome (idem, p. 240-241). Seja para as elites bur- música popular”, escrito em parceria com George
guesas freqüentadoras de espetáculos nos salões de Simpson, em 1941. Esse artigo procede de maneira
ópera e exposições nos museus, seja para os proletá- similar àquele sobre a coluna astrológica, pois anali-
rios, em seu acesso à programação televisiva e cinema- sa os recursos utilizados pelos produtores musicais
tográfica, “no clima da semiformação, os conteúdos da indústria cultural para darem conta daquilo que
objetivos, coisificados e com caráter de mercadoria pode ser nomeado a “quadratura do círculo” nessa
da formação cultural, sobrevivem à custa de seu con- área, a saber: induzir o público a aceitar com grande
teúdo de verdade e de suas relações vivas com o su- entusiasmo um material cultural padronizado, como
jeito vivo” (idem, p. 245). Para burgueses e trabalha- se a opção por esta ou aquela produção fosse resulta-
dores o sonho socialista da igualdade social realiza-se do da livre escolha e correspondesse genuinamente
de maneira pervertida, na medida em que ambas as aos desejos espontâneos do público. Adorno e
classes sociais são privadas dos veículos culturais que Simpson desvendam a solução para esse problema
permitiriam a crítica negativa. A unidimensionalização resumindo-a em uma fórmula cuja concisão perma-
da cultura revela o aspecto mais nefasto da semifor- nece válida para os ouvidos globalizados de nossos
mação, vale dizer, sua propriedade de não ser, como dias: “a composição escuta pelo ouvinte” (Adorno,

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1986, p. 121). Ao contrário da “boa música séria”, dade de uma adesão racional à sociedade, condição
que possui uma estrutura irredutível a padrões este- heterônoma que os meios de comunicação se encar-
reotipados, a música popular é submetida a uma es- regam de perpetuar. “A energia pulsional do Homo
tandardização estrutural que induz a uma audição economicus então requerida ao Homo psycologicus é
igualmente estandardizada. Para os autores, a música amor forçado, inculcado coercitivamente em direção
popular apresenta-se “pré-digerida”, dispensando o a algo antes odiado” (idem, p. 144). Diante da des-
ouvinte de esforços para seguir o fluxo musical, ao proporção flagrante entre o poder das instituições e a
mesmo tempo em que lhe fornece modelos sob os impotência do indivíduo, a resistência à socialização
quais qualquer outra obra similar poderá ser subsu- forçada exige forças sobre-humanas, cada vez mais
mida. A música popular promove certo automatismo raras em uma estrutura econômica que se encarrega
musical que reduz os detalhes das obras a meras en- de minar exatamente a capacidade individual de re-
grenagens de uma máquina, de tal maneira que o “de- sistir (idem, p. 145).
talhe musical impedido de desenvolver-se torna-se
uma caricatura de suas próprias potencialidades” Semicultura na revista Nova Escola
(Adorno, 1986, p. 119). Simultaneamente, a estandar-
dização é complementada pela “pseudo-individuali- A manifestação dos elementos regressivos da
zação”, procedimento que envolve os produtos da in- semiformação por meio da indústria cultural, que ocor-
dústria cultural com a aparência da livre escolha, re de maneira eloqüente na maior parte das publica-
induzindo seus consumidores a perceber a escolha e ções e produtos televisivos e cinematográficos, ad-
a fruição da obra como resultado da autonomia indi- quire um caráter especialmente significativo no caso
vidual. Esse procedimento é exemplificado pelos au- de uma publicação pedagógica destinada ao grande
tores com a “improvização normatizada” caracterís- público docente. Trata-se da revista Nova Escola,
tica do jazz. Esse ritmo, assim como os produtos da publicação da Fundação Victor Civita, justificada pela
indústria cultural em geral, trazem a marca da “qua- proposta de “valorizar e qualificar o professor da
dratura do círculo” na seguinte forma: “a estandardi- Educação Básica em todo o Brasil”, que desde sua
zação de hits musicais mantém os usuários enquadra- origem, é distribuída gratuitamente a escolas públi-
dos. Por assim dizer escutando por eles. A pseudo- cas, e vendida, segundo seus editores, a preço de cus-
individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, to. Na medida em que alcança tiragens expressivas,
fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sem- que chegam a 700 mil exemplares mensais, é razoá-
pre escutado por eles, ‘pré-digerido’” (idem, p. 123). vel supor que tratamos do único periódico educacio-
Essa condição de heteronomia não é, contudo, nal ao qual a maioria dos professores da rede pública
meramente gerada de cima para baixo, uma vez que a tem acesso. Da mesma forma, podemos também su-
padronização e falsificação da cultura, ao permitir a por que o sucesso da revista deve-se à popularização
integração à totalidade repressiva, provoca a neutra- dos conteúdos, de maneira que a torne semelhante a
lização da angústia representada pela não-integração. outras revistas do Grupo Abril. Por meio de um voca-
No capitalismo tardio, a angústia primitiva experimen- bulário simplificado, acompanhado de ilustrações far-
tada pelo homem diante dos poderes da natureza, que tas, quase sempre a expor professores e alunos sorri-
o ameaçavam com o perigo da aniquilação física, é dentes, um pressuposto básico é exaustivamente
perpetuada pelo temor da não-integração nos grupos repetido: os problemas educacionais sempre podem
sociais (Adorno, 1991, p. 143-144). Segundo Ador- ser resolvidos, bastando para isso que cada um “faça
no, a adesão dos indivíduos aos produtos de qualida- a sua parte”.
de claramente questionável da indústria cultural é Por vários motivos, a revista Nova Escola cons-
impulsionada pelo desespero perante a impossibili- titui-se em objeto de estudo que apresenta de maneira

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exemplar a configuração da semicultura na socieda- abordagem parece baseado no modelo da auto-ajuda,


de globalizada contemporânea. Seu modelo editorial pois reduz a complexidade e a materialidade dos pro-
apresenta-se como uma tradução, para termos próprios blemas ao voluntarismo pessoal. Essa redução é de-
à educação, do mesmo modelo seguido pelas demais terminada materialmente pelo modelo econômico
revistas de entretenimento do Grupo Abril. Sua fór- neoliberal, desde suas origens no início dos anos de
mula consistiria, assim, em descaracterizar a catego- 1990. Ou seja, o lançamento de Nova Escola, ao co-
ria “professor” da especificidade que ela possui, incidir com o recrudescimento de um modelo econô-
reduzindo-a a mais um entre outros estereótipos da mico fortemente inspirado na reprodução do capital
indústria cultural. Assim como para a adolescente via abertura dos mercados, indica uma forte sintonia
vende-se Capricho, para a mulher madura vende-se com as premissas do Estado mínimo, uma vez que
Nova, para o macho vende-se Playboy, para o homem faz apologia da união da comunidade para a resolu-
de negócios vende-se Exame, da mesma forma, para ção dos problemas educacionais.
o professor, vende-se Nova Escola. Essas publicações, Os antagonismos próprios ao campo educacio-
bem como outras, de grande tiragem, parecem obter nal, que refletem as contradições da própria socieda-
popularidade e sucesso em termos comerciais por se- de, desaparecem na maior parte das reportagens e ar-
guirem um modelo editorial baseado em estereotipias tigos da revista, prevalecendo uma visão operacional
análogas àquelas apontadas por Adorno em sua análi- amparada na iniciativa pessoal como recurso suficien-
se da coluna astrológica do Los Angeles Times. Trata- te para a resolução dos problemas pedagógicos. Os
se, como definiu Adorno, de reiterar “as demandas profissionais da área pedagógica são esvaziados de
que a sociedade impõe para o singular para que este sua especificidade como possíveis agentes problema-
funcione” (Horkheimer & Adorno, 1971, p. 209). tizadores das tensões sociais, e reduzidos exclusiva-
Enquadrado como mais um entre os estereótipos da mente à dimensão prática de seu ofício. Como a qual-
sociedade de massas, o professor, ao lado da adoles- quer outro profissional, são recomendados exercícios
cente, da mulher madura, do macho, do homem de e posturas para combater o estresse, sem que o fenô-
negócios etc., vê-se anulado como um sujeito univer- meno de exploração exaustiva do corpo e da mente
sal capaz de pensar o todo. Desincumbido de sua es- seja remetido à dissonância entre as necessidades do
pecificidade, ao professor resta apenas o consumo indivíduo e os imperativos do capital.2 Escolas em
distraído de fórmulas que o põem em sintonia com que os Conselhos Escolares se mobilizam para arre-
uma totalidade que assim permanece imune à crítica. cadar recursos não-públicos para a realização de re-
Em termos gerais, prevalece em Nova Escola uma formas e aquisição de equipamentos são saudadas
visão operacional da realidade pedagógica, manifes- como exemplo de parceria bem-sucedida entre pais,
tada segundo dois aspectos principais. comunidade e professores, sem que a precariedade
1) Voluntarismo e estereotipia. Os problemas implícita da relação entre escola pública e Estado,
educacionais são reiteradamente reduzidos a questões decorrente do modelo neoliberal do Estado mínimo,
a serem resolvidas individualmente pelo professor, o seja problematizada.3 Experiências bem-sucedidas e
qual é pressuposto como um ser dotado de inesgotá- premiadas pela própria revista são exaustivamente
vel força de vontade, permanentemente disposto a se
superar no cumprimento de sua missão.1 Esse tipo de
qualidade no ensino infantil e fundamental, oferecendo premiações
em dinheiro e troféu similar ao Oscar da Academia de Cinema de
1
A exaltação do voluntarismo evidencia-se no concurso anual Hollywood.
“Prêmio Victor Civita – Professor nota 10”, promovido pela Fun- 2
“Uma pausa para a ioga”, Nova Escola, p. 22-29, jan./fev. 2006.
dação Victor Civita. O concurso visa premiar experiências de boa 3
“Gestão”, Nova Escola, p. 33-41, nov. 2005.

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apresentadas com o objetivo de motivar o professor dessem ser confrontadas com ideais de formação trans-
para a reprodução dos projetos por conta própria, en- cendentes diante do existente, é despida de sua ten-
tretanto, sem o acompanhamento de uma reflexão crí- são intrínseca, sendo convertida em uma relação en-
tica sobre a grave crise de um contexto educacional tre prestadores de serviço e clientes. Uma vez realizada
no qual há a necessidade desse tipo de recurso. essa redução, que implica ocultar do campo pedagó-
A imagem estereotipada de um professor volun- gico justamente os antagonismos que podem fazer dele
tarioso, decidido a resolver os problemas educacio- um campo de formação, a relação entre professores e
nais por conta própria, espelha o aspecto central ana- pais transforma-se em oportunidade de convencimento
lisado por Adorno em seu estudo sobre o fascismo: a por meio das ferramentas instrumentais do marketing.
conversão da individualidade em mero acessório da Essa operacionalização da realidade pedagógica per-
máquina social, sob o imperativo da retificação per- mite, então, que Nova Escola transmita a seus leito-
manente do existente. O professor presumidamente res um enfoque que reduz a “gestão” escolar a um
voluntarioso de Nova Escola absorve os efeitos das caráter exclusivamente prático, inspirado nos padrões
demandas repressivas impostos pelo ritmo de acumu- adotados pelo departamento de recursos humanos da
lação do capital como um problema exclusivamente empresa capitalista. Oferece aos leitores “10 passos
seu, a ser resolvido por meio de exercícios de ioga para se sair bem na primeira reunião de pais”, repor-
que aliviam o sofrimento físico e mental; sua atuação tagem de auto-ajuda que visa fornecer subsídios para
como cidadão restringe-se à mobilização da comuni- “fisgar a família e transformá-la em grande aliada”
dade para compensar a atuação precária do Estado (Nova Escola, p. 26-27, jan./fev. 2006). A assimila-
mínimo; carente de experiências bem-sucedidas que ção dos referenciais do mercado capitalista para a re-
possam modelar sua prática e motivá-lo para a dureza flexão pedagógica estende-se das ferramentas de “ges-
da vida docente, encontra em Nova Escola premiações tão” aos próprios temas abordados/a serem abordados
que talvez poderão mitigar suas frustrações. em sala de aula. Assim, uma experiência realizada
2) Visão pragmática do conhecimento. Nova Es- em uma escola com o objetivo de iniciar os estudan-
cola manifesta claramente os traços regressivos que tes no “empreendedorismo” é saudada como exem-
caracterizam a semiformação como “esfera do res- plo de perfeita adequação da escola às necessidades
sentimento”. O conhecimento é rigorosamente expur- do mundo atual. Enfatizou-se neste caso a necessida-
gado de potenciais dialéticos que possam permitir o de de adequação da escola às demandas competitivas
confronto entre ideais emancipadores e realidade ime- do mundo do trabalho, que requerem “desenvolver
diata. No espírito da semiformação, a frustração pe- nos alunos um conjunto de competências que possa
rante as esperanças irrealizadas de um mundo livre e torná-los capazes de tomar decisões, traçar planos e
emancipado reverte o pensamento (que poderia per- organizar os recursos necessários para chegar ao su-
manecer fiel aos ideais traídos, insistindo na crítica cesso” (Nova Escola, p. 58-60, out. 2005). A resse-
negativa da realidade) em agente de perpetuação da mantização da terminologia pedagógica de modo que
existência alienada. Movendo-se rigorosamente no in- atenda às demandas do mercado capitalista consagra
terior de códigos instrumentais de análise da realida- os conceitos do empreendedorismo como objetivos a
de, o conhecimento adere a uma visão estritamente serem assimilados por meio dos conteúdos, habilida-
operacional da realidade pedagógica, recusando previa- des e competências a serem desenvolvidos. A ade-
mente outras perspectivas de abordagem que não es- quação dos componentes curriculares aos imperati-
tejam comprometidas com a reafirmação do status quo. vos do mercado introduzem, por exemplo, a simulação
A relação entre professores e pais de alunos, que em sala de aula de uma “loja de doces”, atividade que
necessariamente deveria envolver um projeto de for- permite desenvolver “técnicas de negociação, com-
mação em que as expectativas imediatas dos pais pu- pra e venda e manipulação de dinheiro”, e de uma

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“feira de frutas”, com o objetivo de desenvolver com- dadas” (Adorno, 1965, p. 209). Assim como fazem os
petências associadas à “definição de possíveis clien- produtores musicais, Nova Escola pensa antecipada-
tes; técnicas de comunicação e vendas; e identifica- mente os problemas pelos leitores, oferecendo suas
ção de concorrentes” (idem, ibidem). O pragmatismo soluções instrumentais como modelos a serem imita-
pedagógico estende-se sutilmente na concepção ins- dos ou aperfeiçoados por eles.
trumental do conhecimento, evidenciando-se em uma Entretanto, conforme salienta Adorno (1991), as
reportagem sobre novas invenções na área de massas não aceitariam o sacrifício permanente, não
nanotecnologia, justificada pelo fato de que “pesqui- se sujeitariam à servidão voluntária se algo nelas pró-
sadores e homens de negócio prevêem muita novida- prias não desse acolhimento a tais apelos. Uma vez
de e muito lucro nos próximos anos” (Nova Escola, que a heteronomia não é meramente gerada de cima
p. 35-38, nov. 2005). para baixo, pois atende a necessidades intensas de
Os potenciais dialéticos da educação como po- integração social que se converteram em uma segun-
der de negação da realidade imediata, mediante sua da natureza do homem contemporâneo, cabe desta-
confrontação com os ideais iluministas de emancipa- car que a sedução exercida por Nova Escola é tão
ção, são previamente neutralizados pelo enfoque ope- ambígua quanto a própria indústria cultural. Ao ade-
racional da realidade pedagógica, o qual se contenta quar-se aos desejos de seu público, ela atende a ne-
com a perspectiva realista e antiutópica que reduz cada cessidades efetivas deste, como poderá atestar qual-
indivíduo a mero acessório da máquina social. Em quer pesquisa de opinião. Os professores realmente
sua recusa de transcendência ante a realidade estabe- clamam pela combinação entre informação e entrete-
lecida, o tipo de educação almejado por Nova Escola nimento, pelas pílulas suaves de auto-ajuda que ilu-
limita-se à perpetuação da semiformação como “es- soriamente possam aplacar a angústia provocada por
fera do ressentimento”, como negação prévia de toda poderes sociais que parecem tão ameaçadores quanto
possibilidade formadora que possa ter como objetivo o eram, para o homem primitivo, os poderes da natu-
algo mais além da aceitação inflexível da instrumen- reza. Mas, exatamente ao satisfazer desejos heterô-
talização da vida. Ao serem pressupostos como me- nomos, Nova Escola converte-se em produto cultural
ros receptáculos de conselhos práticos, analogamente regressivo, pois se faz cúmplice de um estado de rei-
aos leitores de horóscopo e consumidores em geral ficação que somente os educadores poderão superar.
das diversas publicações da indústria cultural, os pro-
fessores são reduzidos a seres impotentes, incapazes Referências bibliográficas
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integração. A sociedade, que é obra de homens que ADORNO, Theodor W. Estudio cualitativo de las ideologias. In:
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gados pelos produtores musicais, que fazem a escolha . De la relación entre sociologia y psicologia. In:
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Semicultura e educação

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SINÉSIO FERRAZ BUENO, doutor em filosofia da edu-
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partamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista


(UNESP) de Marília. Publicações recentes: Pedagogia sem su- Recebido em outubro de 2006
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