Você está na página 1de 8

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO


ESTADO E DIREITO DAS COMUNIDADES E POVOS
TRADICIONAIS

CAMILA SOUSA COELHO


JOÃO PAULO DOS SANTOS DIOGO
LAÉRCIO SILVA DE SENA
LUCI ELZA NASCIMENTO
MARLI MATEUS DOS SANTOS
TATIANE MARCELINO DE SANTANA

A HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA NO CANDOMBLÉ:


OBSTÁCULOS ENFRENTADOS PARA O EXERCÍCIO DO CULTO
AFRO-BRASILEIRO

2017
O presente trabalho é a contribuição de informações e reflexões para a recuperação da
memória histórica de um grupo e espaço religioso, geralmente esquecido, tanto nos estudos
acadêmicos, como na sociedade brasileira, tendo em vista a ausência de trabalhos
pormenorizados que não se utilizam da interdisciplinaridade para fundamentar aspectos
significativos no campo dos estudos afro-brasileiros. Deste modo, há que se destacar que o
conteúdo étnico racial nas religiões de matriz africana é a primeira identificação que
corresponde com a dinâmica desenvolvida a partir de elementos culturais e rituais específicos
da valorização da identidade negra. Em outras palavras, as religiões de matriz africana foram
determinantes para enfrentar a escravidão, o racismo, a intolerância e, também para a
formação e construção da instituição religiosa no Brasil, o Candomblé.

Nesse sentido, o Candomblé para quem nunca presenciou a cerimônia é uma festa (xirê)
pública conduzida do início ao fim por músicas, acompanhada de instrumentos (atabaques,
rumpi, agogô e xequerê) e danças designadas aos orixás, contudo a complexidade dos rituais
é motivo para que haja a incompreensão e perseguições presentes no cotidiano. Os terreiros
de Candomblé utilizam a tradição oral, a vitalidade, a circularidade como forma de
resistência para a manutenção da própria cultura.

É algo importante a ser ressaltado, sobretudo para quem ainda não


presenciou uma dessas cerimônias. Devido a sequência quase
ininterrupta de cantigas que permeiam toda festa pública, muitas
vezes fica difícil para um visitante não familiarizado entender a
estrutura deste ritual ou as nuances dos cânticos entoados na língua
iorubá, jeje ou línguas bantus. Certamente terá dificuldades
também para diferenciar a sequência dos diferentes orixás e as
variações dos toques de atabaques que acompanham as cantigas,
enquanto as filhas de santo dançam em roda em sentido anti-
horário. (Luhning, Angela Elisabeth e Mata, Silvanilton
Encarnação da. Casa de Oxumarê: os cânticos que encantaram
Pierre Verger, 2010, 118, Salvador: Vento Leste)

Apesar das diferentes estratégias de repressão e violências ao longo da história milenar, uma
das principais lutas do Candomblé foi resistir às perseguições religiosas com o intuito de
preservar o culto e o sustento da comunidade que mantém em suas raízes um elo com o
continente africano. Vale destacar, que a resistência e a manutenção das tradições dos povos
de terreiro, também chamados de povo de santo foi marginalizada, na condição de crime,
como previa o Código Penal de 1890 (art. 147).
Dado semelhante ocorreu no ano de 2015, no Estado de Minas Gerais, localidade de Santa
Luzia, no qual o Ministério Público Estadual elaborou um Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC), que determinava o dia e o horário para realização do Candomblé pelo Centro Espírita
Ilê Axé de Sangô, fixando multa de R$ 100,00, em caso de descumprimento. em total
desrespeito ao que preceitua Constituição Federal. Como se não bastasse, o TAC ainda obriga
o Terreiro citado a apresentar alvará de funcionamento e licença emitida pelo Corpo de
Bombeiros.

Do ponto de vista jurídico, pode-se notar o quanto os juízes deste país estão despreparados
para tratar a judicialização da religiosidade afro-brasileira, o que é um retrato do racismo
brasileiro, fruto do processo de colonização e do longo período de escravização negra no
Brasil e que ultrapassa os limites impostos entre a atuação do Estado e a liberdade religiosa.
No esteio do assunto, as violências contra as religiões de matriz africana são cada vez mais
perceptíveis na sociedade brasileira, inclusive nos atos da prestação de serviços públicos,
como o acesso à justiça, escondendo um anseio de superioridade cultural e política, que,
perpassa pela ignorância a respeito do outro e pela perpetuação de teorias excludentes
incompatíveis com o atual desenvolvimento de um estado democrático de direito e
constitucionalmente laico.

Diante do posicionamento do Promotor de Justiça, Dr. Marcos Paulo, que decidiu contra a
liberdade religiosa no município de Santa Luzia/MG e contraposição ao estudo realizado pelo
Doutor Ilzver de Matos Oliveira, que denomina de “ranço” deixado pela colonização
escravocrata que sofreu o Brasil e pelos encalços repudiáveis da época em comento.

Mas, ao mesmo tempo em que se amplia a busca pelo judiciário


para se posicionar sobre tais questões, percebemos que os juízes
demonstram alguma dificuldade ou incômodo em lidar com tais
situações, seja pelo desconhecimento da temática ou em razão de
preconceitos culturais e históricos.

Nesse turno, a restrição à liberdade de crença é uma afronta à Constituição Federal e uma
negação à liberdade individual, sendo um viés para aviltar a cidadania do outro, mesmo por
parte do Estado, que não está autorizado em nenhuma de suas esferas, a criar distinções entre
os brasileiros e suas preferências.

Em pleno século XXI o genocídio e extermínio da população negra também advém do


impedimento dos cultos de origem africana em nosso país, retratado pela perseguição
histórica e pela discriminação às práticas religiosas que tem sua matriz na África, até na
legislação brasileira. Historicamente, para que a cultura de um povo não fosse dissipada,
manteve-se na clandestinidade, por longos anos. Entretanto, não há mais espaço para prática
religiosa de forma sorrateira, como fomos obrigados a viver por muitos anos. Somos livres,
perante a Lei e aos homens, e podemos e devemos nos expressar culturalmente, onde e como
desejarmos, a qualquer hora, dia e lugar.

À luz da Constituição Brasileira “todos somos iguais perante a lei”, então porque ainda existe
uma grande perseguição aos Terreiros de Candomblé? A expressão Povo de Santo, a suas
vestes? Aos cantos, rituais e etc.? O que estamos presenciando de modo agressivo é a
intolerância religiosa, com o preconceito e o racismo trazidos desde o período colonial, onde
tudo que pertencia aos negros era considerado como imundo, impuro, inaceitável para a
sociedade da época. Não obstante, foi observado pelo intelectual Jonatas Machado em seu
estudo acerca da liberdade religiosa:

A liberdade constitucionalmente consagrada está longe de poder


ser entendida como protegendo apenas a adesão a valores objetivos
apregoados por uma confissão religiosa determinada. (...)
Diferentemente, ela visa tutelar todas as formas de experiência
religiosa individual e colectiva, tanto maioritárias como
minoritárias, sendo certo que estas últimas devem ser objeto de uma
particular atenção, porque situadas numa posição de maior
vulnerabilidade.

Diante do exposto, é primordial fazer a distinção entre liberdade de crença e a liberdade de


culto do texto constitucional, porque apesar de estarem sempre associadas referem-se a coisas
distintas. A liberdade de crença significa o ser humano poder mudar de opinião em professar
essa ou aquela crença, sem a intromissão do Estado. E o culto é a exteriorização da crença, ou
seja a forma como a crença será manifestada, podendo ser manifestada por meio de reuniões,
ritos, cerimônias e etc.

O Pai de Santo Luiz de Oxossi, do Centro Espírita Ilê Axé de Sangô, deixa claro que que a
decisão do MPMG faz esta distinção quando esclarece: “Não existe Candomblé sem os três
atabaques. É a mesma coisa de uma missa sem padre e uma igreja católica sem sino.”

Logo, como exercer de forma plena sua liberdade de crença sem liberdade de culto como no
caso de Santa Luzia? Sendo uma delas violadas gera discriminação. E a discriminação
religiosa é crime. Considerada uma manifestação de racismo, conforme Lei 7.716, de
05/01/1989, art. 1º que determina que serão punidos, na forma desta Lei, os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional. No caso descrito acima, por destoar de toda legislação vigente segue sendo
analisado pelo Conselho Nacional do Ministério Público que decidirá pela confirmação ou
suspensão do termo.

Entendemos que a ação do MPMG é reflexo da intolerância religiosa que inicia com ações
“menores” como agressões que começam com as palavras, humilhações, zombarias e
desmoralização, ofensas aos adeptos, às entidades africanas, chegando até às ações extremas
como: a destruição de casas, de símbolos religiosos; e os ainda mais graves que são os
assassinatos dos seus adeptos, ou como neste caso o cerceamento do culto.

Mais um aspecto que merece destaque à resistência do Candomblé, pois com toda esta
perseguição sofrida pelos povos tradicionais, que desejam manter a sua cultura através da sua
religião, nós estamos lutando por respeito, por um direito concedido pela Constituição
Federal, como já mencionado por lei, e pelos tratados internacionais (Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho - OIT; Convenção da Sociodiversidade; Convenção
dos Direitos Humanos, Declaração da Organização das Nações Unidas - ONU), além da
política nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº. 6.040/2007).

Em detrimento destas garantias, são intensos os ataque ao modo de vida nestas comunidades,
tendo como centralidade destas ações intolerância religiosa, que segundo os dados do Disque
100, criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apontam 697 casos de intolerância
religiosa entre 2011 e dezembro de 2015 a comunidades tradicionais de matriz africana.
Outro dado importante é o trazido pelo Estudo sobre Intolerância Religiosa realizado PUC-
Rio que sugere que há subnotificação no tema, por conta de em seus estudos ter ouvido
lideranças de 847 terreiros, que revelaram 430 relatos de intolerância, sendo que apenas 160
foram legalizados com notificação. Do total, somente 58 levaram a algum tipo de ação
judicial.

A pesquisa aponta que no cenário do Rio de Janeiro, 70% das agressões são verbais e
incluem ofensas como "macumbeiro e filho do demônio", mas as manifestações também
incluem pichações em muros, postagens na internet e redes sociais, além das mais graves que
chegam a invasões de terreiros, furtos, quebra de símbolos sagrados, incêndios e agressões
físicas.
Na Bahia, segundo o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa
Nelson Mandela, vinculada à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da
Bahia(Sepromi) , “a cada mês, pelo menos duas pessoas são agredidas, excluídas ou
desrespeitadas por conta da religião, credo, culto ou práticas litúrgicas que escolheram seguir.
Com atuação desde 2014 já registrou cerca de 38 ocorrências desse tipo de crime, previsto no
artigo 208 no Código Penal Brasileiro. Este ano, a entidade - vinculada à Secretaria de
Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) - já contabilizou 11 casos. Todos eles envolvem
preconceito contra pessoas de religiões de matrizes africana.”

O mais grave nesta situação e disso tudo que está ocorrendo, em certa medida, com
consentimento do Estado através de sua negligência ao grave quadro de violação de direitos
das comunidades tradicionais de matriz africana vêm lhe sendo imposta. Neste sentido, as
referida comunidades tem o seu direito ao território sendo privado, por conta de não haver
leis específicas que apontem a importância da proteção dos espaços ancestrais de manutenção
dos modos de vida destas comunidades, assim como a segurança alimentar destas
comunidades, depois das últimas mudanças de governo, vem sido fragilizada por uma total
negligência ao envio de alimentos a essas comunidades.

Por conta do apresentado, podemos verificar que o Estado não tem respeitado o decreto 169
da OIT, no qual é signatário, levando as comunidades tradicionais de terreiro, formalizarem
queixas a organismo internacionais em razão da violência que os têm atingido.

No pedido de desconstituição do Termo de Ajustamento ao qual se submeteu o Terreiro, foi


realizado pedido liminar de suspensão dos efeitos do termo, entretanto o Conselho Nacional
do Ministério Público, posicionou-se, no sentido de indeferir a liminar, senão vejamos:

Determino a NOTIFICAÇÃO do Procurador-Geral de Justiça do Estado de


Minas Gerais, consoante prevê os arts. 43, I, e 126 do RICNMP, para que,
no prazo de 5 dias, dada a urgência que o caso requer, preste informações
acerca da controvérsia versada neste Procedimento de Controle
Administrativo, encaminhando a este Conselho Nacional cópia integral do
Inquérito Civil nº 0245.15.000031-4.

Assim, diante do julgamento acima transcrito, aplicado contra o Centro Espírita Ilê Axé de
Sangô, vemos que estamos sujeitos à temerária situação, pois este caso pode ser usado como
jurisprudência em outros casos, ou despertar o interesse da bancada evangélica que hoje tem
forte influência no Congresso Nacional legislar para coibir certas práticas no culto.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ALMEIDA, Luana. Intolerância religiosa agride duas pessoas por mês na Bahia.
Disponível em: http://atarde.uol.com.br/bahia/noticias/1688596-intolerancia-religiosa-
agride-duas-pessoas-por-mes-na-bahia. Acesso em 11/08/ 2017.

BRASIL. DECRETO N. 847 – DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Disponível em:


http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049. Acesso em: 08 de
agosto de 2017.

LUHNING, Angela Elisabeth e Mata, Silvanilton Encarnação da. Casa de Oxumarê: os


cânticos que encantaram Pierre Verger, Salvador: Vento Leste, 2010.

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa comunidade


constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Boletim da
Faculdade de Direito. Stvdia ivridica 18. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
OLIVEIRA, Ilzver de Matos. Reconhecimento judicial das religiões de origem africana e
o novo paradigma interpretativo da liberdade de culto e de crença no direito brasileiro.
Revista de Direito Brasileira. Ano 5, vol.10, 2015.

Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Sociais Departamento


de Direito. Cartilha para Legalização de casas Religiosas de Matriz Africana. Rio de
Janeiro.2012.36p.

Você também pode gostar