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Introdução:

§8
Jean Starobinski escreve a esse respeito: “Para que Rousseau escreve seus Devaneios?
Para si mesmo, somente para si. De que trata nesta última obra? De seu destino. O autor,
que tomou como si mesmo o destinatário, toma também a si mesmo como tema de seu
discurso.

§ 13
Talvez o quinto devaneio, onde o eu, ator e observador, ao mesmo tempo, observa seu
próprio esvaziamento e, em seguida, seu tranquilo renascer.

Primeira caminhada:

§4
(…) tomei a única decisão que me restava, a de me submeter à minha sorte, sem mais
resistir contra o destino.

§5
(…) as dores de meu corpo interromperiam as de meu coração.

§ 14
Meu corpo, para mim, não é mais do que um estorvo, um obstáculo, e dele me liberto
antecipadamente tanto quanto posso.

§ 10
Os indivíduos morrem, mas os corpos coletivos não morrem.

Segunda caminhada:

§2
(…) tendo perdido toda a esperança sobre a terra e não encontrado nela mais alimento
para meu coração, acostumava-me pouco a pouco a nutri-lo de sua própria substância e
a procurar todo o seu alimento dentro de mim.

Terceira caminhada:

§5
Estudavam a natureza humana para dela poderem falar sabiamente, mas não para se
conhecerem (…) nossas opiniões são a regra de nossas ações.

§10
A obra que empreendia somente podia ser executada num retiro absoluto; exigi alongas
e calmas meditações, que o tumulto da sociedade não suporta.

Quinta caminhada:

§2
Como não há, nessas felizes margens, grandes e cômodas estradas para as carruagens, a
região é pouco frequentada pelos viajantes; mas ela é interessante para contemplativos
solitários que gostam de se inebriar à vontade com os encantos da natureza e de
recolher-se num silêncio apenas pertubado pelo grito das águias, pelo gorjeio
entrecortado de alguns pássaros e o rumor das torrentes que caem da montanha.

§6
(…) e tudo o que fiz durante minha estada, não foi, na verdade, senão a ocupação
deliciosa e necessária de um homem que se consagrou à ociosidade.

§7
(…) e ia me atirar, sozinho, num barco, que conduzia ao centro do lago, quando a àgua
estava calma, e lá, estendendo-me completamente no barco, com os olhos voltados para
o céu, deixava-me estar e derivar lentamente ao sabor da àgua, algumas vezes durante
várias horas, mergulhado em mil devaneios confusos mas deliciosos e que, sem nenhum
objeto bem determinado nem constante, não deixava de ser , na minha opinião, cem
vezes preferíveis a tudo o que encontrara de mais doce no que chamam os prazeres da
vida.

§8
(…) sentando-me ora nos retiros mais agradáveis e mais solitários, para sonhar à
vontade.

§9
Quando a noite se aproximava, descia dos cumes da Ilha e ia de bom grado sentar-me à
beira do lago, sobre a praia, em algum refúgio escondido; lá, o ruído das vagas e a
agitação da àgua fixando meus sentindos e expulsando de minha alma qualquer
agitação, a mergulhavam num devaneio delicioso, em que a noite me surpreendia muitas
vezes sem que o tivesse percebido. O fluxo e refluxo dessa àgua, seu ruído contínuo
mas crescente por intervalos, atingindo sem repouso meus ouvidos e meus olhos,
supriam os movimentos internos que o devaneio extinguia em mim e bastavam para me
fazer sentir com prazer minha existência sem ter o trabalho de pensar. De tempos em
tempos, nascia alguma fraca e curta reflexão sobre a instabilidade das coisas deste
mundo do qual a superfície das àguas me oferecia a imagem: mas, em breve, essas
impressões leves se apagaram na uniformidade do movimento contínuo que me
embalava, e que, sem nenhuma ajuda ativa de minha alma, não deixava de me fixar, a
tal ponto que, chamado pela hora e pelo sinal combinado, não podia arancar-me de lá
sem esforço.

§12
Observei, nas transformações de uma longa vida, qua as épocas das mais doces alegrias
e dos mais vivos prazeres não são contudo aquelas cuja lembrança me atrai e me toca
mais profundamente. Esses curtos momentos de delírio e de paixão, por mais vivos que
possam ser, não são, todavia, e isso pela sua própria intensidade, senão momentos bem
escassos na linha da vida. São por demais raros e por demais rápidos para constituir um
estado e a felicidade que meu coração lamenta não é composta de instantes fugidios mas
de um estado simples e permanente, que nada tem de intenso em si mesmo, mas cuja
duração aumenta o encanto ao ponto de nele encontrar enfim a suprema beatitute.

§13
Tudo vive num fluxo contínuo na terra: nela, nada conserva uma forma constante e
definitiva e nossas afeições, que se apegaram as coisas exteriores, passam e se
transformam necessariamente como elas.

§14
Mas se há um estado em que a alma encontra um apoio bastante sólido para descansar
inteiramente e reunir todo o seu ser, sem precisar lembrar o passado nem avançar para o
futuro; em que o tempo nada é para ela, em que o presente dura sempre sem contudo
marcar sua duração e sem nenhum traço de continuidade, sem nenhum outro sentimento
de privação nem de alegria, de prazer nem de dor, de desejo nem de temor, a não ser o
de nossa existência e em que esse único sentimento possa preenchê-la completamente,
enquanto este estado dura, aquele que o vive pode ser chamado feliz, não de um
infelicidade imperfeita, pobre e relativa, como a que se encontra nos prazeres da vida,
mas de uma felicidade suficiente e plena, que não deixa na alma nenhum vazio que sinta
necessidade de preencher.

§15
De que desfrutamos numa tal situação? De nada de exterior a nós, de nada a não ser de
nós mesmos e de nossa própria existência; enquanto este estado dura bastamo-nos aa
nós mesmos como Deus. O sentimento da existência, despojado de qualquer outro
apego é por si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que sozinho
bastaria para tonar esta existência cara e doce a quem soubesse afastar de si todas as
impressões sensuas e terrenas que vêm continuamente nos afastar dela e pertubar, na
terra, sua suavidade. Mas a maioria dos homens, agitados por paixões contínuas,
conhecem pouco esse estado e tendo-o experimentado apenas de forma imperfeita,
surante poucos instantes, dele não conservam senão uma ideia obscura e confusa que
não lhes faz sentir seu encanto.

§16
É verdade que essas compensações não podem ser sentidas por todas as almas, nem em
todas as situações. É preciso que o coração esteja em paz e que nenhuma paixão venha
perturbar sua calma. Para isso são necessárias certas disposições da parte daquele as
sente, é preciso que existam no auxíliodos objetos que o rodeiam. Não deve haver nem
repouso absoluto nem demasiada agitação, mas um movimento uniforme e moderado,
sem embalos nem intervalos. Sem movimento, a vida é apenas letargia. Se o movimento
é desigual ou por demais forte, acorda; chamando nossa atenção para os objetos que nos
rodeiam, ele destrói o encanto do devaneio e nos arranca de dentro de nós mesmos para
nos recolocar imediatamente sob o jugo do destino e dos homens e nos devolver ao
sentimento de nossas infelicidades. Um silêncio absoluto leva a tristeza. Oferece uma
imagem da morte. Então, o socorro de uma imaginação alegre é necessária e se
apresenta com bastante naturalidade àqueles que o Céu gratificou com tal imaginação.
O movimento que não vem de fora nasce então dentro de nós. O repouso é menor, é
verdade, mas é também mais agradável quando leves e doces ideias, sem agitar o fundo
da alma, por assim dizer, apenas tocam levemente sua superfície. Somente o necessário
para lembrar-se a si mesmo, esquecendo todos os seus males. Essa espécie de devaneio
pode ser apreciado onde quer que se possa estar tranquilo e pensei muitas vezes que na
Bastilha e mesmo numa masmorra, onde nenhum objeto viesse chocar minha vista, teria
ainda podido sonhar agradavelmente.

§17
Livre de todas as paixões terrenas produzidas pelo tumulto da vida social, minha alma
se lançaria frequentemente acima dessa atmosfera e entraria desde já em relação com as
inteligências celestes, cujo número ela espera ir aumentar em breve. (…) Mas não me
impediram, pelo menos, de para lá me transportar cada dia, sobre as asas da imaginação,
e de saborear, durante algumas horas, o mesmo prazer que teria se a habitasse ainda. O
que faria de mais doce seria devanear à vontade. Sonhando que estou lá, não faço a
mesma coisa? Faço mesmo mais; aos atrativos de um devaneio abstrato e monótomo,
acrescento imagens encantadoras que o vivificam. Em meus extases, seus objetos
escapavam muitas vezes a meus sentidos, e agora, mais meu devaneio é profundo mais
os pinta com energia.

Sexta caminhada:

§1
Quase não tem movimentos maquinais cuja causa não possamos encontrar em nosso
coração, se soubéssemos procurá-la bem.

§7
Não importa se a ordem vem dos homens, do dever ou mesmo do destino, quando meu
coração se cala, minha vontade permanece surda e eu não poderia obedecer.

§8
A obrigação de estar de acordo com eu desejo basta para o aniquilar e basta que haja
com uma certa força para tranformá-lo em repugnância, em aversão mesmo; eis o que
me torna penosa a boa obra que se exige e que eu mesmo fazia quando não o exigiam.

§12
Há espécies de adversidades que elevam e reforçam a alma, mas há outras que a abatem
e a matam; assim é aquela de que sou presa. Se na minha, tivesse havido um pouco de
mau fermento, ela o teria feito fermentar excessivamente, ter-me-ia tornado frenético;
mas ela apenas me tornou nulo. Não tendo condições de proceder bem, em relação a
mim e aos outros, abstenho-me de agir; e esse estado, que somente é inocente porque é
forçado, me faz encontrar uma espécie de doçura ao me entregar completamente, sem
censura, â minha inclinação natural.

§14
(…) amo-me demasiadamente a mim mesmopara poder odiar quem quer que seja. Seria
restringir, limitar minha existência e eu desejaria, ao contrário, estendê-la sobre todo o
universo.

§15
Prefiro fugir-lhes a odiá-los. Sua presença choca meus sentidos e, através deles, meu
coração, com impressão que mil olhares cruéis me tornam penosas; mas o mal-estar
cessa logo que o objeto que o causa desaparece.

§18
É a força e a liberdade que fazem os excelentes homens. A fraqueza e a escravidão
somente fizeram os maus.

§21
Nunca acreditei que a liberdade do homem consistisse em fazer o que quer mas sim em
nunca fazer o que não quer, é esta liberdade que sempre reclamei (…).
Sétima caminhada:

§3
Não procuro justificar a dicisão que tomo de seguir essa fantasia; achoa muito razoável,
persuadido de que na situação em que me encontro, entregar-me aos divertimentos que
me encantam é uma grande sabedoria e mesmo uma grande virtude.

§5
(…) o devaneio me descansa e me diverte, a reflexão me cansa e me entristece (…)
Algumas vezes meus devaneios acabam pela meditação, mas mais frequentemente
minhas meditações acabam pelo devaneio, e durante tais divagações, minha alma
vagueia e plana no universo sobre as asas da imaginação, em êxtases que ultrapassam
qualquer gozo.

§9
Quanto maior a sensibilidade de sua alma, mas o contemplador se entregará aos extases
que excita nele essa harmonia. Um devaneio doce e profundo apondera-se então de seus
sentidos e ele se perde, com uma deliciosa embriaguês, na imensidade desse belo
sistema (a natureza) com i qual sente-se identificado. Então, todos os objetos lhe
escapam; nada vê, nada sente senão no todo. É preciso que alguma circunstância
particular comprima suas ideias e circunscreva sua imaginação para que possa observar
por partes esse universo que se esforçava por abarcar.

§11
Tomei gosto por essa recreação dos olhos que, no infortúnio, repousa, diverte, distrai o
espírito e interrompe o sentimento das penas. (…) Basta amar o prazer para se entregar
a sensações tão doces e, se tal fato não se realiza em todos aqueles que por ele são
impressionados é, em alguns, por uma falta natural de sensibilidade e na maioria porque
seu espírito, por demais ocupado por outras ideas, só furtivamente se entrega aos
objetos que impressionam seus sentidos.

§12
Uma outra coisa contribui ainda para afastar do reino vegetal a atenção das pessoas de
gosto; é o hábito de somente procurar nas plantas drogas e remédios.

§16
Nunca medito, nunca sonho mais deliciosamente do que quando me esquecço de mim
mesmo. Tenho extases, arroubos inexpremíveis a ponto de me fundir, por assim dizer,
no conjunto dos seres, de me identificar com a natureza inteira. Enquanto os homens
foram meus irmãos, fazia projetos de felicidade terrena (…). Então, para não os odiar,
foi realmente necessário fugir-lhes; então, refugiando-me na mãe comum, procurei em
seus braços subtrair-me aos ataques de seus filhos, tornei-me solitário, ou, como dizem,
insociável e misântropo, porque a mais selvagem solidão me parece preferível à
companhia dos maus, que somente se alimentam de traições e de ódio.

§23
As plantas parecem ter sido semeadas com profusão sobre a terra, com as estrelas do
céu, para convidar o homem, pelo atrativo do prazer e da curiosidade, ao estudo da
natureza; mas os astros são colocados longe de nós; é preciso ter conhecimneto
preliminares, instrumentos, máquinas, bem longas escadas para os atingir e os trazer ao
nosso alcance. As plantas estão naturalmente ao nosso alcance. Por assim dizer, nascem
sob nossos pés e nas mãos e, se a pequenez de suas partes essenciais as rouba, às vezes,
à simples vista, os instrumentos que permitem vê-las são de um uso muito mais fácil do
que os da astronomia. (…) logo que começa a aprender as leis de sua estrutura saboreia,
ao observá-las, um prazer sem esforço, tão vivo quanto se lhe tivesse custado muito. Há,
nessa ociosa ocupação, um encanto que somente é sentido na completa calma das
paixões (…) mas logo que a ele se mistura o interesse ou a vaidade, (…) logo que se
herboriza somente para se tornar autor ou professor, todo esse encanto se desvanece
(…).

§25
(…) mais longe, apenas rochas cortadas a pique e horríveis precipícios que somente
ousava olhar deitando-me de bruços.

§30
É a cadeia das ideias acessórias que me liga à botânica. Ela reúne e lembra à minha
imaginação todas as ideias que mais a lisongeiam. Os prados, as àguas, os bosques, a
solidão, a paz, sobretudo, e o repouso que se encontram entre tudo isso são
continuamente retraçados por ela à minha memória.

Oitava caminhada

§3
Reduzido unicamente a mim, alimento-me, é verdade, de minha própria substância, mas
ela não se esgota e eu me basto a mim mesmo ainda que rumine, por assim dizer, sem
assunto e ainda que minha imaginação esgotada e minhas ideias extintas não forneçam
mais alimento a meu coração.

§10

Presionado por todos os lado, permaneço em meu equilíbrio, porque, não me ligando a
mais nada, apóio-me somente em mim mesmo.

§12

(…) compreendi que meus contemporâneos não eram, em relação a mim, senão seres
mecânicos que agiam apenas por impulsos e cuja ação eu somente podia calcular pelas
leis do movimento.

§13
O golpe erra o alvo algumas vezes mas a intenção nunca o erra.

§19
Em tudo isso, o amor de mim mesmo faz tudo, o amor próprio nada tem a fazer.

§20
(…) essas emoçoes passageiras duram tanto quanto a sensação que as causa.

§21
O momento em que escapo ao cortejo dos maus é delicioso (…) creio estar no paraíso
terrestre e saboreio um prazer íntimo tão vivo quanto se fosse o mais feliz dos mortais.

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