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HUGO LEAL
(ORGS.J
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ASABEDORIA DA
RECUPERAÇÃO
HISTORIAS DE SUCESSO CONTRA
ADEPENO~NC.A OUIMICA
CDU 616.89
Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094
Agradecemos a todas as pessoas que colaboraram com suas histórias pessoais, que foram divulgadas para que outras pessoas e
famílias possam inspirar-se. Sua força pessoal, sua coragem e determinação são absolutamente apreciadas.
PREFÁCIO
Centenas de conceitos foram criados nos últimos dois séculos tentando explicar o abuso de álcool e drogas. Em uma revisão da
literatura até o começo de século XX, mais de 150 teorias são encontradas, principalmente nos países europeus e na América do
Norte. Algumas delas tiveram impacto maior, como explicar pela dipsomania a persistência do consumo. Outras tiveram somente
impacto local no país de origem dos autores. Apesar dessa diversidade de teorias, o que predominava na sociedade era o modelo
moral, segundo o qual as pessoas bebiam em excesso e permaneciam bebendo, apesar da infinidade de problemas causados,
por uma falha moral, e isso não teria como mudar. Esse modelo explica, em boa parte, como até hoje o ceticismo prevalece
quando discutimos a dependência química de maneira geral.
A maior reação a esse ceticismo ocorreu com a criação dos Alcoólicos Anônimos (AA), que impactou a forma de se ver o
fenômeno. Jellinek escreveu um livro seguindo essa tendência, O conceito de doença do alcoolismo, propondo a ideia de
alcoolismo como doença que se apresentaria, inclusive, de diferentes formas. Esse novo modelo influenciou a criação de serviços
para proteger os usuários, bem como motivou ainda mais a criação de grupos de AA e, em seguida, de Narcóticos Anônimos (NA)
pelo mundo todo.
Na década de 1970, Griffith Edwards desenvolveu, na Inglaterra, o conceito de síndrome de dependência do álcool, tornando o
conceito de doença um pouco mais complexo ao adicionar componentes psicológicos, biológicos e sociais. Nos estudos derivados
desse conceito, mostrou-se que a evolução da dependência variava desde alta mortalidade em grupos específicos até
estabilidade na abstinência comparável a uma cura. Na realidade, a palavra cura é muito controvertida nessa área, e poucas
pessoas aceitam que, após anos de uso de uma substância, possa haver um desaparecimento total do comportamento.
Mais recentemente, a área da saúde mental fez uma distinção importante entre tratamento e recuperação. Tratamento, na
dependência química, seria uma série de ações, sobretudo na área da saúde, que incluiriam desde medicamentos para estabilizar
o cérebro, técnicas motivacionais para envolver e manter as pessoas em tratamento, técnicas de prevenção de recaída,
profissionais que ajudam no aconselhamento, técnicas para recuperar o dano cerebral causado pelas drogas, sem falar nos mais
diferentes locais de tratamento, entre eles ambulatório, hospital-dia, internação para desintoxicação, internação psiquiátrica e
comunidades terapêuticas. Com certeza, o tratamento ficou mais técnico e diversificado. Apesar de toda essa evolução na área de
tratamento, o conceito de recuperação ainda não recebeu toda a atenção necessária. Recuperação é uma série de
comportamentos que o indivíduo precisa promover após o tratamento estabelecer o mínimo de estabilidade mental combinada
com abstinência. Após a estabilidade mínima, as pessoas precisam recuperar sua autoestima, mudar a autoimagem, recuperar
laços familiares, refazer a vida profissional, recriar uma rede social que seja compatível com a abstinência de longo prazo, etc.
Todas essas ações são difíceis de implementar, principalmente sozinho. Não é por acaso que grande parte das histórias de
recuperação ocorre nos grupos de ajuda mútua, como AA, NA, grupos religiosos, etc. Auxilia muito na recuperação ter apoio
social, pois se trata de um processo que leva anos.
As histórias deste livro são bons exemplos de como a recuperação ocorre. Há um grande componente individual nesse
processo. Cada pessoa que luta pela recuperação constrói uma nova linha de vida, que, apesar de ter componentes em comum
com as linhas de vida de centenas de outros indivíduos, é sempre uma experiência de cada um. Faz-se necessário que a pessoa
em recuperação desenvolva uma sabedoria. Não basta conhecer todas as teorias, ou saber de cor todos os 12 Passos dos AA, ou
até mesmo ser um grande conselheiro para que outros fiquem abstinentes. O indivíduo tem que construir uma série de atitudes
mentais que se sustentem por anos, novos comportamentos, manter a moral mesmo nos piores momentos, etc. Tudo isso faz com
que a recuperação seja uma viagem individualizada, mesmo que possa ser apoiada e estimulada por grupos de recuperação.
O principal objetivo deste livro é inspirar. Inspiração a partir de histórias reais, de pessoas reais, com problemas reais e com
uma recuperação real. Apesar do ceticismo existente na área de dependência química, milhares de pessoas conseguem se
recuperar. Estima-se que, nos Estados Unidos, mais de 5 milhões de pessoas estão vivendo plenamente em recuperação.
Esperamos que cada vez mais possamos, no Brasil, conhecer pessoas vivendo suas vidas construindo essa recuperação.
SUMÁRIO
A vivência do alcoólico no Alcoólicos Anônimos (AA) vai muito além do intercâmbio de experiências individuais sobre o
desenvolvimento da doença ou o fortalecimento do propósito de se manter abstinente por meio de uma disciplina comportamental
comum de mútuo apoio. Na verdade, o que acontece é uma relação de cumplicidade no processo de crescimento e
aprimoramento das consciências, que dá, a cada um, ganhos na qualidade de vida e na realização pessoal psíquica e material
que realmente compensam as dores da abstinência, com uma nova cosmovisão e novos objetivos de vida.
Nesse caminho, a criatividade e o repertório simbólico das buscas individuais se somam e formam uma cultura própria, na qual
elementos de diversas expressões se reúnem de modo a convergir em um caminho único, que mostra alegoricamente saídas para
angústias e indefinições comuns no cotidiano. Essas histórias, muitas delas refletindo máximas de filosofia perene (conjunto de
verdades universais presentes em diversas civilizações de todas as eras), são contadas pelos membros da irmandade quando
expõem suas reflexões e acabam funcionando como ícones, indicando o que se fazer ante distorções emocionais ou
encruzilhadas nos rumos da existência.
Neste texto introdutório, veremos 12 dessas histórias. Contudo, existem mais de uma centena delas, as quais surgem
individualmente nos grupos e são consolidadas quando se tornam parte também do acervo de outras salas.
Vamos começar com uma fábula que se refere às interferências do Poder Superior e suas maneiras pragmáticas, mas
paradoxais, de nos auxiliar tremendamente por meio de acontecimentos que, a princípio, podem parecer trágicos. Esta historinha
representa o que nossa cegueira em relação ao real valor das coisas pode provocar no processo da vida.
1
Nossa primeira história é a de um rei que adorava caçar, tendo nomeado um mestre caçador veterano, considerado um filósofo da
natureza, para cuidar de suas armas (na época arco, flechas, lanças e adagas) e garantir a plena eficiência delas. Durante anos, o
rei e o mestre caçador saíam todas as semanas para caçar, e as armas sempre se mostraram extremamente precisas,
estimulando ainda mais a paixão do soberano pela atividade, que se tornou essencial para relaxar e manter seu cérebro livre dos
desgastes do dia a dia.
Então, aconteceu. Extremamente ocupado com seus afazeres, o mestre caçador deixou de verificar pessoalmente o estado de
um dos arcos. Essa arma específica raramente era utilizada, porque tinha uma potência maior, era de difícil manejo e visava só à
caça de animais a uma grande distância. Então, quando estava em plena floresta com seu séquito, o rei avistou ao longe, na copa
de uma árvore no emaranhado da mata, uma ave magnífica, a mais exuberante que já havia visto e que sempre tinha sido seu
sonho de caçador.
No entanto, a distância era grande, e se aproximar na mata fechada em silêncio não seria possível. Tentar fazer isso era arriscar
deixar a ave fugir, perdendo aquela oportunidade única. O monarca optou, então, pelo arco de maior envergadura, para um tiro de
longe. O mestre caçador lhe passou a arma, e o rei mirou o alvo, com muita calma. Tudo parecia perfeito.
Contudo, o aprendiz que tinha cuidado do arco sem a supervisão do mestre deixara a corda com um nível de tensão alto
demais. Quando o rei a esticou para o tiro, ela se rompeu e decepou o dedo polegar de uma de suas mãos. Sangrando, ele
desceu do cavalo esbravejando e pedindo explicações ao mestre caçador. Afinal, como ele havia permitido que isso acontecesse?
Era o responsável pela segurança do equipamento, e tinha cuidado perfeitamente disso por anos!
O mestre caçador se desculpou, dizendo que não havia verificado aquele arco justamente no dia, o que nunca tinha acontecido
antes, e completou dizendo que aquela tragédia parecia coisa do destino, mas pediu ao rei tranquilidade, porque Deus sabia o que
estava fazendo.
O rei, enfurecido e indignado pela calma do mestre caçador, pensou primeiro em executá-lo, mas, em seguida, pensou que isso
seria rápido demais. O mestre caçador precisava sofrer por tanto atrevimento! Como podia dizer assim, na sua cara, que um fe-
rimento tão sério era uma interferência de Deus contra ele, um rei justo, amado por seus súditos, e justamente durante a caça,
único hobby que podia aliviá-lo de seus afazeres?
O soberano mandou que jogassem o homem para sempre na masmorra, onde teria tempo para refletir sobre o que havia dito e
se arrepender de sua ousadia e irresponsabilidade.
Quando o ferimento cicatrizou, o rei voltou a caçar, substituindo o mestre caçador encarcerado por outros empregados, mais
obedientes, ameaçando-os com a decapitação no caso de qualquer incidente com as armas.
Os meses correram e, quase um ano depois, quando estava em mais uma caçada, o rei e sua equipe, explorando território
selvagem em busca de presas, foram cercados e dominados por uma tribo de canibais. Um a um, todos os integrantes foram
sacrificados e devorados, menos o rei. Ao perceber a mutilação em sua mão, os canibais o soltaram imediatamente: sua crença
fazia da antropofagia um sistema para absorver as qualidades das vítimas, não suas fraquezas e limitações. Como seria um
ultraje aos seus deuses oferecer-lhes um aleijado, o libertaram e o expulsaram de suas terras por ser defeituoso.
Caminhando de volta para o castelo, o monarca se lembrou do mestre caçador e compreendeu a lucidez e o realismo de sua
posição. Não tinha sido um castigo, e sim um presente; foi uma troca: o dedo por sua vida. Deus realmente sabe o que faz e é
extremamente misericordioso.
Chegando ao palácio, o rei foi imediatamente até o cárcere onde o mestre estava acorrentado, libertou-o e, ajoelhado, pediu-lhe
perdão pelo ceticismo e pelo sofrimento que tinha lhe causado. O mestre caçador, que era um sábio verdadeiro, calmamente lhe
disse: “Tudo certo, meu rei, não se desculpe. Assim como Deus lhe tirou um dedo para salvar sua vida, colocou-me aqui para
salvar a minha. Se não estivesse preso, estaria com meu rei, como sempre, e, não tendo mutilação alguma, os canibais
certamente me teriam sacrificado!”.
2
Outra historinha que ressalta o objetivo positivo oculto em uma aparente desgraça é a do náufrago, único sobrevivente do
soçobramento de um navio durante uma tempestade no oceano: nadando desesperadamente, ele conseguiu chegar a uma ilha.
Depois de recobrar as forças com algumas horas de descanso, saiu para explorá-la e descobriu que era diminuta, embora
permitisse sua sobrevivência frugal com alguns frutos e peixes. Sua localização, no entanto, parecia a de um ponto no meio do
nada, e, por todos os lados, só se avistava o oceano compondo o horizonte.
Resolveu, então, usar todos os materiais que, após a embarcação ter afundado, as correntes marítimas tinham levado até a
praia. Pegou cordas, madeira de escombros e, junto com cipós, folhas, pedras e ramagens da ilha, construiu uma cabana, onde
colocou todas as ferramentas e os víveres que conseguira encontrar e recolher daquilo que o mar lhe trouxera.
Quando terminou, já era noite, e o céu estava fechado, com as estrelas encobertas, prenunciando outra tempestade. Não deu
outra. Dali a pouco, começou a relampejar de tal forma que o náufrago correu para se abrigar na cabana. Porém, antes que
conseguisse entrar, um raio caiu sobre ela e provocou, por causa das folhas secas, cordas, madeiras e outros materiais
inflamáveis, um incêndio incontrolável, transformando o lugar em uma pira imensa, que consumiu tudo durante horas, deixando
apenas cinzas.
O náufrago, desesperado, blasfemava injuriado o tamanho de seu azar, que de uma só vez lhe tirava todas as condições de
sobrevivência prolongada naquela ilha deserta perdida na imensidão.
Quando o dia começou a raiar, ele estava prostrado, desesperado e desesperançado. Então, olhando em direção à praia, viu um
escaler vindo em sua direção e, ao longe, um navio. Estava sendo resgatado!
Conversando com os marinheiros que vieram buscá-lo, eles lhe disseram que, na noite escura, alguém da tripulação tinha visto
um foco luminoso que brilhou durante muitas horas e, como sabiam que não havia nenhum território naquela direção, resolveram
fazer um desvio e verificar. Era a cabana em chamas! O que momentaneamente lhe pareceu o máximo do azar, tinha sido, na
verdade, providencial para salvá-lo!
3
Outro alerta dado pelo fabulário incorporado à cultura dos anônimos se refere, por exemplo, aos sinais que a mente humana emite
sobre seu conteúdo, permitindo que se reconheça, pela observação, o seu real conteúdo, aquele que extrapola as convenções
sociais e mostra o funcionamento da alma das pessoas.
Uma das histórias é a do índio que está ensinando seu filho a perceber os acontecimentos por meio dos sinais do ambiente.
Conta-se que ele pediu ao garoto que encostasse o ouvido na terra e dissesse o que estava percebendo. O menino obedeceu e,
após alguns instantes, levantou-se, dizendo ao pai que uma carroça estava vindo na estrada. O pai repetiu o gesto do filho, como
que para verificar o relato, e, em seguida, confirmou que era mesmo uma carroça, e que estava vazia. O garoto, meio confuso,
perguntou ao pai como ele sabia disso. O índio, então, respondeu ao filho que sabia isso porque a carroça estava sacolejando
muito e fazendo muito barulho, o que não acontece com carroças carregadas, que ficam mais assentadas no chão.
4
Outra é a história dos dois monges, com votos de castidade e silêncio, que viajavam por um caminho em direção ao mosteiro,
voltando de uma peregrinação a um lugar sagrado. A trilha seguia beirando um rio que, devido às chuvas, estava caudaloso e
difícil de atravessar.
Os dois passaram por uma linda mulher que precisava passar para a outra margem, mas estava receosa, com medo de ser
arrastada pela correnteza. Um dos monges pegou-a nos braços, atravessou o vau e a deixou do outro lado. Depois, retornou e
seguiu seu caminho com o companheiro de viagem, ambos sempre calados.
Depois de algumas horas, já próximos do destino, um dos monges parou e disse ao outro:
– Irmão, sei que não devíamos falar um com o outro, pois nos comprometemos a ficar com os lábios selados durante toda a
viagem, mas não posso mais me calar. Desde que você pegou aquela mulher em seus braços e a levou para o outro lado do
rio, estou constrangido por não ter impedido seu gesto, que considero um risco enorme de tentação pelos prazeres da carne
aos quais nós renunciamos. Terei que denunciá-lo ao Mestre.
– Meu irmão, você carregou esta mulher até aqui, por tantas horas! Eu a deixei lá, do outro lado do rio!
5
Outra historinha, esta quase uma parábola, fala de um jovem herdeiro de uma fortuna imensa, que preferiu ficar se divertindo e
gastando em prazeres, bebida e mulheres, em vez de se preparar para administrar os seus bens quando o pai morresse.
O pai sempre insistia para que seu filho, que era o único, tomasse juízo, amadurecesse, garantisse uma vida próspera e serena,
sem tantos excessos e abusos.
Embora amasse seu pai e o ouvisse calado, seus conselhos se dissipavam no ar. Um dia, já velho, o pai adoeceu gravemente e
morreu. Junto com seu testamento, havia uma carta, dirigida exclusivamente ao filho. Ela dizia o seguinte:
Filho, durante minha vida tentei lhe passar minha experiência, que era o melhor que eu tinha para dar, fora o dinheiro. Mas,
pelo que percebi, você não vai seguir meus conselhos.
Tudo indica que beberá, farreará, se divertirá com mulheres, dissipando esta fortuna que eu lhe deixo em prazeres, jogatinas e
outros vícios que já estão instalados em você, embora não enxergue.
Chegará um momento em que não terá mais nada, e ninguém mais ficará lhe bajulando, porque você não terá recursos para
comprar aplausos, falsos amigos ou os favores de mulheres. Estará sozinho, ou quase, sem perspectivas e com muitas
decepções, pois ninguém vai aturar sua arrogância, irresponsabilidade e egoísmo de graça.
Quando o sofrimento se tornar insuportável, tenho um último presente para você. Aqui perto da cidade, vou lhe deixar uma
pequena chácara, cuja documentação preparei de forma a impedi-lo legalmente de vendê-la.
Como vai ver, é uma terra estéril, como sua vida foi, e nela só existe uma grande árvore, já morta, e uma corda pendurada em
seus galhos secos. Faça bom proveito. Será, com certeza, a saída que vai restar para você.
Embora muito triste por saber a opinião de seu pai sobre seu futuro, o jovem logo se esqueceu disso, motivado pela riqueza que
era agora inteiramente sua. Então, mandou ver, gastando a rodo e vivendo como um rei, sem preocupações nem limites.
Exceder as medidas foi se tornando um hábito que dominou cada vez mais seu modo de ser. Muito mais rapidamente do se
podia prever, ele conseguiu perder tudo que tinha. Viciado em álcool, o jovem logo chegou a um estado de quase mendicância, só
lhe restando a pequena chácara que não podia vender.
Sem ter para onde ir, foi para lá. Jogou seus trapos no casebre que era a única edificação existente no terreno e, da janela,
olhou a grande árvore ressecada ao fundo do quintal, na beira de um pequeno barranco, com a corda pendurada, balançando ao
vento brando, quase brisa de fim de tarde.
A carta de seu pai, de repente, lhe veio à lembrança em todos os detalhes, e ele compreendeu, com absurda clareza, o que seu
velho tinha profetizado antes de morrer.
Não havia mais lugar para ele no mundo. O presente e o futuro acenavam com miséria, agonia e o desprezo de todos. Tinha
acabado o sonho, e começado o pesadelo. Sabia que não ia aguentar.
Aproximou-se da árvore, fez uma laçada na corda, colocou-a no pescoço e se atirou para a morte. Mas ela não veio. O galho,
aparentemente sólido, partiu-se, e ele foi ao chão.
Levantou-se, meio atordoado, e viu, pela cavidade que havia surgido na árvore, que o galho tinha sido cuidadosamente serrado
pela metade e que, dentro do buraco aberto pelo impacto, havia uma bolsa de couro. Ao abri-la, descobriu surpreso que guardava
uma pequena fortuna em ouro. Junto ao metal estava um envelope, dentro do qual um bilhete com a letra de seu pai e os
seguintes dizeres: “Meu filho, não perca esta segunda chance”.
6
Outra história frequente entre os anônimos é a do sujeito que resolveu trabalhar por conta e abriu uma peixaria, assinando
contrato com pescadores para que lhe fornecessem todos os dias pescado fresco.
Na frente do estabelecimento, colocou uma enorme placa com os dizeres; VENDE-SE PEIXE FRESCO AQUI.
Assim que instalou a placa, um homem que passava parou, leu e lhe recomendou que diminuísse o tamanho da frase, dizendo
que ficaria melhor se deixasse só VENDE-SE PEIXE FRESCO, porque o AQUI estava obviamente implícito, não poderia ser em
outro lugar.
O jovem o escutou e resolveu acatar sua sugestão, retirando a palavra do letreiro. Quando a placa já tinha sido simplificada,
outro homem comentou que, na verdade, não era preciso dizer que o peixe era fresco, porque obviamente não se vende peixe
podre.
Mais uma vez, o comerciante modificou a placa, que ficou só com dois dizeres: VENDE-SE PEIXE.
Um terceiro transeunte, no entanto, imediatamente retrucou, argumentando que, como evidentemente se tratava de uma
peixaria, o verbo da frase, o VENDE-SE, era dispensável, pois esse tipo de estabelecimento não faz outra coisa senão
comercializar peixes. Assim, uma única palavra bastaria para informar do que se tratava. O comerciante, novamente, alterou a
placa, que ficou somente com a palavra PEIXE.
Mal acabara de reinstalar o letreiro quando surge um quarto indivíduo, que diz achar aquela placa muito insípida, pouco
chamativa e, portanto, sem eficiência comercial. Então, sugeriu que escrevesse uma frase inteira, que interessasse quem a lesse
e, assim, abrisse a possibilidade de bons negócios. Tal frase, na opinião dele, deveria ser VENDE-SE PEIXE FRESCO AQUI.
Foi o que o homem fez, e tudo voltou a ser como ele queria antes. Assim, o jovem comerciante aprendeu que as opiniões têm
sempre a aprovação daqueles que as emitem, mas que, se você também já pensou no assunto, é melhor seguir o resultado de
suas próprias conclusões.
7
Um homem morreu e, chegando na “triagem celeste”, teve a chance de conhecer o céu e o inferno. Ao chegar ao inferno, viu
pessoas infelizes, angustiadas, desesperadas de fome. Havia comida, mas as colheres eram compridas, enormes! Os
condenados podiam pegar o alimento com elas, porém a distância dos cabos os impedia de levá-lo à boca.
No céu, uma surpresa: a comida e as colheres imensas eram iguais às do inferno, mas as pessoas estavam sorrindo, em paz e
satisfeitas. O tratamento, no entanto, era o mesmo! Aí, percebeu a diferença: no céu, as pessoas se alimentavam umas às
outras, estendendo as colheres para os lábios do outro e vice-versa. A mútua ajuda era é o que tornava a situação um paraíso!
8
Outra máxima oculta em uma história singela: um guerreiro chinês visitou um eremita considerado sábio e lhe perguntou, após
cumprimentá-lo polidamente, quais eram as definições de inferno e paraíso.
O eremita o fulminou com um olhar de ódio e indagou rispidamente: “Você veio até aqui para fazer uma pergunta tola, típica de
um ignorante com cérebro de avestruz, com palavras que parecem fezes de um jumento, como se meu tempo fosse lixo? Onde
conseguiu se tornar tão idiota?”.
O guerreiro surpreendeu-se com a reação do eremita. Suas palavras foram tão ofensivas que, enfurecido, o guerreiro levou as
mãos à espada, pronto para matá-lo. Ao vê-lo completamente alterado, o eremita disse: “Isso é o inferno”.
Ao compreender o que tinha acontecido, o guerreiro, comovido pela inteligência do sábio, desculpou-se e lhe fez uma
reverência, feliz com o aprendizado. Então o eremita, apontando para o coração do guerreiro, murmurou: “E isso, meu senhor, é o
paraíso”.
9
Há também a história de um devoto de São Francisco, um crente fanático dos poderes do santo. Um dia, conta a lenda, começou
a chover muito na região em que o sujeito morava, tanto que, em pouco tempo, estava tudo alagado, e a água não parava de
subir.
O devoto, vendo aquilo, rezou, dizendo: “Salve-me, São Francisco!”.
Então se sentou, confiante, certo de que o santo o salvaria. Dali a pouco, um vizinho bateu à porta, chamando-o para aproveitar
a carona em sua caminhoneta, porque ele e a família estavam indo para um lugar seguro. Mas ele agradeceu e dispensou a
ajuda, porque, afinal, confiava no santo, e este logo viria tirá-lo dali.
A água continuou subindo e já estava na altura das janelas quando os bombeiros passaram em uma canoa, recolhendo os que
ainda não estavam em segurança. Mais uma vez, o homem recusou a ajuda, porque confiava no santo e ele, tinha certeza, não ia
abandoná-lo ali.
Como a água ainda subia, após algum tempo subiu para o telhado, com a inundação já nos calcanhares. Estava lá, esperando a
interferência do santo, quando um helicóptero da defesa civil sobrevoou sua casa, e os tripulantes lhe jogaram uma corda,
fazendo sinal para se amarrar nela a fim de que pudessem içá-lo. Novamente, dispensou o socorro, sempre confiante na
intervenção de São Francisco, seu santo predileto.
A água, subindo sempre, cobriu o teto, e ele, que não sabia nadar direito, morreu afogado. Tudo ficou escuro. Quando deu por
si, era apenas sua alma, em um hospital astral, ainda cuspindo água. Um frade capuchinho, que em seguida identificou como São
Francisco, estava a seu lado.
Revoltado por não ter sido salvo, o crente despejou uma torrente de queixas sobre o santo, reclamando por ter morrido apesar
de ter rezado, acreditado e mantido a confiança total no taco do frade até o fim.
São Francisco o olhou fixamente, meneou negativamente a cabeça e disse:
– Mas eu tentei muito, meu filho. Muito mesmo. Primeiro, mandei seu vizinho, mas você recusou. Depois, os bombeiros, e você
não quis outra vez. Aí, mesmo com as coisas já bem complicadas, ainda dei um jeito de mandar a defesa civil com um
helicóptero, e de novo você disse não. Então, vi que não queria mesmo ser salvo e entreguei os pontos!
Esta historinha, claro, é um puxão de orelhas especialmente para megalomaníacos, que estão aos montes no AA, e pensam que
as intervenções divinas precisam ser bombásticas para que todos vejam que somos “amiguinhos do Chefe”. Esquecem-se que, na
maioria das vezes, o Poder Superior age por meio de coincidências, ou seja, de milagres nos quais a Inteligência Absoluta prefere
manter o anonimato.
10
Para nos lembrar da arrogância e da presunção dos egos delirantes e pseudo-onipotentes que parecem comandar a
personalidade dos alcóolatras, uma dica é simbolizada na fábula de um intelectual que precisa atravessar um rio de forte
correnteza e, para tanto, contrata um homem simples e ignorante para levá-lo em seu barco até a margem oposta.
Começa a travessia, e o erudito, orgulhoso, olha as vestes do condutor e seu tecido grosseiro. Então lhe pergunta se já usou
roupas de seda ou outros materiais finos.
O barqueiro acena negativamente a cabeça, e o passageiro lamenta, comentando que o fato de alguém não ter essa
experiência era como se este alguém tivesse perdido um terço da vida. Meio humilhado, o homem disfarça seu mal-estar
mordendo um pedaço de pão seco, que trouxe como uma espécie de lanche. O intelectual, então, lhe pergunta se já comeu caviar
e outras iguarias, ao que o barqueiro novamente responde com uma negativa. O comentário do orgulhoso erudito é o mesmo de
antes, dizendo que isso é uma pena e que alguém sem essa experiência é uma pessoa que perdeu um terço de sua vida.
Antes de qualquer reação do barqueiro, as águas do rio se encapelam, seu curso se alarga e a correnteza aumenta de repente.
O barco, atirado contra rochedos ocultos, fica com a lateral destroçada e começa a afundar. O barqueiro, já na água, pergunta ao
intelectual se sabe nadar. Quando este, apavorado, demonstra que não, o barqueiro lhe diz que isso é uma pena, porque significa
que ele vai perder cem por cento da vida.
11
Esta historinha demonstra o que nossa cegueira em relação ao real valor das coisas pode provocar no processo da vida.
O ensinamento fala de um homem que está viajando na estrada, à procura de um trabalho que possa equilibrar suas finanças,
abaladas por algumas ações comerciais infelizes. Quando anoitece, o sujeito chega na beira de um lago. Começa a chover, o céu
fica escuro. O homem pega a lanterna e, ao tentar acendê-la, a deixa cair. Uma vez que não consegue achá-la, fica no breu total.
Devagar, apalpando os rochedos, que demarcam as margens do lago, ele consegue encontrar pelo tato uma reentrância nas
pedras e decide ficar ali até a aurora, pois se mover, devido à proximidade das águas profundas, era muito arriscado, e um tombo
cego poderia ter resultados trágicos. Senta-se no chão e, tateando, encontra pedrinhas pequenas, as quais ele não consegue
enxergar, mas percebe, com os dedos, seus tamanhos e contornos.
O tempo começa a passar, a chuva continua, e a espera fica desgastante. Para se distrair, o homem atira as pedrinhas para a
frente, uma a uma, bem devagar, as ouvindo bater nas águas do lago e até ressoar. Enquanto isso, sua cabeça, preocupada com
as dívidas, girava sem parar, elaborando planos, estudando hipóteses, torcendo para que os deuses o abençoassem...
De quando em quando, outra pedrinha no lago, sempre com o ruído dela caindo na água cortando a escuridão profunda.
Quando a luz da alvorada tornou novamente o mundo visível, o homem percebeu que sua mão ainda guardava uma pedrinha, a
última. Aproximando-se da claridade, a examinou de perto. Perdeu o fôlego. Aquela pedrinha, assim como as outras que agora
estavam no fundo do lago, era um diamante perfeito, e representavam uma riqueza incalculável. E foi ele quem, literalmente por
falta de visão, jogou a maior parte delas fora para sempre!
12
Esta historinha tem um tom de anedota, mas talvez seja a mais séria de todas. Ela fala de uma convenção de mosquitos jovens,
uma espécie de mestrado para a vida adulta.
No dia do encerramento do curso, após todos os mosquitos terem recebido seus diplomas, o mestre de cerimônias avisou que o
Mosquito-Mor, venerado por sua profunda sabedoria, iria encerrar o dia com um pronunciamento. Todos fizeram silêncio enquanto
o sábio mosquito se aproximou da tribuna. Pigarreando antes de iniciar, a fim de deixar sua voz-zumbido ainda mais clara,
declarou:
– Senhores mosquitos machos e fêmeas graduados, meus parabéns! A vida de vocês, a partir deste momento, é de inteira
responsabilidade de cada um. Nunca se esqueçam, no entanto, do que vou lhes dizer agora. Vocês e os humanos são
inimigos, mas devem temer e se proteger de um perigo que é letal tanto para vocês quanto para eles. Portanto, CUIDADO
COM AS PALMAS!
Tudo isso não me deixa esquecer que uma grande compulsão, como a minha pela bebida, é tão perigosa que não basta me
tornar um abstêmio para não ser tragado por ela. Como dizia o falecido Eduardo Mascarenhas, é necessário desenvolver uma
potencialidade, superar primitivismos, elevar o resultado da percepção para outros graus de excelência. É uma maneira didática
de procurar aperfeiçoamento, pensar grande, nutrir sentimentos belos, esforçar-se por abandonar os patamares do egoísmo e da
mesquinharia.
Os 12 Passos visam harmonizar melhor a pessoa consigo mesma, fazê-la conhecer-se mais profundamente e, assim, ter mais
sabedoria para lidar consigo e com os outros. Não tem nada disso de enquadrar, nem se trata de adaptar. Trata-se de sensibilizar
a inteligência, a sabedoria e a intuição, para seguir o caminho que cada um quiser, respeitando o ditado “cada cabeça, uma
sentença”.
Graças a uma ação constante baseada nos 12 Passos, figurados na prática por esses slogans que a irmandade chama de
“princípios de ouro”, hoje posso dizer que venci meus limites e me tornei um ser humano muito melhor, lidando com seres
humanos, companheiros de AA, questões profissionais e atitudes fundamentadas no meu próprio crescimento espiritual – o que,
para mim e para os AA, não se limita às religiões e não se manifesta apenas em doutrinas – com muito mais efetividade, respeito
ao próximo e um olhar social sobre os problemas e suas possíveis soluções.
Agradeço sempre pelos benefícios que ganhei nessa trilha, inicialmente com o retorno de meus três filhos, que aos poucos
voltaram a morar comigo, quando minha maneira de ser e agir tornou claro para eles que o Sílvio antigo, com seus porres,
distância psicológica e irresponsabilidade, simplesmente não existe mais, tendo dado lugar a um homem que ainda tem muitos
defeitos, limites e até estreiteza de visão em algumas oportunidades, mas que, com toda certeza, optou por olhar de frente o que
é, mudando para melhor o que for possível e minorando ao máximo os prejuízos causados pelo que ainda não conseguiu
modificar.
Os resultados positivos de minha vivência no AA são claramente visíveis em todas as áreas de atuação. Profissionalmente, fui
alçado pela meritocracia à posição de sócio de meu antigo patrão, cuidando do universo contábil de 22 grandes empresas, antes
de me tornar um empresário na fabricação de componentes industriais. Nos últimos anos, vivo de uma “aposentadoria branca”,
garantida por consultorias intermitentes sobre questões contábeis para clientes de vários segmentos, além de incursões nas áreas
de construção civil e comercialização de imóveis.
Do ponto de vista afetivo, nenhuma reclamação a fazer. Além de conquistar o afeto, o respeito e a amizade dos filhos de meu
primeiro casamento, encontrei a possibilidade de um relacionamento extremamente importante com a mulher que se tornou minha
segunda esposa. Com ela tive uma filha maravilhosa e com quem vivo até hoje, em grande parte pelos ensinamentos do AA sobre
relacionamento humano, os quais, com o passar do tempo, permitiram que eu reconhecesse quase instantaneamente o “estado
de espírito” vigente no instante em que ela retorna do trabalho, o que me permite não “atravessar a música” se o horizonte estiver
propenso a tempestades e ser um companheiro para quase todas as horas, já que, como mencionei anteriormente, melhorar,
mesmo que muito, não significa ser perfeito – verdade que, vale frisar, serve para os dois lados.
Finalmente, outro fator primordial para minha recuperação ética e espiritual foi a participação na administração de AA, gerindo
sucessivamente diversas atividades dos denominados serviços do Grupo, cujo objetivo único, como está explicitado nas
Tradições, é ajudar os alcoólicos que ainda sofrem com o problema. Para isso, toda uma estrutura de serviços foi montada
durante o crescimento da irmandade no mundo. Hoje, são quase 150 mil grupos, em pelo menos 160 países, e uma rede de
atividades, organogramas e planos de ação para garantir a manutenção dos princípios básicos em todos os lados em que o AA se
apresenta.
Com apenas alguns meses de irmandade, comecei a me oferecer para prestar serviços simples, como fazer café, limpar a sala,
esvaziar cinzeiros (fumar era permitido em todos os lugares) comprar a literatura de apoio (totalmente incipiente na época, com
uma tradução sofrível do inglês para o português do Big Book, livro “bíblia” do AA, aqui impresso em edição reduzida e divulgado
sob o “apelido” de Livro azul) e participar da abordagem de novos membros, sempre acompanhado de veteranos e tentando
“aprender” com sua experiência.
À medida que a névoa e o torpor de anos de bebida desenfreada foram se dissipando e a cabeça começou a ajudar um pouco
mais, fui assessorar “as lideranças” – ou, mais simplesmente, os “malucos” que trabalhavam de modo árduo e gratuito para
consolidar conquistas e ampliar a ação do AA em São Paulo.
Descobri que minhas habilidades profissionais poderiam “quebrar um galho” para fornecer à administração uma “cara” mais
convincente e confiável, e me pus também a organizar, junto com alguns companheiros de recuperação que tinham
conhecimentos na área, o fluxo de funcionamento legal, contábil, administrativo e editorial dos AA do Brasil, por meio da
organização daquilo que estava se formando mais aceleradamente em São Paulo.
Daí em diante, por todos os 37 anos em que estou na irmandade, exerci alguma função na estrutura de serviços ou de
divulgação em todos os níveis possíveis, com responsabilidades nacionais, estaduais, municipais ou distritais, debatendo e
participando de trabalhos em todos esses âmbitos e dos desafios concernentes a eles. Assim, cumpri todos os “mandatos” do
início ao fim, salvo nos casos em que as necessidades do conjunto obrigavam a minha transferência para esferas de maior
abrangência, dificultando ou impedindo uma ação efetiva em ambas as instâncias.
Devo dizer que minha circulação entre grupos, companheiros de diferentes cidades, Estados e estilos de serviços, junto com a
prática constante dos 12 Passos, constituiu-se como uma metodologia de checagem permanente de minhas atitudes emocionais,
intelectuais, psicológicas e profissionais. Isso permitiu que me mantivesse sob severa observação em todas as ocasiões, com uma
disciplina que blinda furos e evita interrupções de checagem.
A experiência acumulada pelo contato constante com pessoas de características notadamente diferentes em suas atuações,
muitas vezes com opiniões totalmente divergentes das minhas, me ensinou a utilizar de modo objetivo as muitas dicas fornecidas
pelo programa de AA e seu contexto de aplicações. Isso me possibilitou sustentar, na maioria das vezes, uma posição de
assertiva cordialidade, mostrando claramente o que cada situação pode causar aos relacionamentos e como uma pessoa
realmente integrada ao Programa reage quando adota o princípio de que a honestidade é a melhor forma de vida,
independentemente de seu grau de perspicácia e da efetividade de sua comunicação.
É possível realizar tudo isso, como mostra o programa de AA, com atitudes objetivamente lógicas, mas nunca frias, porque o
êxito completo parece vir (e foi assim no meu caso) da linguagem do coração, que é especialista no óbvio.
Evite pré-julgar.
Aprenda a escutar, pensar e esperar.
Acomodação não é serenidade.
Deus não exige que consigamos, espera apenas que tentemos.
Não lamente o pneu furado, agradeça a Deus pelo telefone perto.
Não precisamos lamentar os erros passados, basta não repeti-los.
Em vez de julgar as coisas erradas que os outros fazem, é melhor pensar nas coisas certas que você deixou de fazer.
Poucas palavras, esclarecedoras, indicadoras de ações a se realizar e de focos emocionais a serem estabelecidos em todos os
instantes da vida, direcionando-a para a sabedoria da simplicidade que existe em agir com vistas a sempre extirpar o medo e
todos os seus disfarces conhecidos – postergação, justificação, acusação, autopiedade, autoflagelação.
Foi prestando atenção nisso e encarando as coisas sem embromações nem delírios que eu e muitos outros deixamos de ser
bêbados e passamos a ser alcoólicos sóbrios, nos esforçando para vencer nossos medos, melhorar nossa autoestima e aprimorar
nossa personalidade, bem como dando um lugar melhor para as manifestações do espírito e sem deixar a autodestruição reger
nossos passos ou nos afogar na bebida. Pelo menos, é nisso que eu acredito, e é nisso que me pego para encarar dificuldades
serenamente e acreditar que tudo será melhor quando eu lidar melhor comigo também.
Sou Severino, alcoólatra, hoje em sobriedade conquistada, pelo menos nestas 24 horas, graças ao meu encontro com a filosofia e
a programação de Alcoólicos Anônimos (AA), e ao fato de ter aceitado, quando conheci a irmandade, que bebia
descontroladamente e, em virtude disso, tinha perdido totalmente o domínio sobre minha própria vida.
Aliás, há tempos que minha relação com o álcool estava me prejudicando cada vez mais. Meu desconhecimento total de que o
alcoolismo era uma doença, como hoje a ciência já comprovou inteiramente, e que as insanidades que eu cometia embriagado
não eram resultado de problemas de caráter, mas de um processamento neurofisiológico anormal, fazia minhas ressacas
provocarem uma dor moral insuportável. Inúmeras vezes tomei decisões de nunca mais beber que terminavam sempre em um
novo porre, consequência inevitável de uma armadilha de minha mente me convencendo de que ia “tomar só uma”. O resultado:
“apagamentos” que me faziam acordar no outro dia sem me lembrar do que e como aconteceram os fatos.
Não sou exatamente uma pessoa frágil do ponto de vista psicológico. Vim do Nordeste para São Paulo e ralei muito,
enfrentando dificuldades de todo o tipo, não apenas materiais. Sou homossexual assumido, e isso nunca foi um problema para
mim no que diz respeito a minha família de sangue, que sempre lidou com a questão de minha preferência sexual com
tranquilidade e respeito. Tenho um companheiro estável faz mais de 17 anos, e minha sobriedade atual tem uma relação direta
com meu casamento, porque foi para salvá-lo que procurei ajuda.
Minhas bebedeiras me tornavam um sujeito lúbrico e irresponsável, prisioneiro dos próprios instintos. Um dia, após ter saído e
tomado todas, despertei em um hotel ao lado de um desconhecido, sem a menor recordação de como tinha ido parar ali. Eu, que
sempre fui supercuidadoso com a saúde, tinha dormido e praticado sexo inseguro com alguém que nunca vi antes, apesar de meu
receio quase fóbico de contrair aids ou qualquer outra doença sexualmente transmissível. Esse descuido poderia ter prejudicado
seriamente a vida de meu companheiro, além da minha, caso tivesse acontecido o pior.
Mas percebi, no meio do atordoamento da ressaca, que o barco da existência estava desgovernado, e só o acaso havia evitado
que colidisse com recifes e soçobrasse, levando para o fundo tudo que eu sonhava, tudo que queria e tudo que achava que já
tinha. Embora não soubesse como, retomar o controle da vida agora era prioridade. O desespero de não ter a menor ideia de por
que tudo aquilo estava acontecendo me angustiava demais.
Sim, quando eu bebia não tinha controle. Mas como poderia mudar esse estado de coisas se, antes de começar a beber, eu me
comprometia comigo mesmo a tomar uma ou duas doses e parar, sem nunca cumprir essa determinação e terminava
inevitavelmente bêbado, muitas vezes perdendo a consciência dos fatos e me enfiando em situações constrangedoras?
Felizmente, tudo não passou de um susto. Porém, a possibilidade de destruir uma relação que já durava 12 anos por causa de
uma promiscuidade que não era nem minha, mas do bêbado que crescia em mim quando usava álcool, me desarticulou de vez.
Embora não fosse um católico praticante, fui à Igreja de São Judas para rezar e pedir uma luz que me permitisse enxergar um
rumo, um norte, a fim de aliviar a falta de perspectivas da minha vida naquele momento.
Tinha perdido a coragem e a esperança de conseguir sair daquela armadilha infernal da minha cabeça, capaz de, em um
instante, fazer uma decisão aparentemente forte de não beber desaparecer como se nunca tivesse existido, me convencendo, sei
lá como, que o resultado que sempre ocorria quando eu bebia (não ter limites) não iria se repetir daquela vez. E lá vinham as
consequências outra vez, e eu novamente prometia, para outra vez não cumprir, e assim por diante, em um círculo vicioso que
rodava cada vez mais rápido, gerando uma realidade psíquica e material cada vez pior.
Não sei se foi milagre ou coincidência, mas, naquele dia, a missa na Igreja não foi como as outras. Na hora do evangelho,
quando o padre normalmente faz uma preleção aos fiéis sobre um tema ligado à doutrina, ele chamou um senhor que estava nas
primeiras filas e pediu para que escutássemos o que tinha a dizer. O senhor pegou o microfone e se apresentou como um
membro de AA, frequentador de um Grupo instalado nas redondezas, e explicou sucintamente como seus integrantes faziam para
escapar das malhas do alcoolismo por meio de reuniões e de troca de experiências. Também deu um rápido depoimento de como
tinha sido sua vida bebendo e como estava agora, sem beber.
Não entendi direito uma boa parte do que ele falou, mas a ideia de que havia outras pessoas com dificuldades semelhantes e
que existia uma maneira de enfrentar o problema foi suficiente para mim. Na noite seguinte, no endereço e no horário
mencionados, lá estava eu, atento, absorvendo o conteúdo dos depoimentos e me identificando com várias das histórias contadas
pelos membros.
Quando um deles falou que se tratava de uma doença cerebral, reconhecida e até classificada pela Organização Mundial da
Saúde, e deu alguns detalhes científicos sobre seu funcionamento, entendi de súbito por que não conseguia gerenciar meu
consumo de álcool. Eu era doente, e minha doença tinha como mecanismo uma compulsão por beber cada vez mais a partir da
primeira dose, uma sede insaciável que só dava trégua quando derrubava o bebedor.
Aprendi também que a única maneira segura de tratar o alcoolismo era evitar o primeiro gole, não beber nunca nem uma gota
de bebida alcoólica, e me manter assim sempre – uma dificuldade quase intransponível para quem aprendeu a lidar com emoções
boas (euforia) e más (tristeza, raiva, medo, insegurança) com a percepção “turbinada” por uma substância psicoativa qualquer,
sendo o álcool a mais popular delas. Para tornar isso possível, a grande dica recebida da irmandade foi dividir essa “eternidade”
em períodos menores, de 24 horas, e cuidar da abstinência obrigatória um dia de cada vez. Ao mesmo tempo, aprendi que era
importante estabelecer uma metodologia de autoconhecimento contínuo, para avaliar com clareza nossas características
problemáticas e nossas qualidades, de modo a aprimorar pontos falhos e estimular nossos pontos positivos.
Para um alcoólico como eu, essa ação de enxergar e clarificar pontos nebulosos e mal aceitos de si mesmo é a essência do
Programa de Recuperação, um nome que não considero suficientemente exato para explicitar o que os Passos, Tradições e
outros princípios dos anônimos fazem pelos integrantes das quase 100 irmandades que cuidam de portadores de diferentes
transtornos compulsivos pelo mundo todo.
Na verdade, o Programa do AA e suas variações apontam em direção a uma vida inteiramente nova, com uma visão muito mais
abrangente das coisas e um posicionamento muito mais autêntico de cada um diante de si mesmo e dos outros. Tanto o começo
como a consolidação dessa nova realidade exigem uma limpeza completa, uma faxina caprichada na alma de cada um,
desenterrando os traumas secretos que nos atacam e desestabilizam subterraneamente, solapando os alicerces de qualquer ideia
de felicidade.
Eu, por exemplo, fui estuprado aos 6 anos de idade, e durante muito tempo pensei que levaria essa recordação horrível para o
túmulo. No entanto, ao fazer o 4º Passo, “um destemido e minucioso inventário moral de mim mesmo”, e depois o 5º, “admitindo
perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas”, consegui avaliar
honestamente todos os fatos envolvidos e me livrei desse fantasma para sempre.
Também levei algum tempo para liberar informações sobre minha sexualidade para o Grupo. Como os grupos de AA no País
têm, como grande maioria, integrantes brasileiros, eles refletem também as características da cultura nacional, e havia um
evidente preconceito – não contra mim, pois eles não sabiam, mas contra relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Assim,
esperei eles me conhecerem melhor para abrir o jogo, e, hoje, todos aceitam naturalmente minha situação e minha união com
meu companheiro.
Na época em que ingressei no AA, meu relacionamento tinha apenas cinco anos e caminhava a passos largos para o seu fim,
devido aos meus comportamentos.
Estou no Grupo para cuidar de mim, e não tenho a menor vontade de deixar de frequentar a sala. Foi ali que descobri e continuo
descobrindo muita coisa importante. Antes, pensava que meu único problema era beber demais; achava que tinha uma vida
bacana, que só faltava o controle do copo. Hoje, sei que o buraco é muito mais embaixo e que existem inúmeras deficiências de
caráter na minha maneira de ver o mundo. Sei que, se não lutar para mudar esses limites e modificar a qualidade das minhas
ações, nunca conseguirei ser realmente feliz e ficar em paz de verdade. Achava que eu era uma coisa, o AA que mostrou que sou
outra, bem diferente.
Na medida em que fui participando mais do Grupo, os preconceitos foram aos poucos desaparecendo e, hoje, praticamente não
existem. Aliás, minha integração ao Grupo e minha postura em relação às muitas funções ou aos encargos existentes em sua
estrutura de serviços sempre foi a de colocar a “mão na massa” sem medo. Fui tesoureiro, secretário, representante de serviços
gerais, membro do comitê de divulgação, coordenador geral. Ainda hoje, apoio todas as atividades do Grupo junto à comunidade,
visito hospitais, albergues, clínicas especializadas e escolas, transmitindo a mensagem do AA: a de que existe esperança no
horizonte dos portadores da doença do alcoolismo.
Continuo praticando os 12 Passos ininterruptamente, e eles já fazem parte do meu cotidiano, espontaneamente e sem esforços
nas várias situações do dia a dia.
Recordo sempre que sou impotente perante o álcool, que perdi a sanidade, que um Poder Superior me ajudou a recuperá-la,
que tenho defeitos, medos, fraquezas e delírios, mas também boa vontade, persistência, honestidade e desejo de acertar. E que
tudo no universo, incluindo meu alcoolismo e as muitas facetas que ele pode apresentar para meu crescimento, estão sob o
comando de um Deus amantíssimo, em que eu confio e em cuja ação tento não interferir com minha ansiedade e falta de
entendimento.
Tudo que a experiência da literatura de AA recomenda eu faço. Sou obediente e coerente; sempre fui atrás, li, pesquisei. Além
dos livros, manifestos e ensaios do AA e das outras irmandades, leio também tudo que posso sobre as descobertas da ciência a
respeito da dependência química e da psique humana. Deepak Chopra e Eckhart Tolle são leituras igualmente importantes e
constantes. Todas as manhãs, dedico pelo menos uma hora a elas. Também não tenho problemas com Jesus, como homem
inspirado ou como filho predileto de Deus. Acredito que, se fizermos o que ele sugere, teremos uma vida ótima neste planeta.
Tenho ainda dificuldades, mas são menores. O meu companheiro não está em recuperação, porque nunca cuidou do problema
dele: a codependência. Hoje, está se tratando de uma depressão séria, que lhe tirou o pique e o jogou em uma apatia brava, da
qual está lutando para se livrar.
Recentemente, descobri que ele, alguém que eu considerava acima de qualquer suspeita, estava me passando para trás com
outra pessoa. Isso mexeu muito comigo, mas os Passos me ensinaram a lidar com os problemas com objetividade: conversamos
sobre a situação, e falei honestamente que minha vida era melhor com ele do que sem ele, e que dizer o contrário seria mentira.
Mas que se ele não me quisesse mais, poderíamos nos separar numa boa. Ele disse que precisava de mim, porque não estava
bem, e continuamos juntos.
A prática me mostrou que um alcoólatra e um codependente, juntos, representam o casamento perfeito para gerar um inferno,
pois o segundo desconhece os truques da doença do primeiro e precisa exercer sua compulsão pelo controle. Assim, muitas
vezes “boicota” os esforços de recuperação do dependente, reclamando da dedicação dele ao grupo, que inconscientemente vê
como um concorrente no domínio da situação, e pode chegar a chantagear o alcoólatra, a fim de manter sobre ele o “controle” que
a codependência exige.
Contudo, consegui limpar a casa de meu relacionamento afetivo e também limpei a casa de meu relacionamento com as
pessoas. Sou um comerciante muito bem-sucedido, o que mostra como anda minha integração com todos os que me cercam.
Vendo joias e roupas. Viajo para fora periodicamente para trazer mercadorias e visito grupos nos países por onde passo.
Consegui tudo que queria financeiramente e estou profissionalmente realizado, mas a felicidade não está na grana, e hoje sei
disso. Logo devo me aposentar e aí vou me dedicar ao AA ainda mais. Traço meus planos em conversas coloquiais com o Poder
Superior, um Deus abstrato que, na minha visão, arquitetou o universo para que todos nós aprendêssemos o valor existente no
amor incondicional e na procura do bem.
Antes de conseguir esse contato, rezava como um papagaio. Era quase uma anedota pedir, pedir e pedir coisas materiais e,
depois, encerrar dizendo “e que seja feita sua vontade”, quando, claramente, estava tentando impor a minha. Hoje, só peço para
ter forças e discernimento para aproveitar da melhor forma o ensinamento que Ele, através da vida, tiver para mim. Minha grande
bandeira é a reforma íntima. Para fazer qualquer coisa boa, você tem que estar bem também.
Meu nome é Mônica, e, neste momento em que faço meu depoimento, estou limpa há 1 ano, 6 meses e 23 dias.
Contando a história toda, já estive cinco anos sóbria em Alcoólicos Anônimos (AA), mas recaí em 2013, primeiramente em
medicamentos (benzodiazepínicos e anfetaminas) e, depois, também no álcool, na maconha e, de vez em quando, na cocaína,
que nunca foi exatamente minha droga de escolha.
Quando ingressei no AA, em 2008, pensando exclusivamente em me manter abstinente do álcool, alguns companheiros de sala
perceberam que eu usava medicações lícitas, com receita, por sintomas como tremedeiras nas mãos e certo alheamento. Eles até
fizeram comentários, abordando a questão da possível necessidade de que frequentasse o Narcóticos Anônimos (NA), mas eu
achava que não tinha nada a ver com esse outro grupo.
Quando parei de beber, já cheguei relativamente derrotada, porque o álcool me trouxe muitas perdas, todas dolorosas –
prejuízos que realmente senti na pele, então não briguei tanto contra a ideia de ingressar no AA. Já com os remédios, eu
simplesmente não queria parar. As anfetaminas me davam a sensação de estar funcionando muito bem, fazendo e acontecendo.
Driblava a possibilidade da doença com o pragmatismo dos resultados cotidianos, principalmente na disposição para o trabalho
profissional, e alegava para mim mesma que aquilo me fazia bem. Além disso, não era nada ilícito, afinal, eu apenas cumpria a
prescrição médica.
Mesmo assim, sem me aceitar dependente química cruzada, acabei ingressando também, já naquele início, em um grupo de NA
que ficava no mesmo prédio onde se localizava o grupo de AA. Assim, fiquei temporariamente limpa do álcool e dos remédios
também.
Então a vida foi correndo, os desafios surgindo, com vitórias, conquistas e também dificuldades.
Antes de ingressar, sofri também bastante com outra compulsão que sempre foi muito forte em mim: a dos relacionamentos
afetivos incontrolavelmente intensos. Durante os quatro anos que precederam meu ingresso, tive um namoro longo e intempestivo
com um homem muito problemático, assim como eu, o que foi extremamente desgastante. Quando decidi ficar sóbria, optei por
terminar com ele, pois sabia que haveria conflito entre as duas coisas e que não era possível gerenciar isso por muito tempo. Meu
medo de beber era enorme, e esse relacionamento trazia consigo um risco de recair que eu simplesmente não queria correr. Por
isso, minha decisão foi definitiva e sem vacilo.
Beber tinha sido tão prejudicial e causado tanto sofrimento que eu ia simplesmente bloqueando todas as possibilidades de voltar
ao uso. E não parei aí. Mudei muito minha rotina, introduzi o esporte na minha vida, cumpri todas as sugestões do Programa. Em
consequência, progredi rapidamente, meu prestígio como professora aumentou, a grana entrou com abundância.
Mas, até então, eu não tinha resolvido nada, apenas tinha descartado tudo que me parecia perigoso. Não havia olhado de fato
para dentro de mim, nem tentado conhecer melhor quem eu era interiormente. Então, como falava quando criança na escola,
“folguei com o sucesso”. Agi como se tivesse passado de ano, com aquela sensação de autoconfiança de que todos os problemas
tinham sido superados.
Foi quando comecei a me relacionar com outro homem, um companheiro de sala e, embora isso não seja aconselhável no
processo de recuperação, na época eu não levava muito a sério a proposta da espiritualidade, ficava satisfeita em manter a
abstinência.
Ele não bebia, mas fumava maconha sempre. Quando me disse isso, fiquei com um pé atrás. Afinal, não tinha nascido ontem, e
já frequentava as irmandades, inclusive o Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA) para controlar meu excesso de paixão
e minha impulsividade sexual, que não era pouca. Em resumo, sabia todos os leros, mas não tinha maturidade para lidar comigo
mesma e não consegui (ou não quis) cair fora do jogo. Entrei naquelas de arrumar justificativas tipo “ele me respeita, não fica
pedindo que eu também fume”, “quando usa fica maneiro”, “nunca fuma perto de mim”, etc. O tempo foi passando, o clima na
cama esquentando; o relacionamento com ele e com suas fantasias, que eram muitas, se tornou mais atrevido – ou, como a gente
diz no DASA, “mais pesado” –, e eu fui aceitando como se tudo aquilo fosse o normal. Afinal, nós nos amávamos, éramos adultos,
estávamos apaixonados.
Só que, em um determinado ponto, foi demais até para mim, que não sou nem era exatamente uma santa. Tentei dar um basta
naquilo. Ele, inteligentemente, aceitou meus limites, só que, pouco a pouco, foi se insinuando, e eu fui cedendo aos seus desejos.
As coisas foram se desvirtuando cada vez mais, e ele começou a sugerir que eu desse “um peguinha” na maconha antes de
rolar o sexo. Como ele fez esse trabalho de convencimento sem forçar, os comportamentos começaram a se tornar cada vez mais
habituais, e essa situação se perpetuou na relação.
Era como se ele tomasse Viagra para manter a potência, já que tínhamos idades diferentes (a dele bem superior à minha), e eu
tomasse outra coisa qualquer para segurar o embalo.
Estive um ano inteiro com ele, sempre mantendo esse pique. Aí, minha mãe desenvolveu câncer, e eu tive que dar uma
cobertura para ela, ajudando-a no tratamento, inclusive acompanhando suas sessões de quimioterapia. Foi uma enorme pressão,
e eu descompensei legal psicologicamente. Fiquei mal e manipulei a própria médica de minha mãe para que me ministrasse algo
para alterar o humor.
Rapidamente a dependência voltou e eu, em consequência, voltei ao psiquiatra e aos remédios de uso controlado. Comecei a
tomar Rivotril, o que me levou para a antessala do inferno. Eu tomava o medicamento, apagava quando tinha que apagar,
acordava, parecia que estava normal, mas ficava anestesiada, sem perceber a loucura do meu estado. Era uma droga que, no
início, me deixava ilusoriamente funcional, mas sem consciência do comportamento meio zumbi, quase automático. Por causa
dessas características é que existe tanta gente usando e perdendo o controle de uma infinidade de problemas.
Quando desenvolvi a tolerância, as circunstâncias eram sempre uma loteria. Eu estava fazendo alguma tarefa ou atividade e, de
repente, simplesmente adormecia; apagava em pé, sem tomar consciência de que tinha saído do ar. A essa altura, meu namorado
tinha recaído, e eu também estava muito próxima de uma bebedeira.
Aí, voltei para a sala e fiquei um mês limpa, mas com a cabeça atordoada, muito ruim. Foi quando apareceu a oportunidade de
viajar com meu irmão para a Alemanha, onde ele morava e de onde tinha vindo visitar a minha mãe. Pegamos o avião e, já
durante o voo, tomei vinho e recaí. Meu irmão estranhou, e eu dei uma desculpa qualquer. Cheguei à Alemanha pronta para tomar
todas com chucrute, mas, antes que fizesse isso, meu irmão já me enquadrou: aqui você não vai beber.
Sem opção, fui a diversos grupos de Munique, cujos endereços eu tinha levado de São Paulo por insistência de uma
companheira alemã que mora aqui. A partir daquele dia, 26 de dezembro de 2013, nunca mais bebi.
Minha mãe faleceu em fevereiro, e eu abandonei completamente os remédios. Passei por uma síndrome de abstinência muito
forte, brabíssima mesmo, mas consegui. Agora, vou fazendo tudo que o Programa sugere para me manter limpa, sóbria e em
recuperação contínua.
A sabedoria prática gerada no dia a dia dos grupos pela aplicação dos 12 Passos por milhares de pessoas em todos os cantos
do mundo chega a nós, integrantes das salas, como um manancial inesgotável de dicas para evitar que nos percamos nas
incontáveis dificuldades que enfrentamos enquanto observamos nossos próprios defeitos e virtudes. Nessa observação,
buscamos um grau maior de espiritualidade e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida.
Uma grande parte disso se foca em buscar sempre o mais simples, tocando a vida sem complicações desnecessárias. Mas a
nossa mente é uma mentirosa contumaz, e precisamos estar atentos para que ela não nos faça confundir o simples com o raso,
nem com a inconsciência, porque o raso não tem nada de simples, é apenas falho – e falso. Simplicidade também não é omissão,
nem falta de comprometimento, muito menos ocultar-se atrás da obscuridade. Muitas vezes, você tem que assumir posições,
defender ideias, contestar, ser enérgico para persuadir os outros de suas convicções, sem se atemorizar.
Como lidar com a minha vida agora, do jeito que estou e com as coisas que acontecem? Faço essa pergunta várias vezes,
porque é comum ter dificuldades com a percepção do que ocorre, visto que sou uma pessoa intensa, acelerada e propensa ao
descontrole e ao exagero, de modo que posso distorcer a minha própria constatação dos fatos.
Por isso é tão importante frequentar as reuniões e praticar os passos, revendo e corrigindo minhas posições, visões e opiniões
sobre a realidade. Limpa, quando falo das minhas loucuras, atitudes e relacionamentos, os companheiros e companheiras me
dão feedbacks altamente confiáveis, evitando que eu escorregue nas minhas próprias características ou pise inadvertidamente no
tomate.
Pelo meu próprio bem, tenho que lembrar em tempo integral de que as coisas não funcionam como eu acho que deveriam. Sou
uma “complicadora profissional” de minha própria vida.
O Programa, à medida que você pratica e vê os resultados, começa a acontecer de forma lisa, suave, entrosada e harmoniosa,
com você consciente do que deve fazer e do que o Poder Superior vai lhe dar como resultado.
Tenho que desconstruir minha loucura, e não consigo fazer isso sozinha. Preciso de outros “malucos” da mesma envergadura e
de suas experiências para alcançar esse objetivo.
Os 12 Passos são um programa de prática, não de teoria. Masturbação mental me joga na insanidade, não no entendimento.
Entender exige objetividade, e ser entendido também.
O NA me ensinou a não justificar. Diante de uma pergunta da vida, de uma situação ou de uma pessoa, não preciso fazer uma
longa digressão. Basta dizer sim ou não. Seja lá qual for a resposta, aprendi também que ela é primeiramente dirigida para mim, e
só depois para o outro.
De início, basta seguir o que é sugerido. As coisas são simples, mas, às vezes, não temos a capacidade de ser simples. Somos
complicados. Basta olhar nossas vidas para compreender e aceitar isso. Por isso, hoje, em todas as áreas da minha vida,
inclusive a profissional, estou concentrada em buscar o simples.
Fazer o inventário moral do 4º Passo, destrinchando os meus medos, mentiras, defeitos, fraquezas, compulsões e defesas
neuróticas foi um trabalho difícil; foi doloroso romper fronteiras internas e botar luz em sombras.
O 5º Passo, então, nem se fala, principalmente por causa da tarefa de explicitar para outra pessoa minhas experiências sexuais,
uma área em que eu julgava ter pegado muito pesado. Assim, tinha muita vergonha de comentar ou mesmo de estruturar essas
situações como fatos presentes na minha história de mulher.
Fiz, mas foi muito doloroso botar o dedo em uma ferida que, racionalmente, nem acho tão funda assim; porém, no contexto
emocional, o que ainda me vence é a culpa de condicionamentos morais que, mesmo sem muito sentido lógico, ainda estão
arraigados em mim.
Eu não saio muito do 6º e do 7º Passos, pois ainda estou me conhecendo, e muitos dos defeitos de caráter estou percebendo
aos poucos, gradualmente. A eliminação de alguns deles eu entrego ao Poder Superior e espero as circunstâncias para eliminá-lo.
Outros, como a luxúria, estou sempre entregando e pegando de volta; ainda fico negociando com eles.
Todos os dias dou o 1º Passo em relação a todas as compulsões obsessivas que compõem a minha, digamos, “grade de
dependências e carências”. Nela estão o álcool, as drogas e o sexo. Tenho que fazer isso. Tive que sofrer mais da conta para
“incorporar”, admitir e me render à minha impotência diante delas.
Outras, sinceramente, não sei se devo aceitá-las como mais fortes do que eu ou estudar novas estratégias para administrá-las;
além disso, ainda há outras que entrego a Deus porque me desagrada lidar com elas.
Não posso me esquecer de minha loucura e da possibilidade de estar tentando manipular até o Poder Superior, pois não
consigo ser sempre honesta comigo mesma. Talvez o negócio seja acreditar primeiro no 2º Passo e esperar que Ele me devolva a
sanidade para que eu possa entregar minha vida aos Seus cuidados, no 3º Passo, de maneira totalmente autêntica, sem
embromações.
Como já disse, é muito mais difícil lidar com a área emocional do que com a intelectual, embora esta também dê trabalho,
porque não sou nenhum gênio. Assim, preciso me esforçar. Mas o meu emocional sempre vem na frente. Ele pode me travar e
tirar do ar por sentimentos de inferioridade, até mesmo quando, racionalmente, sei que estou mais do que preparada para superar
com facilidade qualquer desafio, e mesmo quando, antes da interferência de qualquer pessoa, eu esteja dominando
completamente um assunto e seja reconhecidamente uma especialista no tema. Isso já aconteceu comigo em algumas
oportunidades. Em outras, disfarço bem, embora, por dentro, esteja em franca ebulição. Não consigo facilmente o desligamento
emocional e, às vezes, opto por chutar o pau da barraca em vez de engolir o sapo – mas nunca penso em usar drogas, como
acontecia antes.
Preciso ficar esperta com meu equilíbrio em ocasiões em que me testam, me rejeitam ou me contrariam, porque realmente lido
mal com a rejeição. Mas as coisas estão mais mansas, pelo treinamento proporcionado pela aplicação do Programa em todas as
circunstâncias da vida.
Hoje, em termos afetivos, estou só, mas em alerta, já que ando tendo vontade de sair atirando para todo lado, fazendo um jogo
de sedução com muitas pessoas diferentes que me atraem. É tipo uma brincadeira emocional imaginária comigo mesma, uma
fantasia para fugir da mesmice do dia a dia, acordar a alma, sorrir, me animar, aprender, saciar curiosidades, estudar.
Realmente, acho um saco a vida de monja. Sou uma pessoa ansiosa, ligada, atraída pelo sensorial e pela sensualidade. Mas
meu coração não é pinéu, nem xarope. Ele é autêntico, vibrante, generoso, bom e legal.
Pinéu é o pensamento de julgar alguém sem coração. O mundo é assim, cheio de vítimas de uma repetição de
condicionamentos mumificados, que matam o desejo de renovação.
Claro que tenho muito chão a palmilhar antes de poder me considerar uma pessoa plenamente recuperada. Mas estou a
caminho, devagar e sempre, como sugere o programa dos 12 Passos.
Não tenho a pretensão de eliminar, de uma hora para outra, as diversas características de personalidade que ajudaram minha
dependência química a se desenvolver, transformando minha vida em uma montanha-russa que foi do céu até o inferno e me
obrigou a ficar por lá. Porém, graças a companheiros, companheiras, partilhas e apoio dos membros de NA nos momentos em
que minha cabeça trabalha contra mim e as minhocas começam a aventar hipóteses que racionalmente sei que são suicidas,
consigo vencer as ondas de cada tempestade e sair do outro lado da encrenca um pouco melhor do que estava antes.
A vida, agora, não é um jogo na mão do acaso ou das sensações. O trabalho que fiz sobre a pessoa que eu era já me
transformou o suficiente para que eu opte, naturalmente, pela sobriedade, pela serenidade e pelo controle dos impulsos e
compulsões, e estou conseguindo uma existência que sinto como compensadora, embora, em alguns momentos, bastante difícil
de manter nos eixos – mas, com toda certeza, muito melhor e mais construtiva do que era nos tempos de loucura e descontrole da
drogadição ativa.
Conheça também:
DIEHL, CORDEIRO, LARANJEIRA & Cols. – Dependência química: Prevenção, tratamento e políticas públicas
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