Resumo: Os discursos que permeiam as relações sociais revelam os modos como os sujeitos se
relacionam. Neste trabalho apresentamos considerações sobre a relação entre indígenas e não indígenas
da região de Dourados-MS e a construção da identidade indígena a partir do olhar do não indígena no
âmbito midiático e escolar. Para isso, utilizamos recortes de reportagens da mídia impressa, enunciados
proferidos por professores e alunos de uma escola não indígena, exemplos que marcam a presença da
demarcação de fronteiras na relação com aquele que é visto como o Outro, o indígena. A base teórica
principal é a semiótica francesa e, mais especificamente, as considerações da sociossemiótica e os
trabalhos de Eric Landowski, tendo como propósito pensar os sentidos construídos na vivência, na relação
entre o Eu e o Outro. O resultado da pesquisa aponta para o olhar de distanciamento em relação ao
indígena, estereótipo do marginalizado socialmente.
Abstract: Discourses that permeate social relations reveal the ways which subjects interact to each other.
In this work we present some considerations about the relationship between indigenous and non-
indigenous people in Dourados-MS region the construction of indigenous identity based on the non-
indigenous view on the media and school environment. For this, we will use clippings of printed media,
utterances from teachers and students of a non-indigenous school, examples that indicate the presence of
border demarcation in relation to the one that is seen as the Other, the indigenous. The main theoretical
framework is the French Semiotics and, more specifically, the considerations of the sociosemiotics and
Eric Landowski’s works, whose purposes are to rethink about the meanings constructed in the
relationship between the Self and the Other. The result of the research points out that the indigenous have
been distanced from non-indigenous people, stereotype of the socially-marginalized people.
1
FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005.
2
LANDOWSKI, E. Sociossemiótica: uma teoria geral do sentido. Revista Galaxia, São Paulo, n. 27, jun.
2014, p. 10-20. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014119609>. Acesso em: 12 abr.
2015.
3
MIQUELETTI, E. A. Processos identitários indígenas em Dourados: leitura dos discursos midiáticos e
escolares em uma perspectiva semiótica. 2015. 343fls. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem).
Universidade Estadual de Londrina – UEL, Londrina-PR, 2015.
demarcação de fronteiras na relação com aquele que é visto como o Outro, o indígena.
Levando em consideração que a mídia e a escola são agentes sociais que além de
informar, problematizam acontecimentos, impõem ou orientam conclusões, ou seja,
participam significativamente na construção social das pessoas.
A Semiótica francesa é nosso respaldo teórico principal. Nesta teoria, todo e
qualquer texto é visto como o resultado da articulação indissociável entre o plano de
conteúdo (conjunto de ideias organizadas) e o plano de expressão (a forma de
apresentação do conteúdo). Para isso, pode manifestar-se na forma de linguagem verbal,
não verbal ou sincrética, sendo a última o resultado da articulação de mais de uma
linguagem para a construção do sentido, como ocorre nas reportagens dos jornais
impressos.
Fundada por Greimas, a Semiótica francesa aborda o texto como objeto de
significação, um mecanismo estruturalmente organizado e, também, como objeto de
comunicação, já que envolve escolhas implicadas no contexto sócio-histórico e
ideológico no qual foi elaborado. Não obstante, não são as condições reais de produção,
nem o autor propriamente dito que interessam, mas os efeitos que se deixam apreender,
“o parecer do sentido” 4, o simulacro criado por meio da linguagem. Por isso, o papel do
semioticista, entre outros, será o de investigar os recursos que permitem a construção da
verdade de cada texto, os procedimentos e estratégias utilizadas em um texto para dizer
o que diz.
Sendo assim, inicialmente Greimas sistematiza a metodologia de análise
chamada de “percurso gerativo de sentido” com o propósito de descrever como a
significação se constitui em qualquer texto a partir de duas etapas: a estrutura sêmio-
narrativa, composta pelos níveis fundamental e narrativo, e a estrutura discursiva,
formada pelo nível discursivo. Objetiva-se mostrar a construção dos sentidos de forma
gerativa, da imanência à aparência: “[...] indo dos investimentos mais abstratos aos mais
concretos e figurativos, de tal modo que cada um dos patamares pudesse receber uma
representação metalingüística explícita” 5. Em resumo, do nível mais simples e abstrato
4
BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Tradução do grupo CASA sob a coordenação de Ivã
Carlos Lopes et.al. São Paulo: EDUSC, 2003, p.11.
5
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et.al. São
Paulo: Cultrix, s.d, p.327.
ao mais complexo e concreto, o percurso gerativo de sentido apresenta três níveis de
leitura a partir dos quais se desvenda a construção dos sentidos.
Aos poucos a semiótica avança para explorar outras fontes de sentido, amplia os
horizontes de análise, sem se desvencilhar completamente das bases e acomoda
tendências como a Sociossemiótica. Norte teórico propagado principalmente por Eric
Landowski e que oportuniza aos estudiosos da área integrar, dentro de suas
preocupações, os sentidos construídos nas relações entre os sujeitos, a significação
constituída no processo, no ato; enfim, “[...] a ideia de uma relação necessária,
constitutiva, ligando sentido e interação”6.
Tendo em vista tencionar as relações sociais e identitárias, entre indígenas e não
indígenas, como processo de significação, retomamos, principalmente, duas obras de
Landowski: Sociedade refletida 7 e Presenças do outro 8 . Na primeira obra, o autor
enfatiza as situações de interação e as reflexões sobre semiotizar o contexto, o que
implica dar conta do discurso: “[...] do ponto de vista da sua capacidade de ‘agir’ e de
‘fazer agir’, moldando e, na maior parte dos casos, modificando as relações entre os
agentes que ele envolve a título de parceiros linguísticos” 9 . Entra em cena a
preocupação com o resultado social da atividade discursiva.
Dentro disso, o autor aborda a existência do regime de visibilidade, estruturado
pela sintaxe do “ver” ele direciona as relações entre os sujeitos, o que o autor denomina
de “dimensão escópica” e que implica: “[...] – um que vê, o outro que é visto – e entre
os quais circula o próprio objeto da comunicação, no caso a imagem que um dos sujeitos
proporciona de si mesmo àquele que se encontra em posição de recebê-la” 10 .
A dimensão escópica, ou seja, esse “ver” uns aos outros, depende das condições
de visibilidade, administradas como motivações estratégicas, estabelecidas ora pelo
observador, ora pelo próprio sujeito observado que quer “fazer-se ver” 11 . Ela pode,
ainda, ser instaurada por uma terceira instância, autônoma aos protagonistas, a exemplo
da ação da mídia. De acordo com essa dinâmica de relação entre observador e
6
LANDOWSKI, E. Op. cit., 2014, p.11 (grifos do autor).
7
LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo: EDUC/ Pontes, 1992.
8
LANDOWSKI, E. Presenças do Outro: ensaios de sociossemiótica. Tradução de Mary Amazonas Leite
de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002.
9
LANDOWSKI, E. Op. cit., 1992, p.10.
10
Idem, p.89 (grifos do autor).
11
Ibidem, p.89.
observado, Landowski levanta a possibilidade da construção de esquemas envolvendo
especificações modais da ordem do querer, dever, saber e poder ver e ser visto e que
revelam as práticas dos contatos sociais. Encerram “atitudes” ou “temperamentos” no
que se refere ao sujeito “observado”, em interação, os sujeitos observam-se, os valores
modais combinam-se e podem indicar situação de pacificidade ou de conflito entre eles.
No que se refere à segunda obra, verificamos que o autor tenta traçar esquemas
teóricos resultantes da relação entre o Eu e o Outro, transita entre as noções,
interdependentes, de identidade e de alteridade ao considerar que o sujeito apreende-se a
si mesmo: “[...] enquanto ‘Eu’, ou ‘Nós’, a não ser negativamente, por oposição a um
‘outro’, que ele tem que construir como figura antitética a fim de poder colocar-se a si
mesmo como seu contrário” 12.
Landowski define quatro possibilidades de relação entre identidade com vista a
uma alteridade. Considerando que o outro representa uma ameaça e que é preciso
preservar a homogeneidade do grupo dominante, temos a assimilação (o grupo
dominante acolhe o de fora, o outro em nós, os assimilados assumem alguns valores do
grupo dominante para serem aceitos) e a exclusão (o sujeito está em disjunção com os
valores do grupo dominante, preserva-se o nós e nega-se o outro). De outra forma, a
alteridade é uma diferença que depende do ponto de vista, o outro “[...] se tornará, em
certa medida, parte integrante, elemento constitutivo do ‘Nós’, sem com isso ter que
perder sua própria identidade” 13 . Confluem nesse sentido, a segregação (não ocorre
exclusão absoluta, um lugar é reservado para o segregado dentro do sistema social
geral) e a admissão (busca-se integrar o outro ao nós sem que ele perca sua identidade, o
Outro também constitui o Nós).
Antes de passarmos para o tópico seguinte, no qual realizaremos considerações
em torno de enunciados selecionados para este trabalho, não podemos deixar de
ponderar que ao lidar com as relações socioculturais e identitárias, ao longo da pesquisa
de Doutorado, complementamos nossas reflexões em leituras advindas, entre outros, dos
Estudos Culturais e da Educação. Contemplando as relações de poder que permeiam o
convívio entre as culturas, entre colonizador e colonizado, Bhabha 14 destaca as
12
LANDOWSKI, E. Op. cit., 2002, p.25.
13
LANDOWSKI, E. Op. cit., 2002, p.15.
14
BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis;
Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
divergências existentes na relação/negociação cultural. O local da cultura é o “entre-
lugar” deslizante, marginal e estranho que pode resultar do confronto de dois ou mais
sistemas culturais que dialogam mesmo que de modo conflituoso. O teórico trata do
hibridismo cultural como o processo derivado do conflito e da tensão das diferenças
culturais. Nesse sentido, as trocas entre culturas carregam aspectos positivos e
negativos, pois possibilitam novas visões sobre as identidades, quiçá inserindo a
tolerância, mas podem esconder a dominação de uns sobe os outros.
Princípios que corroboram com Landowski que, no âmbito discursivo, da análise
das situações, da interação, mostra como as relações entre os sujeitos são oscilantes e é
assim que os sentidos se constituem. Na educação, por exemplo, entendemos que apenas
reconhecer a diversidade cultural não contribuirá para a efetivação de convívios
excludentes. É preciso identificar a construção dos discursos preconceituosos que
perpassam o tempo e, de forma menos ingênua, reler a história, oportunizar a abertura
para que os conhecimentos sejam negociados e outros discursos construídos para além do
“pensamento abissal”. Segundo Santos15, esse pensamento representa a existência de uma
linha divisória que separa colonizadores e colonizados a partir de um conjunto de
conhecimento social formado por distinções, influenciadas pelos colonizadores.
Dentro disso, as relações identitárias se constituem como reflexo das relações de
poder e que são manifestadas nos discursos propagados, entre outros, pela mídia e pela
escola. No tópico a seguir realizamos breves análises, permeadas por reflexões teóricas,
sobre a representação indígena para esses agentes sociais. Recortamos exemplos de parte
de nosso corpus de pesquisa de Doutorado: reportagem publicada na semana em que se
comemora o Dia do índio e enunciados proferidos por professores e alunos não indígenas
de uma escola da cidade de Dourados.
15
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes.
Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.78, out. 2007, p.3-46. Disponível em:
<http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/147_Para%20alem%20do%20pensamento%20abissal_RC
CS78.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2014.
Dessa forma, informamos que durante a pesquisa selecionamos textos dos principais
veículos da mídia douradense, publicados em abril de 2013 e que fizessem referência à
comemoração do Dia do índio, 19 de abril. Destacamos que, dentro de determinado
contexto de atuação linguística, na esfera nacional e local, foi construído um clima de
tensão, instaurado entre indígenas e não indígenas diante da aprovação da Proposta de
Emenda Constitucional, a PEC 215. A Emenda previa levar para o Congresso Nacional a
demarcação e a homologação de terras indígenas, o que, conforme a Constituição
Federal, são atribuições do Poder Executivo.
Nesse contexto, selecionamos a reportagem de capa do dia 19 de abril de 2013,
publicada pelo jornal “O Progresso” 16, o jornal impresso mais tradicional da região de
Dourados. A reportagem especial para a data comemorativa é publicada na página 4 da
seção “Dia a dia”, espaço que normalmente integra discussões de assuntos do cotidiano
dos enunciatários, leitores do jornal, o que pode indicar a integração do indígena à
sociedade douradense. Segue a imagem da capa17:
16
ARAÚJO, V. Tradição indígena está semeada em Dourados. O Progresso. Dourados, 19-20 abr. 2013,
p.4.
17
A censura no rosto das pessoas que aparecem nas imagens foi feita por nós.
Parte da capa do jornal O Progresso do dia 19/04/2013.
Destaque para a reportagem especial para o Dia do
índio.
Fonte: Valéria Araújo. O Progresso
(19/04/2013).
18
LANDOWSKI, E. Op. cit., 1992.
A reportagem do jornal O Progresso especial para o Dia
do índio.
Fonte: Valéria Araújo. O Progresso
(19/04/2013).
19
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 1984.
20
XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
mata demônios e está presente onde as pessoas estiverem falando dele. Está
para proteger as famílias, sejam indígenas, como não-indígenas”, destaca.21.
O Dia do Índio para Marilda é uma data de reflexão e fé. “É o dia em que
dançamos e rezamos por nossos filhos, parentes e pedimos a proteção para
toda Dourados. Hoje, o meu maior desejo é que a tradição indígena se
perpetue e que as próximas gerações ensinem seus filhos a viver como nos
ensinamentos das tribos. Nós acreditamos que Deus virá limpar toda a
tristeza do índio e nos concederá dias melhores em breve”, diz 23.
21
ARAÚJO, V. Op. cit., 2013, p.4, parágrafo 1 (grifo nosso).
22
LANDOWSKI, E. Op. cit., 2002, p.4.
23
ARAÚJO, V. Op. cit., 2013, p.4, parágrafo 5.
utilizar a 1ª pessoa do plural “nós” também presente nos verbos “dançamos”, “rezamos”,
“pedimos”, “acreditamos” que marcam a debreagem enunciativa (a enunciação é
projetada para fora da enunciação, eu-aqui-agora, produzindo efeito de aproximação),
refere-se a um aqui e a um “nós exclusivo” (eu + eles) 24, a indígena que fala e os outros
indígenas da região, comprometendo-se com o que é enunciado. E, como representante
do grupo, ela pede a proteção para “toda Dourados”, novamente o movimento é de
disposição para a inclusão dos não indígenas e/ ou de disposição para ser admitido,
integrado sem perder sua identidade.
Frente às escolhas engendradas na reportagem, especial para o Dia do índio,
junto ao destaque para a marca da cultura indígena no município, há implícito o “não
querer ver” dos não indígenas dessa região, motivo que leva o jornal a dar visibilidade ao
mostrar que a cultura indígena está “semeada” na região, como confirmam os exemplos
descritos no texto. Como teoriza Landowski 25, a ação de ver implica o poder ver e o
querer ver. Sendo o indígena o actante em estado de “ser visto” e o não indígena de
Dourados o que ocupa a posição do “observador”, notamos que nessa relação constroem-
se “atitudes” ou “temperamentos” no que se refere ao sujeito “observado”: a mídia faz
ver que os indígenas não apresentam “constrangimento”, ou melhor, não querem não ser
vistos, já que a manifestação de sua realidade é uma das formas de ser reconhecido
enquanto parte do município. Por outro lado, há uma tentativa em mostrar a realidade das
comunidades indígenas, suas influências, frente à falta de interesse dos enunciatários,
público leitor, que parece não querer ver. Estabelecesse a relação contraditória com
exibicionismo do indígena, mas repugnância da população douradense.
É preciso entender, também, que as condições de visibilidade são estratégias
discursivas, “manobras cognitivas (fazer saber/fazer crer)” 26. A mídia trabalha com os
recortes, os focos de luz, que ela permite ver dentro dos regimes de visibilidade, nos
quais intervêm as competências modais de quem os vê (querer ver, não querer ver) e de
quem é visto (querer ser visto, não querer ser visto) e como isso é interpretado. Sendo
assim, as escolhas, em interação, auxiliam na construção das identidades.
24
FIORIN, J.L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2 ed. São Paulo:
Ática, 2002.
25
LANDOWSKI, E. Op. cit., 1992.
26
LANDOWSKI, E. Op. cit., 1992, p.100.
Discursivamente, o indígena é constituído na relação com o não indígena como
aquele que quer ser reconhecido como um sujeito do fazer. Conforme a classificação de
Landowski27, a mídia apresenta-o na posição daquele que quer ser assimilado, mas ainda
é segregado pelos não indígenas. O indígena é o sujeito disjunto com os valores do grupo
dominante, excluído, mas por vezes é aceito em um lugar reservado dentro do sistema
social como um todo. Em síntese, o “Outro” é aceito, desde que cada um esteja nos seus
devidos espaços de atuação, na reportagem, por exemplo, lemos que o indígena é
procurado pelo não indígena, mas isso nem sempre é expressamente reconhecido.
Voltando nossa atenção para a escola, recortamos enunciados emitidos por
professores de uma escola não indígena de Dourados, durante entrevista semiestruturada
na qual pretendíamos investigar a imagem do indígena que perpassa a escola e que,
consequentemente, são repassados aos alunos, influenciando sua formação cidadã. Entre
o total de 18 professores entrevistados, verificamos que há educadores mais críticos
diante da realidade indígena do município e outros que denunciam o distanciamento mais
acentuado em relação ao “Outro”, de forma geral, remetem à “fronteira” existente entre
indígenas e não indígenas.
Para este artigo, retomamos apenas o comentário do Professor 6 ao inquerirmos
“fale sobre o que você sabe sobre os indígenas e sobre sua relação com eles”:
É... o que a gente sabe é o que tem na mídia né [...], posso falar que o que
eu sei sobre eles é pouco né, praticamente eu não, mal sei onde ficam as
aldeias, essa é a verdade né, sei que eles são um povo sofrido, eles têm um,
o espaço de terra deles ali é muito pouco né, e.. e aí ao que sai na imprensa,
a questão de que já houve muito a questão do suicídio, a questão da bebida
né, o preconceito do homem branco em relação a trabalho [...] Eu já tive
aluno [...] a relação deles com os demais alunos era distante né, eles não se
misturam, eles se isolam, [...] o contato deles com a gente é muito retraído
também [...].”
O educador parece ter receio de dizer que sabe algo sobre o indígena e a
lembrança é a do indígena relacionado às aldeias, como se na região de Dourados só
existissem indígenas naquele espaço, e às imagens negativas: povo sofrido, pouco espaço
de terra, suicídio, bebida. Colocações que também podem representar ecos dos textos da
mídia, essa citada como fonte do saber: “[...] a gente sabe é o que tem na mídia né [...]”.
Apesar de verificarmos, como consta na reportagem analisada neste trabalho, que a mídia
27
LANDOWSKI, E. Op. cit., 2002.
também apresenta aspectos positivos, isso não é comumente citado pelos professores não
indígenas, revelando o que querem ver/enxergar nessa relação vista como conflituosa.
Discursivamente, o professor marca o distanciamento em relação ao indígena,
utiliza “a gente” incluindo os não indígenas, quiçá o próprio pesquisador que não é
indígena, e vai revelando que os indígenas são relacionados à temáticas negativas: “[...]
eles são um povo sofrido [...] o espaço de terra deles ali é muito pouco né, [...] a questão
de que já houve muito a questão do suicídio, a questão da bebida né, o preconceito do
homem branco em relação a trabalho”.
Ainda como marca discursiva de distanciamento, o docente refere-se ao
preconceito do não indígena como “preconceito do homem branco”, exclui-se desse
grupo, colocando-se na posição de observador das relações sociais, parece “não querer-
ver”, ou melhor, não se compromete com os fatos narrados. No final da fala, inclui-se
enunciativamente, “eu”, para lembrar que teve aluno indígena e pontuar as impressões
sobre o relacionamento do indígena com o não indígena no convívio escolar, mais uma
vez assinalando o distanciamento: “Eu já tive aluno [...] a relação deles com os demais
alunos era distante né, eles não se misturam, eles se isolam, [...] o contato deles com a
gente é muito retraído também [...]”. O Outro, “eles” enuncivo, é o distante, o isolado, o
retraído, ou seja, aquele que não se encaixa aos vínculos de relacionamento e permanece
segregado; é o estranho.
Os docentes, como qualquer outro sujeito socialmente envolvido, também são
atingidos pelos discursos que os constituem e estão diante das competências modais do
“querer-ver” e do “não querer-ver” 28 e inclinam-se, novamente, para a segunda opção.
Em sala de aula, o professor exerce papel de destaque na mediação dos alunos, diante da
situação de “estranhamento” é preciso que atue no sentido de romper possíveis barreiras,
mas para isso deve entender o próprio lócus de atuação e estar ele, primeiramente, aberto
para compartilhar experiências. Sem essa atitude, o indígena, assim como outros sujeitos
marginalizados socialmente, continuará atingido pelos olhos do observador, no sentido
físico, mas não percebido enquanto parte da sociedade em geral.
Para finalizar as reflexões trazidas para este artigo, destacamos que durante a
parte da pesquisa na qual trabalhamos com alunos da escola não indígena, verificamos
que os enunciados expressos por eles em relação aos indígenas não diferem muito do que
28
LANDOWSKI, E. Op. cit., 1992.
nos foi apresentado pelos professores. No primeiro encontro, por exemplo, distribuímos
uma folha para que respondessem, em forma de texto escrito e desenho, a seguinte
pergunta: Índio lembra...? Os alunos mostraram-se preocupados em construir conceitos e
alguns perguntaram se poderiam falar sobre o Descobrimento do Brasil, outros tentavam
tirar dúvidas sobre os tipos de comida dos indígenas. Questionamentos que revelam o
distanciamento, ou a distorção da temática, considerando a proximidade local com os
indígenas e com as aldeias. De tal maneira, os discentes destacaram em suas respostas
principalmente os seguintes temas: cultura, dança, música, instrumentos, moradia (oca),
comidas (mandioca, milho, feijoada), tribo, guerreiro, respeito, comércio (venda de
mandioca nas ruas), descobrimento do Brasil, desigualdade, pátria, diferenças. Enfim,
com menor ou maior intensidade, representaram o indígena ligado à imagem
tradicionalmente divulgada pela história ocidental, isto é, o sujeito que passa a ser
conhecido na reprodução do encontro com os portugueses no Descobrimento do Brasil,
que mora na aldeia, gosta da natureza. Quando são trazidos para o retrato atual são
lembrados pelas ruas de Dourados vendendo mandioca, leite.
Nesse sentido, escreve o aluno 7 29 : “Pessoas que vende mandioca na rua ou
também leite etc... Eu acho que eles mora na oca ou qualquer coisa do tipo”. O discente
visualiza o indígena na realidade de Dourados como aquele que atravessa a cidade em sua
carroça vendendo produtos da aldeia, o que é comum em alguns bairros mais próximos
da reserva de Dourados. Mas, como já informamos na contextualização dessa realidade,
atualmente, os indígenas exercem outras atividades, porém isso não é reconhecido pela
maioria dos alunos. Analisando o restante do enunciado “Eu acho que eles mora na oca
ou qualquer coisa do tipo”, o aluno manifesta uma dúvida que demonstra, mais uma vez,
o desconhecimento da real situação de vida das comunidades indígenas. Nas
comunidades da região, poucas famílias vivem em ocas, a imprecisão do aluno, iniciando
o Ensino Fundamental II, parece-nos um dos indícios da fragilidade do ensino acerca do
assunto. Os alunos reproduzem um discurso colonial que “[...] produz o colonizado como
uma realidade social que é ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente
apreensível e visível” (BHABHA, 2010, p. 111).
Corroborando com isso, citamos, ainda, a resposta do aluno 17:
29
Para preservar a identidade dos informantes da pesquisa, todos foram identificados por números.
Índio me lembra muitas coisas, me lembra também quando estava no 4° ou
5º; que os índios eram os habitantes no Brasil na época e que eles tiveram
que ficar escravos dos outros que chegaram bem depois. Me lembra aquelas
pessoas que não tinham muita roupa e aquelas que adoram; como dizem “os
brancos”. E sempre felizes. Adoro a cultura deles !!!
30
BONIN, Iara Tatiana. E por falar em povos indígenas...: quais narrativas contam em práticas
pedagógicas? 2007. 220 fls. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul
– UFRGS, Porto Alegre, 2007, p.147.
enunciados analisados, os alunos não exatamente interditam os indígenas do direito à
felicidade, mas constroem sua representação, normalmente, ligada à situação
desfavorecida, com resquícios de pretensão à igualdade.
Isso posto, consideramos o conjunto de textos analisados, corroboramos Fiorin 31
ao aceitar que o discurso não é a expressão da consciência, mas essa é formada pelo
conjunto dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo da vida e sabendo que as
ideias constituem-se no campo da linguagem, as visões de mundo vinculam-se a ela: “[...]
a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de
temas e de figuras que materializam uma dada visão de mundo”.
Nos exemplos recortados para este trabalho, verificamos que as visões sobre o
indígenas ligam-se, ainda, à visão do Outro inferiorizado. Existe a “fronteira” assentada
na ideia de “demarcação”, “limite”, “divisa”, como pudemos analisar partindo da ideia de
significação não só enquanto “[...] totalidade dependente da articulação estrutural
imanente a cada discurso ou prática [...]”, mas, também, “[...] como o resultado de uma
construção negociada entre os actantes [...]” 32 . A preocupação recai na análise dos
processos de construção e apreensão de sentido a partir da interação em ato.
3 Considerações Finais
31
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 5. ed. São Paulo: Ática, 1997, p.32.
32
LANDOWSKI, E. Op. cit., 2014, p.12.