Recife
2018
RAONI NERI DA SILVA
Recife
2018
Catalogação na fonte
Bibliotecária: Maria Janeide Pereira da Silva, CRB4-1262
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profº. Dra. Roberta Bivar Carneiro Campos (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco
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Profº. Dra. Silvana Sobreira de Matos (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Pernambuco
_______________________________________________________
Profº. Dra. Zuleica Dantas Pereira Campos (Examinadora Externa)
Universidade Católica de Pernambuco
À memória de Maria Claudeci do Nascimento (Mãe
Claudia), que me fez nascer pela segunda vez!
AGRADECIMENTOS
It was in the year 1932 that the psychiatrist Ulysses Pernambucano de Melo
created the Mental Hygiene Service (MHS), an agency that would start issuing
operating licenses for the terreiros of the state of Pernambuco. With the activity of
MHS, a fertile ground was created to bring about the “santa aliança” - an intricate
network of reciprocal relations, in which on the one hand the strengthening and
prestige of certain pais and mães de santo were produced, and on the other, the
exclusion of so many terreiros of the group called "legitimate”. This dissertation then
proposes to describe and analyze the relationships that have established between
the MHS team and the indo-afro-pernambucanas religions field. In this sense I turn to
the archives to perform a meta-anthropological exercise; to understand the symbolic
and social context of those who were the first anthropologists of Pernambuco. For
that, I present a historical context of the moment in which the MHS took place, I
present Ulysses Pernambucano, the Service and the intellectuals who were
influenced by them. Thinking about the Pernambuco context in contrast to the
context in Bahia, I would like to emphasize their differences, also analyzing which
categories were used by the MHS technicians to describe the terreiros that would be
considered illegitimate. In this context, using a semiology of objects, I identify that the
Jurema Catimbó of Recife, due to its relationship with certain objects, ended up be-
ing in an unfavorable position in relation to the other Indo-Afro-Pernambuco cults.
1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................10
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................91
REFERÊNCIAS............................................................................................................96
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1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa, desde sua concepção, enquanto uma proposta de projeto, até
os momentos finais da escrita destas páginas, teve como foco e objeto central as
relações que foram estabelecidas entre os intelectuais — me refiro aos
antropólogos, sociólogos, historiadores e outros cientistas e pesquisadores sociais
— e o campo das religiões de matriz indo-afro-brasileiras. Recorro ao conceito de
santa aliança tal qual foi desenvolvido pelo professor Roberto Motta (2010),
entendido assim como uma rede de relações recíprocas, na qual se produz por um
lado o fortalecimento e prestígio de certos pais e mães de santo, e por outro a
exclusão de tantos terreiros do quadro dos tidos como “legítimos”.
Como campo de minha pesquisa, escolhi o passado, mais precisamente a
década de 1930. Foi no ano de 1932 que o médico psiquiatra Ulysses
Pernambucano de Melo fundava o então Serviço de Higiene Mental (SHM), ligado à
Assistência a Psicopatas do Recife, que iria atuar como órgão regulador das
atividades dos cultos no estado de Pernambuco.
A minha escolha por esta temática se deu por diferentes razões, mas acredito
que teve início com algumas inquietações que me acompanhavam desde os
primeiros anos de minha graduação em Ciências Sociais. Sou filho de santo e
juremeiro. Quando iniciei meu contato com textos antropológicos que tinham como
temática as religiões indo-afro-brasileiras, sempre tentei realizar uma correlação
entre eles e minha realidade. Os textos que versavam a respeito da ideia de pureza
nagô sempre me foram estranhos, tendo em vista que em minha vivência religiosa
sempre percebi um campo sincrético, assumidamente sincrético, onde este fato em
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nenhum momento interferia na legitimidade das casas e dos pais e das mães de
santo.
Posteriormente a essas leituras, comecei a ter contato com a produção dos
técnicos do Serviço de Higiene Mental, percebendo que eles já partiam do
pressuposto de que em Pernambuco não havia um só culto puro. Já em 1930
falavam de religiões indo-afro-pernambucanas, então notei que a legitimação das
casas passava por outras questões que não a ideia de ortodoxia propriamente dita.
Vi então que a enormidade de material etnográfico produzido pela atuação do SHM,
ainda muito pouco explorado, poderia colocar luz nestas questões, dando
continuidade às discussões já iniciadas por Roberto Motta e (2010) e Seeber-
Tegethoff (2007) a respeito da relação entre pesquisador e pesquisado dentro do
campo das religiões de matriz indo-afro-brasileiras.
Há uma série de estudos a respeito da atuação do SHM, dentro das ciências
humanas ao menos, que ressaltam o caráter eugenista e normatizador das suas
práticas e produções teóricas, como exemplo podemos citar os trabalhos de Zuleica
Dantas Campos (2001) e Carlos Miranda (2009). Minha proposta aqui não é refutar
suas teses, pois de fato estes eram os princípios que norteavam a psiquiatria
brasileira da época, entretanto os dados que consegui coletar e analisar nesta
pesquisa mostram que há um outro lado da moeda. Quero dizer com isso que existe
a necessidade de produzir uma compreensão mais plural em relação ao que foi o
projeto de Ulysses Pernambucano, o SHM e a produção dos pesquisadores ligados
a ele.
Com isso em mente, me voltei para os arquivos. A parte metodológica é
inerente a qualquer trabalho de cunho científico. Seja na introdução, como aqui, ou
em capítulo separado, as monografias, dissertações e teses sempre reservam um
espaço para essa discussão tão necessária para que os leitores possam ter ideia
dos caminhos percorridos para se conseguir determinados objetivos.
As páginas que seguem, obviamente, cumprem com este requisito, contudo
sua escrita se dá também como uma resposta às inquietações que decorrem de
minha conversão para o campo da antropologia. Viso dar conta das possibilidades
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1 Por alguns erros matemáticos, o PPGA-UFPE acabou comemorando seus 40 anos por duas
vezes, em 2016 e 2017.
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Peirano, por exemplo, afirma que a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria
antropológica se desenvolve e se sofistica, justamente a partir do confronto entre os
dois mundos, “[...] quando desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comum no
confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observação da
realidade ‘nativa’ com a qual se defronta.” (PEIRANO,1995, p.122)”.
Na história teórica de nossa disciplina, é a Bronislaw Malinowski que devemos
a consagração de um método específico para a pesquisa antropológica, embora
algumas das propostas malinowskianas já tivessem sido formuladas por Willian
Rivers. Lá na célebre introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental, encontramos
a descrição do que seria a metodologia de pesquisa de Malinowski. Nos
defrontamos com um relato que demonstra uma forte preocupação com a descrição
do método de coleta e manipulação dos dados. Não poderia ser por menos: em um
contexto de fortes influências positivas, o antropólogo polonês estava tentando dar
uma feição científica para a pesquisa antropológica.
pelas diferentes trajetórias ou pela militância que exercem nos dias de hoje, meus
entrevistados não tinham narrativas que me proporcionassem informações
relevantes. Sem muito sucesso, logo desisti e vi que a professora Zuleica tinha
razão. A melhor forma de compreender a relação do SHM e o campo indo-afro-
pernambucano não seria no contato íntimo com os “nativos”, ao menos nos termos
em que se propunha a minha pesquisa. Com isso em mente, vi que a única
alternativa para realizar esta pesquisa seria me debruçar exclusivamente sobre
fontes históricas, foi então que me voltei para os arquivos.
ideia de campo. Nesse sentido a autora produz uma relativização sob o conceito de
etnografia, onde esta pode ser compreendida como uma modalidade de
investigação antropológica que vai tomar determinados conjuntos documentais como
campo de interesse para realizar uma reflexão crítica acerca das formas de produzir
histórias da disciplina.
A sua argumentação principal está no fato dos arquivos não se construírem
como produto final de uma série de intervenções de caráter técnico, mas sim um
objeto que poder ser submetido a um contínuo processo de reflexão sistemática; um
lugar onde a história não é buscada, mas sim contestada. Nesse sentido, Olívia
Cunha comenta:
Diferentes análises e perspectivas em torno do uso e natureza dos
acervos arquivísticos convergem em uma mesma preocupação: é
preciso conceber os conhecimentos que compõem os arquivos como
um sistema de enunciados, verdades parciais, interpretações
histórica e culturalmente construídas – sujeita à leitura e novas
intepretações. (CUNHA, 2004, p. 292).
por um objeto específico, mas sim pela busca ou compreensão do native’s point of
view. O conhecimento antropológico é produzido a partir do confronto do particular
com o geral, entre a teoria acumulada e a observação dos nativos, sendo a
etnografia a forma pela qual esse conhecimento seria construído. Contudo ainda
hoje não há um consenso sobre o que seria esse trabalho de campo etnográfico.
Afinal “[...] transmitir como se faz pesquisa de campo em antropologia era [é] uma
tarefa impossível” (PEIRANO, 1995, p. 124).
Penso então que os argumentos utilizados tanto por Emerson Giumbelli como
por Olívia Cunha não são excludentes, mas até complementares. De fato, há objetos
em que os mecanismos metodológicos mais indicados para obtenção de dados
relevantes não é o contato direto com o nativo. Se pensarmos nos termos de uma
meta-antropologia, na qual os pesquisadores se voltam para pensar a própria
disciplina e as perspectivas que informam e informaram os seus pares, é no arquivo,
nos dados históricos, nos textos produzidos onde encontraremos o processo de
construção de sua objetificação — o lugar onde se realiza e pode ser compreendido.
É desta forma que poderemos tratar os dados obtidos das leituras — do
material bibliográfico, das matérias de jornais, das fontes textuais de forma geral —,
como textos, passíveis assim de um profundo trabalho de interpretação
antropológica, como nos ensina Clifford Geertz (1979); realizando dessa maneira
uma meta-antropologia (RABINOW, 1999).
Dito isto, tenhamos em mente que a natureza do conhecimento antropológico
está fundada numa relação entre o “eu e o outro” e que historicamente a construção
dessa diferença dava-se em termos tanto culturais quanto geográficos. Não há como
esquecer das célebres palavras de Malinowski ao tentar transmitir ao leitor o que foi
o início de seu trabalho de campo junto aos nativos das Ilhas Trobriand: “Imagine-se
o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a
uma ladeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até
desaparecer de vista” (MALINOWSKI, 1978, p.19)
O antropólogo realizava longas viagens para defrontar-se com seu “outro”,
garantindo com isso a premissa do estranhamento antropológico, tão cara à nossa
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2 Como veremos no decorrer dos capítulos os membros da Nova Escola do Recife fizeram parte do
Serviço de Higiene Mental, entretanto a produção de alguns, como Gonçalves Fernandes,
Waldemar Valente, René Ribeiro etc., vão além das propostas do SHM, dando continuidade a
suas pesquisas mesmo com opôs o termino de seus vínculos com o SHM.
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por sua vez, é onde apresento o conceito de santa aliança, primeiro descrevendo o
surgimento do fenômeno entre os intelectuais da Escola Nina Rodrigues,
destacando que o fato mais conhecido e que mais impactou o campo indo-afro-
brasileiro decorrente desta aliança foi a construção da ideia — ou ideologia — da
pureza nagô. Logo após, apresento algumas das contradições que encontrei na
literatura a respeito do papel que foi desempenhado na construção da noção de
pureza nagô por Gilberto Freyre, Ulysses Pernambucano e outros intelectuais que
por estes foram influenciados; visando com isto repensar suas posições nesta
relação. É no segundo capítulo também que destaco o importante papel que foi
desempenhado pelo Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, destacando as críticas que
foram tecidas a ele, tanto pelos opositores da época bem como os do presente.
É neste capítulo também onde relativizo o papel que foi desempenhado pelo
SHM na repressão aos cultos, destacando a atuação de alguns pais e mães de
santo no processo de construção da legitimação de alguns terreiros e
deslegitimação de tantos outros. Para tanto também identifico as categorias que
foram ser acionadas, neste contexto, para identificar aqueles terreiros que produzem
religião e os que são comandados por charlatões, curandeiros e exploradores.
Continuando por este caminho, recorro à antropologia dos objetos, mais
especificamente a uma semiologia dos objetos, para identificar alguns dos
elementos que atuam na deslegitimação de um terreiro, me valendo dos conceitos
de economia representacional e ideologia semiótica, tal qual foram utilizados por
Matthew Engelke (2007) e Webb Keane (2003), para formular e interpretar alguns
indicadores de que a jurema, por conta de sua relação com certos objetos
específicos, estava em posição desfavorável em relação às outras religiões.
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7 É necessário esclarecer esse ponto: embora possamos ver processos de secularização dentro do
Estado brasileiro, isto se restringe a alguns aspectos específicos, como nos casos citados no
texto. Não podemos esquecer que durante a República Velha ainda tínhamos um Estado católico
e não laico.
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8 Rosilene Gomes Farias (2015) pontua que o termo “curandeiro” é utilizado para designar aqueles
indivíduos que estavam exercendo de forma ilegal “as artes de curar”, é uma categoria que está
vinculada à ordem do discurso, uma categoria acusatória produzida para discriminar e criminalizar
aqueles que, por não possuírem uma formação específica, estariam exercendo ilegalmente a
medicina.
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No relato que a historiadora Rosilene Gomes (2012) nos traz, fica clara a for-
ça e a aceitação que Pai Manoel teve junto à população do Recife nesta segunda
metade do século XIX, ele próprio chegou inclusive a dividir o espaço com médicos
atuando no Hospital da Marinha do Recife. Lendo agora sobre um fato como este,
não deve ser muito difícil imaginarmos o constrangimento que este episódio trouxe
para a classe médica da época.
os define como coisa particular e quanto a lembrar a fronteira que separa os profissi -
onais e os leigos” (BOURDIEU, 2004).
Ao trazer aqui o caso de Pai Manoel, tenho o intuito de ilustrar os termos nos
quais estavam postas as relações entre a biomedicina e os sistemas alternativos de
cura durante este período. É importante notarmos que casos como esses eram co-
muns no período e que foi nesta conjuntura, entre o final do século XIX e o começo
do XX, que o saber biomédico galgava seu espaço. Neste sentido as transformações
na legislação foram fundamentais para esse processo.
A medicina começava a transpor o espaço do hospital, sendo pensada en-
quanto uma prática social, uma forma de exercer o controle social a partir do corpo.
Tal fenômeno foi estudado por Michel Foucault (1979) e por ele denominado de bio-
política. Este fenômeno chega ao Brasil no século XIX por intermédio dos médicos
que foram completar seus estudos na Europa e voltaram ao país para exercer suas
profissões, influenciando, com isso, as ações governamentais, como a organização
do espaço público; já no século XX, influencia o desenvolvimento dos serviços públi-
cos de saúde e um maior controle do Estado sobre a sociedade brasileira (GOMES,
2015).
Alguns marcos legais são fundamentais para a execução do controle social a
partir da biopolítica, entre eles temos o Código Penal de 1890. Lá, em seu capítulo
III, intitulado Dos Crimes Contra a Saúde Pública, encontramos os seguintes artigos
9 Terreiro é a denominação dada aos templos onde são cultuadas as religiões de matriz indo-afro-
brasileira.
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sência fazem parte dessas religiões. O combate à magia e ao curandeirismo não po-
deria deixar de ser um combate a estas religiões.
[…] a loucura passava a designar algo cujos sinais deveriam ser pro-
curados no interior dos indivíduos, uma condição que marca em seu
corpo e em seus hábitos, em sua trajetória de vida e em sua ances-
tralidade. Características biológicas e padrões de comportamento e
de moralidade apareciam como isso, cada vez mais associados em
torno de condutas socialmente consideradas desviantes. […] Ora, um
dos traços mais importantes dos esforços de Nina Rodrigues conver-
ge exatamente para isso: a atenção sobre as desigualdades huma-
nas e a produção de uma ‘ciência da diferença’ dedicada a relacionar
necessária e permanente o social ao biológico, com ajuda de postu-
lados biodeterministas e evolucionistas (GIUMBELLI, 1997. p. 43-44).
(MOTTA, 1993). Nos trabalhos de René Ribeiro, podemos identificar uma posição di-
ferente da encontrada entre os seus companheiros técnicos do SHM, chegaria a di-
zer, com um grande afastamento interpretativo em relação ao que foi produzido por
seus colegas. No trecho que se segue, podemos ver sua interpretação a respeito do
transe.
De volta ao Brasil retomamos na década de 50 nossa prática médica
e passamos a colaborar com Gilberto Freyre na implementação do
seu então titubeante Instituto Joaquim Nabuco, hoje florescente fun-
dação. A essa época preocupou-nos o papel dos indivíduos no Xan-
gô e delineamos e passamos a executar uma pesquisa com o teste
psicológico de Roschach aplicado aos fiéis que experimentavam a
possessão ‘fetichista’, concluindo que o transe não provoca nenhuma
alteração estrutural da personalidade, tampouco é morbígeno, servin-
do ao contrário para a libertação de tensões e à incorporação de pa-
péis sociais mais consentâneos com as aspirações dos fiéis. (RIBEI-
RO, 1984)
Vejam, aqui, Ribeiro nos diz que muito embora o método não tenha sido ade-
quado, as interpretações estavam corretas. Ainda neste mesmo texto, o professor
René Ribeiro adverte-nos que podemos encontrar relativizações a respeito do tran-
se, por influência do culturalismo freyriano, contudo é apenas com Melville J.
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der fazer suas festas, assim nós sabemos o que está regularizado ou
não, e daí sabemos também quantos terreiros atuam no Recife’.
‘Olhe, doutor, ontem eu vi dois homens tirando licença para armar um
circo no mesmo lugar que vamos tirar as nossas, eu acho que tudo
isso está errado, por que fazer este exame? Nós não somos doidos
nem palhaços’.
Protestei, mas foi inútil, pois era uma imposição do governo (COSTA,
1994, p. 179-180).
[…] fóra dois ou três locais onde se procura fazer religião, todos os
‘centros’ nada mais são que reuniões para o exercício ilegal da medi-
cina. Alguns ‘diretores’ já se não dão mesmo ao trabalho de provocar
os fenômenos citados e sem qualquer formalidade passam para o
papel as receitas que os ‘espíritos’ lhes ditam. (LIMA, 1932, p.138)
Como podemos constatar em uma outra matéria publicada neste mesmo bo-
letim sob o título de O Estudo das Religiões do Recife, a questão da religião é cen-
tral para os pesquisadores do SHM: “Os fenômenos de possessão que ocorriam
nesses centros (as seitas africanas e centros espíritas) chamaram logo a atenção
dos psiquiatras.” (BOLETIM DE HIGIENE MENTAL, 1935. p. 6). Foi então que, no
dia 15 de outubro de 1933, o SHM, mediante uma parceria com Secretaria de Segu-
rança Pública (SSP), dá início aos estudos dessas religiões. As ditas seitas africanas
e centros espíritas passariam então a necessitar de uma licença de funcionamento
que só seria fornecida mediante autorização do SHM, sendo exigido o cumprimento
dos seguintes pontos:
Espero que com isso tenha ficado claro o importante papel que foi desempe-
nhado pelo Serviço de Higiene Mental em Pernambuco. Anteriormente a ele, todos
os terreiros estavam submetidos à violência policial, criminalizados e duramente re-
primidos. O SHM foi uma das formas encontradas pelo Estado para imiscuir-se no
cotidiano dos terreiros, tendo a declarada função de conhecer para controlar, como
podemos ver nas palavras proferidas em uma das abas do livro Xangôs do Nordes-
te, de Gonçalves Fernandes — auxiliar técnico do SHM, assistente interino da Assis-
tência a Psicopatas de Pernambuco e alienista do Hospital Colônia Juliano Moreira
(Paraíba).
O apelo que o Prof. Arthur Ramos Lançou, da Bahia, a uma dezena
de anos, em nome dos discípulos de Nina Rodrigues, não foi em vão.
Nos estudos sobre as religiões e cultos de origem negra, destacou-
se desde muito cedo a Escola de Recife, sob a direção do Professor
Ulysses Pernambucano. No seu Serviço de Higiene Mental teve este
professor a ideia, fecunda de resultados científicos, de registrar as
seitas dos xangôs de Recife, controlando-as sob o ponto de vista da
higiene mental.
Isso acudiu não só aos reclamos dos negros sobre a liberdade dos
seus cultos e práticas religiosas, como os submeteu a um controle ci-
entífico, para evitar os abusos daí advindos. (FERNANDES, 1937.
sem paginação.)
Como podemos ver até aqui, o Serviço de Higiene Mental foi uma organiza-
ção que tinha entre suas funções intermediar a relação entre os terreiros, os pais e
as mães de santo e o Estado. Era ele que afirmava quais casas deveriam funcionar
ou não, ficando então claro que a perseguição não foi irrestrita, alguns terreiros fica-
ram imunes à repressão policial. O SHM passa a firmar a possibilidade da existência
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de um culto verdadeiramente religioso e que por isso era necessário ser protegido
(tutelado). Nesse sentido, ao dizer o que é religião, está se produzindo uma hierar-
quia discursiva em torno de um feixe de relações de poder. Como nos lembra Michel
Foucault (2015), dentro das sociedades ocidentais a “verdade” possui uma profunda
relação com o discurso científico e consequentemente nas instituições que ele pro-
duz.
A presença de pais e mães de santo no 1º Congresso Afro-Brasileiro demons-
tra, em parte, esta afirmação, a da existência de uma comunhão entre as religiões
indo-afro-brasileiras e um discurso racional, construído por intermédio dos intelectu-
ais do SHM, numa relação que pode ser compreendida como o investimento de um
aparelho discursivo de análise e de conhecimento. Ou seja, se produz um outro dis-
curso a respeito dessas religiões e suas práticas: não se fala menos delas, muito
pelo contrário, fala-se mais, só que de uma outra maneira, são outras pessoas par-
tindo de pontos de vista diferentes e com o intuito de obter outros efeitos.
Na atuação do SHM, em sua aproximação aos terreiros — no conhecer para
controlar — podemos identificar uma incitação política para se produzir um discurso
racional (não moral) sobre as religiões mediúnicas. Uma incitação ao discurso regu-
lado. Em outras palavras, o controle necessita de uma aproximação, de um inter-
câmbio de discursos, exames e observações insistentes. A atuação do SHM não ti-
nha por finalidade extinguir as religiões indo-afro-brasileiras, nem as silenciar, mas
sim colocá-las em discurso. Em outras palavras, o que nós vemos é que sua atua -
ção acaba por fundá-las.
O poder não se estabelece apenas como mecanismo de força, de uma ma-
croestrutura para uma microestrutura. Em outras palavras, o poder não vem de cima
para baixo, ele se estabelece a partir de microrrelações de poder que acabam por
permear toda a sociedade. Não há dúvidas de que o SHM teve um papel fundamen-
tal na repressão aos terreiros aqui em Pernambuco, construindo uma linha divisória
sobre o lícito e o ilícito. Talvez ele não tenha sido capaz de fundar novas concepções
de religiosidade no interior da cosmovisão do povo de terreiro, mas, certamente, ele
definiu novas regras no jogo do poder, articulando a execução de dispositivos de vi-
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[…] a primeira dessas questões […]. Por que não somos como os
Estados Unidos em matéria de poder e de progresso? A segunda [...]
O que tem significado para o Brasil, como tem influenciado nossa
evolução social e histórica, a forte presença africana que nos
caracteriza, sob os aspectos de genótipos e fenótipos, de cultura,
religião e outras manifestações? […] terceira questão. Sob que
condições pode-se conceber a existência de uma civilização
brasileira diferente da que prevalece na América do Norte ou na
Europa do Norte? E finalmente […] pergunta-se qual seria o
relacionamento entre a formação social brasileira e uma
modernidade entendida nos termos de iluminismo, racionalização,
progresso, desenvolvimento e outras características do mesmo
gênero? (MOTTA, 2014. p. 3. grifos do autor).
11 Roberto Cardoso de Oliveira (RCO) (1988) faz referência a um período histórico específico, o das
décadas de 1920 e 1930, que ele denomina de período “heroico”, destacando entre as principais
produções as de Gilberto Freyre (para a antropologia da sociedade nacional) e as de Curt
Nimuendajú (para a etnologia indígena) pelo impacto que suas obras tiveram em suas respectivas
áreas. Roberto Cardoso de Oliveira ainda destaca outros nomes, como Baldus, Roquette-Pinto,
Arthur Ramos e Heloísa Alberto Torres, no Sul; Carlos Estêvão de Oliveira e Estêvão Pinto, no
Norte e Nordeste. Entretanto, esses autores não teriam deixado com suas obras uma marca tão
duradoura na antropologia nacional como os primeiros. A obra de Raymundo Nina Rodrigues não
faz parte desse período específico nem foi mencionada por RCO em seus trabalhos, mas é claro
que sua produção teve um forte impacto na produção antropológica, mesmo que naquele
momento a própria área da antropologia não estivesse propriamente demarcada em nosso país.
Para o desenvolvimento do campo da antropologia das religiões afro-brasileiras, suas
contribuições foram fundamentais, sendo até hoje uma leitura fundamental para quem deseja
debruçar-se sob esse campo.
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Mas não sejamos tão benevolentes com nosso médico maranhense. Como
nos alerta Pedro Germano (2013), ao se falar das contribuições de Nina Rodrigues
para a construção de uma África ancestral para o candomblé, precisamos ficar
atentos ao fato de que esta não foi uma de suas preocupações, muito embora suas
contribuições tenham sido fundamentais para a criação desta escola de
pensamento. “O autor era muito positivista, suas obras ancoradas no evolucionismo
unilinear, e estava convencido da inferioridade do negro e o problema que todo esse
grupo trazia para a sociedade brasileira” (GERMANO, 2013, p. 70).
Então podemos aqui concluir que o médico maranhense, embora esta não
tenha sido sua motivação primeira, ao eleger o negro sudanês como o mais
desenvolvido social e culturalmente, exerce uma forte influência na construção da
ideia de pureza nagô. Suas pesquisas reverberaram nas gerações futuras, suas
ideias ajudaram a formular uma corrente dentro do pensamento social brasileiro que
posteriormente ficou conhecida como a Escola Nina Rodrigues.
Já nas décadas de 1930 e 1940, a ideia de uma superioridade da cultura
nagô iorubana acaba por estar presente também na obra de Arthur Ramos (1903-
1949) e Edison Carneiro (1912-1972), ambos discípulos de Nina Rodrigues, que
tiveram papel fundamental na construção da ideia de África para o candomblé,
reiterando muitas das contribuições de seu mestre. São eles que robustecem a
ideologia de que certos terreiros da Bahia eram redutos da verdadeira religião dos
africanos (GERMANO, 2013), verdadeiras Áfricas no Brasil.
O alagoano Arthur Ramos ingressa na Faculdade de Medicina da Bahia no
ano de 1921. Em 1926, recebe o título de Doutor em Ciências Médicas Cirúrgicas
após a defesa de sua tese Primitivo e Loucura. Seus interesses a respeito do
folclore e da cultura brasileira o levaram cada vez mais a se especializar no campo
da antropologia. Ramos atuou em diversas áreas, como psiquiatria, educação,
psicanálise, medicina legal, higiene mental, antropologia, etnografia e neurologia
(GASPAR, 2009).
É pelo menos até Arthur Ramos que podemos remeter a construção —
iniciada, mas nunca concluída — da santa aliança. Ao realizar uma incursão aos
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renomados terreiros da Bahia, Arthur Ramos recebe o cargo de Ogã, numa clara
troca pelos “serviços prestados” ao candomblé. (GERMANO, 2015)
A obra do médico alagoano Arthur Ramos é vasta. Ele demonstrou interesse
por uma série de temas e enfoques. Entretanto, a questão do sincretismo religioso
afro-brasileiro recebe certo destaque em sua produção. De forma geral, Ramos via
no sincretismo algo negativo.
Tanto Arthur Ramos como Edison Carneiro voltaram seus olhos também para
o negro de origem banto, contudo eles apenas o fazem com o intuito de comprovar a
superioridade dos sudaneses. Podemos constatar isso em vários pontos da obra
desses autores, onde por várias vezes reiteram a afirmação da “mítica pobríssima
dos negros bantos” (CARNEIRO, 1991, p. 62) e sua predisposição ao sincretismo.
O baiano Edson Carneiro teve sua formação primeira na área das ciências
humanas, formado em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1936, pela Faculdade do
Estado da Bahia. Seu interesse pelos cultos afro-brasileiros, o folclore e a cultura
popular inicia no começo da década de 1930 (GASPAR, 2010a). Um intelectual
militante de forte influência marxista.
Da mesma forma que Arthur Ramos, Edison Carneiro volta seus olhos para a
África, realizando inclusive uma viagem ao continente, com o objetivo de
compreender a aculturação dos africanos, novamente com a predileção aos nagôs
iorubas, na sociedade brasileira.
Durante sua trajetória, Edison Carneiro teve várias posições em relação a seu
mentor, Arthur Ramos, “[...] por algum tempo amigo, por algum tempo discípulo, por
algum tempo adversário” (MOTTA, 2014, p.11). Da mesma forma que seus
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O professor Roberto Motta (2014) nos lembra também das predileções como
militante político de Edson Carneiro, que o fizeram lançar o projeto antissincrético.
Para Carneiro, o contato das mitologias gegê-nagô com o sincretismo presente de
forma mais ampla na sociedade brasileira (“gêge-nagô-musulmi-bantu-caboclo-
espírita-católico”) não era positivo, pois “assim, agindo e reagindo, a mitologia negra
vai se degradando, se decompondo, se incorporando ao folclore nacional”
(CARNEIRO, 1991. p. 97).
É na obra de Edson Carneiro que encontramos uma preocupação em
desenvolver um projeto antissincrético, ou seja, uma preocupação militante em
delimitar o que seria a verdadeira religião dos africanos no Brasil e o que havia se
degenerado com o sincretismo. Para o autor, o fenômeno do sincretismo é uma
degradação, ou, melhor dizendo, o sincretismo afro-brasileiro é uma degradação que
ameaçava a pureza africana que ainda se fazia presente em alguns terreiros gegê-
nagô da Bahia. Ou seja, Edson Carneiro ajudou a produzir um quadro que separa
aqueles que produzem a verdadeira religião negra e aqueles que eram degradação
e charlatanismo. Em suas palavras:
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Ainda sobre a distinção feita por Edison Carneiro, o professor Roberto Motta
comenta:
[...] num momento histórico caracterizado por uma hostilidade mais
ou menos marcada, por parte dos que exerciam o poder político,
contra a religião e a cultura africana no Brasil, nosso autor achou
prudente estabelecer algumas distinções. Charlatanismo? Sim! Mas
isto só nos terreiros de baixa extração, nos candomblés “bantos” e
‘caboclos’. Homossexualismo acintoso e, além do mais, “passivo”?
Sim, infelizmente sim, mas isto também só nos maus terreiros,
frequentados pela ralé dos bairros mal afamados da cidade. Os
terreiros da tradição nagô, muito ao contrário, eram centros de
acendrada virtude, onde se praticavam a caridade e a castidade.
(MOTTA, 2014, p.12).
étnica africana (a construção da ideia de pureza nagô), bem como nas noções de
pureza e autenticidade.
Obviamente que aqui não quero extinguir o papel que foi desempenhado
também pelos pais e mães de santo no processo de construção das tradições. Não
podemos esquecer que o ato de rememorar, como bem nos disse Michel Foucault
(2013) e Jacques Derrida (2001), não é um ato inocente. O que pode ser visto como
um despretensioso discurso sobre o passado acaba por agir “(...) sobre ele,
operando reconstruções, evocando identidades, realizando, enfim, um trabalho de
produção de sentido que visa legitimar ações no presente” (DANTAS, 1988, p. 60).
No que diz respeito ao papel desempenhado por pais e mães de santo no
processo de invenção da tradição africana (pureza nagô), Beatriz Góis Dantas
comenta:
[...] o que se pretende não é negar a possível origem africana de
muitos desses centros de culto que, em alguns casos, serve de
matriz à elaboração dos mitos, mas chamar a atenção para o fato de
que tais narrativas são marcadas pelas intenções e interesses dos
pais e mães-de-santo que, através delas, visam estabelecer um
estreito e explícito elo de ligação com a África, apresentando-se
desse modo como depositário de um acervo cultural que seria a mais
pura e legítima tradição africana. O que quero sugerir é que aspectos
desses relatos que ressaltam a continuidade com a África não seriam
tão enfatizados se, por exemplo, a ‘pureza’ da tradição africana não
fosse, de algum modo, valorizada por certos setores da sociedade
mais ampla, de maneira a permitir sua utilização de forma vantajosa
na luta pelo mercado religioso e em sua inserção na sociedade
(DANTAS, 1988, p. 61. Grifos meus.)
14 Peirano define história teórica nos seguintes termos: “Escolho a expressão história teórica para
designar um elenco de autores e monografias que se transformam, em determinado contexto, em
uma linhagem socialmente consagrada da disciplina. Isto é, a história teórica pode assumir
formas variadas, mas sua presença constante é elemento essencial da cosmovisão do
antropólogo. [...] Empiricamente, ela se traduz como uma reinvenção em termos disciplinares,
resultado do encontro entre teoria acumulada e dados etnográficos novos, que são vistos, pelos
antropólogos-praticantes, como a história teoricamente significativa (PEIRANO, 1995, p. 133).
65
chamado por Valente de Sincretismo Intertribal, a religião dos orixás já havia entrado
em contato com o islamismo e o cristianismo. (GERMANO, 2017).
A história da produção dos membros do NER parece estar ainda muito
nebulosa. É preciso nos manter atentos ao rememorar este fragmento da história da
antropologia brasileira produzida em Pernambuco, resguardando os limites
epistemológicos, políticos e ideológicos do rememorar, para assim não cairmos em
vícios, como generalizar o todo pelas partes ou as partes pelo todo. Tendo em mente
a necessidade de produzir uma compreensão mais plural do que foi a produção do
NER.
Como exceção disso, temos os esforços da professora Roberta Campos em
pôr luz sobre a produção dos membros da NER, realizando um importante papel em
reverter esse quadro. Graças a Roberta, agora temos uma série de novos estudos
produzidos, em andamento e ainda por serem concretizados sobre a NER, onde
este trabalho também se inclui, contribuindo assim para produzir um quadro mais
plural de interpretações sobre o que foi o SHM e a NER.
1950. Fato que se agrava com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU),
neste caso devido à constante crítica à obra de Gilberto Freyre e a ideia de
Democracia Racial16 (SKOLAUDE, 2014).
16 Atribui-se a Gilberto Freyre a paternidade e disseminação do termo democracia racial, ainda que
em rigor a associação não seja totalmente acertada. Em primeiro lugar, porque a expressão não
figura em nenhuma de suas principais obras; segundo, porque apenas em 1962 ela seria de fato
usada por Freyre. Anteriormente a isto, conforme apontado por Antônio Guimarães (2001), o
termo já havia sido empregado por Abdias do Nascimento em sua fala inaugural ao I Congresso
do Negro Brasileiro, em 1950, e por Charles Wagley na introdução ao primeiro volume da série de
estudos encomendados pela Unesco em meados da década de 1950. Sobre este assunto,
Guimarães comenta: “Wagley introduziu na literatura especializada a expressão que tornaria não
apenas célebre, mas a síntese do pensamento de toda uma época e de toda uma geração de
cientistas sociais. (...) [Gilberto Freyre] não pode ser responsabilizado integralmente, nem pelas
ideias, nem pelo seu rótulo; ainda que fosse o mais brilhante defensor da “democracia racial”,
evitou, no mais das vezes nomeá-la” (GUIMARÃES, 2001, p. 148). Não obstante a esta
perspectiva há outras interpretações. A exemplo da ideia de que Freyre jamais havia negado o
preconceito e a violência, em seu livro Ordem e Progresso (FREYRE, 2013) essa perspectiva
está mais que evidente. Seu esforço estaria em compreender as diferenças entre Brasil e EUA,
aqui o catolicismo teria de alguma forma abrandado, mas não eliminado a violência. Ademias, o
que é pouco – ou nada – reconhecido é o fato do sociólogo recifense também ter feito uso de sua
obra, e em palestras diversas, para denunciar a violência o preconceito.
70
que embora tentasse se colocar como uma expressão nacional dos estudos afro-
brasileiros, seria predominantemente baiana.
Luís Gustavo Rossi (2011) também teceu elogios e críticas ao 1º CAB. Para o
autor, é nítido que o 1º CAB traz consigo uma série de esforços para minimizar e
relativizar as explicações biologizantes das relações raciais no Brasil. Entretanto,
para Rossi, não obstante a esses esforços, estavam claras as dificuldades para se
desvincular dessas explicações. E também há o fato de que o negro, mesmo sendo
pensado por uma chave culturalista, não saía do status de um grupo fiscalizável.
da população negra. Não podemos negar que esse evento inaugura uma forma de
organização que até hoje é utilizada e, diga-se de passagem — nos dias atuais —
muito elogiada.
Lembremos que a experiência do 1º CAB se dá num momento histórico em
que as religiões afro-brasileiras estavam sendo submetidas a uma intensa
repressão. É nesta virada do século XIX para o XX, principalmente na década de
1930, em que há a criação de leis que possibilitam uma intensificação da
perseguição policial aos terreiros. A psiquiatria brasileira, de um modo geral, era
dominada por uma tendência eugênica, racista e que via na ocorrência dessas
religiões um sério problema à saúde pública.
A realização do 1º CAB não foi bem vista por uma parte dos intelectuais e da
imprensa, como podemos constatar na matéria A Repressão dos Xangôs, publicada
na Revista Fronteiras na edição de janeiro/fevereiro de 1938.
E assim continua:
17 Os toques aconteceram nos terreiros dos babalorixás Anselmo (culto nagô), Oscar (Culto Gegê) e
Rosendo (Culto Xambá).
75
Como bem nos lembra as autoras Pereira, Campos e Emídio (2017), após a
realização do 1º CAB, a perseguição a Ulysses Pernambucano se intensifica. Um
ano depois do congresso ele é preso por 40 dias na Casa de Detenção do Recife. A
esse respeito as autoras comentam:
77
[...] penso que a Dantas tomou uma pequena parte pelo todo. Apenas
os trabalhos de Rodrigues de Carvalho (‘Aspectos da influência
78
O que podemos constatar até aqui é que os intelectuais da NER e o SHM não
estavam preocupados em buscar ortodoxia dos terreiros e muito menos viam no
Xangô do Recife uma representação da pureza do culto nagô. Mas então, diante
disso, nós podemos nos indagar: como era feita a distinção dos terreiros “que faziam
religião e os que faziam exploração”? (CAVALCANTI, 1934, p. 244).
Voltemos então a questionar a respeito da aliança que se estabeleceu entre
os pesquisadores do SHM e as lideranças religiosas em Pernambuco.
79
Desses depoimentos podemos concluir que de fato foi o SHM quem pleiteou
junto à polícia a concessão de licenças para o funcionamento dos terreiros,
entretanto os pais e mães de santo também estabeleceram uma relação com os
órgãos policiais, sendo algumas das decisões tomadas em diálogo direto entre
alguns pais e mães de santo e a polícia.
Alguns pais e mães de santo também enviavam convites aos técnicos do
SHM, para que viessem aos toques, esta era uma prática comum, tendo em vista
que a presença dos membros do SHM garantia que aquele xangô estivesse livre da
perseguição policial.
Tentar traçar os elementos que, no contexto da santa aliança que se
estabeleceu em Pernambuco, eram acionados na distinção dos terreiros que
mereciam ser fechados não foi uma tarefa fácil. A diferenciação entre religião e
magia aparenta ter uma certa relevância, mas a categoria de charlatão não se
definia apenas a partir desta relação.
Como vimos na sessão anterior, também há um elemento moral que atua
como definidor na legitimação dos terreiros, mas, diferente do caso baiano, não
81
A sacerdotisa Josefa estava na lista, dada por Anselmo ao SHM, acerca dos
pais e das mães de santo que não teriam “competência”. Anselmo a denuncia
porque, segundo ele, “[...] ela faz da seita um motivo para ‘negócios’ suspeitos...”
(FERNANDES, 1937, p.55).
Gonçalves Fernandes narra detalhes do toque que presenciou durante a
visita ao terreiro de Josefa. Os atabaques silenciaram-se, Josefa anuncia ter
chegado o final da festa, mas os filhos da casa continuavam com jeito de quem não
tem vontade de ir embora. Fernandes narra que foi conduzido à porta com bastante
insistência. Ele suspeitava que Josefa Guedes usava seu templo religioso para
atividade de prostituição e depois afirma ter confirmação de fonte segura que ao final
das festas religiosas, retirados os convidados e as pessoas estranhas, as filhas do
terreiro eram possuídas pelos filhos do terreiro.
Também podemos encontrar preocupações semelhantes sobre os padrões
morais e a sexualidade na obra de Vicente Lima, como bem salientado por Campos
(2015). Em alguns momentos, Lima opta por fazer descrições gerais de suas
observações, não especificando os terreiros ou pais de santo a que se refere. Em
seu livro Xangô, Vicente Lima nos mostra uma preocupação com a degeneração que
a religião dos negros sofre aqui no Recife, mostrando-se inquieto com as atividades
82
18 Peji é o nome dado ao quarto dos orixás, um dos lugares mais sagrados de uma casa de axé. É
no Peji onde encontramos os assentamentos dos orixás da casa, o lugar onde os filhos da casa
ficam enquanto estão recolhidos para obrigações (feituras, Boris etc.).
83
Minha proposta aqui então é mostrar o papel que foi desempenhado pelos
objetos nesse processo. E para isso eu trabalho com dois conceitos do antropólogo
linguista Webb Keane. O primeiro é o de economia representacional, chamando a
atenção, com esse conceito, para as “interconexões dinâmicas entre os diferentes
modos de significação em jogo dentro de uma determinada formação histórica e
social19” (KEANE, 2003, p. 410. Tradução minha). O segundo é o conceito de
ideologia semiótica, que media a relação entre os sistemas representacionais;
Keane a define como: “suposições básicas sobre o que são os signos e como eles
funcionam no mundo20” (KEANE, 2003, p. 419. Tradução minha.).
O que estou querendo dizer com isso é que minha chave analítica e
metodológica passa pelo conceito de ideologia semiótica, de Webb Keane. Ele diz
que toda religião tem uma ideologia semiótica e também que as religiões sempre
foram pensadas pelo conhecimento ou pelas práticas. Mas Webb Keane está
chamando a atenção para o fato de que toda religião organiza ou ordena as relações
não só entre os seres humanos e deuses, mas entre os seres humanos e seres
humanos, e entre os seres humanos e objetos. Ou seja, todas as religiões definem
as formas legítimas de serem materializadas. Então, o deus cristão pode se
materializar na figura de um homem, velhinho, masculino; pode se materializar numa
cruz, no pão, no vinho, isso é plausível.
Entretanto, para outras religiões isso vai surgir como algo errado, porque elas
possuem um outro ordenamento de relações, a partir de outras ideologias
semióticas. Então, por exemplo, para os protestantes brasileiros é a bíblia, ela é o
grande objeto, é a forma primeira da materialização do sagrado e todas as outras
seriam falsas.
Mas veja, um outro antropólogo, Matthew Engelke — partindo deste mesmo
referencial teórico —, ao estudar um grupo de cristãos protestantes na África, mais
especificamente em Chitungwiza, uma cidade ao sul de Harare, capital de
Zimbábue, encontra o que para nós seria um grupo muito pitoresco de cristãos —
protestantes. Juranifiir Santa é uma congregação da Igreja Masowe WeChishanu, ou
Igreja sexta-feira Masowe. Como eles próprios se denominam, são “os cristãos que
não leem a bíblia21” (ENGELKE, 2007, p. 2, tradução minha.).
Ao descrever as concepções do grupo em relação à bíblia, Matthew diz:
experiência com o sagrado que não seria mais mediada por uma instituição, mas
que estaria dada de forma direta entre o fiel e Deus a partir de sua experiência com
a bíblia. Bom, o caso exposto por Engelke nos mostra a pluralidade de grupos — e
crenças — que estão reunidos sob o título de evangélicos.
A questão que trago aqui é que os pesquisadores do SHM, e agora estou
fazendo alusão a todos, possuíam uma ideologia semiótica que entrava em choque
com aquela das religiões indo-afro-brasileiras. Nesse quadro, a jurema, mais
especificamente o Catimbó Jurema do Recife, acaba por estar em uma situação
ainda mais desprestigiada. Os pesquisadores não viam religião na jurema, viam
curandeirismo, charlatanismo.
Muito embora os técnicos em um primeiro momento não estivessem
preocupados em produzir uma classificação sistemática do que estavam
encontrando em campo, podemos notar que o culto às entidades da jurema estava
em posição desfavorável neste quadro. Pedro Cavalcanti, ao elencar as
características dos cultos que teriam maior predisposição para desencadearem
transtornos metais, argumenta que os usos de certos objetos estariam fortemente
correlacionados, como, por exemplo: “o consumo de bebidas alcoólicas feitas com
infusão de ervas, o uso de tabaco (...)” (CAVALCANTI, 1988), mesmo o autor sem
precisar exatamente que tipo de culto ele estava descrevendo, este não seria senão
o culto aos encantados da jurema.
Um importante ponto que precisamos destacar aqui é a visão que tanto a Liga
Brasileira de Higiene mental (LBHM) — da qual Ulysses Pernambucano fizera parte
— como o Serviço de Higiene Mental tinham em relação ao alcoolismo. Ambos os
grupos fizeram fortes campanhas alertando sobre os perigos do alcoolismo na
degeneração do povo Brasileiro.
Em 1923 é criada, no Rio de Janeiro, a LBHM, fundada pelo psiquiatra
Gustavo Riedel. Os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental foi o principal meio de
divulgação de grande parte da produção teórica dos integrantes da LBHM. Em sua
primeira edição, publicada em 1925, encontramos a sessão Contra o Alcoolismo: em
favor da Hygidez Mental (Secção Permanente).
87
Como bem sabemos, a jurema tem uma materialidade do sagrado que está
intimamente ligada a objetos como bebidas alcoólicas e o fumo. Nos rituais é servida
uma bebida alcóolica feita com, entre outras coisas, a casca da jurema, sendo talvez
uma de suas principais representações materiais do sagrado. Ou seja, segundo a
ideologia semiótica do SHM — e neste momento estou me referindo ao SHM
enquanto instituição —, há elementos materiais presentes na cosmologia deste culto
que desencadeariam transtornos mentais ou elevariam o risco de tal, assim retiram
sua dimensão sagrada e retificam tais objetos como não sendo sinais do divino. Este
é um exemplo de afirmação ideológica sobre o que são os sinais e como eles
funcionam. Perceber a existência dessas ideologias semióticas é importante tendo
em vista que “chama a atenção para os modelos de significação que se tornam
privilegiados em um determinado campo sócio-histórico e, em particular como
palavras e coisas estão intimamente ligadas nesses modelos” 23 (ENGELKE, 2007,
p.29. Tradução minha).
As ideologias semióticas produzem categorias, a exemplo do charlatão ou do
curandeiro, as quais classificam e hierarquizam a religião, separam assim os
terreiros que produzem religião e os que produzem charlatanismo, os puros dos
impuros, o sagrado do profano.
23 No original: “draws attention to the modes of signification that become privileged in a given
sociohistorical field, and, in particular, to how words and things are intimately bound up with one
another in those modes.”
91
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho chega ao fim, ao menos o que tange à parte da escrita desta
dissertação. O que confere relevância à pesquisa que acabei de mostrar a vocês
nas páginas anteriores não é de grandes conclusões ou generalizações. Tim Ingold
(2015) recentemente nos disse que a Antropologia não busca conclusões — e bem
antes dele, o velho Gilberto Freyre (1941) já proclamava que o tempo das grandes
conclusões e generalizações da Antropologia e das Ciências Sociais em geral já
havia passado.
Concordo com a antropóloga Mariza Peirano (1995) quando esta pensa o
trabalho do antropólogo não enquanto um produto dado, mas sim um processo
sempre artesanal e incompleto. Sim, incompleto, entretanto não no sentido
depreciativo que apalavra poderia conter num contexto positivista. “O métier do
antropólogo consiste em um eterno recomeçar que resulta, em qualquer
circunstância, em produtos temporários e parciais” (PEIRANO, 1995, p.133).
É exatamente nesta incompletude e parcialidade onde podemos encontrar
um dos afãs mais importantes da Antropologia. Aí está resguardada a possibilidade
de que os dados coletados por outras pesquisas possam ser alvos de reanálises,
dando a eles a possibilidade de novas configurações interpretativas.
É partindo deste quadro interpretativo que pensei a construção desta
dissertação. Deixando clara a sua própria incompletude e parcialidade, minha
pesquisa foi confeccionada como um mecanismo de salientar as incompletudes das
pesquisas que dizem respeito ao Serviço de Higiene Mental (SHM). Concebendo a
partir disso uma meta-antropologia voltada aos arquivos, que teria seu propósito
expresso na possibilidade de construção de um quadro mais plural a respeito do que
92
Pai Anselmo, responsável por produzir uma lista, encaminhada ao SHM, com o
nome de pais e mães de terreiro que não teriam competência. Anselmo também teve
papel importante na construção do calendário anual de toques, que foi construído a
partir de uma relação estabelecida entre os babalorixás e a polícia, não intermediada
pelo SHM, como se costuma pensar. Nesse sentido, vemos que a atuação do SHM
não foi uma imposição completa, os pais e as mães de santo também
desempenharam papel fundamental neste contexto de perseguição.
Em relação ao fato de que não era a ortodoxia que demarcava a legitimidade
dos terreiros, procurei identificar as categorias que eram acionadas neste processo.
Pude identificar que a moral e o lucro apareciam como categorias poluidoras da
legitimação. Seguindo algumas pistas, pude compreender — a partir de uma
semiologia dos objetos — me valendo dos conceitos de economia representacional
e ideologia semiótica, que a jurema, devido a sua relação íntima com objetos como
bebidas alcoólicas e cigarros, tinha seu caráter religioso negado.
A ideologia semiótica do SHM, pensado agora enquanto instituição,
compreende que há elementos materiais presentes na cosmologia do culto aos
encantados que desencadeariam transtornos mentais ou elevariam o risco de tal.
Assim, retiram sua dimensão sagrada e retificam tais objetos como não sendo sinais
do divino.
Estes foram os principais pontos suscitados por esta dissertação. Após tudo o
que foi exposto aqui, espero que o objetivo deste trabalho tenha sido atingido: trazer
uma visão mais plural e multifacetada a respeito do que foi a atuação do Serviço de
Higiene Mental, e das relações que este estabeleceu com o campo indo-afro-
pernambucano.
Estamos então nas últimas linhas deste trabalho. Quero aqui agradecer
aquele que presenta o final dos ciclos, Epe Epe Baba!
96
REFERÊNCIAS
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Tempo Imperfeito: Uma etnografia do Arquivo.
Revista Mana, 10(2), p. 287-322, 2004.
DANTAS, Beatriz Góis. “Vovô nagô e papai branco”. Usos e abusos da África no
Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LIMA, Vicente. Xangô. 1Ed., Vol. 1, Recife: Emp. Jornal do Comércio S.A. 1937.
MAGGIE, Yvonne. Medo do Feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional. 1992.
WEBB, Keane (2003). Semiotics and the social analysis of material things.
Language & Communication 23, p 409-425.
Diario de Pernambuco
Um Pintor que Deixou o Mundo pela Província: Cícero Dias fala ao Diario de
Pernambuco sobre o Congresso Afro-Brasileiro. Diario de Pernambuco, Recife, 10-
11-1934.
O Estudo das Religiões do Recife. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 3, n.9,
10, 11 e 12, set./out./nov./ dez. 1935. p. 06.
Revista Fronteiras
A repressão dos Xangôs. Revista Fronteiras, Recife, ano VII, jan./fev. 1938, p. 12.