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2016/2017
Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO
1ª Turma
CAPÍTULO I – GENERALIDADES
CAPÍTULO I – GENERALIDADES
Fala-se de objeto da relação jurídica para referir o objeto do direito subjetivo que
constitui o lado ativo da mesma relação. Ora, o direito subjetivo traduz-se num poder atribuído
a uma pessoa e este poder, bem como as faculdades que o integram, podem, quase sempre,
ser exercitados sobre um determinado quid, corpóreo ou incorpóreo. Assim, o objeto de uma
relação jurídica é precisamente o quid sobre que incidem os poderes do seu titular ativo.
Com efeito, a satisfação do interesse, que corresponde ao aspeto funcional do direito,
exige a subordinação de um bem ao poder do titular do direito. Esse bem, que constitui o
ponto de incidência do direito, está submetido aos poderes, à supremacia do titular ativo da
relação jurídica e é o objeto desta.
Em suma, objeto de relações jurídicas – de direitos subjetivos – é todo o quid, todo o
ente, todo o bem sobre que podem recair os direitos subjetivos.
Deste modo, compreende-se a distinção entre objeto e conteúdo, compreendendo-se
aquele como aquilo sobre que recaem os poderes do titular do direito e este como o conjunto
de poderes ou faculdades que o direito subjetivo comporta.
Os direitos potestativos têm objeto?
O exercício destes direitos não se traduz na incidência de quaisquer poderes ou de qualquer domínio
sobre um bem submetido a essa supremacia. Com efeito, trata-se de direitos a uma modificação jurídica. No
máximo, poderíamos entender que os direitos potestativos extintivos ou modificativos têm como objeto a
relação jurídica modificada ou extinta. De todo o modo, quanto aos direitos potestativos constitutivos onde é
que se pode divisar o objeto?
Não obstante, é evidente que os direitos potestativos têm um conteúdo.
A distinção exprime a diversidade entre aquilo que diretamente está submetido aos
poderes ideais que integram um direito subjetivo e aquilo que só de uma forma mediata ou
indireta, isto é, através de um elemento mediador, está submetido àqueles poderes.
No entanto, a distinção nem sempre se verifica.
Com efeito, a distinção verifica-se nas obrigações (direitos de crédito) de prestação de
coisa certa e determinada: o objeto imediato do direito do credor é o comportamento do
próprio devedor, isto é, a prestação, o ato de entrega da coisa; enquanto que o objeto mediato
é a própria coisa que deve ser entregue ao credor. No entanto, já não se verificará no caso:
dos direitos reais em que não há intermediário entre o titular do direito e a coisa, pelo que o
proprietário está em contacto direto com o objeto do seu direito; e das obrigações de
prestação de facto (positivo ou negativo).
Não obstante, interessa frisar que algumas soluções legais parecem ajustar-se à figura
dos direitos sobre direitos. A título de exemplo, note-se o penhor de direitos (arts. 679.º e
ss.).
VI. A própria pessoa;
(certas manifestações ou modos de ser físicos ou morais da pessoa)
Alguns autores contestam a legitimidade da figura dos direitos sobre a própria pessoa
(iura in se ipsum). Tal categoria seria: logicamente absurda, por nos levar a a distinguir no
homem duas pessoas, uma delas sujeito e a outra objeto dos seus direitos de
personalidade; e moralmente insustentável por levar ao reconhecimento da legitimidade
do suicídio, da automutilação, da escravidão consentida.
É inegável que a nossa lei, utilizando a expressão direitos de personalidade, protege
os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade
física ou moral e concretiza alguns direitos sobre certos aspetos da personalidade.
Ora, saber se se deve falar em direitos sobre certos modos de ser da pessoa ou antes
em posições jurídicas fundamentais do homem, que são o pressuposto de todos os
direitos, é um problema de construção dogmática, fundamentalmente teórico. Não
obstante, pode afirmar-se nada se opor à aplicação da categoria relação jurídica ao
enquadramento dessa matéria legal. E, sendo assim, pode sustentar-se a existência de
um direito sobre a própria pessoa. Com efeito, tal figura nem será: ilógica, pois o direito
subjetivo é um poder ideal da vontade e até o poder material da vontade humana não se
estende apenas ao mundo exterior, abrangendo a própria pessoa do ser humano que é o
sujeito dessa vontade; nem nos vinculará a consequência moralmente absurdas, pois tais
direitos devem ter-se como irrenunciáveis e insuscetíveis de limitação voluntária, quando
esta for contrária à ordem pública (art. 81.º).
Num sentido corrente e amplo – e de certo modo filosófico – coisa é tudo o que pode
ser pensado, ainda que não tenha existência real e presente. Num sentido físico, coisa é tudo
o que tem existência corpórea, quod tangi potest ou, pelo menos, é suscetível de ser captado
pelos sentidos.
Quanto, ao sentido jurídico de coisa, há que considerar o artigo 202.º do CC, cuja
definição de coisa reveste um significado puramente expositivo, de tipo manualístico e, nesse
plano, incorreto. Assim, podemos definir coisas em sentido jurídico como os bens (ou os
2. Noção de património1.
1 Esta noção distingue-se da esfera jurídica, na medida em que esta é a totalidade das relações jurídicas de que
uma pessoa é sujeito, abrangendo o património e os direitos e obrigações não avaliáveis em dinheiro (pessoais),
encabeçados na pessoa.
2 O único aspeto em que o património parece comportar-se como uma unidade é a sucessão hereditária, dada a
responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas hereditárias, embora dentro apenas das forças da herança, e dada
a existência de uma ação de petição de herança (art. 2075.º).
2.1.1. Herança.
A herança é o conjunto das relações jurídicas patrimoniais que, por força da morte de
um indivíduo, passam da titularidade deste para os herdeiros e legatários. Ora, as
características de uma plena autonomia patrimonial manifestam-se em dois aspetos.
Em primeiro lugar, na circunstância de a responsabilidade do herdeiro pelas dívidas
das herança não exceder o valor dos bens herdados, quer a herança seja aceite a benefício
de inventário, quer seja aceite pura e simplesmente (art. 2071.º). Com efeito, constata-se que
o herdeiro não responde pelas dívidas da herança para além das forças dos bens herdados
(não responde ultra vires hereditatis), mas o ónus da prova da insuficiência do ativo hereditário
cabe ao herdeiro e não aos credores na aceitação pura e simples, enquanto o ónus da prova
da existência de mais bens além dos inventariados cabe aos credores na aceitação a
benefício de inventário.
Depois, na circunstância de os credores da herança e os legatários gozarem de
preferência sobre os credores pessoais do herdeiro, durante os cinco anos subsequentes à
10
A sub-rogação real que foi expressa em brocardos romanistas (res succedit in loco rei;
pretium succedit in loco rei; res succedit in loco pretii) está consagrada na disciplina jurídica
da herança (artigo 2069.º/-a), b) e c), bem como nos artigos 692.º e 119.º/1.
11
12
1. Conceitos e classificação.
1.1. Noção de facto jurídico.
1.2. Classificação dos factos jurídicos.
2. Aquisição, modificação e extinção de relações jurídicas.
2.1. Aquisição de direitos.
2.1.1. Modalidades de aquisição de direitos.
2.1.1.1. Modalidades de aquisição derivada.
2.1.1.2. Aquisição derivada versus sucessão.
2.1.2. Importância da distinção entre aquisição derivada e aquisição originária.
2.1.2.1. Exceções à regra geral da aquisição derivada.
2.2. Modificação de direitos.
2.3. Extinção de direitos.
2.3.1. Prescrição e caducidade.
13
1. Conceitos e classificação.
3 Não se vê legitimidade nem interesse prático na distinção entre declaração de vontade ou negócios de
declaração, nos quais haveria um fim de notificação de uma vontade negocial, e atuações de vontade ou negócios
14
concordantes com o conteúdo da vontade das partes, tal como este é objetivamente
(de fora) apercebido. O comportamento de cada parte aparece exteriormente como
uma declaração visando certos resultados prático-empíricos, sob a tutela do
ordenamento jurídico, e os efeitos determinados pela lei são os correspondentes aos
resultados cuja intenção foi manifestada. Assim, os efeitos dos negócios jurídicos
produzem-se ex voluntate e não apenas ex lege.
• Simples atos Jurídicos ou atos jurídicos stricto sensu;
São factos voluntários cujos efeitos se produzem, mesmo que não tenham sido
previstos ou queridos pelos seus autores, embora, muitas vezes, haja concordância
entre a vontade destes e os efeitos. Todavia, não é necessária uma vontade de
produção dos efeitos correspondentes ao tipo de simples ato jurídico em causa para
essa eficácia se desencadear. Assim, os efeitos dos simples atos jurídicos produzem-
se ex lege e não ex voluntate4.
▪ Quase-negócios jurídicos ou atos jurídicos quase-negociais;
Traduzem-se na manifestação exterior de uma vontade.
▪ Operações jurídicas (atos materiais, atos reais ou atos exteriores).
Traduzem-se na efetivação ou realização de um resultado material ou
factual a que a lei liga determinados efeitos jurídicos.
de atuação, onde não haveria esse fim de notificação. Entendemos que as chamadas declarações de vontade são
simples atos jurídicos ou declarações de vontade tácitas.
4 Interpelação do devedor (art. 805.º/1); gestão de negócios (art. 464.º), notificação do devedor da cessão de
créditos (art. 583.º), fixação do domicílio voluntário (art. 82.º), cessão industrial na forma de união (art. 1333.º), ou
de especificação (art. 1336.º), ocupação de animais bravios ou de animais e coisas móveis perdidas (art. 1318.º),
descoberta de um tesouro (art. 1324.º), criação de uma obra artística, literária científica ou uma invenção industrial
(art.1303.º).
15
direito que não existia anteriormente, pelo que toda a constituição de um direito implica a sua
aquisição, dado não existirem direitos sem sujeito. Porém, o inverso já não se verifica, pois
nem toda a aquisição de direitos tem lugar em casos de surgimento ex novo de um direito.
5 São casos de aquisição originária a ocupação de coisas móveis (arts. 1318.º e ss.), a usucapião (arts. 1287.º e
ss.) e a aquisição de direitos de autor pela criação literária, artística ou científica. C ASTRO MENDES menciona outros
exemplos, como a acessão, que só é aquisição originária na hipótese de acessão natural, não o sendo já a acessão
industrial; esta será antes uma aquisição derivada por transmissão forçada, dado o sistema seguido na nossa lei
(art. 1333.º).
6 São casos de aquisição derivada a aquisição do direito de propriedade, ou e outro direito real, por força de um
contrato, a aquisição de um crédito ou de uma relação contratual por cessão, aquisição de direitos por sucessão
mortis causa, entre outros.
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um direito novo da mesma natureza e conteúdo do direito extinto. Não intercede pois qualquer
relação entre o adquirente e um titular anterior, mesmo que ele existisse. Por conseguinte, a
usucapião constitui um modo de aquisição originária e note-se que, quando se consuma esta
usucapião, extingue-se ou sofre redução o direito do proprietário anterior, que sempre terá
existido, pois de outro modo só poderia falar-se em ocupação – impossível para os imóveis,
que sempre têm dono. Ora, extingue-se quando o direito adquirido por usucapião é a
propriedade e sofre redução quando tal direito é apenas um direito de gozo (os de garantia
não podem adquirir-se desta forma).
Além do mais, quanto à aquisição derivada, dizer que COVIELLO faz depender a sua
verificação de dois elementos: primeiro, que a aquisição para uma pessoa tenha lugar ao
mesmo tempo em que se verifica a perda ou diminuição do direito noutra pessoa; segundo,
que a perda ou diminuição do direito numa pessoa seja dirigida a produzir a aquisição a favor
duma outra, de modo que a aquisição possa considerar-se um efeito daquela perda ou
diminuição.
Por fim, note-se que, ao passo que na aquisição derivada a preexistência do direito do
transmitente e a sua extinção subjetiva ou a sua redução constituem a causa da aquisição do
direito do adquirente, na aquisição originária a extinção ou redução do direito do titular anterior
(quando exista) constitui um simples antecedente cronológico da aquisição operada a favor
do novo titular. Este fenómeno produz-se em seguida ao outro, mas não por causa ou como
efeito do outro. A extinção ou redução do direito pré-existente é que será, ou poderá ser, um
efeito da aquisição.
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Exemplos:
O proprietário de um prédio que constitui uma servidão, ou outro direito real de
gozo ou de garantia a favor de outrem7. Além do mais, também o subcontrato, por
exemplo, sublocação (arts. 1060.º e ss.) e subempreitada (art. 1213.º), é uma
aquisição derivada constitutiva, pois um contratante concede a outro a possibilidade
de usar a posição contratual que para o primeiro resulte de um contrato principal, ao
qual este último continua ligado.
• Aquisição derivada restitutiva;
Tem em vista a hipótese de o titular de um direito real limitado se demitir dele,
unilateral ou contratualmente (a título gratuito ou oneroso), recuperando assim ipso
facto o proprietário a plenitude dos seus poderes, em virtude da conhecida elasticidade
ou força expansiva do direito de propriedade. Porventura, seria mais rigoroso falar-se
de aquisição originária restitutiva quando o titular do direito real se demite dele por ato
unilateral (renúncia verdadeira e própria). De qualquer maneira, qualifica-se de
restitutiva a aquisição porque ela vai repor as coisas no estado anterior à constituição
do direito.
7 Ninguém pode ter uma servidão sobre o seu próprio prédio (nemine res sua servit); e o mesmo se diga sobre
qualquer outro ius in re aliena.
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Por força destes institutos, devem ser inscritos, com o fim de lhes dar
publicidade, em livros existentes em repartições especiais, os diversos atos inerentes
a bens imóveis, a veículos automóveis ou aos restantes bens indicados, em particular
os atos de que resulte a aquisição de direitos reais sobre os mesmos bens.
No entanto, note-se que o registo não é meio de aquisição dos direitos, sendo
o ato plenamente eficaz inter partes, seus herdeiros ou representantes, mesmo na
falta de registo8. A consequência da falta de registo é, portanto, a ineficácia do ato em
relação a terceiros.
Por conseguinte, impõe-se a questão: quem são os terceiros para efeitos de
registo predial?
MANUEL DE ANDRADE definia terceiros para efeitos de registo predial como
sendo as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos
incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio e justificava essa
definição de uma forma convincente: trata-se fundamentalmente da ideia de que o
registo, dada a forma como está organizado, não pretende assegurar a existência
efetiva do direito da pessoa a favor de quem está registado o bem, mas só que a ter
ele existido ainda se conserva – ainda não foi transmitido a outra pessoa. O registo
não dá direitos, apenas os conserva. É só esta a dose de segurança que o registo
pode e visa fornecer e dela decorre, coerentemente, um conceito de terceiros nos
termos definidos.
Assim, compreendemos que o registo predial não se destina a realizar uma
proteção máxima da segurança na aquisição de direitos sobre imóveis, mas uma
proteção mais limitada: não a garantir que, se se adquire de quem tem o prédio
8 Salvo quanto a factos constitutivos de hipotecas, cuja eficácia, entre as próprias partes, depende da realização
de registo. O registo de hipotecas tem caráter constitutivo, enquanto o de outros direitos é meramente declarativo,
isto é, destina-se apenas a dar publicidade aos direitos que nascem, se transmitem, se modificam ou se extinguem
à margem do registo.
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registado em seu nome, se faz uma aquisição válida e firme, mas a assegurar que, se
o direito existiu na titularidade desta pessoa, então ela ainda o conserva9.
Esta garantia deve considerar-se plena, pelo que deve funcionar, sejam ambas
as aquisições onerosas ou gratuitas e sem que se deva admitir prova tendente a
demonstrar que o terceiro devia conhecer, ou conhecia, o ato anterior não inscrito, isto
é, sem que releve a boa ou a má fé subjetivas do terceiro. A segurança que se
pretende garantir ao comércio jurídico seria fortemente afetada, se o terceiro,
adquirente de quem tem um prédio registado a seu favor, ficasse exposto às delongas,
incertezas, gastos e, eventualmente, manobras inerentes a processos judiciais
tendentes a provar que ele conhecia uma alienação anterior. Acresce que só a
inoponibilidade de atos não registados a terceiros, mesmo que de má fé, motivará os
interessados a promover o registo, como é de interesse público. A aquisição tabular
(aquisição pelo registo) exige, portanto, apenas que o terceiro atue com base num
registo preexistente, desconforme com a realidade substantiva e que efetue o registo
a seu favor em primeiro lugar.
Por fim, note-se que, segundo a nova redação do artigo 5.º/4 do Código do
Registo Predial, “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido
de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Assim, note-se, ainda, que a
aquisição do terceiro não necessita, por outro lado, de resultar de um negócio jurídico
(embora os herdeiros, que subingressam na posição do de cujus, não sejam
considerados terceiros, nos termos do artigo 4.º/1 do CRP).
II. Da eventual inoponibilidade das nulidades e anulabilidades a terceiro de boa fé;
Por força do princípio nemo plus iuris, se A transmitiu, por negócio nulo ou
anulável um prédio a B e este, por sua vez, o transmitiu a C, declarado nulo ou anulado
o primeiro ato, o segundo seria também nulo e, consequentemente, C devia restituir o
prédio (resoluto iure dantis resolvitur et ius accipientis). Isto porque as nulidades e
anulações operam em face de terceiros e não só em face da contraparte (operam in
rem e não apenas in personam) – esta a solução que vinha consagrada no Código de
Seabra.
Diversa é a solução do atual Código Civil. Com efeito, aí se estabelece (art.
291.º) um regime de inoponibilidade a terceiros de boa fé, adquirentes a título oneroso,
das nulidades e anulações, desde que a ação tendente à declaração de nulidade ou à
9 Não obstante, deve entender-se que, em conformidade com o STJ, o ofendido num acidente de viação pode e
deve demandar o atual proprietário do veículo, mesmo que a aquisição não tenha sido registada. É que o ofendido
não é, em face do conceito de terceiros definido, um terceiro a quem o ato seja inoponível por falta de registo. O
ato de compra não registado já seria porém inoponível a quem tivesse posteriormente adquirido do vendedor um
direito real sobre o veículo e o tivesse registado antes do registo da primeira compra.
21
anulação não seja proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão
do negócio. Assim, realiza-se a proteção do terceiro de boa fé, adquirente a non
domino, sendo os direitos deste sacrificados, por força da invalidade do negócio donde
resultaram os direitos do seu transmitente, apenas na hipótese de este ser invalidado
nos três anos subsequente à sua realização. Com efeito, é uma solução semelhante
à que se estabelece no artigo 243.º para a simulação, embora conferindo uma
proteção menos completa ao terceiro de boa fé. Para os efeitos do artigo 291.º, é
considerado de boa fé o terceiro adquirente que, no momento da aquisição (mala fides
superveniens non nocet), desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.
Por fim, torna-se óbvio como do artigo 291.º/1, por exigência da proteção da
confiança dos terceiros e dos interesses do comércio jurídico, resulta uma exceção à
regra geral da aquisição derivada10.
III. Da proteção de terceiros de boa fé no caso especial da simulação;
Os negócios simulados são nulos e, como tal, não produzem quaisquer efeitos.
Se o simulado adquirente de um prédio, porém, vender ou doar, por ato verdadeiro, o
mesmo prédio a um terceiro e este ignorar a simulação, o terceiro adquire validamente
esse objeto (art. 243.º).
Ora, dado que o vendedor ou doador tinha adquirido a propriedade por ato
simulado e, portanto, nulo, o terceiro adquire de quem não era proprietário, ao invés
do que prescreve o princípio nemo plus iuris.
10 Outras exceções: protegendo-se o terceiro adquirente de boa fé a non domino, consta do artigo 2076.º/2,
protegendo-se o terceiro que haja adquirido do herdeiro aparente, por título oneroso e de boa fé – acresce à boa
fé e à onerosidade da aquisição a qualidade de herdeiro aparente do alienante, isto é, a existência de uma
convicção vulgarizada, de uma crença errónea, positiva e generalizada, sobre a qualidade de herdeiro (error
communis facit ius); e ainda o artigo 1301.º que contém um regime especial de proteção ao terceiro de boa fé
adquirente a non domino, sem, no entanto, chegar a configurar uma exceção ao princípio geral de aquisição
derivada.
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11 A manutenção da identidade do direito – o tratar-se de uma sucessão e não de uma novação – manifesta-se em
várias soluções jurídicas: manutenção do mesmo prazo prescricional, contagem do tempo já decorrido para efeitos
de prescrição, possibilidade de opor ao credor as mesmas exceções, transmissão dos acessórios do direito,
manutenção das garantias, manutenção do efeito de uma cláusula de sujeição a árbitros dos litígios referentes à
relação em causa.
23
12 A suspensão tem o efeito de suster a contagem do tempo da prescrição, não se incluindo no prazo desta o
espaço de tempo durante o qual ocorreu a suspensão. O vencimento do prazo é, assim, prorrogado pelo tempo
em que a prescrição esteve suspensa. Por sua vez, a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente,
começando a correr novo prazo para a prescrição (art. 326.º).
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26
Os negócios jurídicos são atos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de
vontade, dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob
tutela do direito, determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos jurídicos
conformes à intenção manifestada pelo declarante ou declarantes.
Ora, o que é verdadeiramente constitutivo do negócio é o comportamento declarativo
– a existência de um comportamento que, exteriormente observado, apareça como
manifestação de uma vontade de certos efeitos práticos sob a sanção do ordenamento
jurídico. Claro que, normalmente, esta aparência corresponde a um conteúdo volitivo real e
essa coincidência permite ao negócio jurídico realizar a sua função de meio de realização da
autonomia da vontade. Tal coincidência não é, todavia, necessária e, em caso de dissídio
entre vontade real e declaração, prevalece, quase sem restrições, o elemento declarativo.
Por fim, note-se que a importância do negócio jurídico manifesta-se na circunstância
de esta figura ser um meio de auto-ordenação das relações jurídicas de cada sujeito de direito.
27
se aplicar, quando uma vontade vontade real contrária foi manifestada, não bastando
provar-se que as partes não pensaram no ponto ou até provavelmente não teriam
querido aquele regime. Correspondem algumas à vontade normal das partes, mas não
à vontade real tácita – outras traduzem um critério de justiça do legislador que este
não considera com suficiente acuidade para ser afirmado imperativamente, mas faz
valer, aproveitando-se do silêncio das partes.
II. Teoria dos efeitos práticos;
Para esta doutrina, a teoria dos efeitos jurídicos não é realista. As partes
manifestam apenas uma vontade de efeitos práticos ou empíricos, normalmente
económicos ou sociais, sem caráter ilícito. A estes efeitos práticos ou empíricos
manifestados, faria a lei corresponder efeitos jurídicos concordantes.
Também esta conceção é inaceitável. Tal como define o negócio jurídico, este
não se distingue dos compromissos ou convenções celebrados sob o império de
outros ordenamentos normativos.
III. Teoria dos efeitos prático-jurídicos13.
Os autores dos negócios jurídicos visam certos resultados práticos ou materiais
e querem realizá-los por via jurídica. Têm, pois, também uma vontade de efeitos
jurídicos. A vontade dirigida a efeitos práticos não é a única nem é a decisiva – decisiva
para existir um negócio é a vontade de os efeitos práticos queridos serem
juridicamente vinculativos, a vontade de se gerarem efeitos jurídicos, nomeadamente,
deveres jurídicos, correspondentes aos efeitos práticos. Há uma intenção dirigida a
um determinado efeito económico juridicamente garantidos.
Simplesmente, não se trata de uma representação completa dos efeitos
jurídicos correspondentes àquela vontade de efeitos práticos – esses efeitos jurídicos
completos serão determinados pela lei.
Basta, portanto, uma representação global prática – de profanos – dos efeitos
jurídicos imediatos e fundamentais do negócio.
Por falta de intenção de efeitos jurídicos nestes termos, distinguem-se os
negócios jurídicos dos chamados negócios de pura obsequiosidade. Estes são
promessas ou combinações da vida social, às quais é estranho o intuito de criar,
modificar ou extinguir um vínculo jurídico.
No mesmo sentido, a falta de vontade de efeitos jurídicos distingue, igualmente,
os negócios jurídicos dos chamados meros acordos ou agreements, ou ainda
“gentlemen’s agreements”. Estas convenções são combinações sobre matéria que é
13 Esta teoria, bastando-se com a volição dos efeitos jurídicos na sua consideração prática, com uma mera
representação de profanos, foi defendida por MANUEL DE ANDRADE e ORLANDO DE CARVALHO.
28
Corre uma tradicional classificação tripartida dos elementos dos negócios jurídicos. É a
tripartição em elementos essenciais (essentialia negotii), elementos naturais (naturalia negotii)
e elementos acidentais (accidentalia negotii).
I. Elementos essenciais;
Rigorosamente, elementos do negócio deveriam ser as realidades sem as
quais o negócio não chegaria sequer a ter existência material – não chegaria sequer
a constituir-se. Nesta perspetiva, elementos do negócio seriam a declaração, os
sujeitos e o conteúdo.
Porém, sendo o negócio jurídico um ato que só desempenha a sua função na
medida em que for válido, não vemos razão para afastar a sistematização tradicional
que considera elementos essenciais de todo e qualquer negócio jurídico os requisitos
ou condições gerais de validade de qualquer negócio. São eles a capacidade das
partes (e a legitimidade, quando a sua falta implique a invalidade e não apenas a
ineficácia), a declaração de vontade sem anomalias e a idoneidade do objeto.
Pode, igualmente, falar-se de elementos essenciais no sentido de elementos
essenciais de cada negócio típico/nominado. Trata-se, agora, das cláusulas que
contradistinguem um certo tipo negocial dos restantes tipos. São as características
próprias de cada modalidade negocial, que a separam dos tipos vizinhos.
II. Elementos naturais;
São os efeitos negociais derivados de disposições legais supletivas. Não é
necessário que as partes configurem qualquer cláusula para a produção destes
efeitos, podendo, todavia, ser excluídos por estipulação adrede formulada.
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Sabemos, já, que na disciplina dos vários negócios de tipo obrigacional abunda
o ius dispositivum (v.g.: artigos 964.º, 885.º e 1030.º), enquanto que os negócios
familiares pessoais contêm na sua regulamentação quase somente ius cogens.
III. Elementos acidentais;
São as cláusulas acessórias dos negócios jurídicos. Trata-se das estipulações
que não caracterizam o tipo negocial em abstrato, mas se tornam imprescindíveis para
que o negócio concreto produza os efeitos a que elas tendem.
14 Como resulta da respetiva noção, esta distinção pode ser reportada também à própria declaração negocial, em
si mesma.
30
dirigida e levada ao conhecimento de certa pessoa, enquanto nos segundos basta a emissão
da declaração, sem ser necessário comunicá-la a quem quer que seja.
São exemplos de negócios jurídicos unilaterais: testamento; renúncia a certos direitos (servidão,
hipoteca, consignação de rendimentos, prescrição), mas não a remissão de créditos; promessa de cumprimento
e reconhecimento de dívida; promessa pública; confirmação dos negócios anuláveis; ratificação dos negócios
ineficazes; revogação do mandato; revogação dum contrato a favor de terceiro, enquanto o terceiro não
manifestar a sua adesão ou enquanto o promissário for vivo; declaração de nomeação no contrato para pessoa
a nomear; denúncia do arrendamento; ato de instituição das fundações; aceitação ou repúdio da herança.
Não são receptícios: o testamento, o ato de instituição das fundações, a promessa pública, a
aceitação e o repúdio da herança.
Quanto às renúncias a direitos reais limitados ou à prescrição e confirmação, porém, é discutida a sua
natureza receptícia ou não receptícia; quanto à confirmação, uma corrente doutrinal italiana (B ARBERO, FERRARA)
qualifica-a como negócio receptício, mas MANUEL DE ANDRADE deixava o problema em dúvida. Parece que a
melhor solução é a que entende estarmos, nos dois casos, perante negócios não receptícios. Com efeito, desde
logo, as renúncias unilaterais só reflexamente produzem efeitos na esfera de terceiros. Mas, sobretudo, parece
decisiva a ideia de que não se deve deixar influenciar a solução de uma declaração negocial unilateral pela
circunstância de ser, obviamente, necessário o conhecimento da declaração, para o destinatários dos seus
efeitos a poder invocar. O problema põe-se justamente para as hipóteses em que, não sendo comunicada a
declaração negocial ao beneficiário dos seus efeitos, este vem a ter conhecimento dela.
Ora, dado que não há qualquer interesse que legitime a exigência da comunicação, parece que ambos
os tipos negociais – renúncia e conformação – devem ser qualificados como negócios unilaterais não
receptícios.
31
801.º/2 e resultando ex art. 808.º), pode ter lugar também em alguns contratos unilaterais (art.
1140.º - resolução do comodato; art. 1150.º - mútuo oneroso).
Os autores referem também a categoria dos contratos bilaterais imperfeitos. Nestes,
há inicialmente apenas obrigações para uma das partes, surgindo eventualmente mais tarde
obrigações para a outra parte, em virtude do cumprimento das primeiras e em dados termos.
Não tem lugar nos contratos bilaterais imperfeitos a condição resolutiva tácita, nem a exceção
de não cumprimento do contrato.
Exemplos: mandato (arts. 1157.º, 1158.º, 1161.º, 1167.º); depósito (arts. 1185.º,
1186.º, 1187.º; 1196.º, 1199.º).
O mandatário e o depositário não beneficiam da condição resolutiva tácita, nem a lei
lhes dá qualquer faculdade de resolução, pelo facto de não serem reembolsados das
despesas feitas; também não podem invocar a exceção de não cumprimento do contrato.
Claro que nos referimos ao mandato e ao depósito gratuitos15.
15 A exceção de não cumprimento do contrato (exceptio non adimpleti contractus) consta do artigo 428.º e é a
aplicação do velho brocardo inadimplenti non est adimplentum. O mandatário e o depositário, não podendo deduzir
a exceção de não cumprimento do contrato, podem, todavia, invocar, verificados os pressupostos respetivos, o
direito de retenção (art. 754.º). O direito de retenção pode, porém, diversamente da exceptio non adimpleti
contractus, ser excluído se a outra parte prestar caução suficiente.
32
negócios fossem admitidos, não poderiam considerar-se negócios mortis causa puros, pois o
seu caráter contratual forçosamente exigiria a sua irrevogabilidade e, portanto, produziriam
logo inter vivos efeitos vinculativos.
Quanto às doações por morte, a lei, proibindo-as (art. 946.º), estabelece, contudo, que
serão havidas como disposições testamentárias (portanto, serão livremente revogáveis), se
tiverem sido observadas as formalidades dos testamentos (art. 946.º/2). Tais doações não
têm, assim, autonomia em relação aos testamentos, salvo o aspeto formal de intervir nelas
uma aceitação, e são, portanto, negócios mortis causa.
No entanto, note-se que regra de proibição dos pactos sucessórios comporta
exceções, pelo que o Código considera lícitas certas disposições por morte feitas em
convenção antenupcial. Ora, tais convenções podem ser fundamentalmente de dois tipos.
Em primeiro lugar, a instituição contratual de herdeiro ou legatário em favor de
qualquer dos esposados, feita pelo outro esposado ou por terceiro (art. 1700.º/1-a)). As
disposições a favor dos esposados, feitas por terceiro ou pelo outro esposado, são, sob o
ponto de vista da presente classificação, negócios híbridos ou mistos. Têm características de
negócio mortis causa, pois só se verifica a transferência dos bens para o instituído depois da
morte do disponente; por outro lado, porém, restringem ao disponente os seus poderes de
disposição, pois este não pode revogá-los unilateralmente depois da aceitação, nem
prejudicar o beneficiário por atos gratuitos de disposição (art. 1701.º), o que constitui um efeito
inter vivos do ato.
Em segundo lugar, a instituição contratual de herdeiro ou legatário em favor de
terceiros, feita por qualquer dos esposados (art. 1700.º/1-b)). Quanto às disposições dos
esposados a favor de terceiros: serão livremente revogáveis como as disposições
testamentárias, isto é, revestirão a natureza de negócios mortis causa? Importa distinguir duas
hipóteses. Se o terceiro não interveio no ato como aceitante, prescreve-se que a disposição
tem valor meramente testamentário (art. 1704.º), sendo, portanto, dada a sua revogabilidade,
um negócio mortis causa. Se o terceiro interveio na convenção antenupcial como aceitante, a
disposição não é livremente revogável, estando sujeita ao regime das disposições entre
esposados (art. 1705.º), pelo que se trata de um negócio híbrido.
Por fim, note-se que o CC faz ainda uma referência expressa às doações por morte
para casamento, que são doações feitas em vista de um casamento a um dos esposados pelo
outro ou por terceiro (art. 1755.º/2). Trata-se de uma manifestação particular dos pactos
sucessórios previstos no artigo 1700.º/1-a). Em conformidade com esta sua natureza,
estabelece-se que estão sujeitas ao regime desses pactos, em particular no que toca às
restrições impostas à livre disposição dos seus bens pelo doador, e exige-se, igualmente, que
sejam feitas na convenção antenupcial. Tratar-se-á, portanto, igualmente de negócios
híbridos – que, aliás, comportam uma exceção à regra do artigo 2181.º.
33
16 Nota bene: para o casamento exigem, quer o ordenamento canónico, quer a lei civil, uma cerimónia: a cerimónia
da celebração.
34
Por fim, note-se, ainda, que a renúncia a certos direitos, como o de preferência, não é
um negócio formal e o mesmo se passa com a remissão de créditos.
35
17 Mais longe, ia VAZ SERRA para quem tal conversão não seria necessária, admitindo-se, em nome do princípio
da liberdade negocial, um contrato consensual de mútuo, como negócio atípico.
36
celebrar o negócio, mas não podendo fixar-lhe livremente o conteúdo, nem podendo
celebrar contratos diferentes dos previstos na lei.
No tocante aos negócios familiares patrimoniais (convenções antenupciais),
existe, com alguma largueza, liberdade de convenção (art. 1698.º), sofrendo embora
restrições (arts. 1699.º e 1714.º).
IV. Negócios sucessórios.
Quanto aos negócios sucessórios, este princípio sobre importantes restrições,
algumas resultantes de normas imperativas do direito das sucessões.
18 A distinção entre os negócios fora do comércio jurídico, como serão, genericamente, os negócios pessoais e os
negócios mortis causa, e os negócios do comércio jurídico baseia-se no facto de o tráfico jurídico se processar
fundamentalmente através destes últimos, pelo que merece consideração o interesse da respetiva segurança, e
não é admissível um critério menos objetivado na resolução de questões como a da interpretação e das faltas e
vícios da vontade.
37
negócios jurídicos, porém, o direito não isola o seu conteúdo da respetiva causa – são
negócios causais19.
19 Para um caso em que se presume, até prova em contrário, a existência de causa, o artigo 458.º.
20 Mas não necessariamente: a atribuição patrimonial pode traduzir-se na produção de um efeito jurídico, como
por exemplo, a transferência ou constituição de um direito real, que não implique um ato material ou prestação.
38
sem um sacrifício correspondente. Com efeito, nos negócios gratuitos cria-se – e há acordo
das partes sobre este ponto – uma vantagem patrimonial para um dos sujeitos sem nenhum
equivalente. O ato é a título gratuito quando for realizado com uma particular intenção ou
causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte.
Ora, conhecemos casos típicos de negócios onerosos, como seja o arrendamento, e
casos típicos de negócios gratuitos, como o depósito ou o mandato. Porém, por vezes, as
partes celebram um contrato misto, recorrendo a um tipo de negócio oneroso, mas fixando o
seu conteúdo com intenção liberal – é o negotium mixtum cum donatione, em que as partes
obtém, por exemplo, através de uma compra e venda por um preço baixo e intenção de
liberalidade, resultados idênticos aos visados com uma doação. Além do mais, ao lado dos
negócios gratuitos ou onerosos típicos, existem certas figuras negociais que são um esquema
negocial genérico, suscetível de revestir várias formas concreta e, consequentemente,
apresentar-se como onerosos ou gratuitos, como a cessão de créditos ou a assunção de
dívida.
Por fim, note-se que é possível a existência de contratos unilaterais onerosos (art.
1145.º). A questão: como se explica esta não coincidência entre os contratos onerosos e os
contratos bilaterais? É que, nos contratos unilaterais onerosos, a correspetividade estabelece-
se não entre duas obrigações – só há obrigações para um dos lados, visto que são contratos
reais –, mas entre duas atribuições patrimoniais que consistem numa prestação
contemporânea da formação do negócio (a entrega de uma soma em dinheiro para ser
utilizada) e numa obrigação (a de restituir o capital e pagar os juros). No Código de Seabra,
designava-se este contrato como contrato de usura. Ora, o atual Código designa o mútuo para
cuja retribuição foram convencionados juros por mútuo oneroso (art. 1145.º), reservando as
designações de usura e de negócio usurário para os negócios jurídicos em que alguém,
aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obteve deste a promessa de
concessão de benefícios excessivos ou injustificados (arts. 282.º, 283.º e 284.º). Quanto ao
mútuo, há uma disposição especial qualificando-o de usurário, se forem estipulados juros
anuais que excedam os juros legais de 3 ou 5 por cento, conforme exista ou não garantia real
(art. 1146.º).
39
40
Assim, são exemplos: a parceria pecuária (art. 1121.º); certas formas de sociedade; o
contrato de consignação, nos termos do qual uma das partes remete à outra tantas unidades
de certa mercadoria, para que as venda, com o direito a uma participação nos lucros e a
obrigação de restituir as unidades não vendidas.
41
concluir, em casos que envolvam maiores riscos, negócios altamente prejudiciais aos seus
próprios interesses.
Ora, a consideração, em ambos os casos, onde a lei opera com a dicotomia
administração/disposição, da ratio legis conduz à conclusão de os atos de mera administração
ou de ordinária administração serem os correspondentes a uma gestão comedida e limitada,
donde estão afastados os atos arriscados, suscetíveis de proporcionar grandes lucros, mas
também causa prejuízos elevados. São os atos correspondentes a uma atuação prudente,
dirigida a manter o património e a aproveitar as suas virtualidades normais de
desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportam risco de grandes
quedas. Ao invés, atos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do património
administrado, afetam a sua substância, alteram a forma ou a composição do capital
administrado, atingem o fundo, a raiz, o casco dos bens. São atos que ultrapassam aqueles
parâmetros de atuação correspondente a uma gestão de prudência e comedimento, sem
riscos.
Concretizando, acompanhamos MANUEL DE ANDRADE...
É doutrina pacífica que entra na mera administração tudo quanto diga respeito a: prover à conservação
dos bens do administrado; promover a sua frutificação normal. Por outro lado, é também seguro que não pertencem
à mera administração – sendo atos de disposição – os negócios que alteram a própria substância do património
do administrado, que importem a substituição de uns bens por outros, que afetem o capital administrado, pondo-o
em risco, por importarem um novo e diverso investimento desse capital.
No entanto, as dúvidas começam quando se trate de promover uma frutificação anormal (excecional) ou
o melhoramento do património administrado, ainda mesmo à custa dos rendimentos obtidos.
Antes de mais, vejamos as categorias de negócios que ficam indicadas: atos de conservação dos bens
administrados; atos tendentes a prover à frutificação normal; negócios tendentes a prover à frutificação anormal;
e atos tendentes a prover ao melhoramento do património administrado.
A questão: serão consentidos aos meros administradores os negócios destinados a prover à frutificação
anómala ou ao melhoramento do património administrado? A doutrina tende para a solução afirmativa (aliás, não
costumando admitir-se a solução intermédia – frutificação anormal). A nós parece-nos que esta orientação só
poderá aceitar-se quando as despesas com os apontados negócios sejam feitas à custa dos rendimentos e quando
os melhoramentos não consistem em novas aquisições de bens, mas em quaisquer obras nos bens administrados.
Todavia, não temos por inteiramente líquido que mesmo nestas condições o mero administrador – salvo indicações
particulares em contrário, tiradas da lei para determinadas figuras de administradores – possa praticar tais
negócios; que ele possa, em suma, ir além da frutificação normal. A razão está na ideia de que o mero
administrador, por falta de interesse pessoal ou das aptidões normais, tem de confinar-se nos limites de uma
gestão muito comedida e prudente. É incumbido apenas, na gestão de bens administrados, de deferir ao
expediente dessa gestão; de fazer o trivial.
Importa ainda frisar três pontos: os próprios atos de conservação e frutificação normal
só são atos de administração ordinária se não forem financiados através da alienação de
partes do capital administrado, mas através do rendimento, eventualmente, acumulado; nem
todas as alienações são atos de disposição, só o sendo as alienações de elementos
componentes do capital – já não são atos de disposição as alienações dos frutos do
42
património ou as que se integrem nas finalidades assinaladas à mera administração; por fim,
rigorosamente, as doações não são atos de administração nem de disposição, pois não são
atos de gestão de um património; daí que não possam ser realizadas pelo mero administrador
mesmo com consentimento das entidades competentes para autorizarem os atos de
disposição que interessam ao património administrado.
Por último, quanto ao modo como são praticados os atos de disposição que interessa
ao património administrado, importa dizer que: nos casos de administração legal de bens
alheios, ou de bens próprios e alheios, ou até de bens próprios, a lei provê, através de
disposições inseridas nos mesmos institutos em que se inserem as normas que impõem o
regime de mera administração; nos casos em que os poderes do administrador de bens
alheios advêm da vontade do administrado e não seja possível obter poderes especiais do
constituinte, parece poderem praticar-se atos de disposição com autorização judicial.
43
1. Remissão.
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45
46
declaratário e do comércio jurídico, por outro. Ora, o direito civil conhece hoje um estádio de
evolução que põe na primeira linha a proteção das expetativas dos declaratários e da
segurança do comércio jurídico, dando assim relevância à aparência e uma exigência de
cognoscibilidade, a expensas de uma vontade real e psicológica.
Por conseguinte, não corresponderia mais aos dados do sistema definir o negócio
jurídico, nos termos tradicionais, como declaração ou manifestação de vontade. Tal definição
não capta a essência do fenómeno negocial, pois faz crer numa omnipotência da vontade
individual no campo da autonomia privada e não põe em relevo os limites que, no sentido da
sua cognoscibilidade no ambiente social, a ordem jurídica impõe à vontade para esta poder
adquirir relevância.
Na verdade, uma conceção voluntarística não consegue explicar como é que, por
exemplo, um negócio celebrado por um sujeito incapaz de querer e entender é válido, se a
incapacidade não foi conhecida ou cognoscível (art. 257.º). Com efeito, soluções como estas
vertidas no nosso CC, demonstram que a essência do negócio não está numa intenção
psicológica nem num meio (declaração, manifestação) de a exteriorizar, ma num
comportamento objetivo, exterior, social; algo que, todavia, não se confunde com um
formalismo ritual que, normalmente, tem ou teve subjacente um elemento subjetivo, uma
vontade, por parte do seu autor, coincidente com o significado que assume na vida de relação.
Daí que MANUEL DE ANDRADE, falando ainda de declaração de vontade, esclarecesse
que nada mais era necessário do que uma aparência de vontade. Pelas mesmas razões,
outros autores se pronunciam num sentido ainda mais objetivista. Assim, BETTI, para quem a
essência do negócio jurídico reside num comportamento (declaração) cognoscível de
conteúdo precetivo, sito é, contendo um autorregulamento de interesses22, ou R.
SCONAMIGLIO, que o define como ato social de autonomia privada, como tal, juridicamente
relevante.
Por fim, note-se que o CC não toma partido, diretamente; mas é manifesto o intuito do
legislador de se não comprometer, sequer ao nível terminológico, com as conceções
voluntarísticas, pois não emprega a expressão “declaração de vontade”, falando antes em
“declaração negocial”. Contudo, repare-se que, na regulamentação do negócio jurídico, não
foi negada, em homenagem ao valor social da aparência, toda e qualquer relevância à
22 Definindo o conteúdo do negócio como estatuição, disposição ou preceito de autonomia privada, parece
continuar a dar-se relevo a um elemento individual ou subjetivo, talvez com outro nome, mas, no fundo, nada
diferente da vontade. BETTI supera a objeção, esclarecendo que a vontade é sempre alguma coisa de interno,
inseparável da pessoa, enquanto o preceito é alguma coisa de posto em relação a esferas de interesses
interferentes – é uma manifestação expressa exteriormente no ambiente social. Com efeito, não é concebível uma
vontade que não tenha sido querida, mas é perfeitamente concebível que um comando ou um preceito surjam,
sem vontade por parte do seu autor de ficar vinculado ou sem conhecimento da matéria do preceito.
47
vontade psicológica. Com efeito, entendeu-se que, para certos problemas, seria excessivo o
sacrifício da situação do declarante (v.g.: art. 246.º); por outro lado, a relevância objetiva do
comportamento declarativo, a expensas da vontade real, deve encontrar os seus limites nas
próprias razões que a determinam e assim não deve verificar-se, se efetivamente não houve
uma confiança do declaratário nesse sentido objetivo.
48
I. A vontade de ação;
Consiste na voluntariedade (consciência e intenção) do comportamento
declarativo. Com efeito, pode faltar a vontade de ação, por exemplo, se uma pessoa,
por ato reflexo ou distraidamente, sem se aperceber do facto, faz um gesto e este
objetivamente aparece como uma declaração negocial (v.g.: aceitação de uma
proposta). É igualmente o caso da coação ou violência absoluta (coação física).
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Em suma, constatámos poder verificar-se uma falta de vontade de ação, uma falta de
vontade de declaração e um desvio na vontade negocial. Em todos estes casos surge um
dissídio entre a vontade e a declaração. Além do mais, note-se que tal divergência pode
também resultar de um desvio na vontade de ação (lapsus linguae ou lapsus calami), por
exemplo, o declarante quer escrever Quinta do Mosteiro e, por lapso, engana-se ao escrever
ou falar e sai-lhe a fórmula Quinta da Capela.
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23 As declarações expressas não dispensam, contudo, uma atividade interpretativa (falsa demonstratio non nocet),
através das circunstâncias concomitantes, através do enquadramento global da declaração. Se a conclusão do
recetor da declaração, segundo os critérios interpretativos legais, é num determinado sentido, é indiferente que a
declaração seja expressa ou tácita.
24 Por exemplo: o pagamento pelo inquilino de rendas antecipadas é uma tácita declaração de prorrogação do
contrato para o tempo a que elas respeitam.
25 Por exemplo: dispor o herdeiro de um bem da herança através de uma venda, troca ou doação é uma declaração
expressa de venda, troca ou doação e uma declaração tácita de aceitação da herança (art. 2056.º).
51
Trata-se de saber se o silêncio – entendido não apenas como um “nada dizer”, mas
como um “nada fazer”, uma total omissão26 - pode considerar-se um facto concludente
(declaração tácita) no sentido da aceitação de propostas negociais. Quando estamos, então,
perante casos de “silêncio eloquente”?
O CC resolve o problema no artigo 218.º, estabelecendo que o silêncio não vale como
declaração negocial, a não ser que esse valor lhe seja atribuído por lei, convenção ou uso.
Assim, repudia-se o brocardo do direito canónico “qui tacet consentire videtur”, mesmo que o
sujeito pudesse e devesse falar, pois a atribuição ao silêncio do valor de consenso negocial
não é, como regra geral, razoável.
Ora, casos em que a lei atribui ao silêncio a natureza de facto concludente, no sentido
da aceitação da proposta negocial, são, por exemplo, os dos artigos 923.º/2, 1054.º e 1163.º.
Em certos casos, a lei fixa ou concede aos particulares a faculdade de fixar prazos para a
prática dos atos, findos os quais se verifica um efeito que poderia também ter lugar por
negócio jurídico – é o caso do prazo para ratificar o negócio representativo, previsto no artigo
268.º/3 do CC. Com efeito, note-se que se o valor da declaração negocial é atribuído ao
silêncio por uma anterior convenção das partes, pode dizer-se que estamos perante uma
declaração expressa.
Neste sentido, entendemos que se trata da solução mais razoável, já que o silêncio é,
em si mesmo, insignificativo e quem cala pode comportar-se desse modo pelas mais diversas
causas, pelo que deve considerar-se irrelevante – sem querer dizer sim nem não – um
comportamento omissivo. De outro modo, ao enviar a outrem uma proposta de contrato
estaria a criar-se-lhe um ónus de responder, a fim de evitar a conclusão do negócio, o que
viola a ideia de autonomia das pessoas. Por outro lado, a inconveniência de tal regime poderia
ainda detetar-se se tivermos em conta que poderiam captar-se aceitações negociais a outrem,
através do silêncio, aproveitando-se os excessivos afazeres, a distração, a negligência, em
suma, quaisquer circunstâncias que tornassem difícil ou impossível responder.
Do mesmo modo, afasta-se a ideia de que o silêncio vale declaração quando o
silenciante podia e devia falar (qui tacet consentire videtur ubi loqui potuit ac debuit). Antes de
mais, não seria isento de dúvidas quando é que alguém pode e deve falar. Acresce que, se
alguém tinha o dever de falar, não deve concluir-se do seu silêncio um certo sentido negocial,
ma apenas a verificação de um incumprimento do dever de falar, suscetível de fazer incorrer
26 Se se propõe a certa pessoa um objeto consumível por um certo preço e esta, sem nada dizer, o consome, não
estamos perante um caso de silêncio declarativo, mas de declaração tácita positiva (o consumo do objeto é um
facto concludente, ativo ou positivo, e não omissivo).
52
Nota bene...
O CC nada diz quanto às mercadorias recebidas, quando porventura elas forem remetidas com a
proposta. A entrega ou envio de bens que não tenham sido encomendados ou que não constituam o
cumprimento de qualquer contrato válido, acompanhada de um pedido de pagamento, é, porém, proibida (como
venda forçada), pelo menos quando o destinatário for um consumidor (isto é, quando os bens se não
enquadrarem na atividade profissional do destinatário). A ausência de resposta do destinatário não vale como
consentimento e o destinatário não fica obrigado à devolução ou pagamento dos bens ou serviços, podendo
mesmo conservá-los a título gratuito; se, não obstante, devolver o bem, tem direito a ser reembolsado das
despesas decorrentes da devolução, no prazo de 30 dias a contar da data em que a tenha efetuado.
Pelo menos quando o destinatário for um consumidor, não existe, hoje, qualquer obrigação de
restituição dos bens, tendo perdido também sentido a discussão em torno da existência de uma sua obrigação
de conservação, ou de abstenção de deteriorações, bem como dos seus exatos termos.
8. Protesto e reserva.
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Emitido certo comportamento declarativo, pode o seu autor recear que lhe seja
imputado, por interpretação, um certo sentido. Para o impedir, o declarante afirma
abertamente não ser esse o seu intuito.
A esta contradeclaração dá-se o nome de protesto. O protesto tem o nome de reserva,
quando consiste na declaração de que um certo comportamento não significa renúncia a um
direito próprio, ou reconhecimento de um direito alheio. Por exemplo, o mutuante recebe certa
importância, a título de juros, mas, julgando ter deito a receber mais, declara não prescindir
do excedente.
Afirma-se comummente que o protesto não vale quando o comportamento declarativo
só consente a interpretação contra a qual o declarante se quer acautelar. É o pensamento
expresso no aforismo protestatio facto contraria nihil relevet (por exemplo, a declaração de
não se querer ratificar um negócio, ao mesmo tempo que se utiliza ou consome a prestação
dele derivada). Porém, a validade deste aforismo não tem um alcance absoluto.
O formalismo negocial tem as seguintes vantagens: assegura uma mais elevada dose
de reflexão das partes, pois, nos negócios formais, o tempo que medeia entre a decisão de
concluir o negócio e a sua celebração permite repensar o negócio e defende as partes contra
a sua ligeireza ou precipitação (no mesmo sendi concorre a própria solenidade do
formalismo); separa os termos definitivos do negócio da fase pré-contratual (negociação);
permite uma formulação mais precisa e completa da vontade das partes, facultando a
correspondente assistência especializada (sobretudo, no caso de documentos notariais);
proporciona um mais elevado grau de certeza sobre a celebração do negócio e os seus
termos, evitando-se os perigos ligados à falível prova por testemunhas27; e, por fim, possibilita
uma certa publicidade do ato, o que interessa ao esclarecimento de terceiros.
Por outro lado, o formalismo negocial não deixa de apresentar alguns inconvenientes,
dos quais destacamos dois: redução da fluência e celeridade do comércio jurídico; e eventuais
injustiças, derivadas de uma desvinculação posterior de uma parte do negócio, com
fundamento em nulidade por vício de forma, apesar de essa parte ter querido efetivamente o
ato jurídico negocial.
27 Ao contrário das testemunhas, os documentos são provas pré-constituída (e não apenas constituendas), isto é,
o meio de prova existe antes da necessidade de prova. Os documentos criam uma tendência antilitigiosa, isto é,
contribuem para prevenir litígios, dado o seu valor probatório decisivo e a sua permanência, pondo as partes ao
abrigo da dúvida e da chicana.
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obrigações, cuja constituição a lei sujeita a forma, devem considerar-se abrangidos pela
exigência de forma legal; mas não já quando o pacto cancele ou reduza as obrigações de
alguma ou de ambas as partes (sujeição a um prazo da obrigação de pagar o preço, remissão
do preço, limitação da obrigação do fiador).
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28 Por exemplo, fazendo como que falsificar por outrem a sua própria assinatura ou induzindo dolosamente a outra
parte a não insistir pela formalização do negócio ou procedendo em termos de criar na outra parte a expetativa de
que a nulidade jamais seria arguida.
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29 Interesse contratual negativo ou interesse de confiança são expressões utilizadas vulgarmente em sinonímia
com a de dano negativo, enquanto que a expressão interesse contratual positivo é expressão usada como
sinónima de dano positivo. Ora, no domínio da responsabilidade obrigacional, costuma grande parte da doutrina
distinguir os danos negativos dos danos positivos. Embora a fronteira não seja muito clara, enquanto estes últimos
seriam os que decorreriam do incumprimento das obrigações, aqueles derivariam da celebração de um negócio
inválido, ineficaz ou que veio a perder retroativamente a sua eficácia, ou da não celebração de qualquer negócio.
A indemnização dos danos positivos visaria, pois, colocar o lesado na situação em que ele se encontraria se a
obrigação tivesse sido cumprida, enquanto a indemnização dos danos negativos teria como objetivo colocá-lo na
situação em que estaria se não tivesse celebrado o negócio inválido ou ineficaz ou não tivesse iniciado as
negociações que se romperam. É entendimento maioritário da doutrina portuguesa o de que os danos
indemnizáveis no âmbito da responsabilidade pré-contratual são apenas os negativos (art. 227.º).
30 A consequência da nulidade por falta de forma não é, pois, deixada na dependência de uma apreciação, em
cada caso concreto, do significado e obtenção das finalidades prosseguidas com a exigência legal de forma.
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A declaração negocial com um destinatário ganha eficácia logo que chegue ao seu
poder ou é dele conhecida. As declarações não receptícias tornam-se eficazes logo que a
vontade se manifesta na forma adequada.
Desta doutrina, constante do artigo 224.º/1, decorre, para os contratos, ter a nossa lei
optado pela doutrina da receção quanto ao momento da sua conclusão. Quer dizer: o contrato
está perfeito quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de ação do proponente,
isto é, quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer. Concretizando algo
mais: quando a declaração de aceitação foi levada à proximidade do destinatário de tal modo
que, em circunstâncias normais, este possa conhecê-la, em conformidade com os seus usos
pessoais ou os usos do tráfico; uma enfermidade, uma ausência transitória de casa ou do
estabelecimento são riscos do destinatário e também é considerada eficaz a declaração que
só por culpa do destinatário não foi por ele recebida – artigo 224.º/2. Não será preciso tanto,
todavia, se, por qualquer meio, foi dele conhecida31.
31 Quando se dirija a pessoa desconhecida ou cujo paradeiro seja ignorado pelo declarante, a declaração negocial
pode também ser feita mediante anúncio publicado num dos jornais de residência do declarante (art. 225.º).
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1. Interpretação.
1.1. O problema.
1.2. Posições possíveis.
1.3. Posição adotada.
1.3.1. Desvios.
1.3.1.1. Num maior objetivismo – negócios solenes ou formais.
1.3.1.2. Num maior subjetivismo – disposições testamentárias.
2. Integração.
2.1. Termos de admissão.
62
1. Interpretação.
32 Interpretado o negócio, isto é, fixado o seu sentido, pode depois, se o sentido fixado, segundo as diretrizes da
teoria da interpretação, é um sentido objetivo, abrir-se um problema de divergência entre a vontade e a declaração.
A qualificação de um negócio jurídico é também posterior à interpretação.
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65
segundo o critério legal, deve ser entendido pelo declaratário. Quando houver um
desses casos excecionais assim o terá de provar quem o considere tal. Aliás,
criticando a ressalva em debate, que entende só poder destinar-se a resolver, por via
interpretativa, o erro evidente ou a incapacidade acidental ou a falta de consciência da
declaração patentes, MENEZES CORDEIRO.
Por fim, note-se que não se verificando tal coincidência entre o sentido objetivo
correspondente à impressão do destinatário e um dos sentidos ainda imputáveis ao
declarante, a sanção parece ser a nulidade do negócio. Com efeito, esta solução leva
vantagem sobre a relevância do sentido subjetivo ou sobre a pretensão de aplicar
analogicamente o artigo 237.º, pois não há verdadeira analogia.
▪ Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo
com ela que vale a declaração emitida...
Em conformidade com o ditame falsa demonstratio non nocet (mas sem entorse
ao critério do nº 1), o artigo 236.º/2 estabelece que sempre que o declaratários
conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração
emitida. Neste caso, a vontade real, podendo não coincidir com o sentido objetivo
normal, correspondeu à impressão real do destinatário concreto.
Além do mais, note-se que o sentido querido realmente pelo declarante releva,
mesmo quando a formulação seja ambígua ou inexata, se o declaratário conhecer este
sentido (com as limitações decorrentes, para os negócios formais, do artigo 238.º/2).
Quer dizer: a ambiguidade objetiva, ou até a inexatidão, da expressão externa não
impedem a relevância da vontade real, se o destinatário a conheceu. Houve
coincidência de sentidos (o querido e o compreendido), logo, este é o sentido decisivo.
▪ A interpretação abrange, igualmente, o problema de saber se há ou não uma
declaração negocial...
A resposta afirmativa tem lugar quando assim se concluir do ponto de vista de
um declaratário normal colocado na posição do declaratário real.
Em todo o caso, não há declaração negocial se falta a vontade de ação (art.
246.º). Ora, pode duvidar-se se nesta hipótese (falta de consciência de declaração)
estamos perante um caso de inexistência da declaração, à semelhança do que sucede
quando falta a vontade de ação ou apenas se nos depara um caso de nulidade,
acompanhado, eventualmente, de responsabilidade civil.
A doutrina alemã discute muito a questão de saber se, para existência de uma
declaração negocial, se exige a consciência da declaração ou basta a imputabilidade
da declaração. O interesse prático do problema é o seguinte: se se exigir a consciência
da declaração, o declarante, faltando esta, pode invocar a invalidade do negócio, sem
mais requisitos; se não for necessária a consciência da declaração, bastando a
66
33 No sentido de que o artigo 237.º só é aplicável, com vista a um maior equilíbrio das prestações, quando se não
consiga um resultado seguro sobre a interpretação e o sentido permaneça, pois, duvidoso, o TRP.
67
1.3.1. Desvios.
A doutrina preferível, em tese geral, quanto ao problema da hermenêutica negocial, sofre
desvios quanto a certos negócios.
68
69
vontade real do testador, e não só àquelas que possam ser conhecidas de determinadas
pessoas. Pode atender-se a projetos anteriores se não se conclui que a formalização significa
uma modificação objetiva, a esclarecimentos orais ou escritos, devidamente testemunhados,
dados pelo testador a terceiras pessoas, às considerações em que se baseou, às finalidades
visadas, aos motivos, a anotações pessoas do testador nos seus papéis. Note-se que esta
possibilidade de recurso à prova extrínseca, e não apenas a elementos conhecidos ou
cognoscíveis por um declaratário razoável, só de per si, contradiz o ponto de vista de CASTRO
MENDES, segundo o qual não é verdade que na nossa lei se dê à vontade real mais relevância
no testamento do que em outro negócio formal.
No entanto, exige-se que a vontade do testador, assim reconstituída, tenha um mínimo
de correspondência, ainda que imperfeita, no contexto (art. 2187.º/2). Esta limitação –
representada pelo teor do documento – é uma manifestação do caráter solene do negócio
testamentário. Assim, no assento de 19 de outubro de 1954, disse-se que a pesquisa da
intenção do testador é matéria de facto, tendo o STJ entendido que tal doutrina se mantém
em vigor, mas, segundo o Acórdão do STJ de 26 de fevereiro de 1992, já é matéria de direito
decidir se a vontade real apurada tem no testamento um mínimo de correspondência, ainda
que imperfeitamente expressa.
A questão: qual o exato âmbito de aplicação deste limite objetivo? A lei não dá
qualquer indicação mais precisa, quanto à relação que deve interceder entre a intenção
testatória e o contexto do documento, limitando-se a estatuir que não surtirá qualquer efeito a
vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que
imperfeitamente expressa. Assim, podem continuar a aceitar-se as ideias expendidas por
MANUEL DE ANDRADE a este respeito, para o direito anterior, por não se lhes opor o texto
daquele 2187.º/2, antes, pelo contrário, as favorecer, na medida em que se contenta com uma
expressão ténue da intenção do testador no contexto do documento. Segundo essas ideias,
aliás correspondentes ao texto da disposição do anteprojeto, o sentido subjetivo, reconstituído
através de prova extrínseca, valerá, se o testador usou termos numa aceção pessoal, fora
dos usos gerais da língua, mas deu a entender isso mesmo no testamento ou usava
habitualmente esses termos nessa aceção anómala. Este o alcance da formulação de
KRETSCHMAR que exige que a vontade do testador tenha encontrado no documento uma
expressão reconhecível do ponto de vista do testador.
Já aquele sentido subjetivo não valerá, em princípio, se o testador usou termos numa
aceção extravagante que estava fora dos seus próprios hábitos de linguagem ou incorreu em
erro na declaração. Nesta hipótese, a nulidade justifica-se pelas razões que estão ligadas à
exigência de forma nos testamentos. Não obstante, será de admitir que esta solução
(nulidade) – conducente à sucessão legítima, quando se trate uma instituição de herdeiro –
sofra uma exceção. Concretizamos: admitir-se-á a relevância do sentido subjetivo, quando,
70
34 V.g.: X dispôs, no testamento, que tivesse lugar a sucessão legítima, na convicção de que, assim, excluiria os
descendentes dos seus meios irmãos. Ora, admitiu-se somente impugnação do testamento por erro, mas não
admitiu uma interpretação segundo a vontade real.
71
2. Integração.
72
35 EUGEN BUCHER propõe um critério interessante, mas pouco exequível, e, entre nós, conta legem: se a norma
supletiva tem um conteúdo de ordenação material prefere; se visa exprimir a vontade presumível das partes, então
prefere a vontade hipotética referida ao caso concreto.
73
1. O problema em geral.
1.1. Formas possíveis de divergência.
1.1.1. Divergência intencional.
1.1.2. Divergência não intencional.
1.2. A autonomia do problema e o seu substrato teleológico.
1.3. Teorias que visam resolver o problema.
1.4. Apreciação do problema de iure condendo.
1.5. Apreciação do problema de iure condito.
2. Divergência intencional.
2.1. Simulação.
2.2. Reserva mental.
2.3. Declaração não séria.
3. Divergência não intencional.
3.1. Coação física ou coação absoluta ou ablativa.
3.2. Falta de consciência da declaração.
3.3. Erro na declaração ou erro-obstáculo.
3.3.1. A solução em geral.
3.3.2. Hipóteses especiais.
3.4. Erro na transmissão da declaração.
74
1. O problema em geral.
36 Enquanto nos vícios da vontade (erro-vício, dolo, coação) se nos depara vício na formação da vontade.
75
37 Quando existem perturbações da declaração negocial, não está a ser realizada a dupla função da autonomia
privada: reconhecimento da liberdade no desenvolvimento da personalidade; mecanismo de garantia de justeza
(ou, pelo menos, de presunção de correção) do resultado.
76
38 No negócios não receptícios, não há rigorosamente declaratário; é de equiparar ao declaratário, nas declarações
não receptícias entre-vivos – nas declarações to whom it may concern – aquele a quem a declaração interesse,
ou melhor, o destinatário dos efeitos.
77
39 Nas palavras do Autor: “a injustiça e o desconsolo prático de um tal resultado é evidente: a parte culposa fica
livre, a inocente é vítima da culpa alheia!”.
78
79
reveste (arts. 245.º, 246.º e 247.º), mostram estar subjacente ao sistema do atual Código uma
solução declarativista40.
2. Divergência intencional.
2.1. A simulação.
O conceito de negócio simulado está explicitamente formulado no artigo 240.º/1. Não
obstante, ORLANDO DE CARVALHO define o instituto nos seguintes termos: simular,
juridicamente, significa apresentar alguma coisa que não é; a simulação negocial consistem
em aparentar um negócio que não existe, quer sob as roupagens do ato simulado se oculte
um negócio diferente quer não se oculte coisa nenhuma.
Em correspondência com a orientação da doutrina tradicional, os elementos
integradores do conceito, referidos na disposição, são: a intencionalidade da divergência entre
a vontade e a declaração; o acordo entre o declarante e declaratário (acordo simulatório), o
que não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais; e o intuito de enganar
terceiros, qualificando-se o ato como simulado, ainda que se verifique um erro sobre a
necessidade da simulação para conseguir os objetivos visados.
Trata-se de um instituto com grande importância prática, sobretudo, devido à
frequência da sua verificação e à complexidade da problemática.
40 Os negócios jurídicos com mais de dois sujeitos (contratos plurilaterais, como o contrato de sociedade ou a
80
953.º; a venda de imóveis simulando um preço inferior ao preço real para prejudicar a
Fazenda Nacional ou simulando um preço superior ao real para prejudicar um
preferente; a doação aparente que disfarça uma venda real para prejudicar o exercício
de um direito de preferência; a declaração num documento de mútuo de um capital
mutuado superior ao real para o mutuante poder cobrar um juro superior ao legal.
A simulação inocente é rara. Podem afigurar-se, por exemplo, doações
simuladas com um fim de ostentação, vendas aparente em vez das reais doações para
não incorrer o doador no ressentimento de pessoas que aspiravam à sucessão do
doador, embora não sejam herdeiros legitimários.
▪ Simulação absoluta versus simulação relativa;
Na primeira, as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não
querem nenhum negócio jurídico. Há apenas o negócio simulado e, por detrás dele,
nada mais (colorem habet, substantiam vero nullam).
Na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na
realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. Por detrás do
negócio simulado, ou aparente, fictício ou ostensivo, há um negócio dissimulado, ou
real, latente ou oculto (colorem habet, substantiam bero alteram).
A distinção entre simulação absoluta e simulação relativa tem a importância
derivada de esta última gerar um problema solucionado pelo artigo 241.º/2.
Ora, a simulação relativa manifesta-se em espécies diversas consoante o
elemento do negócio dissimulado a que se refere (simulação subjetiva ou dos sujeitos
e simulação objetiva ou sobre o conteúdo do negócio).
o Simulação subjetiva;
Podem ser simulados, desde logo, os sujeitos do negócio jurídico, mais
frequentemente, um apenas.
É o que se verifica com a interposição fictícia de pessoas: A,
pretendendo dar um prédio a B, finge doar a C para este posteriormente doar
a B, intervindo um conluio entre os três – por exemplo, para contornar uma
norma legal que proíba a doação de A a B (arts. 953.º e 2196.º). Pode,
igualmente, a simulação consistir na supressão de um sujeito real: fez-se uma
venda de A a B e outra de B a C, mas para pagar apenas uma sisa, três sujeitos
concordam em documentar na escritura pública apenas uma venda de A a C.
No entanto, a interposição fictícia de pessoas não deve confundir-se
com a interposição real. Na primeira, há um conluio entre os dois sujeitos reais
da operação e o interposto – o testa de ferro. Na segunda, o interposto atua
em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem, por força de um
acordo entre ele e um só dos sujeitos. Nesta hipótese, não existe um conluio
81
entre os três sujeitos. Na verdade, não se nos apresenta uma simulação41, mas
um mandato sem representação (art. 1180.º), não havendo simulação mesmo
que a contraparte saiba que o interposto contrata por conta de outrem, embora
em nome próprio. Com efeito, para haver simulação, é necessária a existência
de um conluio entre os três sujeitos.
Por fim, note-se que também se pode fazer a distinção entre as duas
figuras não por referência ao facto de existir ou não um conluio entre os três
intervenientes, mas através do facto de o interposto ser parte verdadeira ou
parte aparente num determinado negócio. Com efeito, VAZ SERRA adverte para
o facto de poder haver interposição fictícia, mas não haver simulação se,
porventura, não existir acordo com a outra parte. É o que acontece se
determinada pessoa intervém na conclusão do negócio, declarando ser parte
nele, mas sem vontade de que os efeitos se produzam na sua esfera jurídica
e sem haver acordo entre ela e a outra parte nesse sentido, não há simulação,
mas reserva mental.
o Simulação objetiva;
▪ Simulação sobre a natureza do negócio;
Se o negócio ostensivo ou simulado de uma alteração do tipo
negocial correspondente ao negócio dissimulado ou oculto; por
exemplo, finge-se uma venda e quer-se uma doação ou vice-versa42.
▪ Simulação de valor.
Incide sobre o quantum de prestações estipuladas entre as
partes. É fundamentalmente – mas não só – o caso da simulação de
preço na compra e venda, fingindo-se um preço superior ou inferior ao
preço real.
82
A simulação e a usucapião...
A inexistência de um prazo de caducidade para a ação tendente à declaração de nulidade não impede
que, na hipótese de nulidade, os efeitos práticos da invalidade, maxime a restituição de qualquer objeto
alienado, sejam precludido pelos efeitos da usucapião.
Todavia, no caso particular da simulação não poderá haver, em regra, usucapião, pois o simulado
adquirente é um possuidor em nome alheio ou, na terminologia da lei, um detentor ou possuidor precário (art.
1253.º/c)), não podendo adquirir por aquele modo, salvo achando-se invertido o título da posse (art. 1290.º),
mas começando o tempo necessário para a usucapião.
43 Esta solução está em conformidade com a regra de interpretação segundo a vontade real, quando houve
conhecimento desta vontade pela contraparte. Com efeito, na simulação, as partes sabiam que o objetivamente
declarado não se destinava a valer.
83
ser plenamente válido e eficaz ou poderá ser inválido, consoante as consequências que teriam
lugar, se tivesse sido abertamente concluído.
▪ Simulação em prejuízo da Fazenda Nacional;
Atualmente, tendo em conta o artigo 39.º da LGT, segundo o qual, em caso de
simulação, a tributação recai sobre o negócio real e não sobre o simulado,
dependendo, porém, a tributação de negócio real que conste de documento autêntico,
de decisão judicial a declarar a sua nulidade. Há ainda que ter em conta as disposições
que permitem ao Estado, às autarquias locais e demais pessoas coletivas de direito
público, representados pelo MP, preferir na venda de imóveis e no trespasse de
estabelecimentos, quando, por simulação de preço, o imposto devido tiver sido
liquidado por valor inferior, desde que provem que o valor por que deveria ter sido
liquidado excede, em pelo menos 30% ou 5000 € o valor sobre que incidiu.
▪ Efeitos da simulação quanto aos negócios formais;
Os problemas suscitados pela aplicação aos negócios formais da doutrina geral
da simulação relativa encontram a sua resposta no artigo 241.º/2. Resulta desta
disposição que, se não se cumpriram, no negócio simulado, os requisitos de forma
exigidos para o dissimulado, este será nulo por vício de forma, mesmo que se tenham
observado as formalidades exigidas para o negócio aparente (por exemplo, doação de
móveis, sem tradição da coisa, disfarçada de venda verbal, artigo 947.º/2).
Para a validade do negócio real, torna-se necessária a observância do
formalismo que, para ele, exige a lei, mesmo que tal forma não seja suficiente para o
negócio aparente (a favor da desnecessidade de um formalismo bastante para o
negócio aparente, pode invocar-se um argumento a silentio do artigo 241.º/2). Por
conseguinte, haverá um negócio latente válido, se as partes fizeram constar as
declarações, que integram o seu núcleo essencial, de uma contradeclaração (escrito
de reserva ou de ressalva) com os requisitos formais exigidos para o negócio.
A questão: e se não existe uma contradeclaração, sendo certo, todavia, que o
tipo de formalismo exigido para o negócio dissimulado foi observado, embora do
documento conste o negócio aparente e não o ato oculto?
O legislador procurou responder a esta questão através do artigo 241.º/2. No
entanto, o entendimento desta disposição tem suscitado divergências, para casos de
simulação sobre a natureza do negócio – designadamente, para a hipótese de
dissimulação de uma doação de imóveis sob uma venda e vice-versa. Um setor, ainda
hoje maioritário, entende que o negócio é nulo por vício de forma de não existir uma
contradeclaração com a forma legalmente exigida. Com efeito, é esta a posição que
prevalece na doutrina alemã (LARENZ/W OLF), considerando, que a não ser seguida,
ficaria excessivamente facilitada a fraude às exigências de forma. No entanto, também
84
85
86
material de obtenção de prova escrita; e em caso de perda não culposa do documento que
fornecia a prova. Na esteira deste Autor, o fundamento da exceção estaria em que a
imposição legal de prova escrita supõe a possibilidade de as partes a obterem; nos casos em
que não houvesse essa possibilidade, cessaria a razão de ser da exclusão.
44 Outra é a noção de terceiros para efeitos da proteção da boa fé, que ORLANDO DE CARVALHO definia como os
que, integrando-se numa e mesma cadeia de transmissões, veem a sua posição afetada por uma ou várias causas
de invalidade anteriores ao ato em que foram intervenientes.
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88
Seguimos, agora, de perto, as considerações, acerca deste tema, feitas por ANTÓNIO
PINTO MONTEIRO, em RLJ...
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ter adquirido os direitos a título oneroso e registado a aquisição antes do registo da ação de nulidade ou
de anulação (nº 1); além disso, devem ter já passado três anos após a conclusão do negócio entre A e B,
pois se a ação de anulação ou de nulidade for proposta e registada dentro desse prazo os direitos de C,
terceiro, não são reconhecidos (nº 2); finalmente, esclarece a lei que se considera de boa fé o terceiro
adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.
Trata-se de uma norma muito exigente, uma vez que todos estes requisitos devem verificar-se
cumulativamente. Assim, o artigo 291.º consagra uma tutela geral do terceiro de boa fé em caso de
invalidade do negócio anterior àquele em que participa.
3. As divergentes posições.
A questão: será que esta proteção mais favorável é suscetível de ser invocada por terceiro de
boa fé sempre que a nulidade do negócio provenha da simulação? Ou será que esta tutela mais favorável,
concedida pelo artigo 243.º/1 só se justifica quando, além de estarmos perante negócio simulado, quem
vem arguir a nulidade do negócio seja um dos simuladores? A ser assim, se a nulidade da simulação for
arguida por um terceiro, o terceiro adquirente ficará sem proteção?
Comecemos pela primeira questão: qual o âmbito de proteção do artigo 243.º/1? Tratará esta
norma da inoponibilidade da simulação a terceiro de boa fé em todo e qualquer caso, ou, apenas, da
inoponibilidade da simulação a terceiro de boa fé quanto a nulidade for arguida pelos simuladores?
A letra da lei é clara, no sentido de que só neste último caso é que o terceiro de boa fé poderá
beneficiar desta proteção especial que o artigo 243.º/1 concede. Aparentemente, tratar-se-á, mesmo, de
uma exceção à regra de que a nulidade é invocável por qualquer interessado (art. 286.º).
No entanto, como se sabe, a letra da lei, constituindo o ponto de partida e o limite do sentido
eleito, não é, contudo, o elemento hermenêutico mais importante na tarefa de interpretação da lei (art.
9.º). Nesta linha, apelando à razão de ser do artigo 243.º/1, poderia entender-se que esta norma carece
de uma interpretação extensiva, por força da qual o terceiro de boa fé estaria sempre protegido pelo artigo
243.º/1 no caso de se tratar de nulidade proveniente de negócio simulado. E isto, quer por razões
históricas, que à luz do elemento racional e sistemático, porque, a não ser assim, diz-se, seria muito
90
estranho e contrário à abertura introduzida no sistema pelo artigo 291.º, no caso mais clamoroso em que
a proteção de terceiros mais se justificaria.
Nesta linha, em caso de conflito de interesses entre terceiros interessados na nulidade e terceiros
interessados na validade do negócio, recorrer-se-ia, na esteira de MANUEL DE ANDRADE, a critérios
casuísticos. CARVALHO FERNANDES optou pelo critério do artigo 335.º, relativo à colisão de direitos, no
entanto, cremos que sem razão, uma vez que esta norma pressupõe direitos adquiridos, não sendo este
o caso, além de que o problema consiste em saber se os direitos em conflito são iguais ou desiguais sob
o ponto de vista do merecimento da tutela jurídica.
4. A nossa posição.
Em face do direito em vigor, perante o texto da lei e tendo em conta os elementos histórico,
racional e sistemático, entendemos que a proteção de terceiro de boa fé pelo artigo 243.º/1 só é possível
quando a nulidade é arguida pelo simulador ou por quem ocupe a sua posição (como sucede com os
herdeiros, após a sua morte).
É o próprio texto da lei a apoiar fortemente esta posição, mas é também este o sentido mais
conforme os demais elementos interpretativos.
Desde logo, atente-se que no Código de Seabra era discutido se os simuladores teriam
legitimidade para arguir a nulidade dos negócios simulados, tratando-se de simulação fraudulenta. A
questão foi decidida por Assento, no sentido afirmativo, mas nem assim se tornou inteiramente pacífica.
O problema está hoje definitivamente ultrapassado, pelo artigo 242.º/1, que atribui legitimidade
para arguir a simulação aos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta. No
entanto, convém não esquecer a dúvida que, na vigência do Código anterior, ainda se colocava entre nós
a tal respeito.
De todo o modo, dando conta desse mal estar perante os simuladores que vêm arguir a
simulação, a lei coloca-lhes acrescidas dificuldades de prova, uma vez que não admite prova testemunhal
nem por presunções quando a simulação seja invocada pelos simuladores (arts. 394.º/1 e 2 e 351.º). Ora,
é nesta linha que surge o artigo 243.º a impedir que a nulidade proveniente da simulação possa ser
arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé. Em suma, trata-se de uma posição contra os simuladores
– e só contra estes –, no contexto das restrições anteriores, quer quanto aos meios de prova de que
podem servir-se os simuladores, quer quanto às dúvidas, na vigência do Código de 1867, sobre a própria
legitimidade destes para arguir a simulação.
Quer dizer: não é por acaso que o artigo 243.º/1 restringe o alcance da proteção do terceiro de
boa fé à arguição da nulidade do negócio simulado pelos simuladores. Esta restrição surge na linha e no
contexto das reações negativas da ordem jurídica à torpeza dos simuladores e de algum modo de acordo
com a máxima nemo auditur propriam turpitudinem allegans. E se esta máxima não é hoje aqui levada
inteiramente à letra, foi necessária consagração de um preceito expresso a atribuir legitimidade aos
simuladores para arguir a simulação – quando essa seria a solução já em face do regime geral (art. 286.º)
– perante as hesitações na vigência do Código de Seabra. Tudo isto para além das sérias dificuldades
práticas erguidas pela lei no campo dos meios de prova admitidos quando a nulidade da simulação seja
invocada pelos simuladores.
Ora, justamente, a razão de ser desta limitação, pelo artigo 243.º/1, à proteção de terceiro de
boa fé quando a nulidade seja arguida pelos simuladores – e apenas neste caso – é a forte reprovação
que merece o comportamento dos simuladores. Repare-se que esta norma introduz um desvio à regra
geral do artigo 286.º, pois impede que a nulidade seja neste caso invocada pelos simuladores, isto é, por
alguém interessado nessa invocação. Por outro lado, atente-se que o artigo 243.º/1 respeita a regra do
91
artigo 242.º/1, uma vez que esta última permite que a nulidade do negócio seja invocada pelos próprios
simuladores entre si. Só entre si, repete-se, pois perante terceiros de boa fé logo o artigo seguinte obsta
a que os simuladores possam arguir essa nulidade.
É a ideia de que os simuladores, ao invocarem a nulidade, estão como que a incorrer num venire
contra factum proprium, pois criaram propositadamente, para iludir terceiros, a aparência de um negócio
que na realidade não querem. Virem, depois, prevalecer-se da simulação contra terceiros de boa fé,
contra terceiros que confiaram na seriedade do negócio, seria particularmente iníquo e comprometedor
da segurança das transações.
Ora, esta argumentação só colhe perante os simuladores, só procede quando se trata de
proteger terceiros de boa fé contra a arguição da nulidade pelos próprios simuladores. Já se for um
terceiro a arguir a nulidade do negócio simulado, por exemplo, um credor do simulado alienante, não se
justificaria, de todo, que um terceiro adquirente pudesse invocar a sua boa fé, sem mais, para ser
protegido. Numa situação destas, sendo a nulidade invocada por um terceiro (de boa fé), o terceiro
adquirente de boa fé só poderá aspirar à proteção geral do artigo 291.º, pese embora a nulidade do
negócio seja devida a simulação.
Por fim, o artigo 291.º consagra a proteção de terceiro de boa fé em caso de negócio nulo ou
anulável, seja por que razão for – inclusivamente quando se trate de simulação, desde que não seja
arguida pelos simuladores –, ao passo que o artigo 243.º restringe o seu âmbito de aplicação ao terceiro
de boa fé quando se esteja perante negócio simulado e a nulidade seja arguida pelos simuladores (ou
por quem ocupe a sua posição).
II. 2.º Problema
Foi sustentado na doutrina que só se consideravam terceiros para este efeito
aquelas pessoas cujos direitos seriam prejudicados pela invalidação do negócio
simulado, isto é, as que com isso sofreriam uma perda, mas não já as que apenas
lucrariam com a validade do mesmo negócio. Assim, seria oponível a um preferente a
simulação do preço da venda (por se ter declarado na escritura um preço inferior ao
real) ou a simulação sobre a natureza do negócio.
De iure condito, a simulação é inoponível só aos terceiros de boa fé
prejudicados com a invalidação ou também o será àqueles que apenas deixam de
lucrar, por esse motivo?
O artigo 243.º/1 não faz qualquer restrição, ao contrário do que era proposto
no anteprojeto; portanto, um intérprete estritamente agarrado à lei, atribuindo valor
decisivo à máxima ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus e ao elemento
histórico, concluiria que a nulidade resultante da simulação era inoponível a quaisquer
terceiros, mesmo aos que com isso conseguiriam um lucro, em lugar de evitarem um
prejuízo (HORSTER). No entanto, entendemos que estes elementos interpretativos têm
valor subalterno em relação ao elemento racional (presunção de que, dada a ratio do
preceito, o legislador consagrou as soluções mais acertadas que tenham na leitra da
lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso – art.
9.º/2 e 3) dentro da conceção hermenêutica preferível e sancionada no CC.
92
Neste sentido, não há dúvida que, dado o fim do artigo 243.º (proteger a
confiança dos terceiros), a solução mais acertada é a que impede que a invocação da
simulação possa causar prejuízos e não já a que vai ao ponto de, por essa causa,
originar vantagens ou lucros que nada legitima. Por conseguinte, feita uma venda por
100 e tendo-se declarado simuladamente um preço de 30, um preferente não pode
invocar a sua qualidade de terceiro de boa fé, para preferir pelo preço declarado; é-
lhe oponível a nulidade do negócio simulado, sendo admitido a preferir pelo preço real.
Com efeito, só não será assim quando existir disposição especial que autorize a
preferência pelo preço declarado.
Trata-se da solução que corresponde ao ensino de MANUEL DE ANDRADE e que
estava expressamente consagrada no anteprojeto. A solução oposta – preferência
pelo preço declarado – é irrazoável, pois a torpeza dos simuladores não legitima um
locupletamento do terceiro (preferente), que não seria menos torpe; acrescendo,
ainda, que, normalmente, os simuladores ter-se-ão informado junto do preferente se a
coisa lhe interessava e só em face do desinteresse revelado por ele se terão arriscado
a simular um preço inferior. Contra esta posição, estão PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA
e HORSTER. Ora, não podemos aderir à posição destes autores que, ainda que aceitem
a razoabilidade da nossa solução, rejeitam-na por a considerarem contra legem.
Contra legem porquê? Apenas fazemos uma interpretação restritiva do artigo 243.º/1,
em conformidade com a ratio legis, sendo certo que tal modalidade de interpretação é
um método perfeitamente clássico. Por um lado, a modificação do anteprojeto nada
nos diz sobre a intenção do legislador, por outro, é profundamente insatisfatório dizer-
se que a lei quer vedar ao simulador sempre a invocação da simulação contra terceiros
de boa fé, pois, certamente, não o quer fazer à custa de uma torpeza. Finalmente, em
abono da nossa posição, ao mesmo resultado conduzirá a noção de terceiros para fins
de tutela da boa fé, nos termos em que ORLANDO DE CARVALHO a apresentava45.
Por fim, note-se que o conceito de boa fé é enunciado no artigo 243.º/2, consistindo,
conforme o ensinamento geral da doutrina, na ignorância da simulação ao tempo em que se
adquiriram os respetivos direitos. Assim, não basta, para haver má fé, a cognoscibilidade da
simulação ou a suspeita ou dúvida sobre a sua existência – CARVALHO FERNANDES a entender
que o terceiro que desconhece a simulação culposamente também está protegido e MENEZES
CORDEIRO, contra, a exigir o desconhecimento não culposo. Além do mais, o artigo 243.º/3
estabelece uma presunção iuris et de iure de má fé, em desfavor do terceiro que adquiriu o
seu direito depois do registo da ação de simulação.
45 Para uma solução diferente, no entendimento do STJ, em que, admitindo-se a inoponibilidade aos preferentes
da nulidade proveniente de simulação, impediu-se o exercício da preferência por constituir abuso de direito.
93
46 Se a contraparte se deixou enganar pela declaração, mas o declarante pensara que ela se aperceberia da
divergência, não há reserva mental – há declaração não séria.
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Se o declaratário conheceu a reserva, não há confiança que mereça tutela47. Por outro lado,
se há dois declaratários, qualquer deles, que não conheça a reserva, pode invocar a sua
irrelevância. É, também, reserva mental a hipótese de alguém conscientemente emitir uma
declaração com vários sentidos e a outra parte a compreender num determinado sentido,
enquanto o declarante se reservou ocultamente só a fazer valer noutro sentido.
Não bastará para a relevância da reserva a sua cognoscibilidade, sendo necessário o
seu efetivo conhecimento.
Por vezes, aventa-se uma solução especial para a reserva mental inocente (com mero
animus decipiendi): bastaria, para fundamentar a nulidade, a simples cognoscibilidade do
vício, quando o reservante tenha procedido com ânimo de trazer vantagem ao declaratário ou
até nem seria precisa a cognoscibilidade, apenas respondendo o declarante pelo interesse
negativo, se este não foi contrabalançado pela vantagem auferida. Ora, o CC não consagra
esta solução no respetivo preceito sobre a reserva mental, estabelecendo, sem exceção, que
só o conhecimento efetivo da reserva é motivo de nulidade. No entanto, a rigidez desta
doutrina poderá ser atenuada por aplicação da cláusula geral do artigo 334.º - abuso do direito.
Com efeito, excederá muitas vezes os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes –
por ser clamorosamente contrária ao sentido jurídico prevalente – a pretensão do declaratário,
no sentido da validade de uma declaração que o respetivo autor emitiu, com reserva mental,
para trazer uma vantagem ao declaratário.
47 Críticas à solução de nulidade no caso de conhecimento da reserva: é uma solução defeituosa e uma concessão
à teoria da vontade (LARENZ); não se pode tratar a teoria da confiança tão mecanicamente, como se faz ao
estabelecer a nulidade quando o declaratário conheceu a reserva – haveria que considerar também o mérito ou
demérito da tutela do mentiroso e o princípio da fidelidade do contrato (B YDLINSKI). Todavia, deve atentar-se em
ser muitíssimo provável que uma parte, ao saber da reserva, antes ou durante a realização de um negócio, se
assegure perante o seu parceiro, e que seja esclarecida a divergência entre a vontade e a declaração, pelo que
deixará de se justificar a tutela.
95
48 Nesta hipótese, o que gera o negócio é o receio da consumação ulterior ou da persistência de um mal físico já
em começo de execução. Não estando, portanto, totalmente excluída a liberdade do coato, mas apenas coartada,
o caso integra-se na coação moral.
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real (art. 236.º/2). Com efeito, as razões que estão na base da doutrina da declaração
– tutela da boa fé do declaratário – não colhem.
II. Se o declaratário conheceu, ou devia ter conhecido, o próprio erro, o regime aplicável
continua a ser a anulabilidade e não a nulidade verdadeira e própria. Com efeito, não
é necessário, para a anulação, o reconhecimento ou a reconhecibilidade do erro,
bastando que seja reconhecível a essencialidade do elemento sobre que o declarante
errou.
III. Se o declaratário aceitar o negócio como o declarante queria, a anulabilidade fundada
em erro não procede (art. 248.º). A validação do negócio, nesta hipótese, tem uma
explicação análoga à da solução indicada em I.
IV. O erro de cálculo e o erro de escrita, ostensivamente revelados no contexto da
declaração ou nas circunstâncias que a acompanham49, não dão lugar à anulabilidade
do negócio, mas apenas à sua retificação (art. 249.º);
V. Se o declaratário compreendeu um terceiro sentido que não coincide nem com o
querido pelo declarante, nem com o declarado, quid iuris? O artigo 247.º pode não
permitir a anulabilidade, tal como, aliás, poderia não a permitir a doutrina da confiança,
pois B, destinatário da declaração, pode não saber nem dever saber do erro. Todavia,
o negócio deve ser anulado, pois nada justifica fazê-lo valer com um sentido objetivo
em que nenhuma das partes confiou. É a solução correspondente à teoria da
aparência eficaz, que deve ser admitida, neste posto, como corretivo da teoria da
confiança. A doutrina da aparência eficaz visa atingir os fins visados com a teoria da
confiança sem os exceder e, portanto, não faz valer a declaração no sentido objetivo,
a não ser que o destinatário confie efetivamente nesse sentido. Assim, no caso de
divergência entre os sentidos querido, declarado e compreendido, torna a declaração
anulável, como parece mais razoável, enquanto a doutrina da confiança a faz valer no
sentido declarado. A hipótese que estamos a considerar constitui um caso especial de
dissenso50, a merecer tratamento igualmente especial, e nesse sentido se pronuncia,
49 O erro de cálculo interno – ou não ostensivo – esse pode ser um erro normativo (art. 251.º) ou estar sujeito ao
regime geral do erro na declaração (art. 247.º). Na jurisprudência do STJ, qualificando o erro de cálculo que se
revela no próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que é feita como erro-obstáculo de natureza
especial, que só dá direito à retificação da declaração, e dizendo que se não se revelar nesse contexto e
circunstâncias, será um erro-vício.
50 O dissenso (desacordo entre as partes num contrato) pode evidenciar-se nos próprios termos das declarações,
isto é, pode tratar-se de uma falta de acordo dos sentidos objetivos e, então, nem sequer existe um negócio jurídico,
por aplicação do artigo 232.º. Porém, pode haver acordo dos sentidos objetivos das declarações, mas desacordo
entre as vontades reais. Este desacordo de vontades reais pode resultar de uma só das partes atribuir à sua
declaração um sentido diverso do que ela bem objetivamente (A quer vender X, mas declara Y e B aceita nestes
termos) – neste caso, o problema resolve-se por aplicação da doutrina do erro-obstáculo. Assim, o conceito de
99
para as hipóteses deste tipo, a própria doutrina que defende conceções e soluções
mais objetivistas do negócio (EMÍLIO BETTI). Esse tratamento especial é o da
anulabilidade sem a exigência dos requisitos do artigo 247.º.
dissenso só tem interesse autónomo quando cada uma das partes atribui ao negócio um sentido diverso não
coincidente com o seu teor objetivo.
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254.º/2, o dolo de um terceiro totalmente estranho ao declarante não confere a este, sem
mais, o direito de anular, mesmo que provoque também um erro na declaração, já segundo o
artigo 250.º/2, o dolo de uma pessoa que o declarante escolheu permite-lhe a anulação do
negócio.
101
1. Vícios da vontade.
2. O regime da lesão e dos vícios redibitórios.
3. Qualificação da invalidade proveniente de erro-vício, dolo, coação ou incapacidade
acidental.
4. Erro-vício.
4.1. Modalidades.
4.2. Exclusão prévia da anulação por erro.
4.3. Condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade.
4.4. Condições especiais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade.
4.5. Aplicação de coisa a fim diferente do declarado.
5. Dolo.
5.1. Conceito.
5.2. Modalidades.
5.3. Condições de relevância do dolo como motivo de anulação.
5.4. Fundamento jurídico da anulabilidade por dolo.
5.5. Negócio em que o dolo não tem relevância específica.
6. Coação.
6.1. Conceito.
6.2. Modalidades.
6.3. Condições de relevância da coação como motivo de anulabilidade.
6.4. A coação moral e o simples temor reverencial.
7. Estado de necessidade.
7.1. Conceito.
7.2. Confronto com a coação.
7.3. Valor dos negócios jurídicos celebrados em estado de necessidade.
8. Incapacidade acidental.
102
1. Vícios da vontade.
I. Lesão (usura);
O código de 1867, rompendo com o direito anterior, deixou de considerar a
lesão (grave desequilíbrio entre as prestações, nos contratos onerosos comutativos)
motivo autónomo de invalidade dos negócios jurídicos.
No código de 1966, a proscrição da lesão, sob a designação de usura, é
efetuada nos termos do artigo 282.º. Estabelece-se, no artigo seguinte, uma alternativa
para a anulação dos negócios usurários: a sua modificação, segundo juízos de
equidade, a requerimento do lesado ou da partes contrária. Encara-se, portanto, o
problema da lesão, não sob a perspetiva individualista que fluiu no Código de
Napoleão, mas à luz das valorações sociais imperantes no nosso tempo.
Qual é a relação entre o problema da lesão e os vícios da vontade? É que
resulta do CC vigente que a lesão, como fundamento da anulação ou modificação dos
negócios, não consiste apenas numa certa desproporção de prestações (lesão ultra
dimidium ou lesão enorme), mas, sim, igualmente, numa exploração da situação da
outra parte, em casos em que terá havido uma adulteração do modo de sã formação
da vontade. Com efeito, emprega-se para definir a figura uma formulação obetivo-
subjetiva, cujo elemento objetivo comporta uma certa liberdade de apreciação judicial
(benefícios excessivos ou injustificados) e cujos elementos subjetivos são dois: a
situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou
fraqueza de caráter em que se encontra a vítima do ato lesivo; e a exploração dessas
situações.
Por fim, note-se que se consagra, porém, um critério estritamente objetivo,
quanto ao mútuo oneroso (art. 1146.º).
II. Vícios redibitórios.
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104
da realidade – o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o
negócio nos termos em que o celebrou. Trata-se de um erro nos motivos determinantes da
vontade.
Neste sentido, o erro-vício não se confunde com o erro na declaração ou o erro-
obstáculo, sendo aquele um vício da vontade (o erro-vício é um erro na formação da vontade),
enquanto aqueles são uma divergência entre a vontade e a declaração (erro na formulação
da vontade). Com efeito, a divergência existente não é entre a vontade real e a declaração,
mas entre a vontade real (coincidente com a declaração) e uma certa vontade hipotética (a
vontade que se teria tido, se não fosse a representação inexata).
Por fim, note-se que uma figura próxima do erro é, na esteira de WINDSCHIED, a
pressuposição que se pode caracterizar como a convicção por parte do declarante, decisiva
para a sua vontade de efetuar o negócio, de que certa circunstância se verificará no futuro ou
de que se manterá um certo estado de coisas – a alteração anormal das circunstâncias
pressupostas constitui, nos termos do artigo 437.º, fundamento de resolução ou modificação
do contrato, quando a manutenção do conteúdo contratual contrarie a boa fé e não esteja
coberta pelos riscos do próprio contrato. Em suma, a pressuposição refere-se ao futuro (faltará
quando houver uma alteração superveniente de circunstâncias) e o erro refere-se ao presente
ou ao passado: o erro consiste na ignorância ou falsa representação, relativas a
circunstâncias passadas ou presentes, isto é, à situação existente no momento da celebração
do negócio; a pressuposição consiste na representação inexata de um acontecimento ou
realidade futura que se não vêm a verificar (quando falha, trata-se de uma imprevisão).
4.1. Modalidades.
I. Erro sobre a pessoa do declaratário;
Erro sobre a identidade (que será, quase sempre, um erro-obstáculo) e erro
sobre as qualidades.
Vide gratia: A doa um prédio a B, porque julga erradamente que B é filho de
um seu velho amigo.
II. Erro sobre o objeto do negócio;
Pode incidir sobre o objeto mediato (sobre a identidade ou as qualidades) ou
sobre o objeto imediato (erro sobre a natureza do negócio).
Vide gratia: A compra um prédio porque erradamente julga que o prédio tem 15
apartamentos ou compra um terreno julgando erradamente que ele tem água (erro
sobre o objeto media do tipo erro sobre as qualidades); A faz um contrato, julgando
que ele tem os efeitos da locação, quando afinal tem a eficácia de uma venda a
prestações (erro sobre a natureza do negócio).
105
III. Erro sobre os motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objeto do
negócio;
Trata-se de uma noção residual e corresponde ao erro acerca da causa (de
direito ou de facto) do Código anterior e abrange igualmente o erro sobre a pessoa de
terceiro.
Vide gratia: A arrenda uma casa, porque julga erradamente ter sido colocado
como funcionário público na respetiva localidade; A compra um prédio por julgar
erradamente ser o único herdeiro do falecido B.
106
determinantes da vontade (arts. 251.º e 252.º), o que, nesta hipótese, não acontece.
Porém, a questão: deverá o erro exercer uma intervenção essencial ou bastará uma
intervenção incidental, nos termos que ficaram definidos? Ora, parece que só o erro
essencial produzirá, uma vez presentes os restantes requisitos gerais e especiais, a
anulabilidade do negócio. Não obstante, o erro incidental não será irrelevante: o
negócio deverá fazer-se valer nos termos em que teria sido concluído sem o erro. No
entanto, deverá ter lugar a anulabilidade quando se não possa ajuizar desses termos
com segurança, ou, pelo menos, com bastante probabilidade e, ainda, quando se
prove que a outra parte os não teria acolhido (art. 292.º).
II. Propriedade;
Trata-se de um requisito que circunscreve o campo de aplicação autónoma do
erro-vício, como motivo de invalidade.
Assim, o erro só é próprio quando incide sobre uma circunstância que não seja
a verificação de qualquer elemento legal da validade do negócio. Consequentemente,
será impróprio quando, por exemplo, versar sobre os requisitos legais de forma
negocial, a ilicitude do objeto mediato ou imediato, a capacidade do errante51. Nestes
casos, o fundamento da invalidade não será o erro, mas o requisito legal cuja
deficiência, ignorada pelo errante, vicia o negócio; daí que o tipo de invalidade e o
respetivo regime não sejam os correspondentes ao erro-vício (anulabilidade), mas
antes os correspondentes ao vício de forma, à ilicitude do objeto negocial, à
incapacidade.
III. Escusabilidade;
Na vigência do Código de 1867, a doutrina tradicional portuguesa considerava
a ausência de culpa da parte do errante condição sine qua non da sua relevância no
sentido da anulabilidade – o erro indesculpável ou grosseiro não anularia o negócio.
Já MANUEL DE ANDRADE e FERRER CORREIA: para estes autores a derimência do erro
e a consequente anulabilidade teriam lugar mesmo em caso de erro culposo, pois a
situação do contraente não enganado já é tomada na devida conta, ao permitir-se a
anulação apensas quando se verifiquem certos requisitos especiais, que se julgou
corresponderem, pelo menos, à situação de suspeita sobre a existência do erro.
51 Note-se que já será um erro próprio, a integrar na hipótese do artigo 251.º (erro sobre as qualidades da pessoa
do declaratário), o desconhecimento da incapacidade do outro contraente. Nesta hipótese, o erro versa sobre uma
circunstância – a incapacidade do declaratário – que não é, para o errante, um fundamento de anulação, visto que
a incapacidade apenas pode ser invocada pelo incapaz ou pelos seus representantes. O errante poderá, portanto,
anular o negócio com fundamento em erro, uma vez verificados os restantes requisitos gerais (essencialidade) e
especiais de relevância. O erro sobre a capacidade só será impróprio, quando incidir sobre a capacidade do próprio
errante.
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Quais as hipóteses em que se poderá afirmar que o erro incide sobre a base
negocial52? São hipóteses do tipo daquelas em que a não verificação da
pressuposição releva e nelas estão sem dúvida abrangidos os casos em que um dos
contraentes tira dum bem um rendimento especial, por força do errado convencimento
da outra parte acerta da verificação dum evento não normal (hipóteses do tipo dos
coronation cases, bem como os negócios de concretização ou concentração), quando
haja uma falsa ideia acerca da existência ou extensão do direito de uma das partes.
São os casos em que a contraparte aceitaria ou, segundo a boa fé, deveria aceitar um
condicionamento do negócio à verificação da circunstância sobre que incidiu o erro,
se esse condicionamento tivesse sido proposto pelo errante – e isto porque houve
representação comum de ambas as partes da existência de certa circunstância, sobre
a qual ambas edificaram, de um modo essencial, a sua vontade negocial. Na fórmula
de CASTRO MENDES – discutível -, a ideia central do artigo 252.º/2 é a de um erro
bilateral sobre condições patentemente fundamentais do negócio jurídico.
Por fim, note-se que o Código de 1966 refere-se a erro sobre os motivos, por a
terminologia erro acerca da causa ser equívoca, dado a palavra causa ter, no
vocabulário jurídico, um sentido técnico (função económico-social própria de cada
figura negocial), embora sem tradição no direito português e um sentido comum
(simples motivo individual dos contraentes). Não se estabelece qualquer distinção
entre o erro de direito sobre os motivos determinantes e o erro de facto, cabendo a
ambas as modalidades o mesmo regime.
II. Erro sobre o objeto do negócio;
Está previsto na hipótese de erro sobre a identidade (na medida em que seja
um erro-vício e não um erro na declaração), quer na do erro sobre as qualidades. O
negócio será anulável nos termos previstos no artigo 247.º para o erro-obstáculo, isto
é, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade,
para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
Com efeito, cabem neste regime as mesmas considerações que fizemos
acerca do erro na declaração e tendentes à conclusão de que seria mais razoável ter-
se exigido o conhecimento ou a cognoscibilidade do erro. Soluções diferentes e mais
protetoras dos interesses do declaratário e do comércio jurídico têm vindo a ser
52 A teoria da base negocial foi formulada pelo jurista alemão P AUL OERTMANN, para enfrentar as consequências
injustas que adviriam de não se atribuir relevância às alterações extraordinárias e imprevistas verificáveis depois
da IGM. Para o Autor, a base negocial é a representação mental de uma das partes, reconhecida e não contestada
pela outra parte, ou a representação comum aos vários interessados no negócio, acerca da existência ou da
ocorrência de determinadas circunstâncias sobre a base das quais se constrói a vontade do agente.
110
53 O erro sobre pessoa de terceiro (sobre a identidade ou as qualidades deste) segue o regime geral do erro sobre
os motivos, isto é, o regime do artigo 252.º.
111
“erra”, sim, quanto ao futuro, é uma falha na previsão, é uma falsa ou deficiente previsão, cujo
enquadramento adequado é o artigo 437.º.
De facto, não se mostra necessário recorrer, atualmente, ao error in futurum, perante
a consagração clara, pelos artigos 437.º e ss., do instituo da alteração das circunstâncias.
Uma deficiente previsão do evoluir das circunstâncias releva se e na medida em que se
verifiquem os requisitos do artigo 437.º; não é um caso de erro nem tem autonomia em face
desta norma.
Na verdade, o erro-vício consiste no desconhecimento ou numa falsa representação
da realidade; se, pelo contrário, a falsa representação se reportar ao futuro, é a previsão que
falha ou o quadro de acontecimentos pressuposto que não se verifica ou evolui em termos
diferentes do previsto, caso em que será de recorrer ao instituto da alteração das
circunstâncias e apurar se essa falsa representação reúne os pressupostos que este instituto
requer para relevar juridicamente.
Em síntese, pode dizer-se que, se o comprador, após a celebração do negócio, der ao
prédio um destino diferente do que declarara e corresponder à sua intenção, o problema não
será de erro do vendedor, ao contrário do que tem sido decidido nos nossos tribunais.
Erro haverá se o vendedor se enganar quanto ao sentido da declaração do comprador,
que nunca pensou, por hipótese, dar-lhe o destino que o vendedor julgara. Mas haverá, então,
um vício na formação da vontade e não uma mudança do destino do bem. Assim como poderá
é haver dolo do comprador se este procedeu com intenção de enganar a outra parte quando
emitiu aquela declaração.
Ora, a situação poderá ser enquadrada no âmbito do não cumprimento do contrato se
o destino declarado constituir uma obrigação do comprador, o que, no entanto, além de ser
raro, retirará ao problema a sua especificidade, pois deixará de ser um problema respeitante
ao fim do contrato, para passar a ser uma questão de relativa ao não cumprimento. Em todo
o caso, haverá que apurar, por interpretação, o sentido da declaração negocial sobre o destino
do prédio, podendo haver lugar à resolução do contrato (arts. 801.º/2 e 802.º/1).
Naturalmente, a via mais adequada para proteger o interesse do vendedor será a
inclusão de uma condição ou de uma cláusula resolutiva, que lhe permitam reaver o prédio
caso o comprador não lhe dê o destino declarado.
Na falta de estipulação, será de ponderar se o problema envolve uma alteração da
base do negócio, com o consequente direito à resolução ou modificação do contrato, nos
termos do artigo 437.º. Se não for assim, poder-se-á tratar de puros motivos do vendedor, de
per si irrelevantes, na falta de acordo das partes, de modo paralelo ao que sucede com o erro
sobre os motivos (art. 252.º/1).
Todavia, ter-se-á de considerar que as partes estão vinculadas não apenas às
obrigações que, expressa ou tacitamente, hajam assumido, mas também a todas aquelas que
112
5. O dolo.
5.1. Conceito.
A noção do dolo consta do artigo 253.º/1k. Trata-se de um erro determinado por um
certo comportamento da outra parte. Ora, só existirá dolo quando se verifique o emprego de
qualquer sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o
autor da declaração (dolo positivo ou comissivo), ou quando tenha lugar a dissimulação, pelo
declaratário ou por terceiro, do erro do declarante (dolo negativo, omissivo ou de consciência).
Com efeito, pode tratar-se de um processo enganatório simples (mentiras) ou de uma
mise en scène mais complicada (seja a allegatio falsi, seja suppressio veri). Porém, não existe
dolo se há um erro provocado por informações inexatas, sem intenção ou consciência de
engano, embora com negligência. Este erro provocado culposamente, a que os ingleses
chamaram misrepresentation, pode fundamentar uma obrigação de indemnizar, a cargo de
quem provocou o erro (art. 227.º/1).
Na Alemanha, tem-se discutido se a culpa in contrahendo pode conduzir à própria
liberação do contrato, através de uma restituição natural que, nos resultados, seria de
equiparar à anulação, em casos em que não existiu dolo. A jurisprudência do BGH veio exigir,
para a desvinculação com fundamento em culpa in contrahendo um dano patrimonial (o
instituto distinguir-se-ia, não por virtude da eficácia in rem da anulação, diversa do direito a
revogação, mas por não visar a proteção da liberdade de decisão jurídico-negocial, e antes
do património. Todavia, partindo de um conceito de património que inclui igualmente a
liberdade de disposição patrimonial, considerou existente um dano patrimonial logo pelo facto
de se ficar vinculado a um contrato, mesmo que este não seja em si um mau negócio. Contra
a desvinculação com fundamento em culpa in contrahendo, quer por via de uma constituição
autónoma do direito que leve à extensão teleológica do regime do dolo, quer por via da
admissão de um instituo geral nesse sentido, MANFRED LIEB. Entre nós, SINDE MONTEIRO
admite a desvinculação em casos de indução negligente em erro, desde que o erro não seja
relevante nem exista dolo, mas propõe a aplicação do prazo de um ano do artigo 287.º/1,
113
como forma de preencher uma lacuna oculta no artigo 227.º/2, e de evitar contradições com
o regime do dolo.
5.2. Modalidades.
▪ Dolo positivo e dolo negativo;
A distinção consta do artigo 253.º/1.
Importa referir que o dolo negativo, a que a lei anterior chamava de má fé e a
doutrina reticência e dolo de consciência, não existe em todos os casos de silêncio
perante o erro em que versa o declarante. A omissão de esclarecimento só constituirá
dolo ilícito quando exista um dever de elucidar, por força da lei, de estipulação negocial
ou das conceções dominante no comércio jurídico (art. 253.º/2). Por conseguinte, há
que atender ao tipo de negócio e ao tipo de relações entre as partes: uma relação de
confiança permanente pode fundamentar um dever de esclarecer, mas o mesmo não
existirá, em regra, nos negócios especulativos, por se dever atender ao risco com que
as partes operam. Por fim, note-se que são aqui, também, relevantes os ditames da
boa fé, a que se refere o artigo 227.º/1, cuja observância pode impor o cumprimento
de deveres de informação e de esclarecimento – deveres, cuja intensidade e alcance
podem variar segundo diversas circunstâncias, tais como a forma e o custo de
aquisição da informação, o objeto da informação e a situação da contraparte.
Costumava assinalar-se à distinção o interesse prático de o dolo negativo de
terceiros não ser relevante. Essa conclusão não tem hoje qualquer fundamento, pois
o artigo 253.º/1 fala expressamente em dissimulação de terceiro; ponto é que exista o
dever de elucidar por parte do terceiro reticente.
▪ Dolus bonus e dolus malus;
Só é relevante, como fundamento de anulabilidade e responsabilidade, o dolus
malus. A lei tolera a simples solércia ou astúcia, reputada legítima pelas conceções
imperantes num certo setor negocial. Com efeito, a lei declara não constituírem dolo
ilícito, sendo, portanto, dolus bónus, as sugestões ou artifícios usuais, considerados
legítimos, segundo as conceções dominantes do negócio jurídico (art. 253.º/2).
Do confronto do Código de 1867 com a lei atual, resulta que, enquanto a lei
anterior fazia apelo ao critério da vaguidade e generalidade das considerações que os
contraentes fazem entre si sobre proveitos ou prejuízos, agora se preferiu o critério da
usualidade ou normalidade.
▪ Dolo inocente e dolo fraudulento;
No primeiro, há mero intuito enganatório, enquanto que no segundo há o intuito
ou a consciência de prejudicar. A distinção não tem interesse prático, em ambos os
casos se verificando os mesmos efeitos.
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54 A obrigação de indemnizar é um efeito do dolo, autónomo relativamente à anulabilidade, surgindo quando não
se verifiquem todos os requisitos do direito de anular ou este tenha já caducado. O fundamento legal da obrigação
de indemnização radica, além do artigo 227.º/1, no artigo 253.º/2, do qual resulta a contrario ser o dolo um ato
ilícito.
115
situação em que estaria se fossem verdadeiros os factos fingidos perante ele55. Não obstante
a falta de um preceito, deve ter-se por excluída a eficácia da renúncia prévia a estes efeitos.
Atente-se, agora, nas condições de relevância do dolo do declaratário, como motivo
de anulação.
Em primeiro lugar, deve tratar-se de um dolus malus (art. 253.º/2).
Depois, deve ser essencial ou determinante, embora o dolo incidental também possa
vir a conduzir à anulação. Este requisito tem algum apoio no artigo 254.º/1. Na hipótese de
dolo negativo, trata-se de uma causalidade hipotética.
Por último, deve existir no deceptor a intenção ou consciência de induzir ou manter em
erro. É um elemento da definição do dolo, conforme dispõe o artigo 253.º/1. Segundo ele,
basta a consciência de criar ou manter uma situação de erro56, mesmo que esse não seja o
propósito de quem a cria ou mantém. Se essa consciência existe e, apesar dele, se prossegue
ou mantém o comportamento que gera ou faz perdurar o erro, há dolo ilícito.
Assim, não é necessário que o dolo seja unilateral. O próprio dolo bilateral ou recíproco
pode ser invocado como fundamento de anulação (art. 253.º/1). Tal solução é a que
logicamente resulta do facto de o fundamento da anulabilidade do dolo ser a viciação da
vontade.
Quanto às condições de relevância do dolo de terceiro como motivo de anulação57,
refere-se-lhe o artigo 254.º/2, devendo verificar-se os requisitos anteriores. Não obstante, há
que atentar numa distinção.
Se o declaratário conheceu ou lhe foi cognoscível o dolo de terceiro, o negócio será
totalmente anulável. Desde logo, neste caso, haverá dolo negativo do próprio declaratário, se
ele conheceu efetivamente os artifícios de terceiro; a lei, todavia, estabelece a sanção da
anulabilidade, mesmo para a hipótese da simples cognoscibilidade do declaratário. Por outro
55 Na disciplina jurídica do contrato de compra e venda, deparam-se-nos, todavia, normas que conferem ao
comprador enganado direitos mais amplos do que os correspondentes ao regime geral (arts. 906.º e 914.º, bem
como o artigo 910.º, este aplicável à venda de coisas defeituosas por força do artigo 913.º/1). Acresce que o autor
do dolo pode incorrer em responsabilidade penal.
56 Ou, mesmo, da possibilidade de tal situação poder ser criada ou mantida, como no caso da parte que faz meras
conjeturas, sem indicar que o são, ou que concede informações às escuras, sem ter elementos para tal (por
exemplo, a afirmação às escuras de que um automóvel não sofreu qualquer acidente). Tratar-se-á de um caso de
dolo eventual, mas que gera anulabilidade.
57 Se o dolo é exercido por um representante do declaratário ou por auxiliares (agentes) deste na conclusão do
negócio, a situação será tratada como dolo do declaratário (assi, defendendo a aplicação do artigo 800.º/1). Na
hipótese de um devedor induzir dolosamente outrem a ser fiador da sua dívida a um determinado credor, o fiador
enganado não pode invocar dolo do declaratário para se exonerar da obrigação fidejussória que assumiu perante
o credor. Com efeito, o devedor (deceptor) é um terceiro relativamente ao credor; o seu interesse primário é
pessoal, não sendo o devedor um representante da pessoa ou dos interesses do credor.
116
lado, se o declaratário não conheceu nem devia conhecer o dolo de terceiro, o negócio só
será anulável, se ao terceiro deceptor adveio, por força do negócio, diretamente, algum direito
(isto é, se existir no contrato cláusula a seu favor) e a anulação será limitada à cláusula a
favor de terceiro58 (invalidade parcial).
6. A coação.
6.1. Conceito.
O conceito de coação consta do artigo 255.º/1 e consiste no receio de um mal de que
o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. É, portanto, a
perturbação da vontade, traduzida no medo resultante de ameaça ilícita de um dano (de um
mal), cominada com o intuito de extorquir a declaração negocial.
Só há vício da vontade quando a liberdade do coacto não foi totalmente excluída,
quando lhe foram deixadas possibilidades de escolha, embora a submissão à força fosse a
única escolha normal.
Com efeito, não basta um simples medo ou receio; a lei exclui, desde logo, o chamado
temor reverencial (art. 255.º/2). Torna-se necessário que o receio provenha de uma ameaça
ilícita. Exige-se, igualmente, que a cominação do mal vise extorquir a declaração negocial.
6.2. Modalidades.
I. Coação física (absoluta) e coação moral (relativa);
A coação física, absoluta ou ablativa reduz o coagido à situação de mero
instrumento ou autómato; a coação moral ou relativa ou compulsiva reduz a liberdade
58 O negócio é anulável em face do terceiro que foi o autor do dolo; logo, todo o negócio é inválido na hipótese de
um seguro de vida em dolo do beneficiário.
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do coagido, mas não a elimina (neste sentido, coacta voluntas, sempre voluntas),
sendo o coagido ameaçado de um mal se não emitir a declaração; a liberdade do
coacto é cerceada, mas não excluída, na coação moral, pois existe sempre uma opção
entre padecer o mal cominado ou expor-se à sua consumação e celebrar o negócio.
A primeira dá lugar à inexistência do negócio (art. 246.º); a segunda à mera
anulabilidade (art. 256.º).
II. Coação principal e coação acidental;
A distinção põe-se nos termos expostos do dolo e do erro e o seu interesse é
idêntico.
III. Coação dirigida à pessoa ou à honra ou à fazenda do declarante ou de terceiro;
No regime geral da coação, não há qualquer diferença de tratamento,
consoante o bem ameaçado pela cominação ou a pessoa diretamente visada.
A lei, ao contrário de outras legislações, omitiu qualquer restrição quanto à
natureza do vínculo existente entre o coagido e o terceiro, a quem a ameaça se refere,
por considerar arbitrária qualquer especificação.
IV. Coação exercida pelo declaratário e coação exercida por terceiro.
A lei estabelece uma ligeira diferença entre as condições de relevância da
coação, como motivo de anulabilidade, num e noutro caso.
118
daquele fim com aquele meio (v.g.: ameaça de recurso às vias de direito, para
conseguir uma vantagem indevida; podendo, também, tratar-se de uma ameaça de
exercício abusivo extrajudicial de um direito, como, por exemplo, uma doação
consentida por um velho paralítico aos seus meeiros, numa parceria agrícola, que
ameaçavam abandoná-lo).
Assim sendo, não haverá coação, se há apenas a ameaça do uso de um direito
para conseguir a satisfação ou garantia de um direito existente – por exemplo, ameaça
de penhora do devedor, se ele não pagar ou não fizer dação em pagamento razoável,
ou oferecer garantia, ou subscrever um documento de dívida (art. 255.º/3).
II. Coação exercida por terceiro.
A coação exercida por terceiro provoca a anulabilidade do negócio e põe a
cargo do coactor uma obrigação de indemnizar o declarante (coagido) e o declaratário
(se não for cúmplice do terceiro).
Ao contrário do dolo de terceiro, o negócio será anulável na sua totalidade
(mesmo em face do declaratário), quer o coactor seja beneficiado por cláusula a seu
favor, existente no contrato, quer não seja, e haja ou não conhecimento ou
cognoscibilidade do vício por parte do declaratário (art. 256.º).
Com efeito, a lei desaprova a coação em tão forte medida que, em face dela, a
proteção da contraparte cabe, mesmo que esta nada soubesse ou devesse saber da
coação. Acresce, como justificação racional desta diversidade de regimes, que já
estava consagrada no direito anterior, a circunstância de o coagido por terceiro, a não
poder invocar a coação, não poder invocar outro vício da vontade, enquanto o
deceptus, mesmo que não possa invocar o dolo de terceiro, tem sempre a eventual
possibilidade de invocar o erro simples.
O CC, equiparando os efeitos da coação de terceiro aos da coação do
declaratário, exige, todavia, exclusivamente para a primeira, os dois requisitos
seguintes: gravidade do mal cominado, apreciada objetivamente, mas em relação aos
vários tipos de indivíduo; justificado receio da consumação do mal, isto é, deve ser
uma ameaça de viável execução, atendendo à capacidade de resistência, em
confronto com as possibilidades do cominante, do tipo médio de indivíduo com as
condições pessoais do declarante.
Por fim, note-se que estes requisitos eram exigidos, dentro da tradição
romanista, para a própria coação do outro contraente, consagrando assim uma ideia
extrema de autorresponsabilidade. Tal solução não tem justificação, à luz da ideia de
que a relevância civilística da coação, apenas, por equacionação da viciação da
vontade do coagido com a proteção da confiança da contraparte: ora, esta não merece
119
qualquer proteção quando for o autor da coação, mas já terá o direito de esperar uma
resistência do coagido à ameaças de terceiro.
7. O estado de necessidade.
7.1. Conceito.
Trata-se de uma situação de receio ou temor gerada por um grave perigo que
determina o necessitado a celebrar um negócio para superar o perigo em que se encontra.
Modalidades possíveis, consoante a natureza do facto que lhe dá origem: facto natural
ou facto humano.
120
59 O requisito exploração implica necessariamente momentos subjetivos, a saber, a consciência das situações
tipificadas no artigo e a consciência da causalidade entre essas situações e os benefícios recebidos, embora, na
prática, este segundo momento (causalidade) resulte, muitas vezes, de uma prova por presunções.
121
8. Incapacidade acidental.
122
1. Conceito.
1.1. A representação e a autonomia privada.
1.2. Representação e mandato.
2. Espécies.
3. Confronto com institutos afins.
4. Admissibilidade da representação.
5. Pressupostos da representação.
5.1. Representação sem poderes e abuso de representação.
5.2. Aparência de poderes de representação.
5.3. O negócio consigo mesmo.
123
1. Conceito.
124
2. Espécies.
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▪ R. e simples núncio;
O representante, ao contrário do núncio, nunca recebe, nem mesmo quando a
procuração é especialíssima, uma mandato absolutamente especificado e imperativo.
Decide, pelo menos, o se do negócio e, frequentemente, mais, isto é, o conteúdo. O
representante emite uma declaração em nome de outrem; o núncio transmite uma
declaração de outrem. O núncio é um mero longamanus. O representante consuma;
o núncio transmite o já consumado (REINACH).
Quanto ao tratamento jurídico, haverá que ter em conta dois pontos.
Antes de mais, o representante (voluntário) não precisa de ter plena
capacidade legal, mas carece da capacidade natural de entender e querer, exigida
pela natureza do negócio que haja de efetuar (art. 263.º); quanto ao núncio, bastará a
capacidade natural para transmitir a declaração de vontade, podendo uma criança
atuar como núncio. A plena capacidade legal do representante é desnecessária, o que
se justifica por o negócio ser indiferente para o representante; se o representante
mandatar, por exemplo, um menor, age por sua conta e risco.
126
127
128
4. Admissibilidade da representação.
5. Pressupostos da representação.
129
60 Nos casos de extinção dos poderes e de abuso de representação, a situação da contraparte no negócio
representativo já resulta protegida pelos artigos 266.º e 269.º.
130
com o devido cuidado teria podido conhecer e impedir, e a contraparte podia de acordo com
a boa fé compreender a conduta do representante no sentido de que ela não teria podido ficar
escondida do representado com a diligência devida, e que este, portanto, a tolera.
Mesmo nestas hipóteses, a questão tem hoje, porém de ser equacionada
considerando o artigo 23.º/1, do Decreto-Lei nº 178/86, o qual prevê, sob a epígrafe
representação aparente, que o negócio celebrado por um agente sem poderes de
representação é eficaz perante o principal se tiverem existido razões ponderosas,
objetivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a
confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do agente, desde que o principal (o
representado) tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro. Tal solução
é de alargar, pelo menos, a todos os casos em que a representação se verifica no quadro de
contratos de cooperação ou de colaboração, no domínio do direito comercial.
61 Sendo esta a razão de ser da proibição, a anulabilidade não terá lugar se o negócio excluir por sua natureza a
possibilidade de um conflito de interesses, ou só trouxer vantagens ao representado, pois, nessas hipóteses,
desaparece a ratio da proibição do autocontrato.
131
132
Deve distinguir-se entre: objeto imediato ou conteúdo (efeitos jurídicos a que o negócio
tende) de objeto mediato ou objeto stricto sensu (consiste no quid sobre que incidem os efeitos
do negócio. Os artigos 280.º e ss. utilizam a expressão objeto negocial neste sentido
complexivo, abrangendo quer o conteúdo ou efeitos do negócio, quer o objeto propriamente
dito ou em sentido estrito.
2. Exigências legais.
Os requisitos do objeto negocial são formulados no artigo 280.º. Dele se infere serem
condições de validade do negócio a possibilidade física ou legal (ad impossibilia nemo
tenetur), a não contrariedade à lei (licitude), a determinabilidade, a não contrariedade à ordem
pública e a conformidade com os bons costumes do objeto negocial.
2.1. Determinabilidade.
O objeto negocial deve estar individualmente concretizado no momento do negócio,
ou poder vir a ser individualmente determinado, segundo um critério estabelecido no contrato
ou na lei. Esta exigência refere-se, sobretudo ao objeto mediato do negócio. Tem interesse,
a este respeito, o artigo 400.º, acerca da determinação da prestação nos direitos de crédito,
pois, com efeito, o objeto da prestação, nas relações obrigacionais, é, igualmente, o objeto
mediato do negócio jurídico donde essas relações promanam. Ora, estabelece-se, neste
artigo, que a determinação da prestação pode ser realizada por uma das partes ou por
terceiro, bem como pelo tribunal, devendo ser feita segundo juízos de equidade, se outros
critérios não tiverem sido estipulados.
Por conseguinte, devem considerar-se nulos os negócios cujo objeto não foi
determinado nem é determinável, por nem as partes nem a lei terem estabelecido o critério
de harmonia com o qual se deva fazer a individualização do objeto. É o caso dos negócios de
venda de um objeto designado com suma generalidade, pois o contrato não envolveria
qualquer vinculação para o vendedor, que poderia desonerar-se, entregando uma coisa
insignificante – um caso em que a exigência de determinabilidade tem sido discutida é o da
fiança de todas as obrigações futuras de uma pessoa.
133
62 Não é fisicamente impossível o objeto, atualmente inexistente, de uma compra e venda, se as partes o tiveram
em vista como um bem futuro (art. 880.º). Em princípio, o preço não é devido, se a transmissão do bem não chega
a realizar-se (emptio rei separatae), mas, quando as partes atribuem ao contrato caráter aleatório (emptio spei), a
solução é oposta (art. 880.º/2).
134
contrato-promessa, as partes se obrigam a celebrar certo contrato que não pode ser
validamente concluído, pode dizer-se que o objeto mediato do contrato-promessa é
legalmente impossível. É o caso, por exemplo, da promessa de venda de uma herança de
pessoa viva (art. 2028.º/2).
Parecem, igualmente, casos de impossibilidade legal as cessões de créditos (art.
577.º) ou de posições contratuais (art. 424.º) emergentes de contratos inválidos.
Será contrário à lei (ilícito) o objeto de um negócio jurídico, quando viola uma
disposição da lei, isto é, quando a lei não permite uma combinação negocial com aqueles
efeitos (objeto imediato ou sobre aquele objeto mediato). Note-se que devem ser
considerados contrários à lei, não só os negócios que frontalmente a ofendem, mas também,
quando se constate, por interpretação, que a lei quis impedir de todo em todo, um certo
resultado……FODEU
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1. Condição.
2. Termo.
3. Cláusula modal.
4. Cláusula penal.
5. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil.
6. O problema da pressuposição. – é matéria.
136
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A ineficácia em sentido amplo tem lugar sempre que um negócio jurídico não produz,
por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que
tenderia a produzir, segundo o teor das declarações respetivas. Estas as suas espécies:
I. Invalidade;
Consiste na ineficácia que provém de uma falta ou irregularidade dos
elementos internos (essenciais, formativos) do negócio.
II. Ineficácia stricto sensu.
Define-se pela circunstância de depender de alguma circunstância extrínseca
que, conjuntamente com o negócio, integra a situação complexa (fattispecie) produtiva
de efeitos jurídicos.
Por fim, note-se que existem casos de cessação dos efeitos negociais – e, portanto,
de ineficácia em sentido lato – por força de eventos posteriores ao momento da sua
celebração, designadamente: a resolução, a revogação, a caducidade e a denúncia.
138
2.1.2. Inexistência.
A inexistência é uma figura autónoma, sendo que podemos dizer estar perante esta
figura quando nem sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico (a
materialidade correspondente à noção de tal negócio), ou, existindo embora essa aparência
material, a realidade não corresponde a tal noção.
Alguns autores contestaram a legitimidade de tal categoria. Assim, G ALVÃO TELLES
sustentou ser a categoria da inexistência jurídica eliminável, por deverem as respetivas
hipóteses ser enquadradas ou na nulidade ou na inexistência material. Diversamente, MANUEL
DE ANDRADE admitia a autonomia da figura da inexistência jurídica, assinalando-lhe, como
interesse prático, a possibilidade de os negócios nulos poderem produzir certos efeitos laterais
ou secundários, o que não aconteceria com esta figura.
Ora, parece que a categoria em análise é de admitir, pois, com efeito, pode haver
hipóteses em que nem certos efeitos secundários dos negócios devam ter lugar (daí que não
se trate de nulidade), mas, por outro lado, exista a aparência da materialidade correspondente
à noção do negócio jurídico (daí que não se trate de inexistência material).
Neste sentido, o CC consagrou, explicitamente, esta figura jurídica dentro das
invalidades do casamento, enumeradas no artigo 1628.º, determinando-se no artigo 1630.º
que a inexistência pode ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo,
independentemente de declaração judicial, e que o casamento inexistente não produz
qualquer efeito jurídico e nem sequer é havido como putativo. Quanto à admissibilidade da
figura como categoria geral do negócio jurídico, o CC não é explícito. Por fim, julgamos ser a
categoria da inexistência a que corresponde às estatuições dos artigos 245.º e 246.º, pelo
menos, em caso de falta de vontade de ação ou de coação física.
2.1.3. Invalidade.
▪ Nulidade;
O negócio jurídico nulo não produz, desde o início, por força da falta ou vício
de um elemento interno ou formativo, os efeitos que tendia. Ora, note-se que o regime
e os efeitos mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em
motivos de interesse público predominante.
Regime das nulidades:
139
▪ Operam ipso iure, não se tornando necessário intentar uma ação ou emitir uma
declaração nesse sentido, nem sequer uma sentença judicial prévia, podendo
ser declaradas ex officio pelo tribunal;
▪ São invocáveis por qualquer pessoa interessada, isto é, pelo sujeito de
qualquer relação jurídica afetada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos
efeitos a que o negócio se dirigia (art. 268.º);
▪ São insanáveis pelo decurso do tempo, isto é, são invocáveis a todo o tempo.
Contudo, esta possibilidade pode ser precludida, no aspeto prático, pela
verificação da usucapião (prescrição aquisitiva), se a situação de facto foi
atuada de acordo com os efeitos a que tendia o negócio;
▪ São insanáveis mediante confirmação (excetua-se o previsto nos artigos 895.º,
968.º e 2309.º). Pode, todavia, ter lugar um sucedâneo da confirmação: a
renovação ou reiteração de negócio nulo. Com efeito, existem algumas
diferenças a assinalar entre a confirmação e a renovação: a confirmação é um
negócio unilateral, enquanto a renovação é um novo contrato; a confirmação
tem efeito retroativo, mesmo em relação a terceiros, enquanto a renovação
opera ex tunc, mesmo que o fundamento da nulidade tenha desparecido,
embora, por estipulação ad hoc, possa ter eficácia retroativa nas relações inter
partes. Assim, se as partes renovam o negócio nulo, não se verificando já o
motivo de nulidade, a retroatividade é meramente obrigacional, isto é, vincula
só as partes sem ser oponível a terceiros. Por fim, a renovação pode ter lugar
por declaração tácita nos termos gerais, mas exige o conhecimento da
nulidade, ou dúvidas quanto à validade do negócio.
▪ Anulabilidade.
O negócio anulável, não obstante a falta ou vício de um elemento interno ou
formativo, produz os seus efeitos e é tratado como válido, enquanto não for julgada
procedente uma ação de anulação; exercido, mediante esta ação, o direito potestativo
de anular pertencente a uma das partes, os efeitos do negócio são retroativamente
destruídos. Ora, as anulabilidades fundam-se na infração de requisitos dirigidos à
tutela de interesses predominantemente particulares.
Regime das anulabilidades:
▪ Têm de ser invocadas pela pessoa dotada de legitimidade, não podendo ser
declaradas ex officio pelo juiz. Assim, exigem uma ação especialmente dotada
a esse efeito, ressalvada a possibilidade da sua arguição por via de exceção,
isto é, a possibilidade de as pessoas legitimadas se defenderem, arguindo a
anulabilidade de qualquer negócio jurídico que contra elas seja invocado (art.
287.º). Com efeito, não basta uma mera declaração à contraparte, embora
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cuja inadmissibilidade parece resultar da fórmula geral do artigo 12.º/2, primeira parte), mas
deve ter-se por implícita.
Além do mais, o artigo 287.º/1, ao estabelecer as anulabilidades que podem ser
arguidas dentro do ano subsequente à cessação do vício, pressupõe que as invalidades não
deixam de existir, por desaparecer o motivo que as originou.
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