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Rossano Lopes Bastos

"Arqueologia no Brasil – Atualizando o debate"

Entrevista (Edição nº 39)

O nosso entrevistado desta edição é o arqueólogo Rossano Lopes Bastos,


graduado em Arqueologia (UNESA), Mestre em Geografia (UFSC), Doutor em
Arqueologia (USP), especialista em Arqueologia Pré–histórica (MN/UFRJ),
arqueólogo do IPHAN desde 1985, coordenador nacional de Arqueologia do IPHAN
de 2001 a 2003, presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira (2005-2007) e
secretário geral do XVI Congresso da União Internacional de Pré-história e Proto-
história/UNESCO, professor de Arqueologia e Preservação do Patrimônio
Arqueológico em universidades do Brasil e do exterior. Rossano tem vários artigos
e livros publicados sobre Arqueologia e Patrimônio. Em 2007, foi autor das obras:
Preservação, arqueologia e representações sociais (Erechim: Habilis, 2007);
Arqueologia na ótica institucional. IPHAN, contrato e sociedade (Erechim: Habilis,
2007); Arqueologia trans-atlântica (Oosterbeek & Bastos (orgs.) Erechim: Habilis,
2007) e é autor e organizador de Patrimônio: atualizando o debate (Mori, Souza,
Bastos & Gallo (orgs.) S. Paulo: 9a. SR/IPHAN, 2006). Ele vai nos falar um pouco
sobre essa sua recente produção e sua longa experiência ligada à Arqueologia,
preservação de patrimônio e Antropologia.

>> CVA - Rossano, a gente sabe que a Antropologia e a Arqueologia são disciplinas
irmãs, que a Antropologia nasceu dentro dos museus, junto aos trabalhos
arqueológicos. Como anda atualmente a relação entre a Arqueologia e a
Antropologia no Brasil?

Rossano - A Arqueologia, diferentemente da Antropologia, no Brasil, ainda se


caracteriza por uma disciplina em formação, ao passo que a Antropologia já se
constitui numa disciplina com um corpo teórico mais amadurecido. Esta relação se
dá, principalmente, em função dos objetos estudados por cada uma delas e pelo
fato da Arqueologia ter se desenvolvido mais lentamente, no Brasil. Se, por um lado
a Antropologia tem seu nascedouro dentro dos museus, a Arqueologia nasce para
os museus, isto é, para alimentá-los com a cultura material e aqui lembramos o
“período do colecionismo”. Enquanto a Antropologia sai dos museus para o campo
e a academia, a Arqueologia sai da academia e do campo para os museus.

A formação arqueológica pioneira no Brasil parte da premissa de que “a


Arqueologia é a Antropologia ou não é nada”. Atualmente, esta premissa encontra-
se enfraquecida pela dinâmica da Arqueologia, que incorporou, no seu escopo
teórico, as disciplinas ambientais e o engajamento social, alavancados pela
educação patrimonial, hoje obrigatória em todos os projetos arqueológicos
preventivos ou de contrato, conforme prevê a Portaria IPHAN 230/02. A
Arqueologia e a Antropologia vivem um momento de tensão sem que uma efetiva e
desejável aproximação construa aportes transversais de entendimento e de
utilização mútuos. No Brasil, infelizmente, a Antropologia ainda não reconhece a
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Arqueologia como uma disciplina irmã e sim, uma filha bastarda. Por outro lado, os
arqueólogos, lidando com um campo extremamente vasto, interdisciplinar e
transversal têm procurado afirmar a Arqueologia como uma disciplina
independente, mesmo que, no passado, a Arqueologia tenha sido uma disciplina
mais importante que a Antropologia.

Nosso entendimento é que essas questões e esse histórico devem ser superados na
medida em que as fronteiras disciplinares tendem cada vez mais a desaparecer.
Nestor Canclini, na sua obra Culturas híbridas, nos faz pensar em pesquisadores e
intelectuais híbridos, exatamente nessa perspectiva destaca a riqueza da
multiplicidade de olhares. Um problema atual que merece debate, acúmulo, espera
e paciência é exatamente a questão ligada aos laudos em áreas indígenas. Os
antropólogos têm reivindicado primazia na elaboração de laudos nas disputas das
terras indígenas. Os arqueólogos têm trazido uma contribuição que deve ser levada
em conta, na medida em que identificam e reconhecem os direitos dos indígenas e
dos quilombolas em terras ocupadas no passado. Devemos olhar essa perspectiva
de forma ampliada, mais que buscando arqueologicamente uma ligação fortemente
étnica dos grupos em conflito, identificar a presença indígena e quilombola pré-
histórica e histórica nos territórios em disputa. Esta compreensão, por si só, já
garantiria um bom argumento para a discussão quanto à legitimidade e a diferente
participação complementar de uma e outra disciplinas. Dentro dessa perspectiva,
no nosso entendimento, o melhor dos mundos é a abertura e manutenção de um
canal perene de discussões e parcerias entre a Antropologia e a Arqueologia, sem
ranços e personalismos.

>> CVA - Aproveitando o seu argumento acima, você poderia nos falar um pouco
desse espaço aberto por disciplinas ambientais e engajamento social alavancados
pela educação patrimonial, aproximando a Arqueologia e a Antropologia?

Rossano - A pergunta é oportuna e abre espaço para analisarmos a recente


transformação da Arqueologia no Brasil. Começaremos por uma constatação
numérica. No ano de 2007, o IPHAN, que é o órgão constitucionalmente detentor
das prerrogativas de proteção, avaliação e autorização de pesquisas arqueológicas
no Brasil, emitiu mais de 500 portarias de pesquisas. Deste universo, 99% estão
ligadas aos estudos de impactos ambientais para a avaliação e identificação do
patrimônio arqueológico em empreendimentos potencialmente lesivos à matriz
finita de base arqueológica. A característica desta virada paradigmática, que tem
motivado a maioria das pesquisas, tem amparo no Artigo 6o, § 1o, inciso 1, alínea C
da Resolução CONAMA 01/86 e Portarias IPHAN 230/02 e IPHAN 28/03. Dentro
dessa nova realidade, a sociedade como um todo ganhou exponencialmente acesso
à identificação, aos estudos e aos bens arqueológicos, que são bens de alcance
social, de uso-fruto de todo o povo brasileiro.

Essa acessibilidade proporcionada pela Arqueologia Preventiva tem amparo legal


nos Artigos 7o e 8o da Portaria IPHAN 230/02, que garantem o desenvolvimento
de um programa de educação patrimonial, previsto no contrato entre
empreendedor e arqueólogo responsável pela pesquisa; a modernização,
ampliação, fortalecimento ou mesmo a construção de unidades museológicas nos
locais das pesquisas, respectivamente, com o objetivo de manter os bens
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arqueológicos na própria região. Esses procedimentos inovadores da pesquisa


arqueológica trouxeram obrigatoriamente uma ligação entre educadores,
antropólogos, museólogos e a comunidade local, uma vez que os programas de
educação patrimonial e musealização necessitam deste conhecimento transversal
para o seu bom termo.

Nesta nova perspectiva de pesquisa, estamos identificando um patrimônio


arqueológico que, na atual política neoliberal de enxugamento do Estado e,
conseqüentemente, à escassez de recursos para a pesquisa acadêmica, essa
Arqueologia Preventiva tornou-se uma alternativa legítima de construção do
conhecimento arqueológico. Entretanto, não podemos perder de vista que a
Arqueologia Preventiva (ou de contrato) deve ter o mesmo rigor científico
utilizado nas pesquisas arqueológicas acadêmicas. Quando falamos em rigor
científico, estamos falando, precisamente, num escopo teórico e metodológico
compatível com o programa de pesquisa executado. Asssim as pesquisas
arqueológicas preventivas agregaram aos estudos de impacto ambiental uma nova
perspectiva sobre a matriz de viabilidade dos empreendimentos a serem
implantados.

>> CVA - Certamente, a Arqueologia vem ganhando maior visibilidade com a


importância dos trabalhos que vem realizando ultimamente; para encerrar, você
poderia sintetizar estas últimas contribuições?

Rossano - No campo político, se, até pouco tempo, a Arqueologia era o patinho feio
das ciências sociais e desconhecida dentro dos órgãos governamentais como uma
disciplina, hoje, ela ocupa lugar de destaque na agenda governamental. Basta dizer
que iniciativas governamentais voltadas para o desenvolvimento, onde a
Arqueologia Preventina é exigida nos estudos de impacto ambiental, a exemplo dos
empreendimentos do PAC (Plano de Aceleramento do Crescimento), entre outros,
a preocupação com a Arqueologia tem sido discutida na Casa Civil da Presidência
da República, na procura de melhores resultados e compatibilização de
cronogramas de implantação dos empreendimentos estratégicos do governo
federal.

No campo acadêmico, podemos citar a implantação de dois cursos de graduação


em Arqueologia e Preservação do Patrimônio Cultural (na Universidade Católica de
Goiás e na Universidade Federal do Vale do S. Francisco); na pós-graduação, foram
criados cursos de especialização, mestrados e mestrados profissionalizantes (nas
Universidades Reunidas Integradas do Alto Uruguai e das Missões, URI-Erechim,
Universidade Católica de Goiás, Universidade Federal de Sergipe, Museu Nacional
da UFRJ e Museu de Arqueologia e Etnologia da USP em parceria com o IPHAN).

No campo das relações internacionais, a Sociedade de Arqueologia Brasileira, no


seu último congresso, em setembro/2007, realizou o I Congresso Internacional de
Arqueologia, em Florianópolis, com convidados da União Européia, da América
Latina, da África e da América do Norte. Além disso, o Brasil sediará, também em
Florianópolis, em 2011, o XVI Congresso Mundial da União Internacional de
Ciências Pré-históricas e Proto-históricas (ISPP/UNESCO).
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No campo social, podemos destacar a criação de diversas unidades museológicas e


educativas, a partir das iniciativas políticas nas pesquisas arqueológicas. Algumas
unidades museológicas, como a Casa de Memória de Marabá, constituíram-se em
verdadeiros centros arqueológicos de estudos, treinamento, preparação e visitação
para estudantes, professores e pesquisadores locais, ampliando, assim, na
comunidade local, o exercício dos direitos culturais. Assim também, o Núcleo de
estudos etnológicos e arqueológicos do Centro de Memória do Oeste, em Chapecó,
SC.

O desenvolvimento dessas iniciativas tem gerado a sensibilidade de outros


profissionais, com destaque para os profissionais da Educação, que, juntamente
com os arqueólogos, têm produzido livros e cartilhas, inclusive para cegos, para
escolas de 1o e 2o graus. Vale a pena informar que já há escolas de 1o grau que
adotam cartilhas de Arqueologia no seu programa. Enfim, todas essas iniciativas
vêm demonstrar o novo estatuto da ciência arqueológica no Brasil.

>> CVA - Obrigada pela entrevista, Rossano. Sucesso no seu trabalho! Gláucia.

Comunidade Virtual de Antropologia

Entrevistadora: Gláucia Buratto Rodrigues de Mello.

Disponível em: http://www.antropologia.com.br/entr/entr39.htm.

Acesso em: 1 jul. 2015.

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