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Alguém cantando: O

Cantautor e afirmação do
próprio poético
Alberto Kury Pereira de Lima
Processos Criativos
Orientador: Antônio Jardim
UFRJ
E tudo, no fim, é
canção. Mesmo sem
querer. Mesmo sem
cantar.
Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém
A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão
O Cantautor é aquele que atende a voz
artística do seu próprio
o idioma grego surge para o ocidente a compreensão do que é próprio e surge com a
palavra autós, palavra que no grego diz tanto o mesmo, quanto o pronome pessoal reto da
terceira pessoa do singular, isto é o ele, o outro. O mesmo e o outro num só gesto, o gesto de
vigor de uma presença. Assim, o que é próprio é o que tem a capacidade de num
dimensionamento conjugar num só sentido duas direções: de lá pra cá, e daqui pra lá. De
mim para um outro e de um outro para mim... Ter próprio, desse modo, não é fazer do próprio
um meio de imposição a qualquer alteridade, ter próprio é estar articulado vigorosamente com
o que é. É ser, essencialmente, para além dos ajuizamentos sejam eles pré-antigos,
modernos ou pós-modernos. Ser próprio é não estar submerso às sujeições estéticas,
históricas, ou analíticas. Ser próprio é ser. Significa, ou se é próprio ou se é uma reificação
histórica, estética ou analítica, ou quaisquer combinações destas.
O próprio é o destemor perante as adjetivações. Ser próprio é estar numa substantividade
bastante. Repito: Como diz Caeiro: “as coisas não têm significação: têm existência”, e
existência aqui diz presença, quer dizer, essência e aparência definitivamente reunidas, sem
mais. Significa: as coisas estão substantivamente além das adjeções.
(JARDIM, 1998)
TUDO É CANÇÃO

O termo Cantautor é amplo. Alguns Cantautores sequer cantam. O Cantautor não


é obrigatoriamente músico no sentido restrito do termo. Ele se manifesta em
diversos campos de ação artísticos e do pensamento, uma vez que houve a
separação dos existires artísticos e dos pensares. Um gesto próprio, congelando
um instante que não se repete no nunca nem por ninguém.

Como sentido, o gesto originário, o gesto poético, é o

componente inaugural do que pode ser uma dimensão originária

de linguagem. É desse modo que se inicia uma possibilidade de

relacionamento entre futebol e filosofia.


(Jardim, 2010)
E porque é cantada?

E a voz? Porque o canto, a música pressupõe


ritmo, metro, ordenamento, beleza ou
Voz não só no sentido restrito ao aparelho feiura, prazer até no desprazer. O Espanto
fonador, puramente funcional, e que produz da ação no espaço-tempo se desvelando
o canto de alturas definidas, mas no e anoitecendo, se escondendo.

z
vo
sentido de expressão interna. A que Tem cadência. O canto é a própria
inaugura o seu próprio ser no mundo. narrativa. Gera envolvimento ao
ouvinte/espectador. Seja em um livro, um
filme, uma peça de teatro, etc.
Quando não é música - o canto - não
envolve. Não memoriza, não vai ao cerne,
Alguém cantando é bom de se ouvir
ao núcleo. Não é de cór, não tem cor. Não
cora.
z

A memória se dá nesse contato com essa


vo

presença deslumbrante, envolvente do


O canto que é de graça. É a urgência do espanto “Um poema é mais memorizável
z

cantar. que um parágrafo em prosa; uma canção


Vo

é mais memorizável que um poema.


“o verbo é orientando em direção ao (HAVELOCK, 1996)
prazer” (VERNANT, 2010).
O AEDO

Na grécia arcáica, o Aedo era o cantor, poeta e compositor que acompanhava sua palavra
cantada com uma lira e era uma combinação de muitos arquétipos sociais/laborais que
conhecemos hoje. O poeta, o dançarino, o repórter, o professor, o sacerdote, etc.

Ser aedo na Grécia Antiga era ter o papel de compor e cantar, acompanhado de seu
instrumento de corda, a phórminx, poemas de caráter épico. A própria etimologia da palavra
nos demonstra o ofício iminente do aedo: esse nome vem de aidós, que significa cantor
(COLOMBANI, 2005, pág.6)

A canção/poesia, ou mélos, ou mousiké, ōidé ou áisma era muito mais do que um


instrumento de entreter. Ela transcendia funções e consolidava a própria linguagem em
desenvolvimento.

A linguagem era a própria manifestação divina, e não um suporte ou meio. Arckhé. O


princípio presente em todas as coisas em todas as fases da existência, era o princípio
inaugural dessa linguagem.

Esses versos são memorizados e declamados em um fluxo declamatório, o que gerava uma
impressão mágica. O treinamento era rigoroso. A poesia desses versos não era uma
projeção de um sagrado ou uma interpretação de um sagrado distante. A palavra cantada
era o próprio sagrado e a única forma de acessá-lo.
HOMERO E HESÍODO - CANTORES ORIGINÁRIOS

Como testemunha São eles que, em seus poemas, fixaram para


os gregos uma teogonia, atribuíram aos deuses seus
qualificativos, repartiram Heródoto, “Homero e Hesíodo viveram
400 anos antes de mim.entre eles as honras e as competências,
desenharam suas figuras” (HERÓDOTO, História, II, 53).
A AUTORALIDADE ENQUANTO URGÊNCIA DO FAZER

"Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o


manda escrever; examine se estende suas raízes pelos
recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo:
morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo:
pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua
noite:"Sou mesmo forçado a escrever?" Escave dentro de si
uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar
àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então
construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua
vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá
tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se
então da natureza. Depois procure, como se fosse o
primeiro homem, a dizer o que vê, vive, ama e perde.
(...)"HILKE,
O anseio do cantautor por expressão é constante, geralmente com grande
produção artística. São geralmente originais em elementos como timbre da
voz, no caso dos cantores, e/ou harmonizações pouco ortodoxas. Nos
cineastas, são experimentais e destroem os signos consagrados do
cinema. No primeiro momento, causam estranheza.

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(Carlos Drummond de Andrade)

Não se prendem à gêneros, trafegando em muitos ou até mesmo fundando


alguns. Criam palavras. São formadores de opinião em seu tempo, e se
envolvem em causas para além dos seus domínios artísticos de atuação.
A IN-UTILIDADE DA OBRA:

Tenho em mim esse atraso de nascença.


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Eu fui aparelhado
Não gosto das palavras para gostar de passarinhos.
fatigadas de informar. Tenho abundância de ser feliz por isso.
Dou mais respeito Meu quintal é maior do que o mundo.
às que vivem de barriga no chão Sou um apanhador de desperdícios:
tipo água pedra sapo. Amo os restos
Entendo bem o sotaque das águas. como as boas moscas.
Dou respeito às coisas desimportantes Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
e aos seres desimportantes. Porque eu não sou da informática:
Prezo insetos mais que aviões. eu sou da invencionática.
Prezo a velocidade Só uso a palavra para compor meus silêncios.
das tartarugas mais que a dos mísseis. (Manoel de Barros)
Nossa palavra "realidade" só traduz adequadamente a palavra fundamental de Aristóteles
para a vigência do vigente se pensarmos "real" e "realizar" de modo grego, no sentido de
tra- zer para (her) o desencoberto, de levar para (vor) a vigência. "We- sen", "viger" é a
mesma palavra que "wiihren", "durar", "permane- cer", "ficar". Pensamos a vigência, como a
duração daquilo que, tendo chegado a desencobrir-se, assim perdura e permanece.

Os romanos traduzem, isto é, pensam pyov a partir da operatio, entendida, como actio, e di-
zem para Épyna actus, uma palavra inteiramente outra e com um campo semântico
totalmente diverso. O vigente numa vigência apare- ce, então, como o resultado de uma
operatio. O resultado é o que su- cede a uma actio, é o sucesso. O real é, agora, o
sucedido, tanto no sentido do que aconteceu, como no sentido do que tem êxito. Todo
sucesso é produzido por algo que o antecede, a causa. É, então, que o real aparece à luz
da causalidade da causa efficiens. Até Deus é repre- sentado na teologia, não na fé, como
causa prima, causa primeira. Por fim, na busca da relação causa-efeito, a sucessividade vai
se deslocando para o primeiro plano e com ela a sucessão temporal. (Heidegger, pág 43)
VIDA E OBRA JUNTAS:

“Como definir a 'canção crítica'? Poderíamos recorrer primeiramente a um recorte temporal,


situando-a no final dos anos 50 e ao longo dos 60. Década de 1960 em diante: os
compositores passaram a comentar todos os aspectos da vida, do político ao cultural,
tornando-se 'formadores de opinião'. Na medida em que a canção popular, no Brasil,
desenvolveu um estatuto peculiar, tornando-se um lócus para onde passaram a confluir
informações de diversas áreas, artísticas, culturais e políticas, o compositor criou a
identidade de intelectual, num sentido mais amplo do termo. A canção popular tornou-se
assim o veículo por excelência do debate intelectual... a crítica também era dirigida aos
fatos culturais e políticos do país, de maneira congruente com a proposta destes
compositores de articular arte e vida. O compositor popular tornou-se um crítico. Ao operar
criticamente no processo de composição, o compositor popular fez uso da metalinguagem,
da intertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversas formas de citação,
como a paródia e o pastiche. E ao estender a atitude crítica para além dos aspectos formais
da canção, o compositor popular tornou-se um pensador da cultura.”
(Santusa Naves, 2005)

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