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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

RAONI NERI DA SILVA

A “NOVA ESCOLA DO RECIFE”:


O Serviço de Higiene Mental e sua relação com o campo indo-afro-pernambucano

Recife
2018
RAONI NERI DA SILVA

A “NOVA ESCOLA DO RECIFE”:


O Serviço de Higiene Mental e sua relação com o campo indo-afro-pernambucano

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Antropologia.

Área de concentração: Antropologia

Orientadora: Profª. Drª. Roberta Bivar Carneiro Campos.

Recife
2018
Catalogação na fonte
Bibliotecária: Maria Janeide Pereira da Silva, CRB4-1262

S586n Silva, Raoni Neri da.


A “Nova Escola do Recife”: o Serviço de Higiene Mental e sua relação
com o campo indo-afro-pernambucano / Raoni Neri da Silva. – 2018.
103 f. ; 30 cm.

Orientadora : Profª. Drª. Roberta Bivar Carneiro Campos.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Recife, 2018.
Inclui referências.

1. Antropologia. 2. Cultos afro-brasileiros – Aspectos psíquicos. 3.


Serviço de Higiene Mental. 4. Religiões indo-afro-pernambucanas. I.
Campos, Roberta Bivar Carneiro (Orientadora). II. Título.

301 CDD (22. ed.) UFPE (BCFCH2019-025)


RAONI NERI DA SILVA

A “NOVA ESCOLA DO RECIFE”:


O Serviço de Higiene Mental e sua relação com o campo indo-afro-pernambucano

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Antropologia.

Aprovada em: 26/02/2018.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Profº. Dra. Roberta Bivar Carneiro Campos (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________
Profº. Dra. Silvana Sobreira de Matos (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________
Profº. Dra. Zuleica Dantas Pereira Campos (Examinadora Externa)
Universidade Católica de Pernambuco
À memória de Maria Claudeci do Nascimento (Mãe
Claudia), que me fez nascer pela segunda vez!
AGRADECIMENTOS

Primeiro gostaria de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, seus coordenadores,
professores, secretários, bolsistas e demais funcionários que auxiliam no
funcionamento do PPGA; à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de
Pernambuco (FACEPE), que forneceu subsídio financeiro, sem o qual a confecção
desta dissertação não seria possível; e às professoras que compõem a banca de
defesa de minha dissertação, por sua leitura atenta e reflexões preciosas sobre o
tema.
Quero agradecer também à minha orientadora, a Professora Roberta
Campos, que me acompanha desde minha graduação em Ciências Sociais, que a
partir das indicações de leituras, orientações e conversas me guiou durante esses
anos, sempre preocupada em me mostrar uma antropologia mais plural.
Quando penso nesta dissertação, não me vêm à mente só os curtos dois
anos que dispendi neste mestrado. Logo imagino os caminhos que percorri para
chegar até aqui. Falar de todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram com
isso seria uma tarefa muito difícil, mas obviamente algumas pessoas precisam ser
mencionadas.
Deixo aqui registrado meu agradecimento à minha família — meus pais
Fátima e Josiel; minha irmã, Arthemys — por todo suporte e incentivo que me deram
nesta trajetória. Sem o apoio de vocês nada disso teria sido possível. Um lembrete
especial aos meus amigos-irmãos Allan Alves, Leonardo Melo, Juliana Lima e
Thamires Chaves. Amo vocês.
Agradeço também à minha família de santo. Com toda certeza, vocês foram
importantes na minha trajetória. Um agradecimento especial a Pai Clóvis por todo
seu cuidado, apoio e incentivo.
Não poderia deixar de colocar nessas linhas o nome de Mona Lisa, a pessoa
com quem escolhi dividir meus dias. Te encontrar nesta vida foi uma grata surpresa.
Sou muito agradecido por todo apoio, compreensão e incentivo que tens me dado,
principalmente nesses últimos dias de escrita. Te amo. Com ela, também acabei
ganhando uma segunda família. Seu Maurício, dona Elizabete, Medéia e Pedro,
encontrar vocês também foi algo muito importante em minha trajetória, sou muito
grato por tudo.
Dentro do UFPE também acabei me deparando com pessoas maravilhosas,
que me proporcionaram momentos acadêmicos e pessoais muito especiais,
preciosidades que nos fazem enxergar um mundo mais bonito. Não daria para falar
de todos aqui, mas seria um erro deixar de citar vocês: Dayane Silva, Lara
Rodrigues, Patrícia Roberta, Lunara Nascimento, Jacqueline Joachim, Aloísio Lima
Barbosa, Janaína Emídio, Maria Rocha, Cláudia Brito, Thiago Santos, Raphael
Bernardo, Walter Wagner, José Wellington. Por diferentes motivos e de diferentes
formas, amo vocês.
RESUMO

Foi no ano de 1932 que o médico psiquiatra Ulysses Pernambucano de Melo


criou o Serviço de Higiene Mental (SHM), órgão que passaria a expedir licenças de
funcionamento para os terreiros do estado de Pernambuco. Com a atuação do SHM,
criou-se solo fértil para que surgisse a santa aliança — uma intrincada teia de
relações recíprocas, na qual se produz, por um lado, o fortalecimento e prestígio de
certos pais e mães de santo e, por outro, a exclusão de tantos terreiros do quadro
dos tidos como “legítimos”. Esta dissertação então se propõe a descrever e analisar
as relações que se estabeleceram entre a equipe do SHM e o campo das religiões
indo-afro-pernambucanas. Nesse sentido, me volto aos arquivos para realizar um
exercício meta-antropológico; para compreender o contexto simbólico e social
daqueles que foram os primeiros antropólogos pernambucanos. Para tanto
apresento uma contextualização histórica do momento em que se deu a atuação do
SHM, apresento Ulysses Pernambucano, o Serviço e os intelectuais que por eles
foram influenciados. Pensando o contexto pernambucano em contraste ao baiano,
viso sublinhar suas diferenças, analisando também quais categorias foram
acionadas pelos técnicos do SHM para descrever os terreiros que seriam tidos como
ilegítimos. Neste quadro, recorrendo a uma semiologia dos objetos, identifico que o
Catimbó Jurema do Recife, devido a sua relação com certos objetos, acabou por
encontrar-se em posição desfavorável em relação aos outros cultos de matriz indo-
afro-pernambucana.

Palavras-Chave: Santa Aliança. Serviço de Higiene Mental. Religiões Indo-Afro-


Pernambucanas.
ABSTRACT

It was in the year 1932 that the psychiatrist Ulysses Pernambucano de Melo
created the Mental Hygiene Service (MHS), an agency that would start issuing
operating licenses for the terreiros of the state of Pernambuco. With the activity of
MHS, a fertile ground was created to bring about the “santa aliança” - an intricate
network of reciprocal relations, in which on the one hand the strengthening and
prestige of certain pais and mães de santo were produced, and on the other, the
exclusion of so many terreiros of the group called "legitimate”. This dissertation then
proposes to describe and analyze the relationships that have established between
the MHS team and the indo-afro-pernambucanas religions field. In this sense I turn to
the archives to perform a meta-anthropological exercise; to understand the symbolic
and social context of those who were the first anthropologists of Pernambuco. For
that, I present a historical context of the moment in which the MHS took place, I
present Ulysses Pernambucano, the Service and the intellectuals who were
influenced by them. Thinking about the Pernambuco context in contrast to the
context in Bahia, I would like to emphasize their differences, also analyzing which
categories were used by the MHS technicians to describe the terreiros that would be
considered illegitimate. In this context, using a semiology of objects, I identify that the
Jurema Catimbó of Recife, due to its relationship with certain objects, ended up be-
ing in an unfavorable position in relation to the other Indo-Afro-Pernambuco cults.

Keywords: Santa Aliança. Mental Hygiene Service. Indo-Afro-Pernambucanas Religi-


ons.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................10

1.1 UMA ETNOGRAFIA NO ARQUIVO...........................................................................10

1.2 TRAJETÓRIAS: OU FORMANDO UM ANTROPÓLOGO.....................................12

1.3 A PESQUISA ANTROPOLÓGICA E OS ARQUIVOS.............................................17

1.4 PLANO DOS CAPÍTULOS..........................................................................................23

2 O SABER MÉDICO LEGAL E A REPRESSÃO POLICIAL AOS TERREIROS:


O LUGAR DO SERVIÇO DE HIGIENE MENTAL...........................................................25

2.1 COMBATE AO FEITIÇO..............................................................................................25

2.2 CONTROLE, SABER E O PAPEL DO SERVIÇO DE HIGIENE MENTAL..........32

2.3 O LUGAR DA LOUCURA ESPÍRITA.........................................................................37

2.4 A REVITALIZAÇÃO DA HIPÓTESE REPRESSIVA................................................48

3 UM JOGO DE LEGITIMAÇÕES: UMA SANTA ALIANÇA...................................51

3.1 A SANTA ALIANÇA E A CONSTRUÇÃO DA PUREZA NAGÔ.............................51

3.2 A NOVA ESCOLA DO RECIFE: REPENSANDO POSIÇÕES..............................63

3.3 O PRIMEIRO CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO................................................68

3.4 UM CAMPO DE DISPUTAS.......................................................................................78

3.5 UMA SEMIOLOGIA DOS OBJETOS: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO...84

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................91

REFERÊNCIAS............................................................................................................96
10

1 INTRODUÇÃO

1.1 UMA ETNOGRAFIA NO ARQUIVO

Talvez, pela compreensão de uma forma tão distante e estranha da


natureza humana, possamos entender nossa própria natureza
(MALINOWSKI, 1978, p. 34).

Esta pesquisa, desde sua concepção, enquanto uma proposta de projeto, até
os momentos finais da escrita destas páginas, teve como foco e objeto central as
relações que foram estabelecidas entre os intelectuais — me refiro aos
antropólogos, sociólogos, historiadores e outros cientistas e pesquisadores sociais
— e o campo das religiões de matriz indo-afro-brasileiras. Recorro ao conceito de
santa aliança tal qual foi desenvolvido pelo professor Roberto Motta (2010),
entendido assim como uma rede de relações recíprocas, na qual se produz por um
lado o fortalecimento e prestígio de certos pais e mães de santo, e por outro a
exclusão de tantos terreiros do quadro dos tidos como “legítimos”.
Como campo de minha pesquisa, escolhi o passado, mais precisamente a
década de 1930. Foi no ano de 1932 que o médico psiquiatra Ulysses
Pernambucano de Melo fundava o então Serviço de Higiene Mental (SHM), ligado à
Assistência a Psicopatas do Recife, que iria atuar como órgão regulador das
atividades dos cultos no estado de Pernambuco.
A minha escolha por esta temática se deu por diferentes razões, mas acredito
que teve início com algumas inquietações que me acompanhavam desde os
primeiros anos de minha graduação em Ciências Sociais. Sou filho de santo e
juremeiro. Quando iniciei meu contato com textos antropológicos que tinham como
temática as religiões indo-afro-brasileiras, sempre tentei realizar uma correlação
entre eles e minha realidade. Os textos que versavam a respeito da ideia de pureza
nagô sempre me foram estranhos, tendo em vista que em minha vivência religiosa
sempre percebi um campo sincrético, assumidamente sincrético, onde este fato em
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nenhum momento interferia na legitimidade das casas e dos pais e das mães de
santo.
Posteriormente a essas leituras, comecei a ter contato com a produção dos
técnicos do Serviço de Higiene Mental, percebendo que eles já partiam do
pressuposto de que em Pernambuco não havia um só culto puro. Já em 1930
falavam de religiões indo-afro-pernambucanas, então notei que a legitimação das
casas passava por outras questões que não a ideia de ortodoxia propriamente dita.
Vi então que a enormidade de material etnográfico produzido pela atuação do SHM,
ainda muito pouco explorado, poderia colocar luz nestas questões, dando
continuidade às discussões já iniciadas por Roberto Motta e (2010) e Seeber-
Tegethoff (2007) a respeito da relação entre pesquisador e pesquisado dentro do
campo das religiões de matriz indo-afro-brasileiras.
Há uma série de estudos a respeito da atuação do SHM, dentro das ciências
humanas ao menos, que ressaltam o caráter eugenista e normatizador das suas
práticas e produções teóricas, como exemplo podemos citar os trabalhos de Zuleica
Dantas Campos (2001) e Carlos Miranda (2009). Minha proposta aqui não é refutar
suas teses, pois de fato estes eram os princípios que norteavam a psiquiatria
brasileira da época, entretanto os dados que consegui coletar e analisar nesta
pesquisa mostram que há um outro lado da moeda. Quero dizer com isso que existe
a necessidade de produzir uma compreensão mais plural em relação ao que foi o
projeto de Ulysses Pernambucano, o SHM e a produção dos pesquisadores ligados
a ele.
Com isso em mente, me voltei para os arquivos. A parte metodológica é
inerente a qualquer trabalho de cunho científico. Seja na introdução, como aqui, ou
em capítulo separado, as monografias, dissertações e teses sempre reservam um
espaço para essa discussão tão necessária para que os leitores possam ter ideia
dos caminhos percorridos para se conseguir determinados objetivos.
As páginas que seguem, obviamente, cumprem com este requisito, contudo
sua escrita se dá também como uma resposta às inquietações que decorrem de
minha conversão para o campo da antropologia. Viso dar conta das possibilidades
12

de produção de um conhecimento antropológico que não esteja vinculada à uma


forma tradicional de trabalho de campo — a do contato direto com aqueles que
transformamos em “nativos”. Neste exercício, penso também a minha própria
identidade como antropólogo neste processo de pesquisa.

1.2 TRAJETÓRIAS: OU FORMANDO UM ANTROPÓLOGO

Sou formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco


(UFPE), ingressei no primeiro semestre do ano de 2011 e consegui a integralização
do curso no final do ano de 2015. Minha turma foi a primeira a ingressar na
universidade com o novo perfil curricular em vigor. Perfil este que foi reformulado,
entre outros motivos, devido à dissolução do antigo departamento de Ciências
Sociais, que agora se tornariam três: Antropologia e Museologia, Sociologia e
Ciência Política. Enquanto o departamento de Ciência Política se encarregaria do
curso homônimo, os departamentos de Antropologia e Museologia e de Sociologia,
por sua vez, agora ficariam a cargo dos cursos de Ciências Sociais (C.S.) —
bacharelado e licenciatura. Antes mesmo desta separação já havia reivindicações,
por parte tanto dos alunos como dos professores, para que no curso houvesse uma
formação mais presente na área da Antropologia, tendo em vista que existia uma
aparente predileção por disciplinas de Sociologia no antigo perfil curricular.
O que quero dizer com isso é que minha turma foi apresentada às Ciências
Sociais através de um perfil curricular que agora teria uma formação mínima no
campo da Ciência Política e um ensino de Antropologia mais presente. Uma das
ideias que mais marcou minha formação como cientista social nesta conjuntura foi a
de que a produção do conhecimento antropológico estava necessariamente
vinculada ao trabalho de campo etnográfico. Tive alguns professores que chegaram
a afirmar em sala de aula que seria muito difícil — para não dizer impossível —
alguém conseguir se auto-identificar como antropólogo sem antes ter realizado uma
etnografia. Em outras palavras, era me ensinado que a etnografia é o meio pelo qual
os antropólogos fazem pesquisa e também a única forma pela qual um indivíduo
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poderia consagrar-se enquanto antropólogo ou antropóloga.


Lembro-me muito bem de um seminário realizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da UFPE (PPGA-UFPE), em comemoração aos seus 40
anos1, no qual dois dos mais antigos professores da casa foram convidados a
discorrerem sobre a formação do PPGA-UFPE. Este caso é peculiar, tendo em vista
que decorrente de discordâncias a respeito da história do programa, o seminário
acabou por se tornar palco de uma briga de egos. Por um lado, um dos professores
era acusado de realizar pesquisas filosóficas, devido à sua formação primeira ter
sido em Filosofia, e por outro, este defendia seu pertencimento ao campo da
Antropologia não pela posterior formação — metrado, doutorado e muitos pós-
doutorados na área —, mas sim pela grande quantidade de trabalho de campo, que,
segundo ele, havia realizado durante suas pesquisas.
Desde as primeiras disciplinas que cursei, meu interesse pela Antropologia já
se tornava evidente, mas o que o curso passava para mim enquanto estudante de
graduação em Ciências Sociais? Quer ser um antropólogo? Faça etnografia! A ideia
basicamente era essa, seja pela implicação teórico-metodológica inerente entre
trabalho de campo etnográfico e antropologia ou pela minha legitimação no campo
acadêmico, seria necessária a realização de um trabalho de campo etnográfico.
Mas o que realmente era isso? Para que eu seja e me sinta como um
antropólogo, precisaria necessariamente realizar uma etnografia? No começo
comprei essa ideia, mas com o passar do tempo comecei a conceber as várias
possibilidades que a Antropologia nos proporciona. A grande quantidade de teses e
dissertações que fazem uso, às vezes até exclusivamente, de fontes históricas já é
suficiente para refutar esta ideia de que o contato mais íntimo possível com os
“nativos” seria a única forma de se produzir um conhecimento antropológico válido.
Embora a Antropologia também tenha se desenvolvido pelo trabalho de
antropólogos que fizeram pouco ou nenhum trabalho de campo — Claude Lévi-
Strauss e Marcel Mauss, respectivamente, parecem ser os maiores exemplos disso
—, nossa disciplina prima pela realização de etnografias. A antropóloga Mariza

1 Por alguns erros matemáticos, o PPGA-UFPE acabou comemorando seus 40 anos por duas
vezes, em 2016 e 2017.
14

Peirano, por exemplo, afirma que a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria
antropológica se desenvolve e se sofistica, justamente a partir do confronto entre os
dois mundos, “[...] quando desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comum no
confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observação da
realidade ‘nativa’ com a qual se defronta.” (PEIRANO,1995, p.122)”.
Na história teórica de nossa disciplina, é a Bronislaw Malinowski que devemos
a consagração de um método específico para a pesquisa antropológica, embora
algumas das propostas malinowskianas já tivessem sido formuladas por Willian
Rivers. Lá na célebre introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental, encontramos
a descrição do que seria a metodologia de pesquisa de Malinowski. Nos
defrontamos com um relato que demonstra uma forte preocupação com a descrição
do método de coleta e manipulação dos dados. Não poderia ser por menos: em um
contexto de fortes influências positivas, o antropólogo polonês estava tentando dar
uma feição científica para a pesquisa antropológica.

Os resultados da pesquisa científica, em qualquer ramo do


conhecimento humano, devem ser apresentados de maneira clara e
absolutamente honesta. [...] A etnografia, ciência em que o relato
honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário que em
outras ciências, infelizmente nem sempre contou no passado com
um grau suficiente deste tipo de generosidade. Muitos dos seus
autores não utilizaram plenamente o recurso da sinceridade
metodológica ao manipular os fatos e apresenta-los ao leitor como
que extraídos do nada. (MALINOWSKI,1978, p.18. Grifo meu).

É bem verdade que hoje, após a publicação dos diários pessoais de


Malinowski, temos conhecimento de que ele não fez tanto uso de sua “sinceridade
metodológica”. Bom, mas a proposta aqui não é discutir a ética da pesquisa
antropológica, mas sim compreender que — apensar dos pesares — é a Malinowski
e seu legado positivista a quem, até os dias de hoje, devemos a consagração do
método etnográfico como ferramenta metodológica por excelência da Antropologia.
O antropólogo Emerson Giumbelli (2002), a respeito deste tema, comenta:

[...]embora seja geralmente admitido que desde os tempos de


15

Malinowski até agora muita coisa mudou na antropologia, a opinião


de que o trabalho de campo seja método privilegiado da antropologia
e a sobreposição entre etnografia e trabalho de campo parecem
hegemônicas. Para Muitos, o “trabalho de campo” consiste num ritual
de passagem obrigatório na formação de um antropólogo.
(GIUMBELLI, 2002, p.92).

Além da ideia do trabalho de campo enquanto um rito de passagem


obrigatório para os antropólogos, há uma compreensão de que os pesquisadores
que optam pelo uso de fontes históricas, tal como arquivos, em detrimento do
contato mais íntimo possível com os nativos, estão sujeitos a serem taxados de
antropólogos de gabinete. Como argumenta Oliveira Cunha (2004), descrições e
interpretações realizadas a partir de fontes documentais caracterizariam uma
atividade periférica dentro do trabalho do antropólogo, secundário e distinto da
pesquisa de campo. Nisto se criou uma ideia de que o exclusivo uso de fontes
documentais na prática antropológica “ou está afastada temporalmente daquilo que
os antropólogos de fato fazem - (...) a prática dos chamados antropólogos de
gabinete - ou constitui marcadores fronteiriços da antropologia com outras
disciplinas”. (CUNHA, 2004, p.293, grifos do autor).
Em meu trabalho de conclusão de curso (TCC), acabei por estudar a relação
entre emoções e processos terapêuticos no candomblé, tendo como campo o Ilé
Axé Vodum Oyá Alabá, terreiro do qual eu faço parte. Realizei uma etnografia! Bom,
mas havia interesse em dar continuidade à minha trajetória acadêmica. Então não
tardei em procurar um tema de pesquisa para assim conseguir desenvolver um
projeto para o mestrado. Ao finalizar meu TCC, tinha em mente que, ao menos por
um tempo, não gostaria de realizar novas pesquisas no meu terreiro. Naquele
momento, meados de 2015, estavam iniciando-se as atividades do Observatório das
Religiões Indo-Afro-Pernambucanas (ORIAPE), um grupo de estudos cujo tema o
próprio nome já revela. No ORIAPE pude ter contato com autores que até então me
eram desconhecidos, pesquisadores de quem eu nunca ouvira falar antes, mas que
realizaram várias pesquisas no Xangô de Pernambuco, produzindo uma grande
quantidade de material etnográfico.
No dia 11 de setembro de 2015, a professora Roberta Campos convidou seus
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orientandos, o que me incluía, para participarem da discussão de sua proposta de


projeto para renovação de bolsa produtividade CAPES, que tinha o título de A Nova
Escola de Antropologia do Recife: A Equipe do Serviço de Higiene Mental (SHM) e a
institucionalização da antropologia em Pernambuco (1930-60). Conjuntamente com
a fala da professora Roberta daquele dia e minhas leituras dos autores do SHM,
pude vislumbrar um projeto que juntaria as principais temáticas de meu interesse
naquele momento (Xangô, jurema, sincretismo, santa aliança, legitimação,
perseguição às religiões de matriz indo-afro-pernambucanas etc.), e além do mais o
campo de pesquisa não seria o terreiro que faço parte.
O projeto foi aprovado e dava-se início a mais um ciclo de minha trajetória
acadêmica. Agora, no mestrado, eu iria realizar uma pesquisa que não tinha um
campo, pelo menos não no sentido como tradicionalmente é utilizado pelos
antropólogos(as). Mas, como consequência de minha formação em Ciências
Sociais, ainda havia em mim um desejo de realizar um contato com o campo, com
pessoas, algo face a face. Então confeccionei uma lista com nomes de
personalidades do circuito religioso indo-afro-pernambucano que julguei que
poderiam de alguma forma contribuir em minhas pesquisas. Estavam nessa lista Pai
Valfrido, Manuel Papai, Mãe Amara, Ivo da Xambá, Raminho de Oxóssi entre outros.
Alguns, como Mãe Amara e Pai Valfrido, vivenciaram os anos do SHM, ambos hoje
com avançada idade.
No final de meu primeiro ano de mestrado, realizei a qualificação de meu
projeto de pesquisa. A professora Zuleica Dantas, que fez parte da banca de
qualificação, já me avisava que pouco ou nenhuma informação relevante seria
conseguida com essas entrevistas, já que ela mesma tentara entrevistar alguns
desses indivíduos com intenções próximas às minhas. Citando nome após nome, a
professora Zuleica elencava os motivos pelos quais acreditava que aquelas pessoas
não poderiam me ajudar no exercício de reconstruir o que foi a atuação do SHM ou
o papel que foi desempenhado pelos pais e mães de santo neste contexto.
Contudo, como um bom filho de Iemanjá, não poderia deixar de ser teimoso,
tinha que eu mesmo tentar realizar essas entrevistas. Seja pelo avançar da idade,
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pelas diferentes trajetórias ou pela militância que exercem nos dias de hoje, meus
entrevistados não tinham narrativas que me proporcionassem informações
relevantes. Sem muito sucesso, logo desisti e vi que a professora Zuleica tinha
razão. A melhor forma de compreender a relação do SHM e o campo indo-afro-
pernambucano não seria no contato íntimo com os “nativos”, ao menos nos termos
em que se propunha a minha pesquisa. Com isso em mente, vi que a única
alternativa para realizar esta pesquisa seria me debruçar exclusivamente sobre
fontes históricas, foi então que me voltei para os arquivos.

1.3 A PESQUISA ANTROPOLÓGICA E OS ARQUIVOS

Como vimos, há a hegemonia de um discurso que coloca e sobrepõe


Antropologia e trabalho de campo etnográfico, muito embora nós não tenhamos uma
definição clara do que seria esse trabalho de campo. Em nosso contexto nacional,
periférico, onde muitas vezes por limitações, sejam técnicas ou orçamentárias,
torna-se impossível a realização de pesquisas de campo prolongadas, aos moldes
malinowskianos.
Variando de acordo com o tema, objeto, enfoque teórico e as abordagens,
podemos identificar um número quase sem fim de formas de realizar trabalho de
campo. O que sabemos é que não há uma estrutura prescrita para realizar
etnografias, mesmo com a leitura prévia de etnografias consagradas, é apenas na
prática que se aprende a fazer o trabalho de campo.
Mas então a pesquisa antropológica necessariamente precisa passar pela
realização de etnografias? Bom, podemos encontrar duas respostas na literatura
antropológica, uma que relativiza a noção de campo e outra que afirma que há
Antropologia fora da etnografia.
O antropólogo Emerson Giumbeli (GIUMBELI, 2002), em seu texto Para Além
do “Trabalho de Campo”: reflexões supostamente malinowskianas, está preocupado
em definir teoricamente e metodologicamente uma antropologia onde sua relação
com o trabalho de campo não exclua outras possibilidades metodológicas. Para
18

tanto, Giumbeli vai buscar em um autor um tanto inusitado argumentos para


sustentar suas ideias. Realizando uma releitura de Malinowski, Giumbeli chega à
conclusão de que o “objetivo fundamental da pesquisa etnográfica” deve ser
buscado a partir de uma variedade de fontes, que terão sua pertinência avaliada
pela capacidade de proporcionar acesso aos “mecanismos sociais” e aos “pontos de
vista” em suas “manifestações concretas”. Em outras palavras, Giumbeli está nos
falando que há situações em que as fontes mais pertinentes são exatamente as que
Malinowski chama de “documentos materiais fixos”. Quando falamos de um objeto
histórico, são esses documentos as únicas fontes disponíveis para o antropólogo.
Mas atentem, Emerson Giumbeli não está se referindo exclusivamente a
objetos históricos. O autor diz que “mesmo quando estivermos diante de um objeto
contemporâneo, é possível que a análise de fontes documentais seja mais indicada
do que um contato mais íntimo possível com os nativos” (GIUMBELI, 2002, p. 102).
Não se trata de privilegiar uma em relação à outra, mas identificar em qual das
fontes estão “escritas as informações metodologicamente relevantes e socialmente
significativas” (GIUMBELI, 2002, p. 102.).
Se por um lado, na observação participante, a preocupação é deixar os
informantes falarem, nas fontes textuais deve-se lidar com o que já foi dito
(GIUMBELI, 2002). Na interpretação que faço de Giumbeli, o crucial para o autor
não é privilegiar um mecanismo metodológico em detrimento de outro, mas sim
compreender qual forma de coleta de dados mais se adequa na tarefa de encontrar
“o ponto de vista do nativo”. Afinal de contas, a Antropologia não se define por um
objeto específico nem por uma metodologia específica, mas sim enquanto uma
ciência da diferença, como diria Claude Lévi-Strauss (2003). Neste sentido, seja pela
busca do contato mais íntimo com os nativos ou pela investigação em fontes
textuais, o importante neste processo de encontro pelo outro é fazer emergir vozes
que de outro modo permaneceriam submersas.
Por outro lado, Olívia Maria Gomes da Cunha nos traz uma visão um pouco
diferente da de Emerson Giumbeli. Em seu artigo Tempo Imperfeito: uma etnografia
do arquivo, a antropóloga nos traz uma reflexão mais ampla a respeito da própria
19

ideia de campo. Nesse sentido a autora produz uma relativização sob o conceito de
etnografia, onde esta pode ser compreendida como uma modalidade de
investigação antropológica que vai tomar determinados conjuntos documentais como
campo de interesse para realizar uma reflexão crítica acerca das formas de produzir
histórias da disciplina.
A sua argumentação principal está no fato dos arquivos não se construírem
como produto final de uma série de intervenções de caráter técnico, mas sim um
objeto que poder ser submetido a um contínuo processo de reflexão sistemática; um
lugar onde a história não é buscada, mas sim contestada. Nesse sentido, Olívia
Cunha comenta:
Diferentes análises e perspectivas em torno do uso e natureza dos
acervos arquivísticos convergem em uma mesma preocupação: é
preciso conceber os conhecimentos que compõem os arquivos como
um sistema de enunciados, verdades parciais, interpretações
histórica e culturalmente construídas – sujeita à leitura e novas
intepretações. (CUNHA, 2004, p. 292).

A antropóloga sustenta o ponto de que nós, antropólogos e antropólogas,


pretendemos bem mais do que simplesmente ouvir e analisar as interpretações
produzidas pelos sujeitos e grupos que estudamos. Para além disso, queremos
compreender os contextos (simbólico e social) da sua produção. Nos deparamos
então com o ponto que, segundo a autora, “possibilita tomarmos os arquivos como
um campo etnográfico” (CUNHA, 2004, p. 293. Grifos da autora).

Se há possibilidade de as fontes “falarem” é apenas uma metáfora


que reforça a ideia de que os historiadores devem “ouvir” e,
sobretudo, “dialogar” com os documentos que utilizam em suas
pesquisas, a interlocução é possível se as condições de produção
dessas ‘vozes’ forem tomadas como objeto de análise – isto é, o fato
de os arquivos terem sido constituídos, alimentados e mantidos por
pessoas, grupos sociais e instituições (CUNHA, 2004, p. 293).

Falar em uma etnografia do — ou no — arquivo pode, no mínimo, parecer


algo inusitado, tendo em vista que se pensarmos em sua prática, as técnicas
utilizadas são bastante diversas (CUNHA, 2004). Bom, mas, como há pouco dizia,
tenhamos em mente que a nossa disciplina não se define por uma metodologia nem
20

por um objeto específico, mas sim pela busca ou compreensão do native’s point of
view. O conhecimento antropológico é produzido a partir do confronto do particular
com o geral, entre a teoria acumulada e a observação dos nativos, sendo a
etnografia a forma pela qual esse conhecimento seria construído. Contudo ainda
hoje não há um consenso sobre o que seria esse trabalho de campo etnográfico.
Afinal “[...] transmitir como se faz pesquisa de campo em antropologia era [é] uma
tarefa impossível” (PEIRANO, 1995, p. 124).
Penso então que os argumentos utilizados tanto por Emerson Giumbelli como
por Olívia Cunha não são excludentes, mas até complementares. De fato, há objetos
em que os mecanismos metodológicos mais indicados para obtenção de dados
relevantes não é o contato direto com o nativo. Se pensarmos nos termos de uma
meta-antropologia, na qual os pesquisadores se voltam para pensar a própria
disciplina e as perspectivas que informam e informaram os seus pares, é no arquivo,
nos dados históricos, nos textos produzidos onde encontraremos o processo de
construção de sua objetificação — o lugar onde se realiza e pode ser compreendido.
É desta forma que poderemos tratar os dados obtidos das leituras — do
material bibliográfico, das matérias de jornais, das fontes textuais de forma geral —,
como textos, passíveis assim de um profundo trabalho de interpretação
antropológica, como nos ensina Clifford Geertz (1979); realizando dessa maneira
uma meta-antropologia (RABINOW, 1999).
Dito isto, tenhamos em mente que a natureza do conhecimento antropológico
está fundada numa relação entre o “eu e o outro” e que historicamente a construção
dessa diferença dava-se em termos tanto culturais quanto geográficos. Não há como
esquecer das célebres palavras de Malinowski ao tentar transmitir ao leitor o que foi
o início de seu trabalho de campo junto aos nativos das Ilhas Trobriand: “Imagine-se
o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a
uma ladeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até
desaparecer de vista” (MALINOWSKI, 1978, p.19)
O antropólogo realizava longas viagens para defrontar-se com seu “outro”,
garantindo com isso a premissa do estranhamento antropológico, tão cara à nossa
21

disciplina. Como Carmen Tornquist (2007) e Cleonardo Mauricio Junior (2012)


argumentaram, nas sociedades urbano-industriais essas fronteiras (geográficas e
culturais) passaram a ter fronteiras muito tênues (até fluídas), havendo então a
necessidade de serem estabelecidas simbolicamente pelo antropólogo que está
realizando a pesquisa.
Penso então que, se as fronteiras podem ser estabelecidas geograficamente,
culturalmente e até simbolicamente, por que não podem ser estabelecidas
temporalmente? Bom, esta é a questão sob a qual venho a refletir. Em minha
pesquisa de mestrado, o que me separa dos meus “nativos” são quase nove
décadas — precisamente 87 anos. Minha proposta é refletir sobre a história e a
produção de uma série de pesquisadores, que por sua atuação deram o pontapé
inicial na institucionalização da Antropologia em Pernambuco, lugar que por muito
lhe foi negado no quadro da Antropologia brasileira.
Partindo da análise de uma série de fontes históricas, quero refletir sobre a
atuação do SHM, visando com isto compreender o contexto simbólico e social da
produção de seu conhecimento. Daí então, refletindo sobre alguns pontos principais
que norteiam as minhas analises, o principal é compreender como se deu a atuação
do SHM, mas também dos pesquisadores da Nova Escola do Recife 2 — como foi
nomeada por Roquette-Pinto. Entender também como criou-se solo fértil para surgir
uma santa aliança entre esses pesquisadores e os pais e as mães de santo em
Pernambuco, tendo em vista que o SHM era o órgão que expedia as licenças de
funcionamento para os terreiros, logo era ele quem definia o que seria um terreiro
legítimo, sendo então digno de manter seu funcionamento e também os que
deveriam ser submetidos a intervenção policial. Esta dissertação também se
preocupa em compreender os elementos que são acionados na construção da
legitimação dos terreiros, fazendo uma comparação com o caso baiano.
Para atingir estes objetivos, a minha pesquisa se valeu do material coletado e
arquivado pelo projeto de pesquisa A geopolítica acadêmica da antropologia da

2 Como veremos no decorrer dos capítulos os membros da Nova Escola do Recife fizeram parte do
Serviço de Higiene Mental, entretanto a produção de alguns, como Gonçalves Fernandes,
Waldemar Valente, René Ribeiro etc., vão além das propostas do SHM, dando continuidade a
suas pesquisas mesmo com opôs o termino de seus vínculos com o SHM.
22

religião no Brasil, ou como a “Província” vem sendo submetida ao leito do percurso,


coordenado pela professora doutora Roberta Campos. Foi coletado um vasto
material bibliográfico que incluía a produção acerca do SHM, bem como a produção
dos técnicos do SHM relativo à temática da religião, encontrado na Revista da
Assistência a Psicopatas de Pernambuco e na Revista de Neurobiologia, arquivadas
na Biblioteca Central e na biblioteca do Centro de Ciências Biológicas da UFPE.
Além disso foram encontradas outras produções bibliográficas, relativas à temática
da religião, dos então técnicos do SHM na biblioteca da Fundação Joaquim Nabuco
(FUNDAJ).
Para além disso, pude ter acesso aos arquivos de pesquisa da professora
Zuleica Dantas3, que gentilmente os disponibilizou. Lá consta um grande número de
artigos de jornais, todos da década de 1930. Um material já catalogado, digitalizado
e separado por jornais, contendo temas como a repressão policial aos terreiros de
Pernambuco, o Primeiro Congresso Afro-Brasileiro (1º CAB) e outros assuntos que
estão relacionados com a atuação do Serviço de Higiene Mental. Dentre os jornais
utilizados como fonte de dados para esta pesquisa estão o Diario de Pernambuco,
que realizou uma grande cobertura a respeito das atividades do 1º CAB, a Folha da
Manhã (onde podemos encontrar uma série de matérias sobre incursões policiais
aos terreiros), a Revista Fronteiras (onde encontram-se críticas à realização do 1º
CAB e ao SHM) e o Boletim de Higiene Mental (onde há publicações dos técnicos do
SHM).
Também recorri a alguns arquivos online. O Grupo de Estudos e Pesquisa:
Higiene Mental e Eugenia (GEPHE) realizou um árduo trabalho para digitalizar e
disponibilizar os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, editados de 1925 a 1947, foi
o principal meio de divulgação de boa parte da produção teórica da Liga Brasileira
de Higiene Mental (LBHM)4. Também realizei levantamentos no acervo online da
3 Zuleica Dantas Pereira Campos é atualmente professora titular da Universidade Católica de
Pernambuco (Unicap). Em sua tese de doutorado, O Combate ao Catimbó: Práticas repressivas
às religiões afro-umbandistas nos anos de trinta e quarenta, como o próprio título já nos diz,
realizou pesquisas a respeito da repressão institucionalizada às religiões “afro-umbandistas”. Teve
como um de seus principais enfoques a atuação de Ulysses Pernambucano de Melo e de seu
Serviço de Higiene Mental.
4 Os arquivos podem ser encontrados no seguinte link: http://old.ppi.uem.br/gephe/index.php/arquivos-
digitalizados/14-sample-data-articles/85-arquivos-brasileiros-de-higiene-mental (Acessado dia 02/03/2018)
23

Companhia Editorial de Pernambuco, onde encontrei a coleção do Jornal Diário da


Manhã (1927 – 1985)5. Por último, também consultei o Acervo Digital da Biblioteca
Nacional6 em busca de material relevante para minha pesquisa, usando como chave
de busca “Serviço de Higiene Mental”, “Liga Brasileira de Higiene Mental”, “Ulysses
Pernambucano”, “Gilberto Freyre” e também os nomes de outros técnicos do SHM.

1.4 PLANO DOS CAPÍTULOS

Esta dissertação é composta por dois capítulos. O primeiro deles é intitulado


O Saber Médico Legal e a Repressão Policial aos Terreiros em Pernambuco: O
lugar do Serviço de Higiene Mental. Minha preocupação neste capítulo é
contextualizar o momento histórico em que se deu a atuação do SHM, destacando
que nesta virada do século havia a preocupação de pensar e transportar o Brasil
para uma modernidade, salientando que é neste sentido que a medicina começa a
definir seu campo de atuação, transpondo então o espaço do hospital, sendo
pensada enquanto uma prática social, uma forma de exercer o controle social a
partir do corpo (FOUCAULT, 1979).
É no primeiro capítulo também onde é apresentado Ulysses Pernambucano,
frisando as interpretações que recaem sobe os seus ombros, mostrando suas
influências e o papel que o SHM desenvolveu neste contexto, mas relativizando a
hipótese repressiva e assim abrindo caminho para compreender as complexas
relações que se estabeleceram entre os pesquisadores e os pais e as mães de
santo. Seguindo os caminhos que foram indicados por Yvonne Maggie (1992) e
Beatriz Góis Dantas (1988), viso deixar claro que a perseguição aos terreiros, em
especial aos de Pernambuco, não foi irrestrita como se poderia imaginar, algumas
casas foram protegidas pelos intelectuais locais, elevadas ao status de religião e
distinguidas das que foram consideradas centros de enganação.
No segundo capítulo, intitulado Um jogo de legitimações; Uma Santa Aliança,
5 O acervo pode ser consultado através do seguinte link: http://www.acervocepe.com.br/diario-da-
manha.html?selAnosReader=1927&selDecReader=1920 (Acessado dia 02/03/2018)
6 O Acervo digital de Biblioteca Nacional pode ser consultado através do seguinte link:
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ .
24

por sua vez, é onde apresento o conceito de santa aliança, primeiro descrevendo o
surgimento do fenômeno entre os intelectuais da Escola Nina Rodrigues,
destacando que o fato mais conhecido e que mais impactou o campo indo-afro-
brasileiro decorrente desta aliança foi a construção da ideia — ou ideologia — da
pureza nagô. Logo após, apresento algumas das contradições que encontrei na
literatura a respeito do papel que foi desempenhado na construção da noção de
pureza nagô por Gilberto Freyre, Ulysses Pernambucano e outros intelectuais que
por estes foram influenciados; visando com isto repensar suas posições nesta
relação. É no segundo capítulo também que destaco o importante papel que foi
desempenhado pelo Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, destacando as críticas que
foram tecidas a ele, tanto pelos opositores da época bem como os do presente.
É neste capítulo também onde relativizo o papel que foi desempenhado pelo
SHM na repressão aos cultos, destacando a atuação de alguns pais e mães de
santo no processo de construção da legitimação de alguns terreiros e
deslegitimação de tantos outros. Para tanto também identifico as categorias que
foram ser acionadas, neste contexto, para identificar aqueles terreiros que produzem
religião e os que são comandados por charlatões, curandeiros e exploradores.
Continuando por este caminho, recorro à antropologia dos objetos, mais
especificamente a uma semiologia dos objetos, para identificar alguns dos
elementos que atuam na deslegitimação de um terreiro, me valendo dos conceitos
de economia representacional e ideologia semiótica, tal qual foram utilizados por
Matthew Engelke (2007) e Webb Keane (2003), para formular e interpretar alguns
indicadores de que a jurema, por conta de sua relação com certos objetos
específicos, estava em posição desfavorável em relação às outras religiões.
25

2 O SABER MÉDICO LEGAL E A REPRESSÃO POLICIAL AOS TERREIROS: O


LUGAR DO SERVIÇO DE HIGIENE MENTAL

Minha alma recebeu o batismo dos tambores


atabaques, gongôs e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro maracatu
(Sou Negro – Solano Trindade)

2.1 COMBATE AO FEITIÇO

É interessante vermos que entre o final do século XIX e começo do XX a soci-


edade brasileira passou por grandes transformações no campo político, econômico e
social. A escravidão foi abolida em 1888, foi neste período que caminhamos para
uma nova forma de governo; em 1889 é declarada a República, é feita a promulga-
ção de uma nova constituição, etc. Na República Velha ainda não podemos falar de
um processo de racionalização das instituições — consequentemente do Estado
(algo que só de fato encontramos no Estado Novo), entretanto já vemos esboços
desse processo. No referido momento histórico, se inicia a separação entre Estado e
Igreja, a especialização de profissões e as tentativas do Estado brasileiro de secula-
rizar a vida7 de seus cidadãos. Estava posta a preocupação de trazer o Brasil para a
modernidade, e nas tentativas de modernização multiplicavam-se os embates entre
o tradicional e o moderno (ROCHA, 2003).
Como nos diz Edyna Rocha, a cidade tem papel fundamental nesse caminho
para a modernidade, sendo talvez o maior símbolo desta. O século XX é marcado
pela transição de um padrão de vida agrário comercial para o urbano industrial. As
transformações começam “[…] principalmente a partir da década de 20 [1920], ace-

7 É necessário esclarecer esse ponto: embora possamos ver processos de secularização dentro do
Estado brasileiro, isto se restringe a alguns aspectos específicos, como nos casos citados no
texto. Não podemos esquecer que durante a República Velha ainda tínhamos um Estado católico
e não laico.
26

lera-se. A concentração urbana atrelada à industrialização vinha alterando as feições


tradicionais. Mas já eram significativas as reformas urbanas que objetivavam tornar
o Recife uma cidade moderna.” (ROCHA, 2003. p. 18)
Ainda sobre a modernização do Recife, a historiadora nos diz:

Antes do século XX, o esforço administrativo voltava-se muito para


encobrir os problemas urbanos. Mas, ao lado disto, o Recife ganhava
novas e modernas moradias e avenidas. Senhores de engenho
transferiam-se para a cidade, onde construíram seus sobrados. As
modificações no cenário urbano da cidade foram mais evidentes nas
primeiras décadas do citado século. Tendo em vista que por esta
época a população do Recife crescera consideravelmente, passando
de 113.106 para 239.000 habitantes, sinalizando um rápido e desor-
denado processo de urbanização, com graves problemas de saúde
coletiva, de desajustamento social, de pauperismo. (ROCHA, 2003)

Diante deste quadro, o saber médico também passava por modernizações.


Até meados do século XIX encontrávamos, segundo Rosilene Gomes (2015), uma
hegemonia das práticas terapêuticas populares em relação à medicina científica, e
alguns fatores contribuíam para isso, como a multiplicidade de sistemas terapêuticos
presentes no território brasileiro, uma pequena quantidade de médicos à disposição
e o baixo poder de cura oferecido.
A medicina científica lutava pela definição de seu campo de atuação e por sua
especificação em relação aos outros saberes tradicionais. Podemos identificar um
processo de diferenciação das competências desde pelo menos o começo dos anos
1800, com a criação dos primeiros cursos de medicina e as primeiras tentativas de
regulamentar as práticas de cura (COELHO, 1999), mas é apenas na segunda meta-
de do século XIX que este processo começa a tomar força, o saber médico passa a
ganhar espaço perante as práticas concorrentes, “os curandeiros” 8, um reflexo disso
são as transformações ocorridas nas leis, como veremos adiante.

8 Rosilene Gomes Farias (2015) pontua que o termo “curandeiro” é utilizado para designar aqueles
indivíduos que estavam exercendo de forma ilegal “as artes de curar”, é uma categoria que está
vinculada à ordem do discurso, uma categoria acusatória produzida para discriminar e criminalizar
aqueles que, por não possuírem uma formação específica, estariam exercendo ilegalmente a
medicina.
27

Com relação às mudanças ocorridas no campo da medicina alopática neste


período, Rosilene Gomes (2012) nos lembra de um pitoresco caso ocorrido em Per-
nambuco. No ano de 1856, o episódio de Pai Manoel, um curandeiro africano, escra -
vo do Engenho Guararapes, que durante a epidemia de cólera que atingiu a região
desenvolveu um tratamento para aquela doença, fazendo com que muitos recifenses
acreditassem em sua capacidade de curar a cólera. Na mesma proporção em que
ele obtinha sucesso no tratamento de alguns pacientes, aflorava na população do
Recife uma incredibilidade em relação aos métodos da medicina, que disputava a
hegemonia sobre as práticas de cura em Pernambuco.

A falta de bases sólidas e de uniformidade nos tratamentos adotados


pelos médicos encorajava a desconfiança que a população cultivava
em relação à medicina alopática. Essa reputação duvidosa era ali-
mentada à medida que transparecia a incapacidade dos doutores
para curar a maior parte das enfermidades. Isso denunciava que a
medicina podia ser tão ineficaz quanto qualquer outra forma de cura
e deixava a impressão de que alguns daqueles médicos pudessem
causar muitos danos a seus pacientes, estimulando a procura de cu-
randeiros. (FARIAS, 2012. p.219)

No relato que a historiadora Rosilene Gomes (2012) nos traz, fica clara a for-
ça e a aceitação que Pai Manoel teve junto à população do Recife nesta segunda
metade do século XIX, ele próprio chegou inclusive a dividir o espaço com médicos
atuando no Hospital da Marinha do Recife. Lendo agora sobre um fato como este,
não deve ser muito difícil imaginarmos o constrangimento que este episódio trouxe
para a classe médica da época.

O episódio, entretanto, repercutiu mal nas províncias vizinhas e na


Corte imperial, sobretudo na Academia Imperial de Medicina, visto
que colocava a classe médica em descrédito diante da população. O
fato foi apontado como o principal motivo da renúncia coletiva dos
membros da Comissão de Higiene Pública, logo substituídos por uma
Comissão Interina (Liberal..., 26 maio 1856). (FARIAS, 2012. p.217)

A aceitação de Pai Manuel perante alguns setores da sociedade recifense não


pode ser explicada pela ideia de que a oposição feita à medicina científica tinha
como premissa ou base a ignorância. Muitos aspectos precisam ser colocados nesta
28

“equação”: tradição e crenças da população, as dificuldades econômicas, a proximi-


dade física e os laços de confiança (GOMES, 2012).
Um ponto que gostaria de destacar é o baixo poder de cura que a medicina
alopática podia prover aos indivíduos que a ela recorriam em busca de alívio para os
seus males neste período (meados do século XIX e começo do XX). Sobre isso Ed-
mundo Coelho (1999) nos traz algumas informações importantes, pois o que tínha-
mos era uma medicina de caráter especulativo e exploratória.

Sem referências mais sólidas, cada médico improvisava seu próprio


método alterando-o ao sabor de observações superficiais e pouco
sistemáticas, aplicando tratamentos inspirados pelo mais raso empi-
rismo […] Examinando tais materiais nos Annaes de medicina Brasi-
liense, órgão oficial da Academia Imperial, o leitor terminará com a
desconfortável impressão de que os médicos – os de maior prestígio
– não tinham a mais longínqua noção do que faziam, procedendo
com uma absurda dose de arrogância e irresponsabilidade. (COE-
LHO, 1999, P. 107-109.)

O saber médico não estava tentando excluir os métodos de outras práticas de


cura. Como nos diz Rosilene Gomes (2012), havia a possibilidade da circulação de
saberes, e os médicos buscavam conhecimento sobre as doenças em saberes po-
pulares e em outras práticas que pudessem ajudar no tratamento dos pacientes. O
próprio Alexandre de Souza Pereira Campos, secretário da Comissão de Higiene
Pública, foi até o Engenho Guararapes em busca de respostas do porquê as pesso-
as naquela localidade não terem sofrido com a cólera (FARIAS, 2012).
O caso de Pai Manuel acaba por se tornar peculiar pelo fato de sua presença
ser autorizada no mesmo espaço de atuação dos médicos, o Hospital da Marinha.
Desde o começo do século XIX podemos identificar um processo de diferenciação
dos campos de atuação, visando tornar a prática da cura um elemento exclusivo da
classe médica. A inclusão de Pai Manuel neste campo feriu esta configuração, e
consequentemente repercutiu de maneira extremamente negativa perante os mem-
bros da classe médica. Este processo de diferenciação é compreendido aqui pela
noção de campo do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1996), tendo em vista que os
médicos estavam lutando para “reivindicar o monopólio da competência legítima que
29

os define como coisa particular e quanto a lembrar a fronteira que separa os profissi -
onais e os leigos” (BOURDIEU, 2004).
Ao trazer aqui o caso de Pai Manoel, tenho o intuito de ilustrar os termos nos
quais estavam postas as relações entre a biomedicina e os sistemas alternativos de
cura durante este período. É importante notarmos que casos como esses eram co-
muns no período e que foi nesta conjuntura, entre o final do século XIX e o começo
do XX, que o saber biomédico galgava seu espaço. Neste sentido as transformações
na legislação foram fundamentais para esse processo.
A medicina começava a transpor o espaço do hospital, sendo pensada en-
quanto uma prática social, uma forma de exercer o controle social a partir do corpo.
Tal fenômeno foi estudado por Michel Foucault (1979) e por ele denominado de bio-
política. Este fenômeno chega ao Brasil no século XIX por intermédio dos médicos
que foram completar seus estudos na Europa e voltaram ao país para exercer suas
profissões, influenciando, com isso, as ações governamentais, como a organização
do espaço público; já no século XX, influencia o desenvolvimento dos serviços públi-
cos de saúde e um maior controle do Estado sobre a sociedade brasileira (GOMES,
2015).
Alguns marcos legais são fundamentais para a execução do controle social a
partir da biopolítica, entre eles temos o Código Penal de 1890. Lá, em seu capítulo
III, intitulado Dos Crimes Contra a Saúde Pública, encontramos os seguintes artigos

Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte


dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hyp-
notismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis
e regulamentos. Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e
multa de 100$ a 500$000. Paragrapho unico. Pelos abusos commet-
tidos no exercicio ilegal da medicina em geral, os seus autores soffre-
rão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos cri-
mes a que derem causa.

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de


talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou
amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para
fascinar e subjugar a credulidade publica: Penas - de prisão cellular
por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. § 1º Si por influen-
cia, ou em consArt. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus
30

ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a do-


simetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitade-
quencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou
alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas: Pe-
nas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a
500$000.§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da
profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico
que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou as-
sumir a responsabilidade delles.

Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo


para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, subs-
tancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo
assim, o officio do denominado curandeiro: Penas - de prisão cellular
pArt. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte
dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hyp-
notismo ou magnetismo animal, sem estar habilitador um a seis me-
zes e multa de 100$ a 500$000. Paragrapho unico. Si o emprego de
qualquer substancia resultar á pessoa privação, ou alteração tempo-
raria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções phy-
siologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou
apparelho organico, ou, em summa, alguma enfermidade: Penas - de
prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. Si re-
sultar a morte: Pena - de prisão cellular por seis a vinte e quatro an-
nos.

Art. 159. Expôr á venda, ou ministrar, substancias venenosas, sem


legitima autorização e sem as formalidades prescriptas nos regula-
mentos sanitarios: Pena - de multa de 200$ a 500$000.

Art. 163. Alterar, ou falsificar, substancias destinadas á publica ali-


mentação, alimentos e bebidas: Penas - de prisão cellular por tres
mezes a um anno e multa de 100$ a 200$000
(BRASIL, 1890).

Yvonne Maggie (1992) vai identificar o Decreto nº 847, de 11 de outubro de


1890 como o marco zero de uma repressão mais institucionalizada: “[…] a Repúbli-
ca, ao instituir os artigos 156, 157 e 158 do Código Penal, criou mecanismos regula-
dores das acusações a produtores de malefícios.” (MAGGIE, 1992, p. 39). Diante
disso, podemos ver como o Estado começa a envolver-se em questões que até en-
tão não se faziam presentes em seu leque normativo:
31

O estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e inter-


veio no combate aos feiticeiros regulando acusações, criando juízos
especiais e pessoal especializado. À medida que os anos se passa-
vam, instituições iam sendo criadas na polícia para regular o comba-
te, identificar e punir os produtores de malefícios. Essa função do Es-
tado permanece até hoje, mas de 1890 a 1940, com a introdução de
uma mudança importante no Código Penal, o aparato jurídico se ins-
titucionalizou e passou a ser usado com mais intensidade como ins-
trumento de combate aos feiticeiros. (MAGGIE, 1992, p.23)

As transformações ocorridas na legislação exerceram um impacto profundo


nos cultos de matriz indo-afro-brasileira, a repressão atingiu os terreiros 9, muitas ca-
sas de axé foram fechadas e suas práticas religiosas criminalizadas, sendo vistas
como locus de práticas ilegais de curandeirismo e como locais propícios a desenca-
dear transtornos psíquicos (a ligação entre transe de possessão e transtornos men-
tais).
Sobre o combate às práticas mágico-religiosas dos negros no Brasil, Zuleica
Dantas Pereira Campos nos mostra duas vertentes “chicoteanas”, a primeira diz res-
peito ao enquadramento das religiões dos negros como atentados criminosos contra
a saúde pública e a segunda uma tentativa científica de desqualificar os negros no
período pós Lei Áurea. O marco zero da perseguição aos cultos pode ter sido o
Código Penal de 1890, mas sua consolidação se dá, de um ponto de vista legal, com
o Código Penal de 1932, onde as referências a respeito do exercício do curandeiris-
mo e da magia continuavam presentes. (CAMPOS, 2015). Em 1890 temos a proibi-
ção às práticas ditas mágico-religiosas e em 1940 temos sua completa criminaliza-
ção. (GOMES, 2015)
As transformações na legislação acabaram por colocar os holofotes nas práti-
cas das religiões de matriz indo-afro-brasileira. Tanto o candomblé como o catimbó
possuem um elemento em comum: o ebó, esta palavra da língua iorubá possui vá-
rios significados e designa genericamente oferendas e sacrifícios oferecidos a enti-
dades como forma de busca de proteção e/ou atenção a suas suplicas. Roger Basti-
de (1945) identifica o ebó como o elemento mágico, a magia, o feitiço, que em es-

9 Terreiro é a denominação dada aos templos onde são cultuadas as religiões de matriz indo-afro-
brasileira.
32

sência fazem parte dessas religiões. O combate à magia e ao curandeirismo não po-
deria deixar de ser um combate a estas religiões.

2.2 CONTROLE, SABER E O PAPEL DO SERVIÇO DE HIGIENE MENTAL

Podemos identificar então um interesse por parte do Estado de coibir certas


práticas mágico-religiosas. Com isso, os terreiros acabaram por atrair a atenção de
intelectuais que tinham o desejo de compreender e controlar estes fenômenos. Te-
mos uma literatura socioantropológica que tem como um de seus objetivos dar conta
dessa hipótese repressiva; para autores como Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Ro-
ger Bastide (2010; 1942; 1971), o afro-brasileiro surge como uma resposta às bruta -
lidades de escravidão, escondendo os elementos de seus cultos sob a máscara dos
santos católicos (MAGGIE, 1992).

A ideia central formulada pelos estudiosos do assunto é a de que os


senhores brancos reprimiam os folguedos e a religião dos escravos
na Colônia de forma brutal, sendo o sincretismo religioso resultado
dessa repressão, que fez com que os escravos fingissem e escon-
dessem divindades africanas sob a máscara de santos católicos [...]
Surgiu então uma nova religião, denominada afro-brasileira (MAG-
GIE,1992, p. 23)

A repressão em Pernambuco foi um fato, muitos terreiros foram fechados,


seus líderes acusados e presos, seus artefatos apreendidos, como podemos ver
nessa matéria publicada no jornal Folha da Manhã, em 24 de fevereiro de 1938, sob
o título de Bruxaria! Vassoura, chifres de boi e aguardente.

A polícia continua a bater a cidade, de canto a canto, extinguindo


xangôs e bruxarias. Hontem, ás 17 horas, o investigador 19 acompa-
nhado de outros elementos, cercou a casa de José de Almeida, sita
em Mangabeira de baixo, 128, districto de Casa Amarella. Casa som-
bria, baixa, cheia de mysterio e sob o seu tecto funcciona um xangô,
onde o diabo tem audiência toda meia noite..... Àquella hora, dentro
da casa, dominavam o silêncio e um ar abafado, cheirando a diabo e
a cascas seccas. José de Almeida, dono da casa, é um estranho per-
sonagem mettido a falar com astros e phantasmas. No momento cei-
33

ava tapioca e uma tijela de café. Os seus olhos grandes e phospho-


rescentes fixavam um canto da pequena sala sombria.
Deante da visita inesperada da polícia, parou de comer, levantou-se
e entregou os pontos. E elle proprio foi entregando á polícia uma va-
riada collecção de objectos do culto: uma boneca preta com olhos de
vidro e cabellos negros, uma grande figa encarnada, duas originaes
vassouras, ornamentadas com pulseiras e coraes, destinadas ao pe-
sado serviço de arredar espíritos ruins, um chifre de boi, maracás,
uma espada de metal, e outros curiosos objectos.
Adeante, varios botijões com aguardente também foram apprehendi-
dos.
José de Almeida foi intimado a comparecer á polícia, onde será iden-
tificado. (FOLHA DA MANHA, 1938)

Entretanto, há um contraponto à tese da repressão. As autoras Yvonne Mag-


gie e Beatriz Góis Dantas (1992; 1988), por exemplo, tentam relativizar esta hipótese
repressiva. Ambas demonstram como, dentro do quadro das perseguições, havia
uma assimetria na prática repressiva, enquanto alguns terreiros eram violentados
outros gozavam do prestígio e da proteção de intelectuais locais. Esses últimos,
para as autoras, seriam, geralmente, as casas classificadas como sendo de origem
nagô e que ainda incorporam em sua mitologia e liturgia a plena ortodoxia. Eram os
nagôs puros que estariam isentos de acusações, livres dos rótulos de charlatões e
curandeiros, elevados ao status de religião e fora do alcance da repressão policial.
Este é o caso dos terreiros da cidade de Salvador. Contudo, em algumas outras lo-
calidades, como em Pernambuco, a pureza não estava posta como questão central
para os pesquisadores na separação daqueles que promoviam a verdadeira religião
e aqueles que estavam a desenvolver práticas de curandeirismos e charlatanismo.
Como dito antes, em Pernambuco a perseguição às práticas de magia e cu-
randeirismo possuía as suas particularidades. A história da repressão das religiões
mediúnicas no Recife é marcada pela experiência de Ulysses Pernambucano e sua
equipe, principalmente nos anos de 1932 a 1935, período este em que Pernambuca-
no, enquanto dirigente da Assistência a Psicopatas do Recife (APR), cria e dirige, no
interior desta instituição, o Serviço de Higiene Mental (SHM) (GUILLEN, 2013).
O SHM foi parte de um movimento de reforma psiquiátrica. Encabeçado pelo
educador e médico psiquiatra Ulysses Pernambucano de Melo Sobrinho, nascido no
ano de 1892, no Recife, que obteve o título de doutor em medicina aos 20 anos pela
34

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com a tese Sobre algumas manifestações


nervosas da heredo-syphilis (ROCHA, 2003).
Como educador, Ulysses Pernambucano esteve à frente da Escola Normal
durante os anos de 1923 e 1927, promovendo lá uma série de reformas com a preo-
cupação de trazer as novas concepções na área da educação, tendo em vista seu
interesse de conduzir a modernização para a cidade do Recife (ROCHA, 2003). A
esse respeito, Waldemar Valente nos diz:

[…] de colocá-lo em dia com os modernos processos de ensino e de


educação. Processos que tinham como base uma maneira diferente
de encarar a criança, o verdadeiro objetivo da educação. E a preocu-
pação de conhecê-la cientificamente nas suas características psico-
biológicas. […] Ulysses avaliava os erros dessa velha pedagogia que
não concedia à criança o direito de ser criança e que quase sempre,
gerava um mundo de desajustados e de inferiorizados. (VALENTE,
1956, apud ROCHA, 2003, p. 23)

Ulysses é rememorado de diversas formas, por alguns é considerado vilão


que atuou duramente na repressão aos terreiros e por outros, visto como visionário
que trouxe grandes avanços para a sociedade recifense. Um modernismo que cus-
tou a ele sua liberdade, sendo acusado de comunista pelo governo de Agamenon
Magalhães. No dia 1 de dezembro de 1935, Ulysses Pernambucano foi preso com a
acusação de ter ajudado o que mais tarde ficou conhecido como a Intentona Comu-
nista de 1935; é solto em janeiro de 1936, mas é apenas em 1940 que o Supremo
Tribunal de Segurança Nacional (único órgão com poderes para anular questões de
tal natureza) o absorve por julgar não haver crimes em suas ações (ROCHA, 2003).
A esse respeito Edyna Rocha (2003) nos apresenta uma matéria publicada no jornal
Folha da Manhã do dia 4 de julho de 1940, que pode nos esclarecer como foi vista
parte das ações de Pernambucano por seus pares da medicina.
Recife, 3 de junho de 1940. Exmo. sr. Diretor da Faculdade de Medi-
cina. Comunico-vos que acabo de receber o ofício anexo, informando
que o Tribunal de Segurança arquivou as diligências procedidas con-
tra o professor Ulysses Pernambucano em virtude da sua atuação na
fase preparatória do movimento comunista de 1935. Em face da deci-
são daquele tribunal, o governo deixa à Faculdade a liberdade de to-
mar a atitude que julgue conveniente. O ato n. 92 de 5 de janeiro de
35

1938, em que o governo aposentou aquele professor do Ginásio Per-


nambucano, de acordo com o artigo 177 da Constituição Federal, é
mantido. Seria incoerência da administração que se vem caracteriza-
da ela sua segura orientação, pelo valor que dá ao rumo filosófico do
ensino, permitir que o professor com ideias extremistas exóticas, em
reação às quais se instituiu o regime de 10 de novembro, passe a en-
sinar filosofia a moços, ainda em formação, de um estabelecimento
ainda em formação que é o Ginásio Pernambucano. O arquivamento
de inquérito no Tribunal de Segurança não tem, por consequência ló-
gica ou jurídica, a volta do funcionário ao exercício do cargo de que
fora afastado, pela aplicação do artigo 177 da Constituição Federal.
Este artigo visa precisamente os funcionários inconvenientes ao regi-
me e ao serviço público, contra os quais, ou por serem ardilosos ou
por quaisquer outros motivos, não pode o Estado exercer a repres-
são criminal. (FOLHA DA MANHA apud ROCHA, 2003)

O principal interesse de Pernambucano era a psiquiatria, nesse sentido ele


fez e apoiou uma série de estudos estatísticos e etnográficos nos terreiros do esta-
do, tendo como principal enfoque o problema das doenças mentais entre os negros.
Ulysses Pernambucano produziu uma psiquiatria social com forte influência do cultu-
ralismo freyriano, passando a conceber certos elementos como culturais, e não mais
como biológicos, a exemplo do transe de possessão, característica por excelência
das religiões de matriz indo-afro-brasileiras; embora consigamos identificar uma rela-
tivização entorno do que é tido como patológico, o transe 10 ainda era concebido
como elemento negativo. Nesse âmbito, a categoria “loucura espírita” ainda prevale-
ce entre os pesquisadores que integraram a equipe do SHM.
É importante observarmos que os pesquisadores do SHM e seus escritos
quase não são lidos, sendo citados por segunda e terceira mão na grande maioria
das vezes. Ao mesmo tempo, são sempre referidos no coletivo — “a equipe do
10 Até hoje podemos encontrar sessões nos manuais de classificação das doenças que fazem
alusão ao transe de possessão, entretanto, há a exclusão de seu caráter patológico quando sua
manifestação advém de um fenômeno cultural ou religioso, como podemos constatar consultando
o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) — “O transtorno dissociativo
de identidade na forma de possessão pode ser diferenciado de estados de possessão
culturalmente aceitos no sentido de que o primeiro é involuntário, angustiante, incontrolável e
muitas vezes recorrente ou persistente; envolve conflito entre o indivíduo e seus ambientes
familiar, social ou ocupacional; e manifesta-se em momentos e lugares que violam as normas da
cultura ou da religião” (DSM-5, 2014. p. 295) — ou o CID-10 (Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), “F44.3 Trance and
possession disorders in which there is a temporary loss of the sense of personal identity and full
awareness of the surroundings. Include here only trance states that are involuntary or unwanted,
occurring outside religious or culturally accepted situations.” (CID-10, 2016, sem paginação).
36

SHM” — quando, em verdade, ao nos debruçarmos sobre os escritos de René Ribei-


ro, Waldemar Valente, Gonçalves Fernandes, entre outros, percebemos que suas
ideias se transformam ao longo do tempo, mediante a intensificação do diálogo com
o culturalismo, assim como apresentam afastamentos interpretativos do campo
(CAMPOS; PEREIRA; MATOS, 2017).
O biológico não era mais elencado como elemento de superioridade, entretan-
to em seu lugar surge a cultura, como vemos: “não faremos lutas de raças contra ra-
ças, porém ensinaremos aos nossos irmãos negros que não há raça superior nem
inferior e o que nos faz distinguir um dos outros é o desenvolvimento cultural” (LIMA,
1937, p.20). Como podemos ver nesse trecho do livro Xangô, de Vicente Lima, um
dos técnicos do SHM, a ideia encabeçada era que, a partir do controle realizado pelo
SHM, este elemento de nossa sociedade, que para o autor era, em suas palavras,
um “câncer”, uma “úlcera que sangra urgindo ser curada” (LIMA, 1937, p.8), ou seja,
a partir de um contínuo processo de higiene mental, tais traços de nossa sociedade,
associados a um “fetichismo negro”, iriam paulatinamente ser expurgados da socie -
dade por um processo de desenvolvimento (evolução) cultural.
Vicente Lima entre os técnicos do SHM aparenta ter a pior compreensão a
respeito do que é este fenômeno, não podemos imputar a sua visão ao todo. Muitos
outros membros do SHM tinham opiniões muito distantes da de Vicente Lima. A título
de comparação, vejam a descrição de Gonçalves Fernandes
Afastados de outras casas, no meio de sítios ou cercados, em arra-
baldes de grande densidade de população pobre, eram apontados os
xangôs no Recife como centro de bruxaria. Dessas casas modestas
de taipa dos negros a imaginação dos moradores mais próximos fa-
zia sede de práticas demoníacas. O batuque noturno dos toques
identificava o Xangô. Uma grande maioria da vizinhança só chegava
mesmo a conhecer o batuque escutando de longe. Não se tinha
ideia, exceção de poucas pessoas, do sentido religioso dos toques. A
repressão policial dificultava qualquer tentativa de contato com a vida
intima dos terreiros (...) só mesmo os iniciados tinham acesso as ce-
rimonias dos cultos. (FERNANDES, 1937, p. 7)

Bom, é obvio que os autores têm compreensões muito distintas a respeito do


que é o Xangô do Recife. Para um é um câncer que necessita rapidamente ser extir-
37

pado da sociedade e para o outro a representação de uma religiosidade legítima, in-


compreendida em seus próprios termos e muito perseguida.

2.3 O LUGAR DA LOUCURA ESPÍRITA

A psiquiatria e as religiões mediúnicas no Brasil têm em suas histórias diver-


sos pontos de convergência, essa relação já foi bastante estudada por intelectuais,
por diversos pontos de vista. Angélica Almeida foi uma dessas, ela demonstra como
no início do século XX a associação entre transtornos mentais e espiritismo já esta-
va posta e que podíamos encontrar uma certa divergência entre os intelectuais. Por
um lado, alguns acreditavam que o espiritismo poderia desencadear a loucura em
todos que aderissem a suas práticas; por outro, alguns intelectuais acreditavam que
só alguns indivíduos pré-dispostos estariam em risco, apesar de considerarem que a
prática espírita era um fator de risco, mas argumentavam que outros fatores deveri-
am ser considerados (ALMEIDA, 2007).
Raimundo Nina Rodrigues foi um dos intelectuais mais famosos, pelo menos
do ponto de vista das ciências sociais, que ajudaram a traçar essa relação entre reli-
giões mediúnicas e psicopatologias. A esse respeito Emerson Giumbelli comenta:

[…] a loucura passava a designar algo cujos sinais deveriam ser pro-
curados no interior dos indivíduos, uma condição que marca em seu
corpo e em seus hábitos, em sua trajetória de vida e em sua ances-
tralidade. Características biológicas e padrões de comportamento e
de moralidade apareciam como isso, cada vez mais associados em
torno de condutas socialmente consideradas desviantes. […] Ora, um
dos traços mais importantes dos esforços de Nina Rodrigues conver-
ge exatamente para isso: a atenção sobre as desigualdades huma-
nas e a produção de uma ‘ciência da diferença’ dedicada a relacionar
necessária e permanente o social ao biológico, com ajuda de postu-
lados biodeterministas e evolucionistas (GIUMBELLI, 1997. p. 43-44).

Os estudos de Nina Rodrigues ajudaram a definir uma das grandes preocupa-


ções presentes no pensamento social nesta passagem do século XIX para o XX:
quais seriam as possibilidades do Brasil enquanto nação, a busca por uma identida-
de nacional. As práticas mágico-religiosas dos negros no País se tornaram um pro-
38

blema de saúde pública, um impasse para a modernização do Brasil e de sua socie-


dade.
Em Pernambuco, a preocupação com a relação entre espiritismo e transtor-
nos mentais também se fez presente, como vemos no seguinte trecho, retirado de
uma publicação do Boletim de Higiene Mental (BHM), datado de maio de 1938, sob
o título de Sessões espíritas são ‘Laboratórios de Histeria Coletiva’ Espiritismo e Hi-
giene mental:

Tem preocupado seriamente os psiquiatras, principalmente em nosso


meio, a frequência com que as práticas do espiritismo determinam
perturbações mentais. Basta lembra que dez por cento dos doentes
entrados no Hospital da Tamarineira, devem a sua psicose ao habito
de frequentar sessões espíritas. Si considerarmos de perto essas
práticas compreenderemos facilmente o modo como determinam a
alienação. Elas agem provocando uma verdadeira desagregação
mental: como é sabido, abaixo de nossa atividade psíquica conscien-
te existe o inconsciente, toda uma atividade mental que se desenvol-
ve fora da consciência, mas subordinada a ela.
[…]
O resultado é que inúmeros frequentadores apresentam perturba-
ções e podem ir para o Manicômio. Foi na certeza de suas estatísti-
cas e observações que o Serviço de Higiene Mental conseguiu este
ano, da Secretaria de Segurança Pública uma notável restrição às
atividades das sessões espíritas que eram cada vez mais numerosas
e todas se limitavam a ser segundo a frase exatíssima de Afrânio
Peixoto ‘laboratórios de histeria coletiva’, devido à imprudência indes-
culpável com que se experimentam sobre os médiuns.
Encontrando um ambiente, propício com é o brasileiro, o espiritismo
tem se difundido e seus males hoje são de grande vulto. […] Tam-
bém o alto espiritismo não está livre da culpa, pois o risco para o
equilíbrio psíquico é o mesmo, e reside no fato de incrementarem
ambos a desagregação mental. Por este aspecto já se revela o espi-
ritismo grandemente prejudicial; mais nocivo ainda se torna quando
pretende exercer a medicina. Cremos portanto necessário esclarecer
o publico dos danos que podem acarretar a frequência dessas ses-
sões, que muitos realizam reputando inofensiva. (BOLETIM DE HIGI-
ENE MENTAL, 1938. p.6)

René Ribeiro, que foi o primeiro antropólogo pernambucano — ao menos no


sentido estrito do termo — e realizou seu mestrado acadêmico pela Northwestern
University em 1949, começou sua carreira profissional como médico. Sob influência
de Ulysses Pernambucano, torna-se assistente técnico do SHM no ano de 1936
39

(MOTTA, 1993). Nos trabalhos de René Ribeiro, podemos identificar uma posição di-
ferente da encontrada entre os seus companheiros técnicos do SHM, chegaria a di-
zer, com um grande afastamento interpretativo em relação ao que foi produzido por
seus colegas. No trecho que se segue, podemos ver sua interpretação a respeito do
transe.
De volta ao Brasil retomamos na década de 50 nossa prática médica
e passamos a colaborar com Gilberto Freyre na implementação do
seu então titubeante Instituto Joaquim Nabuco, hoje florescente fun-
dação. A essa época preocupou-nos o papel dos indivíduos no Xan-
gô e delineamos e passamos a executar uma pesquisa com o teste
psicológico de Roschach aplicado aos fiéis que experimentavam a
possessão ‘fetichista’, concluindo que o transe não provoca nenhuma
alteração estrutural da personalidade, tampouco é morbígeno, servin-
do ao contrário para a libertação de tensões e à incorporação de pa-
péis sociais mais consentâneos com as aspirações dos fiéis. (RIBEI-
RO, 1984)

René Ribeiro, em um artigo intitulado Possessão: problema e etnopsicologia,


discute a visão que ele e outros intelectuais do SHM tinham a respeito do transe de
possessão na década de 1930, como vemos:

A Ulysses Pernambucano, porém, é que se deve a sugestão de ana-


lisarem os seus alunos, com o auxílio de testes psicológicos, a perso-
nalidade das pessoas que apresentam possessões habituais ou epi-
sódicas. Pedro Cavalcante e nós mesmo utilizamos tais provas com
os médiuns de centros espíritas, porém o instrumento utilizado na-
quela época era inadequado a tal tipo de investigação e a interpreta-
ção dos resultados baseava-se sobre o primado da sugestão, seguin-
do a Baudouin, sobre as particularidades da ‘mentalidade pré-lógica’
do conceito de Levy-Bruhl, (hoje refutado), as ‘reações motoras pri-
mitivas’ e o pensamento ‘hiponoico’ do esquema de Kretschmer e a
psicanálise de Jones. Desde essa época (1937) porém, víamos na
possessão uma oportunidade para certos indivíduos se libertarem de
suas tensões, como estudos mais modernos viriam a comprová-lo.
(RIBEIRO, 1955. p. 15-16)

Vejam, aqui, Ribeiro nos diz que muito embora o método não tenha sido ade-
quado, as interpretações estavam corretas. Ainda neste mesmo texto, o professor
René Ribeiro adverte-nos que podemos encontrar relativizações a respeito do tran-
se, por influência do culturalismo freyriano, contudo é apenas com Melville J.
40

Herskovits, em 1943, que os pesquisadores brasileiros seriam alertados pela nature-


za normal da possessão e sua interpretação à base das normas de conduta estabe-
lecidas por determinadas culturas e do condicionamento social pelas normas cultu-
rais. (RIBEIRO, 1955)
Para o professor Roberto Motta, a principal influência de René Ribeiro não se-
ria a de Gilberto Freyre; muito embora os trabalhos de ambos possam ter aproxima-
ções, estas são ocasionais, tendo o escopo e as preocupações inteiramente diferen-
tes. Então, para Roberto Motta, a principal influência de Ribeiro seria Donald Pierson
(MOTTA, 1993). Entretanto, o próprio René atribuiu a Freyre sua influência. De qual-
quer forma, o trabalho de René Ribeiro se destaca em relação ao de seus compa-
nheiros técnicos do SHM, seja pela vasta produção ou por sua maior aproximação
com a antropologia.
Não obstante a interpretação de Roberto Motta, aqui não poderia deixar de
trazer as abordagens presentes nos trabalhos do sociólogo e antropólogo Gilberto
Freyre, este exerceu uma forte influência em Ulysses Pernambucano e seus segui-
dores; o culturalismo freyriano está presente em muitas concepções desses autores.
Em conferência proferida na 2ª Reunião da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e
Higiene Mental do Nordeste, realizada em outubro de 1940, Gilberto Freyre nos
apresenta um trabalho intitulado Sociologia, Psicologia e Psiquiatria, nele o autor
traz suas concepções acerca das “personalidades desajustadas”, como vemos:

Para o psiquiatra moderno – si bem o compreendo através dos Harts


e dos Plants e, entre nós, dos Ulysses Pernambucanos e dos Arthur
Ramos – o paciente hospitalizado ou não, não é um ser que se pos-
sa cuidar na ignorância do seu meio, de seus antecedentes de famí-
lia e de grupos, de sua situação de cultura e social. […] Parece ter
passado, para a psiquiatria, o tempo em que o psiquiatra se preocu-
pava, no dizer de Plant, com a estrutura do indivíduo in nocuo. A ten-
dência do psiquiatra é preocupar-se com o meio do doente; por con-
seguinte de sua estrutura social. […] do ponto de vista do psiquiatra
pouco se conseguirá no sentido terapêutico social sem se considerar
a personalidade a ‘síntese dramatizada da estrutura social inteira’.
[…] Ver-se claramente, daí que as três – a psiquiatria social, a psico-
logia social e a sociologia – preocupa no estudo do homem ou da an-
tropologia, a ‘estrutura social’. Estrutura menos ou mais dramatizada
pela síntese que é a personalidade. Desta, a correspondência com a
41

“normalidade” resulta, em grande parte, da correspondência de seu


equipamento biológico e se sua formação social com as instituições e
a cultura dominante na área, região e na época de sua atuação.
(FREYRE, 1941. p. 12-14)

Gilberto Freyre está nos levando por um caminho nitidamente culturalista em


relação à construção das “personalidades desajustadas”. Claramente, para o autor,
a era em que as ciências sociais buscavam grandes conclusões já havia passado,
sua busca era por caminhos para compreender a realidade. Para Gilberto Freyre en-
tão, a correspondência com a “normalidade” só poderia ser compreendida a partir de
uma visão multifacetada como resultado da correlação entre o biológico, o cultural e
as estruturas sociais presentes no contexto histórico da época.
O SHM também atuou institucionalmente, intermediando a relação entre os
terreiros e o Estado, exercendo a função de órgão regulador das atividades dos cul-
tos. Era o SHM que concedia as licenças de livre funcionamento aos então “centros
espíritas e seitas africanas”, portanto os legitimando perante o Estado. Esta configu-
ração acabou por criar solo fértil para o surgimento de alianças entre o SHM e os
pais e mães de santo, com seus próprios termos, bastante singulares quando com-
parada a outros contextos. Em Pernambuco, os pesquisadores não estavam interes-
sados na ortodoxia dos terreiros como na Bahia, a exemplo da escola Nina Rodri-
gues, que via nas religiões de matriz africana um resquício da África no Brasil. “Eu
poderia acreditar que me encontrava em plena África” (BASTIDE, 1945, p.80).
É importante salientar que é neste quadro de diferenciações — entre o eu e o
outro — que se constrói a legitimação dentro do campo indo-afro-brasileiro. Na Ba-
hia, os terreiros eram os guardiões da África ancestral, representantes da “pureza
nagô”, os que de fato produziam religião. Como aponta Fry (1998), aos terreiros sin-
créticos da Bahia era logrado o espaço do feitiço (magia), e não o da religião. “Já na
década de 1930, na Bahia os pais e mães de santo que se definiam como os mais
africanos admitiram ao menos em público apenas os papéis de adivinhos, sacerdo-
tes e sábios, acusando os candomblés de caboclos de atividades ligadas ao feitiço”
(FRY, 1998. p. 451). Fica claro que se formulou uma distinção entre religião e magia
dentro do discurso científico da escola Nina Rodrigues, “a magia é definitivamente
42

classificada de indesejável e separada da ‘África brasileira’ que é ‘preservada’ no


culto aos orixás no candomblé da Bahia.” (FRY, 1998. p.455).
Já em Pernambuco temos outras preocupações. Os membros do SHM, em
especial René Ribeiro e Gonçalves Fernandes, já partiam do pressuposto de que
não havia no estado de Pernambuco um só culto “negro-fetichista” puro.

Não se encontra no Recife um só culto negro-fetichista puro. As di-


versas modificações sofridas através do tempo, iniciando-se como a
transferência na adoração dos ‘encantados da costa’ em imagens de
santos católicos, maneira de conciliar a imposição do senhor com os
sentimentos de veneração do escravo africano aos seus deuses,
trouxeram o enlaçamento com a religião do branco. A esse ecletismo
religioso juntou-se a influência espírita. (FERNANDES, 1937, p. 10)

No que concerne ao papel desempenhado pelo SHM junto aos terreiros de


Pernambuco, temos o depoimento bastante esclarecedor de Pedro Cavalcanti du-
rante sua participação no 1º Congresso Afro-Brasileiro, organizado por Ulysses Per-
nambucano, com auxílio de Gilberto Freyre, que ocorreu em Recife no ano de 1934:

Há cerca de três anos, ainda auxiliar técnico do Serviço de Higiene


Mental do Estado, por influência do Professor Ulysses Pernambuca-
no, pusemo-nos em contacto com algumas seitas africanas existen-
tes nesta cidade.
Tais seitas viviam até então, de certa maneira escondidas, ou porque
a polícia não lhes permitia o livre funcionamento, ou porque os jor-
nais, vez por outra, traziam reclamações dos ´moradores da rua tal´
os quais se queixavam ora de ´despachos´ espetaculosos, ora do
sossego perturbado com o barulho das festas e danças dos negros.
[…]
Lutamos de início com alguma dificuldade para a aproximação dese-
jada. Nem era para menos, sabido das perseguições que sofriam os
pobres negros. Esta aproximação, porém, se fez. Para tal contribuí-
ram pais de terreiro bem-intencionados, que viam a honestidade dos
nossos propósitos e que desde logo procuraram nos mostrar a serie-
dade das suas seitas, ao mesmo tempo que clamavam contra os que
abusavam do nome e tradição africanas em centros de diversão e
exploração.
Pai Anselmo foi um dos nossos bons auxiliares nesta tarefa de apro-
ximação e este congresso, em parte, agradeça-lhe os bons ofícios de
introdutor diplomático e amigo de nós outros, que sempre tem de-
monstrado ser.
43

Assim é que em fins de 1932, reuniram-se na Diretoria Geral da As-


sistência a Psicopatas os pais e mães de terreiros do Recife, e aí fo-
ram acertadas medidas sobre o livre funcionamento das seitas. Nós
nos comprometíamos a conseguir da Polícia licença para tal. Os pais
de terreiros nos abririam as suas portas e nos dariam os esclareci-
mentos necessários para que pudéssemos distinguir os que faziam
religião e os que faziam exploração.
De tal medida resultaram benefícios como era de se esperar.
As seitas aí estão, com existência legal, fazendo a alegria duma gen-
te boa e oferecendo material para que se observem as sobrevivên-
cias das manifestações religiosas dos africanos, entre nós. (CAVAL-
CANTI, 1988. p. 243-244)

Ainda em relação a atuação do SHM, também temos o depoimento de Lídia


Alves da Silva, ou simplesmente Mãe Lídia, concedido a seu neto Manoel do Nasci-
mento Costa. Mãe Lídia foi uma importante Ialorixá do Xangô do Recife que vivenci-
ou na pele o tempo do SHM.

Conheci todos, ou quase todos os Pais e Mães-de-Santo do meu


tempo, mas conheci também autoridades, policiais e políticos da épo-
ca, conheci Joana, era uma negra enjoada, mas era correta, sim,
sim, não, não.
A Ialorixá Joana morava em Porto de Pedra. Era filha de tia Inês, es-
treitamos a amizade quando fechou os terreiros, pois um dia conver-
sando com o Oscar, ele me disse: ‘Olhe, Joana disse que você não
está só nesta briga, ela também tem alguns conhecimentos e quer
conversar com você’.
A nossa primeira conversa sobre o assunto foi na casa de José Isí-
dio, um oficial de justiça que morava no Arruda, com quem conversa-
mos longamente e recebemos instruções.
Dias depois recebo um recado de Cipó, motorista da polícia civil,
para que me aprontasse na quarta-feira, para ir conversar com um
doutor, não me lembro o nome. Era um cara carrancudo, mas que
logo deu para entender que era gente fina, fez uma porção de per-
guntas e escreveu em um caderno, pediu que arrumasse alguns pais
de mães-de-santo, pois ia ser preciso.
Finalmente veio uma reunião na Secretaria de Segurança e fui apre-
sentada a um cidadão chamado dr. Edson Murim Fernando, uma
pessoa simpática, mas muito agressivo na sua função.
‘Quem é seu marido?’, perguntou primeiro a mim. ‘Não tenho marido,
sou viúva, meu marido era da polícia.’ ‘Da polícia?’ ‘Sim senhor, Os-
valdo Ciríaco.’ ‘Ah, então é a viúva do Ciríaco ou mais uma viúva do
Ciríaco...’
‘E o seu?’, perguntou a Joana. ‘O meu também é falecido, mas gra-
ças a Deus não era da polícia.’
44

Os homens sorriam e o oficial José Isídio entrou na conversa. ‘Ela


gosta de brincar, doutor.’
Um homem branco de cara feia chamou o dr. Edson e nós ficamos
mais de 3 horas esperando sua volta na sala, o que aconteceu por
volta das 3 da tarde. Acredito que tenha ido almoçar, chegou com
cara de sono, aí disse: “Conversaremos muito sobre o assunto e dr.
Ulysses vem amanha para a gente fazer uma reunião com todos.”
‘A senhora tem um maracatu?’ ‘Não, quem tem maracatu é Santa.’ ‘E
a senhora?’ ‘Não, não tenho nada, só minha casa dos orixás.’
‘Quais são os políticos que vão em sua casa?’ ‘Lá vai muita gente,
não sei quem é político ou não.’
Os homens trocaram algumas palavras baixinho, mas deu para en-
tender que eles disseram que Joana era segura.
Um deles que havia chegado muito atrás perguntou: ‘Como é que a
senhora sustenta sua casa? Os santos mandam do céu? Peça a eles
para mandar para mim também’. ‘Peço’, respondeu Joana.
Finalmente nos mandaram embora e uma reunião ficou marcada
para a outra semana. Em casa dos parentes já choravam, achando
que eu e Joana Batista tínhamos ficado presas.
Na reunião conheci Anselmo de xambá, reencontrei Joana de Oyá,
além de Josefina Guedes e outros conhecidos.
Na reunião, as perguntas eram quase sempre as mesmas para todo
mundo, mas as perguntas mais usadas eram: quem é o político de
sua casa, qual é a sua sociedade carnavalesca.
Eu e Joana Batista a esta altura já éramos olhadas por alguns donos
de terreiro com maus olhos, uns achavam que a gente estava sendo
mais bem tratada que eles, outros chegavam ao cúmulo de pensar
que estávamos nos bandeando para o lado da polícia, porém, o que
estava acontecendo era que os nossos conhecimentos estavam pre-
valecendo. Joana estava acompanhada de alguns filhos de santo e
amigos, entre eles Oscar Domingos da Silva, José Assis e Manoel
Beltrão.
O tempo foi-se passando e cada vez mais as coisas foram se compli-
cando, até que depois de muito tempo reacenderam as nossas espe-
ranças. A princípio seria feita uma seleção por uma comissão da polí-
cia e o S.H.M., depois esta seleção seria por uma comissão mista, de
autoridades religiosas, da polícia e mais do S.H.M.
Depois de aprovada a ideia veio a decepção para os pais de santo,
por, pelo regulamento, todos os pais e mães de santo teriam que
submeter-se a um exame de sanidade mental e os terreiros seriam
cadastrados no Departamento de Diversões Públicas, o que significa
dizer que estávamos sendo considerados como agremiações carna-
valescas e não como sociedade religiosa.
Eu perguntei ao dr. Ulysses: ‘Estão achando que nós somos
doidos?’. ‘Não, Lídia, isso é apenas para selecionar as pessoas que
são boas da cabeça e os que não são’. ‘E por que estamos registra-
dos neste Departamento de Diversão?’. ‘É outra forma de controlar
as coisas, todo mundo vai ter que vir aqui tirar uma licença para po-
45

der fazer suas festas, assim nós sabemos o que está regularizado ou
não, e daí sabemos também quantos terreiros atuam no Recife’.
‘Olhe, doutor, ontem eu vi dois homens tirando licença para armar um
circo no mesmo lugar que vamos tirar as nossas, eu acho que tudo
isso está errado, por que fazer este exame? Nós não somos doidos
nem palhaços’.
Protestei, mas foi inútil, pois era uma imposição do governo (COSTA,
1994, p. 179-180).

De antemão, precisamos lembrar que o Serviço de Higiene Metal compreen-


dia a luta de uma elite médica perante formas alternativas de cura — uma luta contra
o “curandeirismo” —, tendo um claro intuito de conhecer para controlar, como pode-
mos ver em artigo publicado no Arquivo da Assistência a Psicopatas de Pernambu-
co, no qual a monitora do SHM, Dinice C. Lima, diz:

[…] fóra dois ou três locais onde se procura fazer religião, todos os
‘centros’ nada mais são que reuniões para o exercício ilegal da medi-
cina. Alguns ‘diretores’ já se não dão mesmo ao trabalho de provocar
os fenômenos citados e sem qualquer formalidade passam para o
papel as receitas que os ‘espíritos’ lhes ditam. (LIMA, 1932, p.138)

Esta outra matéria publicada no Boletim de Higiene Mental (BHM) também


nos mostra a grande preocupação em relação às práticas alternativas de cura que
existiam na sociedade recifense e como esta foi uma luta pelo monopólio legítimo de
atuação sobre a arte da cura.

Entre nós as praticas de curandeirismo estão muito espalhadas.


Pode-se dizer mesmo que elas são a regra geral na maioria dos cen-
tros espíritas e seitas africanas. Nos primeiros, os médiuns receitis-
tas distribuem ‘passes, ‘água fluidificada’, remédios homeopáticos e
produtos farmacêuticos largamente anunciados nos jornais. Os baba-
lorixás tão pouco ficam atrás. Aguá das bilhas utilizada para “comida
do santo” para tudo serve desde refreiar a impetuosidade do orixá ou
sua atividade maléfica até curar dor de ouvido.
As doenças mentais então, são especialidades do curandeiro. Nos
primeiros sinais de doença mental vê-se logo a influência de ‘espíri-
tos maus’ ou o resultado de ‘despachos’. Segue-se a peregrinação
pelos centros e terreiros enquanto o estado do paciente se agrava.
[…]
J.A.B. sexo masculino, 56 anos – maquinista (do S. obs. do H. de Ali-
enados). Há um ano e sete meses presentou alucinações, agitação
46

psicomotora, ideias de perseguição, perda de urina. Sua esposa le-


vou-o a tratamento em diversos centros espíritas. Só agora como ele
não pudesse trabalhar sem mostrar-se insone e apresentasse ataxia
dos membros superiores e inferiores que prejudicava a marcha e a
execução de qualquer ato procurou interná-lo. Ao exame clínico e hu-
moral apresentou nítidos sintomas de tabo-paralisia geral.
Si sua esposa tivesse procurado tratá-lo logo aos primeiros sintomas,
estes teriam regredido facilmente. Haveria mesmo possibilidade de
uma remissão completa. Agora porém, muito mais sombrio é o seu
futuro.
[...]
Não se pode avaliar a soma de perigo para a saudê que pode resul-
tar do emprego de remédios prescritos por curandeiros e que acu-
sam formais contraindicações terapêuticas as mais das vezes, infu-
sões de ervas nocivas, contendo substâncias tóxicas em taxa não
dosada. Quando não são prejudiciais são chás inócuos. Deixa-se
evoluir a moléstia quando se põe o doente para “trabalhar” agravan-
do ainda mais suas perturbações mentais.
[…]
Urge ás famílias e a todos evitar em seu proveito próprio e nos das
pessoas sob sua responsabilidade as consultas em centros espíritas
e seitas africanas por qualquer afecção e principalmente diante de
uma perturbação mental. (BOLETIM DE HIGIENE MENTAL, 1935)

Como podemos constatar em uma outra matéria publicada neste mesmo bo-
letim sob o título de O Estudo das Religiões do Recife, a questão da religião é cen-
tral para os pesquisadores do SHM: “Os fenômenos de possessão que ocorriam
nesses centros (as seitas africanas e centros espíritas) chamaram logo a atenção
dos psiquiatras.” (BOLETIM DE HIGIENE MENTAL, 1935. p. 6). Foi então que, no
dia 15 de outubro de 1933, o SHM, mediante uma parceria com Secretaria de Segu-
rança Pública (SSP), dá início aos estudos dessas religiões. As ditas seitas africanas
e centros espíritas passariam então a necessitar de uma licença de funcionamento
que só seria fornecida mediante autorização do SHM, sendo exigido o cumprimento
dos seguintes pontos:

1º é a realização de exame psiquiátrico completo do babalorixá, Ialo-


rixá ou médium do centro espírita;
2º realização de teste para determinar I.M [Idade Mental] o Q.I. [Quo-
eficiente de Inteligência] (Escala de Benet-Simon-Teran, revisão per-
nambucana) e perfil psicológico de Rossolimo (adaptação pernambu-
cana), feitos pelos Instituto Psicologia;
47

3º entrega dos estatutos e regulamentos das seitas e centros espíri-


tas, assim como da lista dos dias de função;
4º Registro desses centos em livro especial;
5º compromisso de não se entregarem a prática ilegal da medicina e
permitirem visita de nossos auxiliares. (BOLETIM DE HIGIENE MEN-
TAL, 1935. p. 6)

Espero que com isso tenha ficado claro o importante papel que foi desempe-
nhado pelo Serviço de Higiene Mental em Pernambuco. Anteriormente a ele, todos
os terreiros estavam submetidos à violência policial, criminalizados e duramente re-
primidos. O SHM foi uma das formas encontradas pelo Estado para imiscuir-se no
cotidiano dos terreiros, tendo a declarada função de conhecer para controlar, como
podemos ver nas palavras proferidas em uma das abas do livro Xangôs do Nordes-
te, de Gonçalves Fernandes — auxiliar técnico do SHM, assistente interino da Assis-
tência a Psicopatas de Pernambuco e alienista do Hospital Colônia Juliano Moreira
(Paraíba).
O apelo que o Prof. Arthur Ramos Lançou, da Bahia, a uma dezena
de anos, em nome dos discípulos de Nina Rodrigues, não foi em vão.
Nos estudos sobre as religiões e cultos de origem negra, destacou-
se desde muito cedo a Escola de Recife, sob a direção do Professor
Ulysses Pernambucano. No seu Serviço de Higiene Mental teve este
professor a ideia, fecunda de resultados científicos, de registrar as
seitas dos xangôs de Recife, controlando-as sob o ponto de vista da
higiene mental.
Isso acudiu não só aos reclamos dos negros sobre a liberdade dos
seus cultos e práticas religiosas, como os submeteu a um controle ci-
entífico, para evitar os abusos daí advindos. (FERNANDES, 1937.
sem paginação.)

O 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em 1934, teve um papel fundamen-


tal na questão do conhecer para controlar. Uma matéria publicada no Boletim de Hi-
giene Mental, que tinha o intuito de explicar os motivos e as importâncias da realiza-
ção do congresso, nos dá um panorama de sua importância:

Vem causando os mais curiosos comentários esse 1º Congresso de


seitas africanas que se vai reunir em Agosto próximo, comentários
que pecam de início por uma incompreensão total do que vai ser
esse interessante certame. Provocando ideias absurdas sobre finali-
dades absurdas.
48

Esta nota esclarece a cousa.


Um grupo de estudiosos de assuntos afro-brasileiros, à frente o soci-
ólogo Gilberto Freire, colaborando com o Serviço de Higiene Mental,
conseguiu que as diversas seitas africanas por aqui espalhadas se
reunissem em um congresso, onde firmariam teses de interesse co-
mum, seriam esclarecidos rituais, uma melhor informação de tradi-
ções que ouviram desde o berço seria trazida aos conhecimentos
dos outros, cânticos e costumes. Tudo isso que está por dentro de
uma religião que é antiquíssima, e vedado aos estudiosos que se
vêm de fora, não são satisfeitos só com o que é de leitura, assim
mesmo em livros raros e poucos.
O Serviço de Higiene Mental mantêm sob controle constante, sob ob-
servação, essas chamadas religiões inferiores. Ninguém pode igno-
rar o que de interesse para a Higiene Mental representa essa vigilân-
cia.
Esse congresso que se vai realizar trará aos nossos técnicos mo-
mentos de observação mais acurada, material que só uma reunião
dessas, ventiladas questões íntimas as seitas, poderá vir a tona.
Não tem outro fim. (BOLETIM DE HIGIENE MENTAL, 1934. p. 1)

Compreender para controlar, este foi o motivo do Estado brasileiro voltar os


seus olhos para os assuntos relacionados à magia e ao curandeirismo. Michel Fou-
cault (1997) nos mostra, ao discutir sobre a sexualidade, que a repressão não visa
extingui-la, mas acaba por fundá-la. As relações de poder não podem ser estabeleci-
das simplesmente a partir de um grupo específico de indivíduos, mas sim de forma
presente no cotidiano, nas microrrelações, na microfísica do poder. Aí está a impor-
tância de penetrar nesses espaços, que até então estavam fora do alcance do poder
do Estado. “O Estado, no Brasil, se imiscuiu nos assuntos da magia porque era pre-
ciso conhecer, disciplinar e socializar essas práticas tidas como de negros e pobres”
(MAGGIE, 1992, p. 29).

2.4 A REVITALIZAÇÃO DA HIPÓTESE REPRESSIVA

Como podemos ver até aqui, o Serviço de Higiene Mental foi uma organiza-
ção que tinha entre suas funções intermediar a relação entre os terreiros, os pais e
as mães de santo e o Estado. Era ele que afirmava quais casas deveriam funcionar
ou não, ficando então claro que a perseguição não foi irrestrita, alguns terreiros fica-
ram imunes à repressão policial. O SHM passa a firmar a possibilidade da existência
49

de um culto verdadeiramente religioso e que por isso era necessário ser protegido
(tutelado). Nesse sentido, ao dizer o que é religião, está se produzindo uma hierar-
quia discursiva em torno de um feixe de relações de poder. Como nos lembra Michel
Foucault (2015), dentro das sociedades ocidentais a “verdade” possui uma profunda
relação com o discurso científico e consequentemente nas instituições que ele pro-
duz.
A presença de pais e mães de santo no 1º Congresso Afro-Brasileiro demons-
tra, em parte, esta afirmação, a da existência de uma comunhão entre as religiões
indo-afro-brasileiras e um discurso racional, construído por intermédio dos intelectu-
ais do SHM, numa relação que pode ser compreendida como o investimento de um
aparelho discursivo de análise e de conhecimento. Ou seja, se produz um outro dis-
curso a respeito dessas religiões e suas práticas: não se fala menos delas, muito
pelo contrário, fala-se mais, só que de uma outra maneira, são outras pessoas par-
tindo de pontos de vista diferentes e com o intuito de obter outros efeitos.
Na atuação do SHM, em sua aproximação aos terreiros — no conhecer para
controlar — podemos identificar uma incitação política para se produzir um discurso
racional (não moral) sobre as religiões mediúnicas. Uma incitação ao discurso regu-
lado. Em outras palavras, o controle necessita de uma aproximação, de um inter-
câmbio de discursos, exames e observações insistentes. A atuação do SHM não ti-
nha por finalidade extinguir as religiões indo-afro-brasileiras, nem as silenciar, mas
sim colocá-las em discurso. Em outras palavras, o que nós vemos é que sua atua -
ção acaba por fundá-las.
O poder não se estabelece apenas como mecanismo de força, de uma ma-
croestrutura para uma microestrutura. Em outras palavras, o poder não vem de cima
para baixo, ele se estabelece a partir de microrrelações de poder que acabam por
permear toda a sociedade. Não há dúvidas de que o SHM teve um papel fundamen-
tal na repressão aos terreiros aqui em Pernambuco, construindo uma linha divisória
sobre o lícito e o ilícito. Talvez ele não tenha sido capaz de fundar novas concepções
de religiosidade no interior da cosmovisão do povo de terreiro, mas, certamente, ele
definiu novas regras no jogo do poder, articulando a execução de dispositivos de vi-
50

gilância, tornando-se menos um princípio inibidor do que um mecanismo incitador e


multiplicador.
Os exames médico-psicológicos, o controle das atividades e dos cultos, a re-
pressão policial, a criminalização e a patologização de parte dos elementos litúrgicos
das religiões mediúnicas aparentam dizer não aos então centros espíritas e às seitas
africanas de forma geral, entretanto, em verdade, se articulam como um mecanismo
de dupla incitação. Por um lado, temos prazer de exercer um poder que questiona,
fiscaliza, espreita, investiga, revela; e por outro nós temos o prazer que se alimenta
por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo.
Com isso, seguindo os caminhos que foram trilhados por Yvonne Maggie
(1992) e Beatriz Góis Dantas (1988), viso deixar claro que a perseguição aos terrei-
ros, em especial aos de Pernambuco, não foi irrestrita como se poderia pensar. Algu -
mas casas foram protegidas pelos intelectuais locais, elevadas ao status de religião
e distinguidas das demais que foram consideradas como centros de enganação.
Mas diferentes de outros contextos, aqui não foram os nagôs ortodoxos que ocupa-
ram esse patamar, como veremos no capítulo que segue.
51

3 UM JOGO DE LEGITIMAÇÕES: UMA SANTA ALIANÇA

3.1 A SANTA ALIANÇA E A CONSTRUÇÃO DA PUREZA NAGÔ

O objeto desta pesquisa está indissociavelmente ligado à aliança entre


intelectuais — digo sociólogos, antropólogos e outros cientistas e pesquisadores
sociais — e o campo das religiões de matriz indo-afro-brasileiras. Na santa aliança,
como Roberto Motta (2010) denominou essa rede, há um processo simbiótico entre
intelectuais e pais e mães de santo, numa intrincada teia de relações recíprocas, na
qual se produz, por um lado, o fortalecimento e prestígio de certos pais e mães de
santo, e, por outro, a exclusão de tantos terreiros do quadro dos tidos como
“legítimos”. Decorrente dessa relação, que envolve tanto legitimação como
deslegitimação, surgem categorias acusatórias, como curandeiro ou “charlatão”.
A respeito desta ajuda mútua entre pesquisadores e membros dos cultos,
Pedro Germano nos dá algumas informações importantes:

Esse entrelaçamento entre pesquisadores o e membros dos cultos,


dentre outras coisas, se prestaram a legitimação de ambos em
campos distintos, ou seja, os pesquisadores, após suas conclusões,
produções e publicações ganham legitimação no campo científico, já
os chefes de culto são legitimados no campo religioso, e suas casas
e tradições ganham mais prestígio em detrimento das outras
(GERMANO, 2013. p. 68-69)

Acredito que o fato de maior repercussão decorrente desta santa aliança —


ou o que mais impactou o campo das religiões de matriz indo-afro-brasileira — é a
construção da ideia de pureza nagô. Tal formulação está principalmente vinculada
aos estudos sobre o candomblé na Bahia. Desde os primórdios das pesquisas a
respeito dos afro-brasileiros, com Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906), há uma
predileção para os candomblés nagôs (Iorubas).
A antropologia brasileira se desenvolve basicamente a partir de duas
vertentes, a etnologia indígena de um lado e do outro a antropologia da sociedade
52

nacional11 (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988). Durante a passagem do século XIX


para o XX, haviam algumas questões que norteavam uma boa parte dos estudos
sobre a sociedade brasileira, a este respeito o professor Roberto Motta pontua
algumas delas:

[…] a primeira dessas questões […]. Por que não somos como os
Estados Unidos em matéria de poder e de progresso? A segunda [...]
O que tem significado para o Brasil, como tem influenciado nossa
evolução social e histórica, a forte presença africana que nos
caracteriza, sob os aspectos de genótipos e fenótipos, de cultura,
religião e outras manifestações? […] terceira questão. Sob que
condições pode-se conceber a existência de uma civilização
brasileira diferente da que prevalece na América do Norte ou na
Europa do Norte? E finalmente […] pergunta-se qual seria o
relacionamento entre a formação social brasileira e uma
modernidade entendida nos termos de iluminismo, racionalização,
progresso, desenvolvimento e outras características do mesmo
gênero? (MOTTA, 2014. p. 3. grifos do autor).

Podemos dizer então que o problema da integração do negro na sociedade


nacional era elemento central não só na obra de Nina Rodrigues, mas também de
seus seguidores. O trabalho do médico maranhense pode ser lido como uma
tentativa de dar resposta a tais questões. A filiação teórica mais duradoura de Nina
Rodrigues parece ter sido construída a partir do momento em que este toma
conhecimento dos trabalhos do médico antropólogo Cesare Lombroso (1836-1909) e
seus seguidores, e também dos trabalhos do francês Alexandre Lacassagne e sua
equipe de Lyon (CORRÊA, 2013).

11 Roberto Cardoso de Oliveira (RCO) (1988) faz referência a um período histórico específico, o das
décadas de 1920 e 1930, que ele denomina de período “heroico”, destacando entre as principais
produções as de Gilberto Freyre (para a antropologia da sociedade nacional) e as de Curt
Nimuendajú (para a etnologia indígena) pelo impacto que suas obras tiveram em suas respectivas
áreas. Roberto Cardoso de Oliveira ainda destaca outros nomes, como Baldus, Roquette-Pinto,
Arthur Ramos e Heloísa Alberto Torres, no Sul; Carlos Estêvão de Oliveira e Estêvão Pinto, no
Norte e Nordeste. Entretanto, esses autores não teriam deixado com suas obras uma marca tão
duradoura na antropologia nacional como os primeiros. A obra de Raymundo Nina Rodrigues não
faz parte desse período específico nem foi mencionada por RCO em seus trabalhos, mas é claro
que sua produção teve um forte impacto na produção antropológica, mesmo que naquele
momento a própria área da antropologia não estivesse propriamente demarcada em nosso país.
Para o desenvolvimento do campo da antropologia das religiões afro-brasileiras, suas
contribuições foram fundamentais, sendo até hoje uma leitura fundamental para quem deseja
debruçar-se sob esse campo.
53

Sua admiração pelos principais teóricos do grupo da antropologia


criminal italiana e pelos da escola médico-legal francesa permaneceu
inalterada, ainda que considerasse discutível a aplicação de alguns
de seus postulados no cenário brasileiro, e não há dúvida de que o
trabalho deles serviu de exemplo à atividade que [Nina Rodrigues]
desenvolveu na Bahia. (CORRÊA, 2013, p. 68).

Dentre esses intelectuais, o mais conhecido e que mais influenciou as


metodologias empregadas por Nina Rodrigues foi Lombroso. É muito comum que
ao se referir à obra do criminalista italiano e de sua escola de pensamentos, o
enfoque esteja na craniometria e na construção de estereótipos a partir , do que hoje
podemos chamar de errôneas metodologias. Entretanto, é importante salientarmos
que “[...] a antropologia criminal italiana não se interessava apenas pelo estudo dos
criminosos; seu objetivo mais amplo era a compreensão das causas das
desigualdades (CORRÊIA, 2013, p. 69)
É a partir da influência recebida de Cesare Lombroso e das teorias raciais do
século XIX que Nina Rodrigues construiu uma leitura médico-biológica, com um viés
claramente racista, onde via na mestiçagem um elemento extremamente negativo,
um problema de primeira ordem. Preocupado então com o futuro do Brasil enquanto
nação, volta seus olhos para os negros escravizados que vieram de África. O
médico maranhense foi o primeiro intelectual que não viu os negros como um grupo
homogêneo. Dessa forma ele estava ressaltando as suas diferentes origens e as
suas diferenças socioculturais. Refletir a respeito dessas diferenças foi fundamental
em suas análises das possibilidades do Brasil como nação que se pretendia
adentrar numa modernidade.
A presença do negro na sociedade brasileira era “um mal necessário”, que
teria sua superação efetivada por uma obra biológica — a miscigenação. A
importação de pessoas brancas para o Brasil seria necessária para que a raça negra
fosse cada vez mais diluída — branqueada. Dessa maneira, a saída encontrada por
Nina Rodrigues foi eleger os negros sudaneses como os “melhores entre os piores”.
O Brasil recebeu um grande contingente de negros? Sim! Mas os que aportaram
aqui foram, entre os negros, os mais desenvolvidos.
54

Mas agora a história dos Negros no Brasil, corrigindo e completando


a indicação brutal ou em grosso da sede do tráfico, e da procedência
dos navios negreiros, deve discriminar melhor as nacionalidades dos
escravos. Dentre eles, se não a numérica, pelo menos a
preeminência intelectual e social, coube sem contestação aos negros
sudaneses. (RODRIGUES, 2010. p.25. Grifos meus)

Neste fragmento do texto Os Africanos no Brasil, de Nina Rodrigues,


podemos identificar a maneira como está marcada a superioridade dos negros
sudaneses em relação aos negros de origem banto, “cuja pobreza mítica está hoje
perfeitamente reconhecida e demonstrada, o que lhes permitiu adotar uma
caricatura da religião católica dos colonos” (RODRIGUES, 2010. p.52).
Bom, a partir do que foi dito, conseguimos identificar os fundamentos da
noção — ou ideologia — de pureza nagô. Temos aí o esboço dos elementos que
iram figurar a superioridade dos negros sudaneses, em especial os nagôs (ioruba),
algo que reverberará nos estudos acerca dos afro-brasileiros durante décadas. No
argumento de Nina Rodrigues, encontramos a ideia de que os nagôs iorubas por sua
superioridade intelectual e social conseguiram manter, mesmo após a diáspora ao
Brasil, as estruturas sociais que aqui podiam ser encontradas de forma exemplar em
seu culto aos orixás. Em contrapartida, os negros de origem banto não dotados
dessa primazia intelectual logo sucumbiram ao sincretismo.
Com relação aos estudos de Nina Rodrigues a respeito do negro baiano,
Edison Carneiro comenta:

Nina Rodrigues, estudando o problema do negro no Brasil, não deu a


importância à contribuição do negro banto. Para ele, o problema do
negro era, mais exatamente, o problema do negro sudanês,
principalmente dos negros jejes e nagôs […] O velho Nina não
desconheceu, aliás, o negro banto. Aqui e ali, no curso das suas
pesquisas, ele foi encontrado o traço do negro sul-africano, ora nos
cucumbis, ora nos ranchos totêmicos dos Reis, ora nas revoltas dos
quilombos do Brasil. Negro na Bahia, para Nina Rodrigues, era,
apesar de tudo, negro sudanês. Os demais não tinham existência
legal no quadro étnico, social e religioso da Bahia (CARNEIRO,
1991. p. 128. Grifos meus)
55

Mas não sejamos tão benevolentes com nosso médico maranhense. Como
nos alerta Pedro Germano (2013), ao se falar das contribuições de Nina Rodrigues
para a construção de uma África ancestral para o candomblé, precisamos ficar
atentos ao fato de que esta não foi uma de suas preocupações, muito embora suas
contribuições tenham sido fundamentais para a criação desta escola de
pensamento. “O autor era muito positivista, suas obras ancoradas no evolucionismo
unilinear, e estava convencido da inferioridade do negro e o problema que todo esse
grupo trazia para a sociedade brasileira” (GERMANO, 2013, p. 70).
Então podemos aqui concluir que o médico maranhense, embora esta não
tenha sido sua motivação primeira, ao eleger o negro sudanês como o mais
desenvolvido social e culturalmente, exerce uma forte influência na construção da
ideia de pureza nagô. Suas pesquisas reverberaram nas gerações futuras, suas
ideias ajudaram a formular uma corrente dentro do pensamento social brasileiro que
posteriormente ficou conhecida como a Escola Nina Rodrigues.
Já nas décadas de 1930 e 1940, a ideia de uma superioridade da cultura
nagô iorubana acaba por estar presente também na obra de Arthur Ramos (1903-
1949) e Edison Carneiro (1912-1972), ambos discípulos de Nina Rodrigues, que
tiveram papel fundamental na construção da ideia de África para o candomblé,
reiterando muitas das contribuições de seu mestre. São eles que robustecem a
ideologia de que certos terreiros da Bahia eram redutos da verdadeira religião dos
africanos (GERMANO, 2013), verdadeiras Áfricas no Brasil.
O alagoano Arthur Ramos ingressa na Faculdade de Medicina da Bahia no
ano de 1921. Em 1926, recebe o título de Doutor em Ciências Médicas Cirúrgicas
após a defesa de sua tese Primitivo e Loucura. Seus interesses a respeito do
folclore e da cultura brasileira o levaram cada vez mais a se especializar no campo
da antropologia. Ramos atuou em diversas áreas, como psiquiatria, educação,
psicanálise, medicina legal, higiene mental, antropologia, etnografia e neurologia
(GASPAR, 2009).
É pelo menos até Arthur Ramos que podemos remeter a construção —
iniciada, mas nunca concluída — da santa aliança. Ao realizar uma incursão aos
56

renomados terreiros da Bahia, Arthur Ramos recebe o cargo de Ogã, numa clara
troca pelos “serviços prestados” ao candomblé. (GERMANO, 2015)
A obra do médico alagoano Arthur Ramos é vasta. Ele demonstrou interesse
por uma série de temas e enfoques. Entretanto, a questão do sincretismo religioso
afro-brasileiro recebe certo destaque em sua produção. De forma geral, Ramos via
no sincretismo algo negativo.

[...] já não existe no Brasil os cultos africanos puros de origem. Em


alguns candomblés, principalmente na Bahia, a tradição gêge-nagô é
mais ou menos conservada. Mas não se pode deter a avalanche do
sincretismo (RAMOS, 1940. p,168. Grifos meus)

Foi Arthur Ramos quem primeiro elaborou uma sistematização a respeito do


sincretismo afro-brasileiro. Da mesma forma que Nina Rodrigues, Arthur Ramos
salienta o fato de que os negros escravizados que vieram para o Brasil não tiveram
uma mesma origem, “foram vários os grupos, várias as religiões e vários os pontos
do Brasil onde se distribuíram” (RAMOS, 1940, p. 165). Partindo dessa ideia, Ramos
constrói seu quadro classificatório do sincretismo, para este autor “os vários cultos
africanos se amalgamaram a princípio entre si e depois com a religiões brancas: o
catolicismo e o espiritismo” (RAMOS, 1940, p.168). Dessa forma, Ramos constrói
um panorama, em ordem crescente, do sincretismo, partindo primeiramente do
gêgê-nagô para o gêge-nagô-musulmi-bantu-caboclo-espírita-católico.
Em O Negro Brasileiro, Arthur Ramos vai buscar “mitos puramente africanos”
(MOTTA, 2014. p.10) nos relatos produzidos pelo missionário T.J Bowen e o coronel
A. B. Ellis na costa ocidental da África, para então, a partir de uma noção de
inconsciente africano hereditário, estabelecer um paralelo a respeito do que ele
mesmo encontrava em suas pesquisas nos terreiros da Bahia e assim ele diz:

O fetichismo puro é um vasto sistema cosmolatrico, onde os orixás


são expressões de forças da natureza. Na época em que Nina
Rodrigues fez os seus estudos, esta mitologia primitiva dos negros
baianos muito pouco se afastava do fetichismo ioruba [...]. Hoje a
obra do sincretismo avança no seu trabalho rápido de transformação
de espécies místicas, se bem que se possam, não sem um certo
57

esforço, reconhecer os elementos iniciais. E ainda hoje na Bahia, em


certos terreiros que guardam a tradição nagô, como o Gantois, onde
centralizei as minhas pesquisas, se podem perfeitamente destacar os
elementos básicos do fetichismo. (RAMOS, 1940, p. 38-39. Grifos
meus)

A respeito do importante papel que foi desempenhado por Arthur Ramos na


construção de uma África mítica para o candomblé, e consequentemente da ideia de
pureza nagô, o professor Roberto Motta comenta:

[…] [Arthur Ramos] se torna o pioneiro de uma das mais fortes


orientações teóricas no campo afro-brasileiro. É a ele que se deve a
invenção de um conceito destinado a brilhante futuro: o da pureza
africana, que seria negativamente afetada pela sociedade brasileira.
[…] o antropólogo se transforma em doutor da fé, descobridor ou
inventor da tradição e da memória. (MOTTA, 2014. p. 10. Grifos
meus)

Tanto Arthur Ramos como Edison Carneiro voltaram seus olhos também para
o negro de origem banto, contudo eles apenas o fazem com o intuito de comprovar a
superioridade dos sudaneses. Podemos constatar isso em vários pontos da obra
desses autores, onde por várias vezes reiteram a afirmação da “mítica pobríssima
dos negros bantos” (CARNEIRO, 1991, p. 62) e sua predisposição ao sincretismo.
O baiano Edson Carneiro teve sua formação primeira na área das ciências
humanas, formado em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1936, pela Faculdade do
Estado da Bahia. Seu interesse pelos cultos afro-brasileiros, o folclore e a cultura
popular inicia no começo da década de 1930 (GASPAR, 2010a). Um intelectual
militante de forte influência marxista.
Da mesma forma que Arthur Ramos, Edison Carneiro volta seus olhos para a
África, realizando inclusive uma viagem ao continente, com o objetivo de
compreender a aculturação dos africanos, novamente com a predileção aos nagôs
iorubas, na sociedade brasileira.
Durante sua trajetória, Edison Carneiro teve várias posições em relação a seu
mentor, Arthur Ramos, “[...] por algum tempo amigo, por algum tempo discípulo, por
algum tempo adversário” (MOTTA, 2014, p.11). Da mesma forma que seus
58

antecessores, Edson Carneiro divide os povos africanos escravizados e


contrabandeados para o Brasil em duas grandes categorias, segundo suas origens:
os sudaneses (vindos da zona do Niger, na África Ocidental, os nagôs, os gêges, os
minas, os hauçás etc.) e os bantos (originários do sul da África, Angola, Congo,
Moçambique). A predileção encontra-se mais uma vez entre os sudaneses (nagôs –
iorubas), inclusive em relação aos ameríndios. Como podemos ver na citação que
segue:

Os negros sudaneses eram, em relação aos negros bantos, muito


mais adiantados em cultura, sendo ainda superiores, neste particular,
ao selvagem nativo. Estudando a história dos negros no Brasil, Nina
Rodrigues afirmava que, “dentre estes, se não a numérica, pelo
menos a preeminência intelectual e social coube sem contestação
aos negros sudaneses”, o que as pesquisas ulteriores vieram
confirmar. [...] Portadores de cultura mais adiantada, e aqui entrados
em maior número, os nagôs dominaram completamente a massa da
população negra (CARNEIRO, 1936, p. 23-24. Grifos meus)

O professor Roberto Motta (2014) nos lembra também das predileções como
militante político de Edson Carneiro, que o fizeram lançar o projeto antissincrético.
Para Carneiro, o contato das mitologias gegê-nagô com o sincretismo presente de
forma mais ampla na sociedade brasileira (“gêge-nagô-musulmi-bantu-caboclo-
espírita-católico”) não era positivo, pois “assim, agindo e reagindo, a mitologia negra
vai se degradando, se decompondo, se incorporando ao folclore nacional”
(CARNEIRO, 1991. p. 97).
É na obra de Edson Carneiro que encontramos uma preocupação em
desenvolver um projeto antissincrético, ou seja, uma preocupação militante em
delimitar o que seria a verdadeira religião dos africanos no Brasil e o que havia se
degenerado com o sincretismo. Para o autor, o fenômeno do sincretismo é uma
degradação, ou, melhor dizendo, o sincretismo afro-brasileiro é uma degradação que
ameaçava a pureza africana que ainda se fazia presente em alguns terreiros gegê-
nagô da Bahia. Ou seja, Edson Carneiro ajudou a produzir um quadro que separa
aqueles que produzem a verdadeira religião negra e aqueles que eram degradação
e charlatanismo. Em suas palavras:
59

Esses candomblés [bantos ou ‘de caboclo’], aceitando a intromissão


de vários elementos estranhos, embora de fundo igualmente mágico,
em vez de se revitalizarem, vão se degradando, perdendo a sua
precária independência. Muito provável será, portanto, a afirmação
de que esses candomblés só se mantenham à custa, à sombra dos
candomblés jeje-nagôs, aproveitando a sua mítica, o seu ritual
fetichista. Nada mais. Até mesmo as largas facilidades que se
permitem os negros bantos concorrem, enormemente, para a difusão
do charlatanismo (CARNEIRO, 1991, p. 136).

Como podemos notar nos trabalhos já citados neste capítulo, a construção de


uma África ancestral para o candomblé, firmada na ideia de pureza nagô, está
ancorada na obra dos intelectuais da escola Nina Rodrigues e ainda em muito de
seus sucessores. A busca pela África ancestral foi o que moveu esses intelectuais e
desempenhou um importante papel na classificação e legitimação dos terreiros da
Bahia.
É na obra de Arthur Ramos, mas principalmente na de Edson Carneiro,
conjuntamente com sua atuação militante, “onde se sobressai a intenção de
defender os direitos religiosos dos fiéis do candomblé e de estudar essa religião”
(NUCCI, 2005, p. 8). É justamente nesse quadro que alguns pais de santo, como
Martiniano do Bonfim; e terreiros, como o Ilê Axé Opó Afonjá, Gantois e a Casa
Branca do Engenho Velho, ganham legitimidade, são elevados ao status de religião
e ficam livres da ação policial. Concomitante a isso, tantos outros são excluídos dos
quadros dos terreiros tidos como legítimos, classificados como charlatões e lugares
de práticas de curandeirismo.
Diante disso, Carneiro chega ao ponto de “insinuar a conveniência de uma
intervenção do braço secular, noutros termos, da Polícia, para a superação da
heterodoxia, mas heterodoxia com relação à forma africana que ele estima ‘pura’”
(MOTTA, 2014, p. 11).
Edison Carneiro tinha uma clara preocupação com a normatização dos cultos,
atuando como militante político em prol dos terreiros afro-brasileiros da Bahia, mas
não todos, apenas daqueles que considerava ser dignos — como podemos perceber
60

neste trecho de um memorando escrito por Carneiro e endereçado a Landulfo Alves,


interventor federal da Bahia entre 1938 e 1942:

Como tem provado, suficientemente, os mais argutos observadores,


notadamente Nina Rodrigues e Arthur Ramos, e os congressos Afro-
Brasileiros já realizados, tanto em Recife (1934) quanto na Bahia
(1937), nada há dentro das seitas africanas, que atente contra a
moral ou contra a ordem pública” (RAMOS, 1971, p. 199-200. Grifos
meus).

Ainda sobre a distinção feita por Edison Carneiro, o professor Roberto Motta
comenta:
[...] num momento histórico caracterizado por uma hostilidade mais
ou menos marcada, por parte dos que exerciam o poder político,
contra a religião e a cultura africana no Brasil, nosso autor achou
prudente estabelecer algumas distinções. Charlatanismo? Sim! Mas
isto só nos terreiros de baixa extração, nos candomblés “bantos” e
‘caboclos’. Homossexualismo acintoso e, além do mais, “passivo”?
Sim, infelizmente sim, mas isto também só nos maus terreiros,
frequentados pela ralé dos bairros mal afamados da cidade. Os
terreiros da tradição nagô, muito ao contrário, eram centros de
acendrada virtude, onde se praticavam a caridade e a castidade.
(MOTTA, 2014, p.12).

Atentem bem às duas citações anteriores. Tanto nas palavras de Edison


Carneiro como nas interpretações do professor Roberto Motta, é interessante
notarmos que, além da noção de pureza nagô e de uma distinção entre magia e
religião, a moral também atua como importante demarcador da distinção entre os
terreiros tradicionais dignos de serem salvaguardados e os terreiros dos charlatões.
Stefania Capone (2009) nos lembra que a diferenciação entre os “bantos
degenerados e nagôs puros” estava refletida em torno da relação entre magia e
religião, dentro da obra de Edson Carneiro, sendo esta uma de suas principais
preocupações na normalização dos cultos.
O professor Peter Fry (1998) nos traz uma importante discussão a respeito da
formação do campo, por ele denominado de “mágico-religioso”, afro-brasileiro. Fry,
observando no contexto baiano e carioca, demonstra a existência de um discurso de
legitimação pautado numa produção de tipologias baseadas na suposta origem
61

étnica africana (a construção da ideia de pureza nagô), bem como nas noções de
pureza e autenticidade.
Obviamente que aqui não quero extinguir o papel que foi desempenhado
também pelos pais e mães de santo no processo de construção das tradições. Não
podemos esquecer que o ato de rememorar, como bem nos disse Michel Foucault
(2013) e Jacques Derrida (2001), não é um ato inocente. O que pode ser visto como
um despretensioso discurso sobre o passado acaba por agir “(...) sobre ele,
operando reconstruções, evocando identidades, realizando, enfim, um trabalho de
produção de sentido que visa legitimar ações no presente” (DANTAS, 1988, p. 60).
No que diz respeito ao papel desempenhado por pais e mães de santo no
processo de invenção da tradição africana (pureza nagô), Beatriz Góis Dantas
comenta:
[...] o que se pretende não é negar a possível origem africana de
muitos desses centros de culto que, em alguns casos, serve de
matriz à elaboração dos mitos, mas chamar a atenção para o fato de
que tais narrativas são marcadas pelas intenções e interesses dos
pais e mães-de-santo que, através delas, visam estabelecer um
estreito e explícito elo de ligação com a África, apresentando-se
desse modo como depositário de um acervo cultural que seria a mais
pura e legítima tradição africana. O que quero sugerir é que aspectos
desses relatos que ressaltam a continuidade com a África não seriam
tão enfatizados se, por exemplo, a ‘pureza’ da tradição africana não
fosse, de algum modo, valorizada por certos setores da sociedade
mais ampla, de maneira a permitir sua utilização de forma vantajosa
na luta pelo mercado religioso e em sua inserção na sociedade
(DANTAS, 1988, p. 61. Grifos meus.)

A ideia de santa aliança é sempre pensada num processo de troca, uma


relação que em seu fim visa legitimar ambos, pesquisador e pesquisados, em
campos (acadêmico e religioso) distintos. Entretanto, para os propósitos de minha
pesquisa, estou aqui a explorar o papel que foi desempenhado pelos intelectuais
nesse processo de construção, tendo em vista que meu interesse é perceber como
diferentes correntes do pensamento social brasileiro compreendiam teórica e
metodologicamente a questão da legitimação ou não de uma casa de axé.
Concomitante ao que acima foi dito, a respeito da predominância da tradição
nagô e do papel dos intelectuais nesse processo de invenção de tradições, o
62

professor Roberto Motta, em entrevista pessoal concedida a Pedro Germano,


comenta:
A tradição Nagô, anteriormente a qualquer produção de
pesquisadores, predominou em centros como Salvador, Recife,
Maceió e mesmo Porto Alegre, do mesmo jeito que a tradição Gege
(Fon) predominou em São Luís e Belém; tal predomínio não excluía a
sobrevivência de vestígios de outras tradições nas áreas em que
predominou. O segundo momento é o da tomada de posse dessas
tradições pelos estudiosos, que tentam normatizar e, num sentido,
inventar tradições; deste processo são expoentes Arthur Ramos, a
seu modo Carneiro e Landes, Roger Bastide (expoentíssimo), Juana
Elbein, e, a seu modo, Reginaldo Prandi (GERMANO, 2013. p. 69.
Grifos meus.).

Mantenhamos em mente então que as obras de Arthur Ramos, Edson


Carneiro, assim como outros pensadores, ao “distinguir os [terreiros] que faziam
religião e os que faziam exploração” (CAVALCANTI, 1988), produziam tipologias que
passam a hierarquizar as casas de axé, categorias que as distinguiam entre as que
produziam religião e as que enganavam, as puras e as impuras, as que mediavam a
relação com o sagrado e as que o profanavam. Essas categorias passavam a
representar socialmente grupos, indivíduos, objetos e as relações entre eles.
Obras como as de Arthur Ramos e Edison Carneiro ajudaram a construir
narrativas que ligavam o presente a um passado que remetia à África, o que acaba
por se constituir como a fonte de legitimidade do terreiro. Em outras palavras, é na
ideia de conexão e continuidade com a África ancestral que se constrói a ideologia
de “pureza” nagô (DANTAS, 1988). Sinal este que irá distingui-lo de seus pares
(candomblés de caboclo, cultos de origem banto etc.).

Desse modo, a ‘história do terreiro’ não se esgota na simples


reconstrução de um passado mais ou menos remoto [...] mas se
constitui num mito de africanidade, frequentemente invocado para
legitimar situações e relações no presente. (DANTAS, 1988, p. 69-
71).

Edison Carneiro acabou por tornar-se um zeloso defensor da religião dos


orixás, tal como era praticada nos terreiros da tradição nagô. Como espero já ter
ficado claro, no contexto da Escola Nina Rodrigues a legitimação ou não de um
63

terreiro passava necessariamente pelas noções de pureza/ortodoxia/tradição.


Estava presente aí a “busca de africanismos, que marcou profundamente a
produção antropológica sobre cultos afro-brasileiros” (DANTAS, 1988, p.59).
A busca pelo último bastião da África no Brasil estava no foco dos estudos
sobre o candomblé na Bahia, contudo esta preocupação não se fazia presente entre
os intelectuais da “Nova Escola do Recife” (NER). Ao contrário do que muitas
pesquisas parecem indicar (DANTAS, 1988; BANAGGIA, 2008; CAPONE, 2009), os
estudos sobre as religiões afro-brasileiras que foram desenvolvidos pelos membros
da NER não buscavam a noção de pureza ou a África ancestral que ainda podia ser
encontrada entre os descendentes dos negros escravizados.
Tal como veremos no tópico a seguir, o contexto pernambucano foi marcado
por suas próprias especificidades, que o diferenciam e muito do contexto baiano.

3.2 A NOVA ESCOLA DO RECIFE: REPENSANDO POSIÇÕES

Pernambuco, Recife mais especificamente, foi um dos centros urbanos onde


a religião dos orixás se desenvolveu. Em nosso estado, o culto aos orixás ficou
conhecida como Xangô12, o equivalente pernambucano do candomblé da Bahia.
Como vimos no capítulo anterior, as religiões indo-afro-pernambucanas despertaram
o interesse de um grupo de intelectuais. Assim como os que desenvolveram suas
pesquisas em Salvador, eles tinham formação primeira na área de medicina, tendo
seus enfoques na psiquiatria13.
Estes pesquisadores ficaram conhecidos pelo termo “Nova Escola do Recife”
(NER), batizados por Roquette-Pinto. Uma rede de pesquisadores que realizavam
investigações com clara vocação socioantropológica, pesquisas marcadas por um
profundo trabalho de campo, sob um contexto de forte influência do culturalismo

12 Não exclusivamente em Pernambuco, mas também em Alagoas e Paraíba.


13 Não é demais lembrarmos que estamos nos referindo a um período histórico, as décadas de 1920
e 1930, em que os profissionais e o próprio campo da antropologia não estavam
institucionalizados. Aqueles que detinham o privilégio de ingressar numa formação superior no
País tinham que optar entre os cursos de direito, medicina ou engenharia.
64

freyriano. Estava marcado então um afastamento do modelo médico biologizante de


Nina Rodrigues. (CAMPOS; PEREIRA; MATOS, 2017).
Podemos citar como exemplo de pesquisadores da NER Ulysses
Pernambucano de Melo, Albino Gonçalves Fernandes, Waldemar Valente, Pedro
Cavalcanti, René Ribeiro etc. Pernambucano foi o fundador do SHM, ele e muitos
outros da NER tiveram passagem pelo SHM, por esta razão suas obras foram e
ainda são vinculadas a uma tradição eugênica, médico-biologizante.
A professora Roberta Campos nos alerta para o fato de que os trabalhos dos
membros da NER raramente são mencionados em suas particularidades e
individualidades, sendo referidos de forma genérica “A Equipe de Higiene Mental” ou
“A equipe do Serviço de Higiene Mental liderada por Ulysses Pernambucano”
(PERREIRA; CAMPOS; EMEÍDIO, 2017).
Precisamos ter em mente que embora existam elementos que unam os
autores da NER, suas trajetórias intelectuais variam. Como bem disse Mariza
Peirano, “[...] nenhum antropólogo é uma ilha; nenhum cientista social é
desenraizado” (2014, p, 20). Em nossa “conversão” para as ciências sociais, somos
socializados a partir de uma determinada história teórica14, construída justamente a
partir do confronto entre a teoria acumulada e os novos dados empíricos.
Afirmações como as de Stefania Capone, de que Ulysses Pernambucano era “outro
discípulo de Nina Rodrigues” (CAPONE, 2009, p.231), não deixam de ser verdade,
mas contam apenas parte de sua história. O contexto da psiquiatria brasileira nos
anos de 1930, com toda a certeza, é marcado por fortes compreensões eugênicas,
mas tenhamos em mente que o contato com o culturalismo freyriano provocou
grandes transformações no projeto médico-psiquiatra desenvolvido por Ulysses
Pernambucano no estado de Pernambuco.

14 Peirano define história teórica nos seguintes termos: “Escolho a expressão história teórica para
designar um elenco de autores e monografias que se transformam, em determinado contexto, em
uma linhagem socialmente consagrada da disciplina. Isto é, a história teórica pode assumir
formas variadas, mas sua presença constante é elemento essencial da cosmovisão do
antropólogo. [...] Empiricamente, ela se traduz como uma reinvenção em termos disciplinares,
resultado do encontro entre teoria acumulada e dados etnográficos novos, que são vistos, pelos
antropólogos-praticantes, como a história teoricamente significativa (PEIRANO, 1995, p. 133).
65

A principal influência recebida pelos intelectuais da NER sem dúvida foi a de


Gilberto Freyre, entretanto “esses pesquisadores [...] não se aproximam das ideias
freyrianas igualmente nem no tempo nem na profundidade” (CAMPOS; PEREIRA;
MATOS, 2017, p. 28). Alguns inclusive divergem dessas ideias. A exemplo de
Gonçalves Fernandes e Pedro Cavalcanti, que mantiveram um constante diálogo
com Arthur Ramos (CAMPOS; PEREIRA; MATOS, 2017).
O recifense Waldemar Valente (1908-1992) também teve sua primeira
formação na área da medicina, mas acabou por tornar-se um daqueles intelectuais
que em sua trajetória acumulou vários rótulos: “Médico, farmacêutico, antropólogo,
sociólogo, etnólogo, professor, pesquisador, humorista e escritor” (ANDRADE, 2009.
Sem paginação.).
Um dos pontos que quero aqui enfatizar é que, ao contrário do que alguns
trabalhos demonstram, os intelectuais da NER não estavam preocupados em buscar
uma África ancestral, que — contra todas as intempéries da diáspora — conseguiu
se manter viva no rito nagô. Gonçalves Fernandes, em depoimento já exposto no
capítulo anterior, falava que já não era possível encontrar no Recife um só culto
“negro-fetichista” puro, chegando inclusive a falar em “terreiros afro-pernambucanos”
(FERNANDES, 1937, p. 10). Waldemar Valente, por sua vez, faz uso do termo
“mosaico religioso afro-pernambucano” (VALENTE, 1976, p. XXII).
Está claro na obra de Waldemar Valente 15 que sua busca não era por uma
África ancestral. Este pernambucano teve o sincretismo religioso entre os seus
principais temas de estudo. Dialogando com Gilberto Freyre e Joaquim Nabuco,
Valente acentua os impactos da diáspora e da condição de escravo na manutenção
de seus traços culturais.

[...] as cultuas africanas não podiam se manter intactas no novo


ambiente, como aliás, já contaminadas vinham elas do seu habitat de
origem. No Brasil, puseram-se em contatos com culturas ameríndias
e europeias. E desse contato haveriam de surgir, como surgiram,

15 É necessário que situemos Waldemar Valente no tempo. Enquanto Gonçalves Fernandes já


estaria produzindo trabalhos com a temática das religiões indo-afro-pernambucanas já na década
de 1930, o primeiro trabalho de Valente sobre a temática viria apenas em 1955 (Sincretismo
Religioso Afro-Pernambucano).
66

transformações de graus diversos. [...] As sobrevivências africanas


no Brasil não se mostram em estados de pureza. Aliás, desde os
primeiros tempos da escravidão, as culturas negras se apresentam
misturadas. Misturadas e deformadas pela influência da condição de
escravo. [...] Tão entremisturadas se encontravam umas com as
outras as culturas negras no Brasil e com culturas não africanas com
que se puderam em contato no novo ambiente, em parte deformada
pela ação dissolvente da vida de escravo, que a sua identificação,
por vezes, se tornou bastante difícil. (VALENTE, 1976, p. 4-6. Grifos
meus)

Como atentamente nos mostra Pedro Germano (2017), Waldemar Valente, no


seu estudo do sincretismo afro-brasileiro, vai além das compreensões freyrianas
sobre as relações raciais. Valente tinha como pressuposto a ideia de que o
sincretismo “é um processo que se propõe resolver uma situação de conflito cultural”
(VALENTE. 1976, p. 10). E assim ele comenta: “O fenômeno do sincretismo mostra-
se bem nítido com a situação de conflito religioso imposta pelo choque do
conglomerado fetichista negro-africano com o Catolicismo luso-brasileiro”
(VALENTE, 1976, p. 13.). Disso podemos tirar a conclusão de que se o sincretismo
se propõe a resolver uma situação de conflito. Logo, o mosaico religioso afro-
pernambucano é um campo de conflitos, não harmônicos, como diz o pensamento
freyriano. (GERMANO, 2017).
Um outro ponto importante a ser destacado nos trabalhos de Waldemar
Valente é sua compreensão de que o sincretismo não tem sua origem com a
diáspora, muito menos no Brasil, com a imposição da religião católica, mas sim na
própria África. Para Valente, “os cultos africanos chegavam ao Brasil mais ou menos
misturados” (VALENE, 1976, p. 24).

O trabalho do sincretismo das religiões negras com outras religiões


iniciou-se na própria África. [...] Principalmente foi o contato com o
Islamismo, cuja influência se exerceu com toda a força de seu poder
de submissão. Maometanizaram-se, em graus vários, alguns povos
da África Ocidental, sob o domínio das ondas semitas. Uns apenas
de leve e superficialmente; outros, de modo mais intenso e profundo.
Depois foi a obra de expansão cristã, realizada graças à ação dos
missionários europeus. Entremisturadas em consequências do
próprio dinamismo cultural que não podia deixar também de se
processar no continente africano. Entremisturadas ainda pela
67

influência acidental do cativeiro, pela situação de escravo, que


apagando certas antipatias de grupos e certos ressentimentos
políticos, os unia e os nivelava, desde o momento em que os navios
negreiros largavam dos portos africanos. Nestas condições, vieram
para o Brasil, ao tempo do comércio escravo, não religiões negras
puras, mas religiões negras intermisturadas (VALENTE, 1975, p.28.
Grifos meus).

Dentro dos estudos pioneiros sobre o sincretismo, podemos identificar três


compreensões distintas, como Roberta Campos (2008) problematizou e Pedro
Germano (2017) enfatizou. Primeiro, uma visão positivada, a ideia de Ilusão de
Catequese, de Nina Rodrigues; segundo, uma visão otimista, derivada da leitura que
Gilberto Freyre faz da formação da sociedade nacional; terceiro, uma compreensão
negativa do sincretismo, entendido como uma degeneração da pureza nagô.
(GERMANO, 2017.)
A respeito da influência que essas visões tiveram sob os estudos sobre o
sincretismo, Roberto Motta comenta:

Os discípulos de Nina Rodrigues tenderão, na medida de sua fidelida-


de ao mestre, a reconhecer o sincretismo na prática etnográfica, mas
tendo dele uma visão essencialmente pessimista: o sincretismo resul-
taria na mentalidade primitiva, da inteligência rudimentar de raça ne-
gra, incapaz e elevar-se às abstrações do catolicismo. Já os influenci-
ados pela concepção de Gilberto Freyre, ou a ela aparentados, tende-
rão a encarar o sincretismo – embora possam designá-lo com outros
nomes – não apenas de maneira otimista, mas como o autêntico fun-
damento da cultura e da sociedade nacional (MOTTA, 1991. p.257
apud GERMANO, 2017).

Podemos assim compreender a obra de Waldemar Valente, especificamente


em relação aos seus estudos sobre o sincretismo religioso, tanto no Brasil como em
África, como uma crítica à escola Nina Rodrigues. Esse autor, esquecido pela
história da disciplina, demonstra um ponto de vista novo, pioneiro, que não reproduz
e o afasta da visão de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edson Carneiro. Além disso,
vemos que em seus estudos não há preocupação em buscar a pureza do culto. Em
sua compreensão, podíamos encontrar uma forma de sincretismo pré-brasileiro,
68

chamado por Valente de Sincretismo Intertribal, a religião dos orixás já havia entrado
em contato com o islamismo e o cristianismo. (GERMANO, 2017).
A história da produção dos membros do NER parece estar ainda muito
nebulosa. É preciso nos manter atentos ao rememorar este fragmento da história da
antropologia brasileira produzida em Pernambuco, resguardando os limites
epistemológicos, políticos e ideológicos do rememorar, para assim não cairmos em
vícios, como generalizar o todo pelas partes ou as partes pelo todo. Tendo em mente
a necessidade de produzir uma compreensão mais plural do que foi a produção do
NER.
Como exceção disso, temos os esforços da professora Roberta Campos em
pôr luz sobre a produção dos membros da NER, realizando um importante papel em
reverter esse quadro. Graças a Roberta, agora temos uma série de novos estudos
produzidos, em andamento e ainda por serem concretizados sobre a NER, onde
este trabalho também se inclui, contribuindo assim para produzir um quadro mais
plural de interpretações sobre o que foi o SHM e a NER.

3.3 O PRIMEIRO CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO

O Primeiro Congresso Afro-Brasileiro (1º CAB) é um importante


acontecimento. Compreender o que foi esse evento — seu pioneirismo, sua
organização, estrutura etc. — é também entender o que foi a experiência do SHM e
o papel que este e a NER desempenharam frente aos terreiros de Pernambuco. O 1º
CAB, realizado entre os dias 11 e 15 de novembro de 1934, foi organizado por
Ulysses Pernambucano e Gilberto Freyre. Foi justamente pelo papel desempenhado
por Ulysses e o SHM em mediar a relação entre os terreiros e a polícia que se
tornou possível a concepção do congresso tal como foi realizado.
Até hoje o 1º CAB é bastante criticado. Mateus Skolaude argumenta que
parte desta incompreensão do que foi este evento no campo das relações raciais no
Brasil está relacionada ao fato de que algumas pesquisas estão a reboque de
interpretações superficiais realizadas pelo Movimento Negro nas décadas de 1940 e
69

1950. Fato que se agrava com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU),
neste caso devido à constante crítica à obra de Gilberto Freyre e a ideia de
Democracia Racial16 (SKOLAUDE, 2014).

Diante deste contexto, as principais lideranças intelectuais ligadas


aos movimentos sociais de luta antirracista no Brasil imputaram ao 1º
CAB os desdobramentos das ideias freyrianas assumidas em ‘Casa
Grande & Senzala’ e consequentemente ao “mito da democracia
racial” (SKOLAUDE, 2014, p. 1).

Abdias do Nascimento, em O Negro Revoltado (1982), coloca as experiências


do 1º CAB e 2º CAB apenas como um exemplo do mito da democracia racial, um
evento estritamente de caráter científico, marcado pelo paternalismo do branco “(...)
que detém todos os recursos e os concede, apenas, ao negro que se mantem
subalterno, humilde e conciliador” (NASCIMENTO, 1982, p. 19). Para o autor, exaltar
as experiências dos congressos afro-brasileiros é cair novamente no mito da
democracia racial, que sempre exige do negro um espírito conciliador.

[...] um grupo de estudiosos realizava no Recife (1934) e na Bahia


(1937), respectivamente, os I e II Congresso Afro-Brasileiro. Foram
Congressos acadêmicos. Descreveram o negro sob aspectos
históricos, antropológicos, folclóricos, etnográficos, usavam o negro
como matéria prima de pesquisas. Mas não se confundiram com as
reivindicações práticas e objetivas da gente negra. O negro, como

16 Atribui-se a Gilberto Freyre a paternidade e disseminação do termo democracia racial, ainda que
em rigor a associação não seja totalmente acertada. Em primeiro lugar, porque a expressão não
figura em nenhuma de suas principais obras; segundo, porque apenas em 1962 ela seria de fato
usada por Freyre. Anteriormente a isto, conforme apontado por Antônio Guimarães (2001), o
termo já havia sido empregado por Abdias do Nascimento em sua fala inaugural ao I Congresso
do Negro Brasileiro, em 1950, e por Charles Wagley na introdução ao primeiro volume da série de
estudos encomendados pela Unesco em meados da década de 1950. Sobre este assunto,
Guimarães comenta: “Wagley introduziu na literatura especializada a expressão que tornaria não
apenas célebre, mas a síntese do pensamento de toda uma época e de toda uma geração de
cientistas sociais. (...) [Gilberto Freyre] não pode ser responsabilizado integralmente, nem pelas
ideias, nem pelo seu rótulo; ainda que fosse o mais brilhante defensor da “democracia racial”,
evitou, no mais das vezes nomeá-la” (GUIMARÃES, 2001, p. 148). Não obstante a esta
perspectiva há outras interpretações. A exemplo da ideia de que Freyre jamais havia negado o
preconceito e a violência, em seu livro Ordem e Progresso (FREYRE, 2013) essa perspectiva
está mais que evidente. Seu esforço estaria em compreender as diferenças entre Brasil e EUA,
aqui o catolicismo teria de alguma forma abrandado, mas não eliminado a violência. Ademias, o
que é pouco – ou nada – reconhecido é o fato do sociólogo recifense também ter feito uso de sua
obra, e em palestras diversas, para denunciar a violência o preconceito.
70

mais tarde diria um membro da corrente, entrou naqueles certames


como o micróbio sob o olho do microscópio. Tiveram assim
prioridade o lado mais vistoso e ornamental da vida negra – os
candomblés, a roda de samba, a capoeira – particularmente o
enfoque do negro “coisificado”, estático, imóvel, e estranho à
dinâmica da sociedade Brasileira. (NASCIMENTO, 1968, p. 35-36.
Grifo meu.)

Abdias do Nascimento estava traçando uma linha para separar os CAB do 1º


Congresso do Negro Brasileiro (1º CNB), realizado em 1950, organizado pelo Teatro
Experimental do Negro (TEN), no qual sua participação teve papel fundamental.
Para Abdias, o 1º CNB teria como diferença fundamental a militância política e um
sentido prático para reverter a situação do negro, algo que faltava largamente aos
seus “primos distantes”. Assim comenta:

Conforme já ficou dito, este certame não teria ligações – se não


muito remotas – com os Congressos Afro-Brasileiros do Recife
(1934) e da Bahia (1937). Esses foram congressos acadêmicos,
repetimos – mais ou menos distantes da cooperação e da
participação popular. O congresso de 1950 reconhecia a existência
de uma população de cor no País, consciente de sua importância
como fator de progresso nacional, e tentaria modos e maneiras de
promover o acesso ao bem-estar social dos milhões de negros e
mulatos do Brasil. Assim o Congresso do Negro preencheu dois
objetivos: um passivo e outro ativo, um acadêmico e outro popular,
um técnico e outro prático. [...]. Sem colocar em causa a boa
vontade, a generosidade dos organizadores e participantes dos
congressos nordestinos afro-brasileiros, podemos afirmar, sem
cometer injustiça, que, de nossa perspectiva prática, esses certames
pouco adiantaram ao negro. Sua marca fundamental assentava-se
na fruição estético-epicurista do estudo descritivo. Postura quietista e
alienada – ainda que humanitária e plena de filantropismo. A
repercussão nacional de tais estudos, já disse Guerreiros Ramos,
responde, aliás, a uma não formulado propósito de desviar a atenção
do país e do próprio negro dos problemas emergentes de sua nova
condição de cidadão. (NASCIMENTO, 1968, p. 44)

Abdias do Nascimento também não via distinção entre o que foram os


estudos sobre o afro-brasileiro realizados pela NER e a Escola Baiana (EB). Ele
aglutinava essas duas escolas de pensamento sob o título de “escola nordestina”,
71

que embora tentasse se colocar como uma expressão nacional dos estudos afro-
brasileiros, seria predominantemente baiana.

O que até mais ou menos 1940 era considerado uma espécie de


escola afro-brasileira de estudos sobre o negro, mais propriamente
se poderia denominar de escola nordestina – predominantemente
baiana – do que mesmo uma expressão nacional nesse ramo de
estudo. (NASCIMENTO, 1968, p. 44)

Luís Gustavo Rossi (2011) também teceu elogios e críticas ao 1º CAB. Para o
autor, é nítido que o 1º CAB traz consigo uma série de esforços para minimizar e
relativizar as explicações biologizantes das relações raciais no Brasil. Entretanto,
para Rossi, não obstante a esses esforços, estavam claras as dificuldades para se
desvincular dessas explicações. E também há o fato de que o negro, mesmo sendo
pensado por uma chave culturalista, não saía do status de um grupo fiscalizável.

Ou melhor dizendo, um setor da população nacional, cujas práticas,


crenças e comportamentos associados às heranças culturais
africanas, não deveriam existir fora da ação vigilante do Estado e,
portanto, das ingerências de toda espécie de políticas de intervenção
de natureza científica, médica, educacional e mesmo policial
potencialmente capazes de acelerar o desaparecimento das
sobrevivências culturais primitivas que os negros eram portadores. E
embora o I Congresso Afro-Brasileiro representasse o início da
reivindicação simbólica do negro como um objeto de reflexão mais
sociológica e cultural do que biológica, sua organização e formatação
marcavam com cores fortes a manutenção de um modelo médico de
tutelamento dos grupos afro-brasileiros (ROSSI, 2011, p. 166-167)

Para Rossi, o que predominou no 1º CAB, apesar das tentativas para


desvincular-se desta corrente, foi um modelo médico biologizante e tutelar dos
grupos afro-brasileiros.
Longe de mim aqui negar o caráter racista, tutelar, controlador e normatizador
que está presente tanto na experiência do SHM como no 1º CAB. O que quero
sublinhar é que, resguardando as implicações políticas, ideológicas e
epistemológicas, é possível compreender que o 1º CAB, com seu pioneirismo no
modo de organização, também desempenhou importante papel na luta por direitos
72

da população negra. Não podemos negar que esse evento inaugura uma forma de
organização que até hoje é utilizada e, diga-se de passagem — nos dias atuais —
muito elogiada.
Lembremos que a experiência do 1º CAB se dá num momento histórico em
que as religiões afro-brasileiras estavam sendo submetidas a uma intensa
repressão. É nesta virada do século XIX para o XX, principalmente na década de
1930, em que há a criação de leis que possibilitam uma intensificação da
perseguição policial aos terreiros. A psiquiatria brasileira, de um modo geral, era
dominada por uma tendência eugênica, racista e que via na ocorrência dessas
religiões um sério problema à saúde pública.
A realização do 1º CAB não foi bem vista por uma parte dos intelectuais e da
imprensa, como podemos constatar na matéria A Repressão dos Xangôs, publicada
na Revista Fronteiras na edição de janeiro/fevereiro de 1938.

Com o impulso que tinham tomado as ideias emanadas dos


indeferidos Congressos Afro-Brasileiros, novos tabus se fixaram de
tal maneira entre nós que temia-se a pecha de retrogrado ao tocar
em qualquer um deles. E o espantoso é que o raciocínio sobre eles
nos leva a conclusões consideradas absurdas há bem pouco tempo.
Tomemos por exemplo o que aconteceu com o Xangô [...]. Nos
tempos não muito remotos do bom senso, os Xangôs eram
equiparados às sessões espíritas, uma das mais importantes causas
de distúrbios mentais aqui como em qualquer outro ponto do Brasil.
O neo-Aphricanismo, proclamando-se inimigo do sentimentalismo e
da literatura tinha seu auge com a realização do Congresso Afro-
Brasileiro de Recife, em 1934. Com a preparação remota (remota?)
ao movimento comunista que deveria rebentar um ano depois. Isso
está tão claro que é ocioso insistir. E um pouco antes, os Xangôs,
fabricas de doentes mentais, eram matriculados na Assistência a
Psycophatas que licenças legalizadíssimas para funcionar
livremente. A mesma Assistência a Psycophatas que distribuía
prospectos onde se lia: “frequentar sessões de espiritismo traz
grandes males”; [...]; ‘todo médium é um doente mental’. [...
Hão de ter notado a falta de qualquer referência aos ‘Xangôs’ de
Catimbós [...]. Acaso as pressões africanas estariam imunes dos
perigos que nos apontavam a Assistência a Psicopatas? [...]
Fez pois o Sr. Etelvino Lins obra de Hygiene - Mental e Social -
Mandando fechar os Xangôs e aprehender o copioso material de
culto encontrado no vários ‘terreiros’ remettendo-o para o
competente Museu da Assistencia a Psicopatas. Ahí Terão os
73

interessados tempo e vagar para estudá-lo ‘Sem nenhum partido,


sem nenhuma doutrina religiosa, sem nenhuma côr política’. Como
do Congresso Afro-Brasileiro disseram os seus organizadores.
(REVISTA FRONTEIRAS, 1939, p. 12)

Nessas palavras, carregadas de ironia, podemos identificar que o Primeiro


Congresso Afro-Brasileiro foi associado a movimentos comunistas, além de ser
questionado pela posição que o xangô ocupou no evento. Compreendido até então
como uma prática nociva, encontrou no 1º CAB uma série de intelectuais que o
elevaram ao status de religião, pondo em evidência sua importância para formação
da sociedade brasileira.
A participação no 1º CAB não se limitou apenas a acadêmicos, mas envolveu
entre seus participantes também artistas, poetas, músicos, médicos, pais e mães de
santo etc., tendo de fato um caráter multidisciplinar. As sessões do congresso foram
realizadas bem no coração do Recife, no teatro Santa Isabel. No segundo volume
dos anais do congresso, Gilberto Freyre comenta o que foi aquela experiência,
seguem suas palavras:

O 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife foi o menos solene dos


congressos. Nele não brilhou um colarinho duro. Não apareceu um
fraque. Não trovejou um tribuno. Não houve um só discurso em voz
tremida. Foi tudo simples e em voz de conversa. [...]. A técnica do
Congresso foi inteiramente nova. Não só nenhuma pompa, como
quase nenhuma burocracia. Sentaram-se em volta da velha mesa, na
cabeceira da qual se sucederam os presidentes, [...], não só os dou-
tores com grande erudição de gabinete e de laboratório, como ialori-
xás gordas, cozinheiras velhas, pretas de fogareiro que trouxeram do
fundo de cozinhas de mocambos receitas de quitutes afro-brasileiros,
quase ignorados; negros de engenho como o Jovino, cujo trabalho
cheio de erros de português e de saudades do tempo das almanjar-
ras saiu no primeiro volume de Estudos; babalorixás como Pai Ansel-
mo; rainhas do maracatu como Albertina de Fleury, cujo nome pare-
ceu a José Lins do Rêgo, de heroína de romance de Proust, outros
analfabetos e semianalfabetos inteligentes com um conhecimento di-
reto de assuntos afro-brasileiros de que muito se aproveitou o Con-
gresso; [...]; o professor Ernani Braga, que recolheu para o Congres-
so um grupo de toadas de xangô que as meninas do Conservatório
cantaram no dia do encerramento, debaixo das palmas de entusias-
mo da melhor gente do Recife. Gente que afinal se voltara para o as-
sunto de descobrir nessas ‘coisas de negro’ mais do que simples pi-
74

toresco: uma riqueza nova de emoção, de sensibilidade, até mesmo


de espiritualidade; uma parte grande e viva da verdadeira cultura bra-
sileira (FREYRE, 1988, p. 348-349. Grifos meus.)

E assim continua:

O Congresso do Recife, com toda a sua simplicidade, deu novo feitio


e novo sabor aos estudos afro-brasileiros, libertando-os do exclusi-
vismo acadêmico ou cientificista das ‘escolas’ rígidas, por um lado, e
por outro, da leviandade e da ligeireza dos que cultivam o assunto
por simples gosto do pitoresco, por literatice, por politiquice, por esti-
lismo, sem nenhuma disciplina intelectual ou cientifica, sem um senti-
do social mais profundo dos fatos. A colaboração de analfabetos, de
cozinheiras, de pais de terreiro, ao lado dos doutores, como que deu
uma força nova aos estudos, a frescura e a vivacidade dos contatos
diretos com a realidade brutal. (FREYRE, 1988, p.351)

Em reportagem ao Diario de Pernambuco, no dia 10 de novembro de 1934,


Cícero Dias comenta sobre o Primeiro Congresso Afro-Brasileiro.

Avalie que vem trabalhos de sábios, de gente como Alvaro Osorio,


Mario de Andrade e ao mesmo tempo o congresso aceita a
colaboração de alunos do Ginásio, de trabalhadores do engenho.
Também vão ter trabalhos de cozinheiras pretas e de um babalorixá
que vão apresentar receitas de quitutes. (DIARIO
PERNAMBUCANO, 1934)

Podemos constatar na leitura da matéria publicada no Diario de Pernambuco,


dia 7 de setembro de 1934, com o título Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, que o 1º
CAB contou com a explanação de trabalho das mais diversas áreas (arte, folclore,
sociologia, psicologia social e etnografia). Sua programação também contava com
reuniões noturnas “em terreiros de Seitas Africanas de Recife” 17, com a exposição de
objetos de arte religiosa, além da exposição de pinturas, desenhos e fotografias de
grandes artistas sobre assuntos afro-brasileiros (Cícero Dias, Manuel Bandeira, Luiz
Jardim, Francisco Rabelo). Além disso, o evento também contou com ceias de
quitutes afro-brasileiros e audições de música afro-brasileira.

17 Os toques aconteceram nos terreiros dos babalorixás Anselmo (culto nagô), Oscar (Culto Gegê) e
Rosendo (Culto Xambá).
75

No dia 29 de abril de 1935, sai uma matéria no Diario de Pernambuco, com o


título Convidando uma geração a depor: Um interessante depoimento do Professor
Arthur Ramos. Nela, Ramos fala a respeito do 1º CAB: “Antes de tudo uma
esplêndida realização. Uma consequência natural dos problemas que nos inquietam.
Agora sim, começamos a escrever a história do Brasil. Material de casa que estava
esquecido” (DIARIO DE PERNAMBUCO, 1935, p.1).
Em relação ao 1º CAB, pouco — ou nada — se fala a respeito de seu caráter
militante em prol das religiões afro-brasileiras. Lembremos que estavam presentes
os representantes da Frente Negra do Rio Grande do Sul e da Frente Negra
Pelotense. No Diario de Pernambuco, no dia 16 de novembro de 1934, sai uma
matéria com o título O Encerramento do I Congresso Afro-Brasileiro. Nela,
encontramos as transcrições de algumas moções lidas por Gilberto Freyre na
sessão de encerramento do evento. Dentre todas, algumas merecem destaque, e
assim seguem.

1 – Sendo as Classes trabalhadoras do Brasil, em grande parte,


gente de sangue negro e herdeira de elementos valiosos de cultura
negra, o I Congresso Afro-Brasileiro manifesta sua solidariedade a
essas classes, contra toda forma de opressão.
2 – O I Congresso Afro-Brasileiro louva a ação da Assistência a
Psicopatas de Pernambuco reconhecendo nas seitas africanas de
organização definida, cultos religiosos e resguardando-as das
perseguições policiais; ao mesmo tempo protesta contra essas
coerções, onde quer que elas ainda se exerçam em nosso país.
[...]
4 – O I congresso Afro-Brasileiro protesta contra toda espécie de
discriminação contra negros ou mestiços, que ainda se verifique no
Brasil. (DIARIO DE PERNAMBUCO, 1934, p. 4. Grifos meus)

Nesta mesma matéria, também foram transcritas as propostas do Sr.


Waldemar Cavalcanti e Manoel Diegues referentes às perseguições que os negros e
o Xangô sofriam em Alagoas. Vejamos então as propostas e as deliberações do 1º
CAB a esse respeito:

Uma proposta do Sr. Waldemar Cavalcanti e Manoel Diegues


Propõem que o Congresso telegrafe ao governo de Alagoas protes-
76

tando contra o ato da polícia local que proibiu os quilombos, ‘Che-


ganças’, ‘Reinados’, etc. na festa do Natal e pedindo a sua revoga-
ção.
A proposta é a seguinte:
‘Sr. Presidente do I Congresso Afro-Brasileiro: levamos ao conheci-
mento do Congresso o seguinte:
1- A polícia de Alagoas tem, há anos, organizado sistematicamente
uma repressão a mais violenta aos Xangôs. Repressão cujos proces-
sos se requentam em perversidades até, são destruídos os terreiros
e presos os praticantes. Escoltados são obrigados a andar pelas ruas
da cidade com os seus trajes de cerimônias e os objetos de seu cul-
to, sofrendo assim as mais inumanas das humilhações.
2- A mesma polícia de Alagoas, em portaria recente, proibiu, sob o
pretexto de ‘Campanha de Repressão ao Crime’, o ensaios de qui-
lombos; fandangos, reisados, cheganças, etc., vedando assim a rea-
lização desses folguedos na época de Natal. Ora, são logo estes,
uns divertimentos populares, os da classe pobre: dos negros princi-
palmente.
O I Congresso Afro-Brasileiro achamos que não pode se conservar
numa atitude platônica de defesa do negro, restringindo-se ao terre-
no cultural desde o momento em que são solicitadas de sua parte
medidas de ordem prática em favor do elemento afro-brasileiro, de
sua cultura e de suas tradições.
Propomos assim:
a) que seja expedido um apelo a polícia de Alagoas e extensivamen-
te a todos os Estados do país, no sentido de serem suspensas as
campanhas contra o Xangô, pedindo pela liberdade de culto aos afro-
brasileiros.
b) Que seja enviado imediatamente um telegrama ao governo de Ala-
goas, protestando contra a medida tomada pela polícia em relação
àqueles festejos populares acima citados e solicitando revogação de
tal ato.
Julgamos que assim agindo o I Congresso Afro-Brasileiro, ficará real-
mente à frente da defesa dos direitos e dos interesses dos negros no
Brasil pelo menos em caráter provisório enquanto não são integral-
mente defendidos os seus interesses econômicos, sociais de nacio-
nalidades oprimidas e o direito de se disporem a se mesmos.
Sala de sessões do Congresso, aos 15 de novembro de 1934 –
Waldemar Cavalcanti – Manoel Diegues. (DIARIO DE
PERNAMBUCO. 1934, p. 4. Grifos meus)

Como bem nos lembra as autoras Pereira, Campos e Emídio (2017), após a
realização do 1º CAB, a perseguição a Ulysses Pernambucano se intensifica. Um
ano depois do congresso ele é preso por 40 dias na Casa de Detenção do Recife. A
esse respeito as autoras comentam:
77

A perseguição a Ulysses era intensa. Bastos (2010) relata que certa


vez Pernambucano chegou a ser detido para ser investigado sobre a
queda de um avião ou para saber por que não ia à missa dia de do-
mingo. Aqui se percebe que a perseguição também era de fundo reli-
gioso, pois, para a elite católica local, conservadora e ligada ao então
interventor de Pernambuco, Agamenon Magalhães, era inconcebível
que alguém defendesse a liberdade de culto afro-brasileiro e seus lí-
deres. Gilberto, por sua vez, sofrerá a mesma perseguição. A prisão
de Ulysses foi o primeiro passo para afastá-lo da direção do SHM, re-
sultando na retomada do projeto do Governo em destruir os xangôs
(PEREIRA; CAMPOS; EMÍDIO, 2017, p. 202. Grifos meus).

A respeito do primeiro e segundo Congresso Afro-brasileiro, Beatriz Goes


Dantas nos diz que os “eventos tiveram em comum a preocupação pela busca da
África, pela autenticidade baseada na pureza da apresentação dos ritos” (DANTAS,
1988. p. 193). Pedro Germano (2013) nos dá pistas fundamentais para
compreendemos o que de fato foi o 1º CAB e os pressupostos que estavam em seus
alicerces. Germano nos convida para uma leitura atenta aos anais do 1º CAB. No
prefácio ao primeiro volume, encontramos as seguintes palavras de Roquette-Pinto:

Em matéria antropológica e etnográfica, no Brasil como em tantos


outros países, estamos nas preliminares da construção. Estabelecer
os planos, ajuntar recursos e materiais, sistematizar as indagações –
é o papel destas gerações que, assim, hão de preparar para as
outras o que elas não tiveram: fontes puras onde beber. [...] Estudos
Afro-Brasileiros vão ser, sem nenhuma dúvida, um manual de
consulta diária. Ninguém poderá daqui por diante escrever sobre
coisas brasilianas sem primeiro folhear este livro (PINTO, 1988, p. III
– IV. Grifos meus).

As palavras de Roquette-Pinto quase não necessitam de comentários.


Percebemos então sua compreensão a respeito do que foi o 1º CAB e do papel que
este teria desempenhando na construção do conhecimento a respeito das “coisas
brasilianas”. Em outras palavras, o 1º CAB não estava em busca da África, mas das
diferentes brasilidades.
Assim, Pedro Germano, em nota, comenta:

[...] penso que a Dantas tomou uma pequena parte pelo todo. Apenas
os trabalhos de Rodrigues de Carvalho (‘Aspectos da influência
78

africana na formação social do Brasil’), Rodolfo Garcia (‘Vocabulário


nagô’), Pedro Cavalcanti (‘As seitas africanas do Recife’) e Melville
Herskovits (‘Procedência dos negros no novo mundo’ e ‘A arte do
bronze no Dahomé’) tocam no continente africano, mas, não
mostram esse tom de busca pela África que a autora está
convencida. Pode-se pensar que suas críticas aos autores
continuadores de Nina Rodrigues (dentre eles Edison Carneiro e
Artur Ramos) a fizeram tecer tais comentários imprudentes. [...].
Entretanto, não devemos tomar a parte pelo todo e empobrecer as
contribuições dos Encontros com esse único fim (GERMANO, 2013,
p. 79)

Não obstante as críticas que foram tecidas, podemos encontrar no 1º CAB


uma iniciativa pioneira, que em seu pioneirismo tentou trazer um modelo de
organização inovador para o seu tempo, com um caráter interdisciplinar e mais
horizontalizado, trazendo para a mesma mesa que os grandes eruditos pais e mães
de santo, analfabetos e semianalfabetos. Um modelo que até os dias atuais é
utilizado. Além disso, também vemos um tom político em prol da luta antirracista e
principalmente em prol da liberdade de culto para os praticantes do xangô.
Com relação aos trabalhos que foram apresentados no 1º CAB, embora
possamos encontrar a África como tema de algumas das apresentações, não vemos
o tom de busca pela África ancestral, como claramente enxergamos na Escola
Baiana (EB). Então, ainda que a NER e a EB sejam colocadas como representações
de um mesmo pensamento, vemos que ambas tiveram experiências distintas, com
enfoques e temáticas ímpares.

3.4 UM CAMPO DE DISPUTAS

O que podemos constatar até aqui é que os intelectuais da NER e o SHM não
estavam preocupados em buscar ortodoxia dos terreiros e muito menos viam no
Xangô do Recife uma representação da pureza do culto nagô. Mas então, diante
disso, nós podemos nos indagar: como era feita a distinção dos terreiros “que faziam
religião e os que faziam exploração”? (CAVALCANTI, 1934, p. 244).
Voltemos então a questionar a respeito da aliança que se estabeleceu entre
os pesquisadores do SHM e as lideranças religiosas em Pernambuco.
79

A ocorrência do SHM aqui em nosso estado proporcionou solo fértil para a


construção da santa aliança. Como espero já ter ficado claro com as discussões
realizadas no capítulo anterior, o SHM desempenha papel fundamental na
normatização e no controle dos cultos aqui no estado. Entretanto, temos de ficar
atentos também ao papel que foi desempenhado pelos membros dos cultos “afro-
pernambucanos” na construção dos termos desta aliança. Pois, não esqueçam,
enquanto alguns eram violentados pela polícia, outros gozavam do prestígio e da
proteção dos intelectuais. Dentre esses, alguns babalorixás merecem destaque:
Oscar, Rosendo, Anselmo e Pai Adão.
No livro Xangôs do Nordeste, de Gonçalves Fernandes, está transcrita uma
lista “dos adoradores da seita que não tem competência” (FERNANDES, 1937, p.
17). Lista esta que foi confeccionada por Anselmo e endereçada ao SHM.

1ª Maria Gorda, na rua dos Craveiros, Fundão. 2º, Zezefinha, na rua


das Moças – é casa suspeita. 3º, Neri, no sitio de Adelaide, na
Encruzilhada. 4º, José do Café, na rua do Cipó em Campo Grande.
5º, Pedro de Ancantra, na rua da Regeneração. 6º, Pai Noberto. 7º,
Amaro e José Cosme, filhos de Paisinho de Tegipió vão abrir terreiro.
Aviso do babalorixá Anselmo ao Serviço de Higiene Mental.
(FERNANDES, 1937, p. 17)

Atentem também para o fato de que a construção do calendário anual de


toques, uma das exigências do SHM para a obtenção das licenças, também foi
construído a partir de uma relação estabelecida entre os babalorixás e a polícia, não
intermediada pelo SHM, como se costuma pensar. “Foi mesmo Anselmo, o
babalorixá de Água Fria, que intendeu de fazer padrão para os toques o seu
calendário religioso” (FERNANDES, 1937, p. 32).
A respeito da relação estabelecida entre a polícia e os terreiros, Ulysses
Pernambucano comenta:

O Serviço de Higiene Mental não está ligado diretamente a essa


parte policial dos ‘xangôs’. Coube-lhe pleitear e obter liberdade para
as reuniões dos “xangôs”, sem perseguição da polícia como
acontecia antigamente. [...] O que parece é que a medida agora
tomada pela polícia está de acordo com os “babalorixás”. Posso
80

mesmo adiantar que foi o babalorixá Anselmo quem apresentou a


lista dos dias para os ‘toques’.
Antes da divulgação da medida fui procurado por Anselmo para me
manifestar sobre ela, não me manifestando, porem, por não se
prender a mesma ao Serviço que dirijo. (FERNANDES, 1937, p. 33.
Grifos meus).

Segue também as palavras de Pedro Cavalcanti sobre o papel


desempenhado pelo SHM junto a polícia.

[...] em fins de 1932 reuniram-se na Diretoria Geral da Assistência a


Psicopatas os pais e mães de santo de terreiros do Recife, e aí foram
acertadas medidas sobre o livre funcionamento das seitas. Nós nos
comprometíamos a conseguir da Polícia licença para tal. Os pais de
terreiros nos abririam as suas portas e nos daríamos os
esclarecimentos necessários para que pudéssemos distinguir os que
fazem religião e os que faziam exploração (CAVALCANTI, 1934, p.
243-244. Grifos meus).

Desses depoimentos podemos concluir que de fato foi o SHM quem pleiteou
junto à polícia a concessão de licenças para o funcionamento dos terreiros,
entretanto os pais e mães de santo também estabeleceram uma relação com os
órgãos policiais, sendo algumas das decisões tomadas em diálogo direto entre
alguns pais e mães de santo e a polícia.
Alguns pais e mães de santo também enviavam convites aos técnicos do
SHM, para que viessem aos toques, esta era uma prática comum, tendo em vista
que a presença dos membros do SHM garantia que aquele xangô estivesse livre da
perseguição policial.
Tentar traçar os elementos que, no contexto da santa aliança que se
estabeleceu em Pernambuco, eram acionados na distinção dos terreiros que
mereciam ser fechados não foi uma tarefa fácil. A diferenciação entre religião e
magia aparenta ter uma certa relevância, mas a categoria de charlatão não se
definia apenas a partir desta relação.
Como vimos na sessão anterior, também há um elemento moral que atua
como definidor na legitimação dos terreiros, mas, diferente do caso baiano, não
81

encontramos menção à homossexualidade, em contrapartida há preocupação em


relação à prostituição.
No livro Xangôs do Nordeste, Gonçalves Fernandes nos oferece algumas
pistas a esse respeito. Lá, Fernandes dá bastante atenção à casa de Josefa Guedes
Pereira, mais conhecida como Zezefinha. Mãe de terreiro, tinha sua casa situada na
rua das Moças, no Arruda.

As filhas de santo deste terreiro chamam a atenção pela sua beleza,


são quase todas jovens negras e mulatas de 18 a 30 anos. Seus
Gestos são perfeitos e tem-se a impressão que representam, a
marcação é perfeita [...] Os adufos batem dolentemente, a danças
têm uns requebrados e um volteio de ventre que ainda não tinha
visto para outras toadas. É de uma sensualidade extrema esse
bailado mi-xangô, que não presenciei em nenhum outro terreiro
(FERNANDES, 1937, p. 51-52).

A sacerdotisa Josefa estava na lista, dada por Anselmo ao SHM, acerca dos
pais e das mães de santo que não teriam “competência”. Anselmo a denuncia
porque, segundo ele, “[...] ela faz da seita um motivo para ‘negócios’ suspeitos...”
(FERNANDES, 1937, p.55).
Gonçalves Fernandes narra detalhes do toque que presenciou durante a
visita ao terreiro de Josefa. Os atabaques silenciaram-se, Josefa anuncia ter
chegado o final da festa, mas os filhos da casa continuavam com jeito de quem não
tem vontade de ir embora. Fernandes narra que foi conduzido à porta com bastante
insistência. Ele suspeitava que Josefa Guedes usava seu templo religioso para
atividade de prostituição e depois afirma ter confirmação de fonte segura que ao final
das festas religiosas, retirados os convidados e as pessoas estranhas, as filhas do
terreiro eram possuídas pelos filhos do terreiro.
Também podemos encontrar preocupações semelhantes sobre os padrões
morais e a sexualidade na obra de Vicente Lima, como bem salientado por Campos
(2015). Em alguns momentos, Lima opta por fazer descrições gerais de suas
observações, não especificando os terreiros ou pais de santo a que se refere. Em
seu livro Xangô, Vicente Lima nos mostra uma preocupação com a degeneração que
a religião dos negros sofre aqui no Recife, mostrando-se inquieto com as atividades
82

de pais e mães de terreiro exploradores e charlatões. Para comprovar seu ponto de


vista, descreve alguns casos, convidando os leitores para que “investiguem conosco
e ouçam atentamente o que nos dizem os próprios pais de terreiro” (LIMA, 1937, p.
48).
Em uma de suas observações, ele diz que no peji 18 “há a concubinagem
libertina e adultera do pai de terreiro com as filhas de santo e ainda dão tóxicos para
cometerem infanticídio (...)” (LIMA, 1937, p.49). Ao referir-se a um toque que
presenciou, afirma que lá há “uma completa liberdade entre homens, mulheres e
mocinhas” (LIMA, 1937, p.37). Lima também descreve o caso de João Teofilo Neto,
comerciante, casado, com seus 37 anos de idade e morador do Recife. Teofilo,
segundo Lima, foi “miseravelmente explorado” por um pai de terreiro, que como
ressalta: “Teofilo ficou em completo estado de desequilíbrio, enciumado da esposa
com o pai de santo que chegou a fazer-lhe propostas sedutoras [...]” (LIMA, 1937, p.
49. Grifos meus.).
Ao termino de seu livro, Xangô, Vicente Lima nos apresenta a seguinte
conclusão:
Verifica-se agora nos terreiros um certo gosto e entusiasmo pela
dança e pelo canto. Cantam todos; moças mulheres, homens e
crianças, os adeptos ou não. E não é mais aquela dança primitiva e
ritual, mas uma dança que envolve a mulher e o homem dentro de
um prazer espumante de sexualidade” (LIMA, 1937, p. 71)

Também no livro Xangô, de Vicente Lima, podemos encontrar uma


compreensão ou a ideia de que o charlatão era uma figura esperta, que
conscientemente tomava vantagem de sua posição como babalorixá. Como
podemos constatar na citação que segue:

Depois de nossa visita ao peji entremos em ligeira palestra com o


Babalorixá e a Ialorixá deste terreiro. Estamos agora ouvindo dos
próprios pais de terreiro as denúncias explorativas e descabais dos
que aproveitam a fraqueza e ignorância da nossa gente. [...]. São os
próprios pais de terreiro que nos dizem: os modernos babalorixás do

18 Peji é o nome dado ao quarto dos orixás, um dos lugares mais sagrados de uma casa de axé. É
no Peji onde encontramos os assentamentos dos orixás da casa, o lugar onde os filhos da casa
ficam enquanto estão recolhidos para obrigações (feituras, Boris etc.).
83

Xangô atualizado, com intuito explorativo, pernicioso e ofensivo,


afastados de quaisquer fins religiosos, formam crendices sugestivas
que atingem a todas as nossas camadas sociais. (LIMA, 1937, p. 45-
46)

Em trabalhos de Pedro Cavalcanti também podemos encontrar tais


preocupações com a existência de charlatões aproveitadores. “As condições
financeiras são sempre más segundo nos informavam. Mau grado só descubram
aqui e ali, tropeços dos informantes, o que nos faz supor que alguns encontram na
mediunidade lucros pecuniários” (CAVANCANTI, 1934, p. 137).
Como podemos ver, o dinheiro, ou o lucro, também aparece aqui como uma
categoria poluidora da legitimação. Da mesma forma, podemos encontrar esta
relação nos textos de Vicente Lima (1937) e Gonçalves Fernandes (1937).
Em Contribuições ao Estudo do Estado Mental dos Médiuns, Pedro
Cavalcanti vai discutir 14 casos nos quais o fenômeno da mediunidade se fez
presente. O autor, ao analisar o coeficiente de inteligência (QI) dos médiuns, destaca
que a categoria charlatão tem duas dimensões. A primeira construída em diálogo
com Arthur Ramos, na qual “o curandeiro é um charlatão involuntário cuja conduta
obedece a determinismos psicológicos bem diversos” (CAVALCANTI, 1934, p. 137).
Ou seja, há casos em que a ocorrência do charlatanismo está vinculada a fatores
subconscientes, fora do controle dos indivíduos.

[...] referindo-se ao fenômeno de mediunidade acha que a


“intervenção de um espirito estranho ao paciente, se reduz a
fenômenos da mesma família da autossugestão espontânea e que
com ela se pode identificar, levando em conta todavia uma nuance
que é a da ideia original ser subconsciente”. Quer dizer do 1º tempo
da sugestão o indivíduo não terá consciência e daí certos médiuns
“manifestados” escreverem ou falarem coisas que não previam, que
“não concordam com os seus gestos conscientes, nem com as suas
ideias conscientes (CAVALCANTI, 1937, p. 140).

Mas além desses “sugestionáveis”, havia aqueles que se aproveitavam de


sua posição para exercer conscientemente atividades do charlatanismo e
curandeirismo, com propósitos pecuniários.
84

Para o SHM, ambos os casos precisavam ser combatidos. Entretanto,


diferentemente dos trabalhos de Arthur Ramos e Edison Carneiro, não conseguimos
encontrar a correlação do tipo de culto ao qual essas práticas de curandeirismo e
charlatanismo se faziam predominantemente presentes. Apesar disso, nossos
conterrâneos deixaram algumas pistas para que possamos entender qual tipo de
culto se encontrava em situação de maior vulnerabilidade neste contexto.

3.5 UMA SEMIOLOGIA DOS OBJETOS: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

Minha proposta aqui então é mostrar o papel que foi desempenhado pelos
objetos nesse processo. E para isso eu trabalho com dois conceitos do antropólogo
linguista Webb Keane. O primeiro é o de economia representacional, chamando a
atenção, com esse conceito, para as “interconexões dinâmicas entre os diferentes
modos de significação em jogo dentro de uma determinada formação histórica e
social19” (KEANE, 2003, p. 410. Tradução minha). O segundo é o conceito de
ideologia semiótica, que media a relação entre os sistemas representacionais;
Keane a define como: “suposições básicas sobre o que são os signos e como eles
funcionam no mundo20” (KEANE, 2003, p. 419. Tradução minha.).
O que estou querendo dizer com isso é que minha chave analítica e
metodológica passa pelo conceito de ideologia semiótica, de Webb Keane. Ele diz
que toda religião tem uma ideologia semiótica e também que as religiões sempre
foram pensadas pelo conhecimento ou pelas práticas. Mas Webb Keane está
chamando a atenção para o fato de que toda religião organiza ou ordena as relações
não só entre os seres humanos e deuses, mas entre os seres humanos e seres
humanos, e entre os seres humanos e objetos. Ou seja, todas as religiões definem
as formas legítimas de serem materializadas. Então, o deus cristão pode se
materializar na figura de um homem, velhinho, masculino; pode se materializar numa
cruz, no pão, no vinho, isso é plausível.

19 No original: “dynamic interconnections among different modes of signification at play within a


particular historical and social formation.”
20 No original: “basic assumptions about what signs are and how they function in the world.”
85

Entretanto, para outras religiões isso vai surgir como algo errado, porque elas
possuem um outro ordenamento de relações, a partir de outras ideologias
semióticas. Então, por exemplo, para os protestantes brasileiros é a bíblia, ela é o
grande objeto, é a forma primeira da materialização do sagrado e todas as outras
seriam falsas.
Mas veja, um outro antropólogo, Matthew Engelke — partindo deste mesmo
referencial teórico —, ao estudar um grupo de cristãos protestantes na África, mais
especificamente em Chitungwiza, uma cidade ao sul de Harare, capital de
Zimbábue, encontra o que para nós seria um grupo muito pitoresco de cristãos —
protestantes. Juranifiir Santa é uma congregação da Igreja Masowe WeChishanu, ou
Igreja sexta-feira Masowe. Como eles próprios se denominam, são “os cristãos que
não leem a bíblia21” (ENGELKE, 2007, p. 2, tradução minha.).
Ao descrever as concepções do grupo em relação à bíblia, Matthew diz:

[…] a preocupação central dos apóstolos da sexta-feira: eles possu-


em uma fé imaterial. Seguindo Johnna Drucker, por imaterial quero
dizer: ‘o que é insignificante na sua materialidade’ (1994, I4). Ao ex-
pressar sua desaprovação da bíblia, Nzira está enfatizando sua mate-
rialidade. [...] Os apóstolos querem um relacionamento com Deus
que não dependa de coisas como livros. Eles querem uma fé na qual
as coisas não importam, porque eles entendem coisas como uma
barreira da fé. Eles querem uma fé na qual a presença de Deus é, em
vez disso, imediata. Ou, como costumam dizer, "viva e direta” 22 (EN-
GELKE, 2007, p.3, tradução minha).

Evangélicos que não acreditam na bíblia como uma representação do


sagrado para mim, e acredito que para a maioria de nós brasileiros, no mínimo, é
algo inusitado. Nós aprendemos desde o ensino médio que um dos principais
motivos que levaram à reforma protestante foi a vontade de Lutero em trazer uma

21 No original: “the Christians who don’t read the Bible.”


22 No original “(...)the central concern of the Friday apostolics: they have what they consider an
immaterial faith. Following Johnna Drucker, by immaterial I mean “that which is insignificant in its
materiality” (1994, I4) In expressing his disapproval of the Bible, Nzira is emphasizing its
materiality. It is quality that gives his images their force. The apostolics want a relationship with
God that is not dependent on things such as books. They want a faith in which things do not
metter, because they understand things as a barrier to faith. They want a faith in which God’s
presence is, instead, immediate. Or, as they often say, “live and direct.”
86

experiência com o sagrado que não seria mais mediada por uma instituição, mas
que estaria dada de forma direta entre o fiel e Deus a partir de sua experiência com
a bíblia. Bom, o caso exposto por Engelke nos mostra a pluralidade de grupos — e
crenças — que estão reunidos sob o título de evangélicos.
A questão que trago aqui é que os pesquisadores do SHM, e agora estou
fazendo alusão a todos, possuíam uma ideologia semiótica que entrava em choque
com aquela das religiões indo-afro-brasileiras. Nesse quadro, a jurema, mais
especificamente o Catimbó Jurema do Recife, acaba por estar em uma situação
ainda mais desprestigiada. Os pesquisadores não viam religião na jurema, viam
curandeirismo, charlatanismo.
Muito embora os técnicos em um primeiro momento não estivessem
preocupados em produzir uma classificação sistemática do que estavam
encontrando em campo, podemos notar que o culto às entidades da jurema estava
em posição desfavorável neste quadro. Pedro Cavalcanti, ao elencar as
características dos cultos que teriam maior predisposição para desencadearem
transtornos metais, argumenta que os usos de certos objetos estariam fortemente
correlacionados, como, por exemplo: “o consumo de bebidas alcoólicas feitas com
infusão de ervas, o uso de tabaco (...)” (CAVALCANTI, 1988), mesmo o autor sem
precisar exatamente que tipo de culto ele estava descrevendo, este não seria senão
o culto aos encantados da jurema.
Um importante ponto que precisamos destacar aqui é a visão que tanto a Liga
Brasileira de Higiene mental (LBHM) — da qual Ulysses Pernambucano fizera parte
— como o Serviço de Higiene Mental tinham em relação ao alcoolismo. Ambos os
grupos fizeram fortes campanhas alertando sobre os perigos do alcoolismo na
degeneração do povo Brasileiro.
Em 1923 é criada, no Rio de Janeiro, a LBHM, fundada pelo psiquiatra
Gustavo Riedel. Os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental foi o principal meio de
divulgação de grande parte da produção teórica dos integrantes da LBHM. Em sua
primeira edição, publicada em 1925, encontramos a sessão Contra o Alcoolismo: em
favor da Hygidez Mental (Secção Permanente).
87

A “Liga Brasileira de Higiene Mental” não podia deixar de preocupar-


se desde o seu início com a questão do alcoolismo, sabidos como
são os múltiplos malefícios do terrível veneno inebriante sobre o
sistema nervoso, em particular sobre a mentalidade. [...] os membros
da Liga de Higiene Mental devem aliar-se a sócios de ligas de
temperança, de associações a fundar-se também contra o abuso do
tabaco, contra a licenciosidade das ruas e dos bailes públicos, nos
salões de hotéis, entre famílias, contra a prostituição, contra o jogo
etc., na resistência comum, numa frente unida e única (ARQUIVOS
BRASILEIROS DE HIGIENE MENTAL, 1925, p.147-149. Grifos
meus).

Como podemos constatar, o alcoolismo estava entre as principais


preocupações da LBHM, assim como o abuso do tabaco. Em 1930 a LBHM lança
uma forte campanha para o combate ao alcoolismo.
A preocupação em combater o alcoolismo também estava presente no SHM,
que realizou várias campanhas publicitárias para combater o consumo excessivo de
álcool. Nos Arquivos da Assistência a Psicopatas, encontramos um dos escritos de
Ulysses Pernambucano, no qual o psiquiatra expõe as ideias e realizações de sua
Assistência a Psicopatas. Lá encontramos a afirmação de que a Assistência “não
poderia estar ausente o propósito de divulgar entre os leigos certas noções
necessárias para a boa saúde mental” (PERNAMBUCANO, 1932, p.48). Com o
auxílio da Rádio Clube, eram realizadas pequenas palestras semanais, também
eram publicados na imprensa diária artigos com a mesma finalidade, conjuntamente
a isto ainda havia pequenos conselhos impressos ou mimeografados que eram
distribuídos entre os doentes do Ambulatório e aos doentes e visitantes do Hospital
de Alienados. Figuravam entre os temas abordados: alcoolismo, espiritismo,
conselho aos epiléticos e conselhos aos sifilíticos.
Ainda em relação à divulgação das noções necessárias para a boa saúde
mental, o Dr. José Lucena, técnico do SHM, diz:

Foram realizadas 60 palestras de propaganda sendo que 42 durante


a semana anti-alcoolica promovida de acordo com a Liga Brasileira
de Higiene Mental e na qual além de todos os funcionários do corpo
médico da Assistência, internos, visitadores e auxiliares do instituto
88

de Psicologia, os professores João Marques, Ageu Magalhães, Edgar


Altino, Francisco Clementino e Francisco Figueredo.
(PERNAMBUCANO, 1931, p. 49. Grifos meus).

Em uma matéria publicada no Diario de Pernambuco, no dia 21 outubro de


1931, intitulada A semana anti-alcoolica, encontramos a seguinte circula:

[...] O Serviço de Higiene Mental da Assistência a Psicopatas do


Estado, está seriamente empenhado num combate enérgico e eficaz
contra o abuso do álcool. Para isto, inaugurou nesta capital, a
semana chamada – anti-alcoolica – por meio de artigo pela imprensa,
discurso e propaganda de todo modo. (DIARIO DE PERNAMBUCO,
1931).

Nesta mesma matéria, vemos que na semana antialcoólica os médicos,


acadêmicos e outros funcionários do SHM realizaram uma série de conferência de
propaganda antialcoólica em várias escolas da cidade, ressaltando os perigos das
bebidas alcoólicas.
Em matéria do Diario de Pernambuco, também intitulada Semana Anti-
Alcoolica, mas publicada no dia 24 de outubro de 1931, vemos que o conteúdo
destas palestras versavam sobre os efeitos do consumo do álcool tanto no indivíduo
como na sociedade e os meios para combatê-lo. Ressaltando também a relação que
se estabelecia entre alcoolismo e transtornos mentais, usando como dados a
“porcentagem assustadora de doentes mentais que se encontravam recolhidos ao
Hospital de Doenças Nervosas e Mentais em consequência do alcoolismo” (DIARIO
DE PERNAMBUCO, 1931).
Está mais que claro que a compreensão dominante neste período em relação
ao alcoolismo é que este é um elemento, no mínimo, perigoso. Seu consumo
excessivo poderia desencadear transtornos mentais ou tornar um indivíduo mais
predisposto a eles. Assim, o alcoolismo deveria ser combatido.
A respeito do consumo de bebidas alcoólicas nos cultos indo-afro-
pernambucanos, Waldemar Valente comenta:
89

Em Pernambuco, como em outras partes do Brasil, grande tem sido


a invasão do espiritismo nos candomblés de caboclo [...] Em alguns
terreiros afro-ameríndios chega-se a pensar que se está numa
verdadeira sessão espírita [...] Tais terreiros são considerados pelos
outros, principalmente aqueles que obedecem à direção de antigos e
tradicionais pais de santo, como centros de exploração. Os chefes
religiosos de outras procedências – e que ainda conservam, embora
um tanto atenuada pelo trabalho de aproximação que vem sendo
realizado pela Federação dos Cultos Africanos de Pernambuco,
aquela velha rivalidade de oficiais do mesmo ofício – geralmente se
encarregam de propagar que os candomblés de caboclos são
falsificações de seitas africanas. O uso da cachaça tem contribuído
bastante para desmoralizá-los perante os outros candomblés, de
orientação jeje-nagô, quase sempre de grande austeridade e onde
não se toca em álcool (VALENTE, 1976, p. 65-66).

Nesse trecho encontramos algumas informações importantes. Valente está


expondo a relação conflituosa entre os diferentes tipos de cultos, e que os de
orientação “afro-ameríndios” estavam, no quadro geral, em posição desfavorável,
sendo malvistos inclusive pela comunidade religiosa pelo uso de bebidas alcoólicas.
Nos anos de 1930, era muito comum encontrar matérias de jornais que
falavam a respeito das incursões policiais aos terreiros. Tais acontecimentos eram
um prato cheio para os editores do Jornal Folha da Manhã. Algumas matérias até
trazem listas dos objetos que foram apreendidos. Aqui e ali podemos ver que o
cachimbo, o maracá e as bebidas alcoólicas são objetos sempre presentes nas
apreensões. Não por acaso, estes também são objetos que estão, até os dias de
hoje, indissociavelmente ligados ao culto aos encantados da jurema.
Vemos também nesta publicação do Boletim de Higiene Mental, a
preocupação com o uso de bebidas e maconha enquanto elementos
desencadeadores de transtornos mentais

O registro das seitas permite o controle das mesmas, sua localização


difícil de ser feita quando funcionavam “ilegalmente”. Com o acompa-
nhado das cerimonias e toadas, procuramos a reconstituição da litur-
gia africana das várias nações introduzidas no Brasil com o comercio
escravo; com o recolhimento e estudo do vocabulário, a possível
identificação dos remanescentes e descendentes dessas nações. A
influência de nossa orientação e conselhos dirige-se ao afastamento
das práticas nocivas à saúde mental (uso do álcool, maconha), ser-
90

vindo-nos o apoio policial para o fechamento dos centros decidida-


mente reincidentes. A educação do público a respeito da inexistência
do sobrenatural nos fenômenos de possessão e práticas magica anu-
lará a sua influência sobre a população supersticiosa (B0LETIM DE
HIGIENE MENTAL, 1935, p. 6. Grifos meu).

Como bem sabemos, a jurema tem uma materialidade do sagrado que está
intimamente ligada a objetos como bebidas alcoólicas e o fumo. Nos rituais é servida
uma bebida alcóolica feita com, entre outras coisas, a casca da jurema, sendo talvez
uma de suas principais representações materiais do sagrado. Ou seja, segundo a
ideologia semiótica do SHM — e neste momento estou me referindo ao SHM
enquanto instituição —, há elementos materiais presentes na cosmologia deste culto
que desencadeariam transtornos mentais ou elevariam o risco de tal, assim retiram
sua dimensão sagrada e retificam tais objetos como não sendo sinais do divino. Este
é um exemplo de afirmação ideológica sobre o que são os sinais e como eles
funcionam. Perceber a existência dessas ideologias semióticas é importante tendo
em vista que “chama a atenção para os modelos de significação que se tornam
privilegiados em um determinado campo sócio-histórico e, em particular como
palavras e coisas estão intimamente ligadas nesses modelos” 23 (ENGELKE, 2007,
p.29. Tradução minha).
As ideologias semióticas produzem categorias, a exemplo do charlatão ou do
curandeiro, as quais classificam e hierarquizam a religião, separam assim os
terreiros que produzem religião e os que produzem charlatanismo, os puros dos
impuros, o sagrado do profano.

23 No original: “draws attention to the modes of signification that become privileged in a given
sociohistorical field, and, in particular, to how words and things are intimately bound up with one
another in those modes.”
91

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] a antropologia é uma disciplina sobretudo artesanal, interpretativa


e microscópica, que liga o particular mais minúsculo ao universal
mais abrangente, dá-se início a um processo de desconstrução das
categorias abstratas da nossa própria sociedade (PEIRANO, 1992,
p.126).

Este trabalho chega ao fim, ao menos o que tange à parte da escrita desta
dissertação. O que confere relevância à pesquisa que acabei de mostrar a vocês
nas páginas anteriores não é de grandes conclusões ou generalizações. Tim Ingold
(2015) recentemente nos disse que a Antropologia não busca conclusões — e bem
antes dele, o velho Gilberto Freyre (1941) já proclamava que o tempo das grandes
conclusões e generalizações da Antropologia e das Ciências Sociais em geral já
havia passado.
Concordo com a antropóloga Mariza Peirano (1995) quando esta pensa o
trabalho do antropólogo não enquanto um produto dado, mas sim um processo
sempre artesanal e incompleto. Sim, incompleto, entretanto não no sentido
depreciativo que apalavra poderia conter num contexto positivista. “O métier do
antropólogo consiste em um eterno recomeçar que resulta, em qualquer
circunstância, em produtos temporários e parciais” (PEIRANO, 1995, p.133).
É exatamente nesta incompletude e parcialidade onde podemos encontrar
um dos afãs mais importantes da Antropologia. Aí está resguardada a possibilidade
de que os dados coletados por outras pesquisas possam ser alvos de reanálises,
dando a eles a possibilidade de novas configurações interpretativas.
É partindo deste quadro interpretativo que pensei a construção desta
dissertação. Deixando clara a sua própria incompletude e parcialidade, minha
pesquisa foi confeccionada como um mecanismo de salientar as incompletudes das
pesquisas que dizem respeito ao Serviço de Higiene Mental (SHM). Concebendo a
partir disso uma meta-antropologia voltada aos arquivos, que teria seu propósito
expresso na possibilidade de construção de um quadro mais plural a respeito do que
92

foi a atuação de Ulysses Pernambucano, do SHM e de outros intelectuais que por


eles foram influenciados.
O primeiro passo para uma Antropologia pernambucana pode ter sido dado
por Gilberto Freyre, contudo é a Ulysses Pernambucano e ao Serviço de Higiene
Mental que devemos a institucionalização da disciplina em nosso estado. Uma
Antropologia confeccionada entre terreiros e sanatórios (CAMPOS, PEREIRA,
MATTOS, 2017). Na história teórica de nossa disciplina, os membros da Nova
Escola do Recife (NER) são esquecidos, e suas produções, postas como pouco ou
nada relevantes; classificados como eugenistas, biologizantes — até quando não o
são. Em resumo, são vistos como uma derivação pouco sofisticada e original da
Escola Baiana (EB) de Nina Rodrigues.
A leitura que faço desses autores é um pouco diferente, ou melhor dizendo,
mais plural. Não nego que essas relações e configurações tenham existido.
Contudo, da mesma forma que podemos encontrar um Karl Marx ou um Émile
Durkheim no começo de suas trajetórias acadêmicas e outro mais adiante — por
assim dizer, amadurecido —, podemos conceber que Ulysses Pernambucano e os
demais membros da NER têm suas principais ideias e seus vínculos teóricos
transformados com o passar do tempo.
Eugenistas e discípulos de Nina Rodrigues? Sim, contudo não apenas isso.
Não podemos ver nem o SHM, nem a NER, enquanto grupos homogêneos. Como
bem referido pelas autoras Roberta Campos, Fabiana Pereira e Silvana Matos
(2015), os escritos do SHM e da NER por muitas vezes não são lidos, sendo por
muitos citados de segunda ou terceira mão, sempre referidos no coletivo — equipe
do SHM —, quando, na verdade, estamos nos referindo a diferentes autores. Ao nos
debruçarmos sobre os escritos de René Ribeiro, Waldemar Valente, Gonçalves
Fernandes, entre outros, o que encontramos é uma pluralidade de perspectivas,
diferentes compreensões do que são as religiões afro-pernambucanas e do papel
que é desempenhado por elas; vemos ideias que se transformam ao longo do
tempo, muito devido ao constante diálogo com o culturalismo freyriano.
A influência de Gilberto Freyre é fundamental para a construção de uma nova
93

perspectiva a respeito do papel que foi desempenhado pelo afro-brasileiro. A


compreensão da miscigenação enquanto um elemento positivo na formação da
sociedade nacional foi um dos elementos básicos para a distinção das perspectivas
desenvolvidas pelas NER e pela EB, o que fez toda diferença na produção de uma
agenda diversa da que foi seguida pelos membros da Escola Nina Rodrigues.
Embora parte da literatura especializada possa considerar o contexto
pernambucano enquanto um prolongamento, tanto temático como metodológico, do
baiano, tentei ao longo desta dissertação delinear os elementos que as tornam
diferentes experiências. A santa aliança, embora tenha acontecido em diferentes
contextos, não é um fenômeno ímpar. As peculiaridades de cada contexto tornam
cada experiência única.
Em Pernambuco, os intelectuais não estavam interessados em encontrar a
África no Brasil — como claramente fizeram os da EB. Aqui tínhamos a
compreensão de que já não havia em nosso estado um só culto puro. Waldemar
Valente foi além, identificava que na própria África a religião dos orixás já havia
entrado em contato com o islã. Com isso, podemos identificar que a legitimação de
uma casa, pai ou mãe de santo não estava necessariamente ligada à ideia de
tradição/ortodoxia/pureza propriamente dita. Outros elementos eram acionados em
suas delimitações.
Outro importante papel que fora negado foi o da experiência tanto do SHM
como a do 1º Congresso Afro-Brasileiro (1º CAB) e o de sua atuação política em prol
do negro e das religiões afro-brasileiras
O 1º CAB, por exemplo, foi uma importante e pioneira realização. Um evento
onde “sentaram-se em volta da velha mesa, na cabeceira da qual se sucederam os
presidentes, [...], não só os doutores com grande erudição de gabinete e de
laboratório, como ialorixás gordas, cozinheiras velhas, pretas de fogareiro [...]
(FREYRE, 1988, p. 348-349.). Contando com o auxílio de pais e mães de santo em
sua realização, o 1º CAB inaugurou um formato de evento mais horizontal, um
formato que é utilizado e muito elogiado nos dias de hoje.
É negado este papel ao SHM e ao 1º CAB devido a algumas interpretações
94

em que o evento é compreendido apenas como mais uma manifestação da ideologia


da democracia racial, negando assim seu papel como importante espaço de
discussão das relações raciais no Brasil. O 1º CAB em momento algum nega a
violência e perseguição as quais as religiões afro-brasileiras eram submetidas. Em
verdade, o que acontece é exatamente o contrário. Preocupado com questões como
esta, o 1º CAB coopta a participação de representantes da Frente Negra do Rio
Grande do Sul e da Frente Negra Pelotense. Na sessão de encerramento do evento,
o próprio Gilberto Freyre leu algumas moções, aprovadas pelos presentes, que
demonstram a preocupação em cessar com a violência e a perseguição policial aos
terreiros. Nas moções, “o I congresso Afro-Brasileiro protesta contra toda espécie de
discriminação contra negros ou mestiços, que ainda se verifique no Brasil” (DIARIO
DE PERNAMBUCO, 1934, p. 4.). Essas mesmas moções também seriam
encaminhadas ao governo do estado de Alagoas, onde, na época (1934), acirrava-
se a repressão policial aos xangôs.
Alguns dos papéis desempenhados pelo 1º CAB foram os de elevar o culto
aos orixás ao status de religião; relativizar a compreensão patológica atribuída às
religiões afro-brasileiras; e pregar o fim da perseguição policial aos terreiros. Fez isto
num contexto racista, eugênico e biologizante em que se encontrava mergulhada a
psiquiatria brasileira da época. Foi por essas posturas que parte da imprensa da
época vinculou o evento a movimentos subversivos (comunistas). O próprio Ulysses
Pernambucano posteriormente pagaria o preço: foi acusado e preso sob a acusação
de ser comunista.
Meu objetivo não é negar o caráter racista, tutelar, controlador e normatizador
que está presente tanto na experiência do SHM como no 1º CAB. Contudo, uma das
interpretações que os dados me permitem fazer é que, apesar dessas
características, as realizações de Ulysses Pernambucano representaram um grande
avanço frente às ideias dominantes de sua época, desempenhando uma série de
papéis progressistas, mas que a história insiste em negá-los.
Na dissertação também destaco o papel que foi desempenhado pelos pais e
pelas mães de santo na normatização dos cultos. Como bom exemplo disso, temos
95

Pai Anselmo, responsável por produzir uma lista, encaminhada ao SHM, com o
nome de pais e mães de terreiro que não teriam competência. Anselmo também teve
papel importante na construção do calendário anual de toques, que foi construído a
partir de uma relação estabelecida entre os babalorixás e a polícia, não intermediada
pelo SHM, como se costuma pensar. Nesse sentido, vemos que a atuação do SHM
não foi uma imposição completa, os pais e as mães de santo também
desempenharam papel fundamental neste contexto de perseguição.
Em relação ao fato de que não era a ortodoxia que demarcava a legitimidade
dos terreiros, procurei identificar as categorias que eram acionadas neste processo.
Pude identificar que a moral e o lucro apareciam como categorias poluidoras da
legitimação. Seguindo algumas pistas, pude compreender — a partir de uma
semiologia dos objetos — me valendo dos conceitos de economia representacional
e ideologia semiótica, que a jurema, devido a sua relação íntima com objetos como
bebidas alcoólicas e cigarros, tinha seu caráter religioso negado.
A ideologia semiótica do SHM, pensado agora enquanto instituição,
compreende que há elementos materiais presentes na cosmologia do culto aos
encantados que desencadeariam transtornos mentais ou elevariam o risco de tal.
Assim, retiram sua dimensão sagrada e retificam tais objetos como não sendo sinais
do divino.
Estes foram os principais pontos suscitados por esta dissertação. Após tudo o
que foi exposto aqui, espero que o objetivo deste trabalho tenha sido atingido: trazer
uma visão mais plural e multifacetada a respeito do que foi a atuação do Serviço de
Higiene Mental, e das relações que este estabeleceu com o campo indo-afro-
pernambucano.
Estamos então nas últimas linhas deste trabalho. Quero aqui agradecer
aquele que presenta o final dos ciclos, Epe Epe Baba!
96

REFERÊNCIAS

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