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FRONTEIRAS, VIOLÊNCIA E O

TRABALHO DO TEMPO:
alguns temas wittgensteinianos*

Veena Das

Muitos trabalhos recentes acerca da violência dizer da Antropologia o que Lefebvre (1968) disse
sugerem que, quando se contempla a violência, da Filosofia: “O papel do pensamento filosófico é
atinge-se uma espécie de limite da capacidade de eliminar explicações prematuras, posições limita-
representar. Em geral apresentados sob o signo do doras que possam nos impedir de penetrar e
“horror”, eles nos fazem pensar como seres huma- apreender o conteúdo formidável de nosso ser.”
nos podem ter sido capazes de atos tão hediondos, Essa imagem da contenção também lembra, para
em tão grande escala, como em Ruanda ou na ex- mim, a concepção de Stanley Cavell (1989) da
Iugoslávia. A violência da Partição da Índia, em Filosofia, como a que não fala primeiro e cuja
1947, fornece um tropo de horror comparável na virtude reside na capacidade de resposta: incansá-
historiografia da Índia. Parece que entendemos tais vel, alerta, quando outros já adormeceram.
atos como chocantes e inimagináveis apenas quan- A imagem do estado de alerta na ocorrência
do temos uma idéia formada acerca de como o da violência, da capacidade de resposta onde quer
sujeito humano deva ser construído. Essas descri- que ocorra na teia da vida, nos leva a perguntar se
ções servem, assim, para reafirmar as fronteiras os atos de violência são transparentes. Como se
entre civilizado e selvagem, e também permitem pode expressar a relação entre a possibilidade e a
que nossa imagem do sujeito humano permaneça ocorrência, e mais ainda, entre o factual e o
intacta. Em contraste com essa plenitude de fala, eventual, se a violência, quando acontece de modo
gostaria de apresentar um retrato de pobreza, dramático, encerra uma relação com o que está
especialmente de pobreza de palavras, e refletir acontecendo de forma repetida e não-melodramá-
acerca dessa pobreza como uma virtude. Pode-se tica, como dizê-lo, não numa narrativa única, mas
na forma de um texto que é constantemente revisa-
do, revisto e acrescido de comentários. Pode-se,
* Conferência proferida no XXII Encontro Anual da então, pensar no texto não como algo acabado,
Anpocs, 27-31 de outubro de 1998, Caxambu, MG. mas em processo de produção. Além da imagem do
Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. texto, podemos também falar do envolvimento no
Revisão técnica de Mariza Peirano. dia-a-dia como um envolvimento com a criação de

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fronteiras em diversas regiões do self e da sociabi- assassinatos e estupros. Creio que apenas a domes-
lidade. O trabalho do tempo, não sua imagem ou ticação da violência pode permitir o tipo de apazi-
representação, é o que me interessa aqui, ao guamento que descrevi anteriormente. Lembro-me
descrever tais processos. do caso de Asha, uma das protagonistas de dois de
meus trabalhos recentes (Das, 1992 e 1995). Tendo
enviuvado jovem, no seu caso, o potencial para
O contexto etnográfico
desordens do desejo surgiu dentro da família,
Quando realizei meu trabalho de campo en- depois das rupturas brutais da Partição. Envolveu-
tre famílias urbanas punjabi, das quais algumas se em várias traições (inclusive algumas de que ela
tinham sido transferidas após a Partição da Índia, mesma se achava suspeita), quebrando as regras
todas tinham de lidar com os fatos da Partição de correntes da viuvez mas recusando-se a viver em
um modo ou de outro. Mas a violência que sofre- má-fé, movendo-se através de suas intrincadas
ram era calada. Como descrevi em vários traba- relações com as mulheres de sua rede familiar,
lhos anteriores (Das, 1991, 1995 e 1996), os gran- quase forçando os outros a reconhecerem a singu-
des eventos políticos ecoavam no registro familiar laridade de seu ser. A via de saída do “conhecimen-
por meio de um enfrentamento repetido com o to venenoso” não foi uma ascensão para a santida-
que chamei de “conhecimento venenoso”. Era de ou a renúncia; foi uma queda em direção a um
através do ato de testemunhar que esse conheci- cotidiano diferente. “Todos os dias eu tentava ser
mento venenoso era transfigurado no reconheci- útil […] Estava dividida entre a lealdade a meu
mento do ser do outro, constituindo assim um marido morto, sua irmã, que eu amara muito, e os
conhecer pelo sofrimento. Já que minha formula- novos tipos de necessidade que pareciam brotar da
ção deve algo à análise de Martha Nussbaum da possibilidade de uma nova relação.” Apesar de
ética helenista, apresento o raciocínio com suas repudiada tanto por sua família de origem como
palavras: por sua família conjugal, por ter quebrado o tabu de
casta alta quanto a um segundo casamento, ela
Existe uma forma de conhecimento que funciona continuou tentando refazer seus laços rompidos.
por meio do sofrimento, porque o sofrimento é Como notei noutro trabalho:
o reconhecimento apropriado do modo como a
vida humana, nesses casos, é. [...] perceber um Uma vez reconhecido o seu ser sexual, nos
amor ou uma tragédia pelo intelecto não basta modos novos como passaram a vê-la seus afins
para ter disso um verdadeiro conhecimento hu- masculinos, ela teve de fazer uma escolha. Ou
mano. Agamenon sabe que Ifigênia é sua filha o assumia uma relação clandestina e se envolvia na
tempo todo, se considerarmos que ele possui as “má-fé” na qual Bourdieu situa a base da política
crenças apropriadas, é capaz de responder corre- familiar, ou aceitava o opróbio público e até
tamente a várias perguntas acerca dela etc. Mas colocava em risco a honra da família, por uma
como em suas emoções, em sua imaginação e nova definição de si mesma que prometia uma
em seu comportamento ele não reconhece o certa integridade, embora inviabilizasse os proje-
laço, incita-nos a fazer parte do Coro, dizendo tos de vida que tinha formulado anteriormente
que seu estado é menos de conhecimento do para si mesma. No processo dessa decisão, o self
que de ilusão. Ele não sabe realmente que ela é pode ter-se fragmentado radicalmente e se torna-
sua filha. Falta um pedaço de compreensão real. do fugitivo, mas creio que o que descrevi é uma
(Nussbaum, 1986, p. 46) espécie de operação complexa que se torna
evidente, não necessariamente no momento da
Contudo, a violência não é atualizada apenas violência, mas nos anos de trabalho paciente ao
no registro familiar, mas também nos grandes longo dos quais Asha e a irmã de seu primeiro
eventos da história política, no caráter carnavalesco marido reataram os laços rompidos. (Das, 1995,
das revoltas populares, e na crua brutalidade dos p. 177)
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Nas famílias punjabi, histórias de discórdia e do. Contudo, a idéia de que a vida era uma
traição, bem como narrativas de violência entre encenação calculada, e de que a honra (izzat)
parentes, têm de ser cuidadosamente manejadas tinha de ser preservada, por meio de um especial
por ocasião de casamentos, funerais e reuniões cuidado com narrativas acerca da própria família
familiares — mas o silêncio envolve a violência em locais públicos, era, de fato, parte da retórica
feita contra e pelas pessoas no contexto da Parti- da vida. “Duniya ki kayegi? ” — o que dirão os
ção. Não que as pessoas se recusem a contar, outros? —, “logan di zaban kis ne pakadi hai? ” —
quando perguntadas, mas nenhum dos aspectos da quem está na língua do povo? —, “apni izzat
performance ou esforços pelo controle da história, apni hath hondi hai” — a honra de cada um está
que caracterizam a narração de histórias na vida em suas próprias mãos —, todas essas exortações
cotidiana, está presente. Ao contrário, os relatos de que temperam as conversas cotidianas se referem
violência da Partição são como slides congelados. não apenas a um comportamento culturalmente
Nas conversas diárias da geração que deixou Laho- apropriado, mas também ao controle sobre a pró-
re, referências aos puris (pão frito) e lassi (bebida pria narrativa. Contudo, é tal a incerteza das rela-
de iogurte) de lá, aos bordados zari, à suavidade e ções no seio das famílias e no interior de grupos
ao frescor dos vegetais, às contribuições do Lahore de parentesco que parece sólido, quando visto de
Government College à vida intelectual, às compras fora, que sempre existe um equilíbrio precário em
no Bazar Anar Kali costumavam ser feitas constan- torno de questões de honra e vergonha.
temente. Mas nenhuma referência espontânea às Em 1974, assisti a um grande casamento
atrocidades praticadas, testemunhadas ou sofridas. numa dessas famílias. O pai do noivo tinha-se
Qual seria a relação entre o elaborado controle e recuperado do brutal golpe econômico que sofrera
encenação de narrativas que envolvem violência, em Lahore, e estabelecera um próspero negócio
traição e desconfiança no interior da rede do em Delhi. Todos os casamentos são uma ocasião de
parentesco e a pesada cortina de silêncio indicando grande tensão para a família da noiva, que teme
uma presença oculta? problemas imprevistos. A família do noivo pode,
por exemplo, aparecer repentinamente com a exi-
gência de um dote mais alto, ou uma morte súbita
Limiares precários
pode provocar o adiamento, quem sabe o cancela-
Escrevendo acerca de violência e narrativa mento, do matrimônio; centenas de outros obstácu-
no Líbano, Michael Gilsenan (1996, p. 64) afirma los (badhas) que ninguém poderia ter imaginado
que “a retórica de que a vida era feita de encena- podem surgir. Nesse caso, a tensão entre os paren-
ção calculada, elaboração estética da forma, artifí- tes próximos da noiva e do noivo estava num nível
cio e mentiras descaradas, por detrás das quais é realmente alto, embora ocultada dos convidados.
preciso buscar os verdadeiros interesses e objeti- Quero contar a história dessa tensão, movendo-me
vos dos outros, era comum a todos. Nesse senti- para frente e para trás.
do, a violência que não era coerção física, mas de A mãe do noivo (Manjit é o nome que lhe dei
um tipo mais difuso e parte integrante dos relatos em textos anteriores) tinha sido raptada durante a
de relações humanas, era comum a todos.” Um Partição e posteriormente resgatada pelo exército
modo semelhante de definir as relações humanas indiano. Seus pais morreram durante os tumultos.*
impregna os relatos de masculinidade nas narrati- Ela veio viver com o irmão de sua mãe (mama)
vas de brigas entre os Jat Sikhs que meu colega que, temendo não ser capaz de assumir todas as
R.S. Bajwa e eu descrevemos (Das e Bajwa,
1993). As famílias hindus do Punjabi que estudei
consideravam os Jat Sikhs como simplesmente * Nota da revisão — Veena Das aborda o drama do rapto
de mulheres, por hindus e muçulmanos, na época da
“esquentados”. Suas próprias noções de masculi-
Partição da Índia em seu livro Critical events. An
nidade consistiam no manejo prudente das ocasi- Anthropological perspective on contemporary India,
ões públicas, mediante um comportamento conti- Delhi, Oxford University Press, 1995.
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novas responsabilidades que haviam caído sobre mulheres que comiam pão, e o tipo de mulher que
seus ombros, logo arranjou um casamento para era a mãe de seu marido, que afirmava que as
Manjit, com um homem muito mais velho, com mulheres comiam restos. A imagem cultural da
quem ele tinha um parentesco distante. Tais arran- subordinação feminina é aqui infletida segundo
jos eram tolerados após a Partição, tanto em função vários eixos. Não se trata de os desprovidos de
da ruína econômica (uma guirlanda de flores é tudo poder possuírem roteiros ocultos, como sugere
o que a moça levava ao se casar) como devido à Scott (1990), mas do perigo, para a autoridade dos
percepção de um infortúnio compartilhado, o não poderosos, da humilhação de não saber como
ter sido capaz de proteger a honra das jovens. controlar as palavras.
Descrevi noutro trabalho os vários tipos de estraté- A raiva contra Manjit foi de algum modo
gia utilizados pelas famílias para enfrentar essa canalizada para seu primeiro filho, que o marido e
infelicidade coletiva (Das, 1976). Manjit não foi a sogra consideravam parecido demais com a mãe;
repudiada por sua família, mas sua história tampou- o segundo filho sofria de síndrome de Down. Os
co era conhecida por muitos. A comunidade ofere- modos diferentes como ela expressava seu amor
cia seu silêncio como proteção. pelos dois filhos não podem ser descritos aqui.
Contudo, após o casamento, ela enfrentou Basta dizer que o segundo filho nunca sofreu
dificuldade após dificuldade. Seu marido se con- nenhuma agressão por parte do pai, apenas indife-
sumia de suspeitas de que Manjit tivesse sido rença. O marido dirigia sua raiva contra o filho mais
violentada, de que ele tivesse sido usado, casan- velho, de todos os modos possíveis. “Tudo era uma
do-se com uma moça desonrada, que talvez ela dificuldade”, disse Manjit. Se ele se sentava para
tivesse tido um amante muçulmano. Nada disso estudar, o pai o mandava fazer outra coisa. Quando
era verbalizado, exceto em “indiretas” (taunts),1 precisava de dinheiro para comprar livros, Manjit
quando estava bêbado, ou durante discussões tinha de roubar do marido para isso. De qualquer
entre Manjit e a mãe de seu marido. Chupchap modo, graças à determinação do rapaz e ao apoio
sundi gayi, sahendi gayi — literalmente, “eu ia de sua mãe, ele conseguiu concluir o curso supe-
ouvindo em silêncio, ia agüentando” —, é como rior. Nesse momento, o pai quis que ele viesse
Manjit descrevia sua posição, alongando a primei- trabalhar em seu negócio, “sentar na loja”. O rapaz
ra palavra, o que dava ao passado um sentido de simplesmente recusou. Ele nunca enfrentou o pai
contínuo trabalho de escuta. abertamente, mas disse à mãe que preferia mendi-
gar nas ruas e passar fome a ficar na loja do pai.
Eu costurei a língua, não protestava nem mesmo Como o filho tinha adquirido a reputação de
quando eles diziam coisas boas-más (bura bhala boa pessoa, e o negócio da família ia de vento em
kya)2 sobre meus pais e meu mama (irmão da popa, começaram a chover ofertas de casamento. O
mãe). Mas uma coisa é certa, ele nunca levantou pai queria que o rapaz se casasse com uma moça de
as mãos para mim. Minha saas (mãe do marido) uma casa rica. Ele queria uma kunba (família
disse que eu era descabidamente orgulhosa; o que extensa ou grupo de afins) cujos homens fossem
há para se orgulhar na vida de uma mulher, ela como ele, que bebessem, jogassem, freqüentassem
dizia; a mulher come os restos do marido.3 “Manji, mulheres. O rapaz, por sua vez, havia dito clara-
asi tan roti khande haan”. Mãe, mas comemos mente que sua única condição para o casamento era
pão, eu disse. Ela ficou tão brava que não falou que a moça tivesse estudo. O impasse permaneceu
comigo durante dois dias. sem solução por algum tempo, até que foram
procurados por um coronel aposentado cuja filha
Esse breve interlúdio mostra a grande batalha tinha concluído o curso superior. Era uma família do
em torno das palavras que ocorre no interior das tipo que agradava ao filho de Manjit, mas tinham
famílias, todos os dias. Usando o plural “nós”, muito pouco dinheiro para oferecer como dote. No
Manjit conseguira sugerir a diferença entre o tipo papel de intermediário, o filho do irmão da mãe de
de comunidade de mulheres ao qual pertencia, Manjit marcou um encontro entre os pais da moça,
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Manjit e seu mama (tio materno). “Nós não escon- tremia. “O que isso tudo queria dizer?” Ela temia
demos deles a verdadeira situação, o modo como o uma nova catástrofe a qualquer momento. Mas o
chefe da família estava se comportando”, Manjit me casamento foi realizado em paz.
contou, “mas o pai da moça disse — é o filho que Um mês depois da cerimônia de casamento,
nos interessa (sanu tan ji munde nal matlab hai)”. os problemas começaram. Sardar Ji,4 o marido de
Mas como obter o consentimento do pai do rapaz? Manjit, insistia que a noiva fosse mandada embora.
Depois de muitos debates, o assunto foi toca- Não concordei com o casamento, dizia, aquilo foi
do pelo mama de Manjit, na presença de alguns puro teatro. Todos os que tinham participado da
parentes mais velhos do pai recalcitrante. Convida- negociação do acordo foram convocados, inclusive
ram-me a participar, como uma “estranha” de bom eu. Ele estava inflexível. Mas Manjit também. A
senso. “Afinal, não podemos recusar todas as ofer- noiva era filha de alguém, irmã de alguém, ele não
tas. As pessoas vão começar a pensar que há algo podia simplesmente pisar na honra deles assim.
errado na família”, era o refrão da discussão. O Diriam que a noiva tinha sido mandada para casa
marido de Manjit estava sentado numa cadeira, num porque não tinha bom caráter. Quem sabe? Inimi-
canto. Manjit estava sentada no chão, com a cabeça gos poderiam dizer que o rapaz era impotente,
coberta, sem levantar o olhar para quem quer que incapaz de consumar o casamento. Sardar Ji tinha
fosse. O marido parecia amarrado. Todos espera- pensado nas conseqüências? Ele simplesmente riu.
vam que ele fosse se enfurecer e gritar. Mas ele Tinha feito uma encenação, era teatro, não tinham
apenas concordou balançando a cabeça, com um ar percebido? O que mais podia significar trazer a
soturno, e disse “jo twadimarzi”, “como queiram”. noiva para casa não num carro decorado mas num
palaki (palanquim), sobre os ombros de quatro
“Você não tem de fazer nada, vamos cuidar de kahars (um grupo de casta com a função ritual de
todos os preparativos”, declarou o mama de carregar o palanquim que leva a noiva nos ombros,
Manjit. costume raramente observado em contextos urba-
“Sim, como queiram.” nos hoje em dia). Algum casamento é assim atual-
“Mas ele tem de dar sua palavra de que vai mente? Não, era uma cena montada por ele, literal-
comparecer à cerimônia como pai do noivo, que mente tirada de um filme hindi, mas o filme tinha
não vai nos envergonhar”, exigiu Manjit, suspei- acabado, e a atriz tinha de voltar para casa.
tando da capitulação sem nenhuma resistência Manjit se recusou a mandar a moça para a
por parte do marido. casa dos pais. Aí começou a batalha cotidiana para
proteger a noiva da ira do pai de seu marido. Ele se
Os preparativos começaram. Então, a duas embebedava, chamava-a ao seu quarto e a surrava.
semanas do evento, o marido de Manjit negou Algumas vezes os vizinhos a tinham visto sair
veementemente que tivesse consentido. “Foi só correndo de casa, num estado deplorável. Começa-
teatro”, disse. Aí Manjit e o filho perderam a vam a correr boatos de que ele a desejava. Certa
paciência e declararam que o casamento acontece- vez, estava na casa deles e vi o que estava aconte-
ria de qualquer maneira. Se ele, como pai, se cendo. Ameaçei chamar a polícia, e ele me amea-
recusasse a comparecer, eles não o envergonhari- çou de volta. Manjit implorou por paz. A moça
am fazendo um grande casamento, mas iriam a um simplesmente se recusou a falar.
Gurdwara (templo Sikh) ou a um sacerdote Arya Às vezes um vizinho gentil convidava a jovem
Samaj e combinariam uma cerimônia religiosa sim- a entrar, quando era óbvio que ela estava parada,
ples. Quando o marido viu quão decididos esta- na rua, esperando que os abusos da bebedeira
vam, cedeu mais uma vez. Mas, dessa vez, o parassem. Nessas ocasiões, uma farsa elaborada em
consentimento soturno deu lugar a um inexplicável relação ao que se ouvia e não se ouvia era encena-
entusiasmo. O casamento seria o mais grandioso de da, enquanto o vizinho oferecia chá, a jovem
todo o grupo de parentes. O dinheiro corria como educadamente declinava, conversas continuavam
água, todos diziam. Manjit diz que seu coração sem interrupções, tudo para encobrir os evidentes
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e pesados insultos que continuavam jorrando para sua família, aproxima sua atitude daquela de um
que todos ouvissem. Finalmente, com o consenti- caçador à espreita, mais do que de uma rebelde.
mento e o apoio de Manjit, contrariando todas as Suas conversas sempre eram temperadas com
normas culturais da família conjunta, o filho e sua afirmações acerca do tempo. Vakat di mar hai,
mulher se instalaram numa casa própria. vakat ne bade sitam dhaye, vakat kadna si, ou
Durante cinco anos, Manjit ficou separada do seja, “é assim que o tempo ataca”, “o tempo
filho, da nora e dos dois netos. Encontravam-se em despejou muitas crueldades”, “era preciso fazer o
segredo. Quando o marido de Manjit ficou sabendo tempo passar” — a visão do tempo, em todas
desses encontros começou a insultar Manjit, e às essas frases, era a de um carrasco cruel. Como
vezes até lhe dava um tapa, coisa que nunca tinha mulher, ela tinha o dever de mostrar paciência
feito antes. Manjit era como pedra. Nenhuma rea- (sabar). Alguém poderia imaginá-la passiva, sim-
ção transparecia. Ela não o insultava, nem à sua plesmente esperando que as coisas mudassem.
família. “Eu não podia suportar que ele levantasse Contudo, percebo uma luta imensa para escapar
a mão para a filha de outra pessoa, mas quanto a da posição narrativa que lhe é atribuída por ato-
mim, tinha me acostumado a agüentar. Fazia meu res mais poderosos — seu marido e sua sogra. Já
puja e path regularmente, servia-o tanto quanto seu marido, apesar de agressivo e violento, pare-
podia, mas nunca iria sentar com ele e conversar.” ce não ter conseguido ser realmente o “autor” de
Não entrarei em todos os detalhes ulteriores sua história. É essa a leitura que se tem da situa-
da história. Com o tempo, o filho de Manjit ficou ção, quando se assume o ponto de vista dos
mais influente, conforme prosperava seu próprio vários atores dentro da rede de parentesco. A
negócio. Seu pai foi ficando cada vez mais fraco. narrativa, contudo, não é algo que se revele num
Muita bebida, alimentação desregrada e “algo que movimento linear e preciso. É, antes, um texto
parecia roê-lo por dentro”, como disse um de meus rabiscado, reescrito diversas vezes. Além disso, se
informantes, predispuseram-no a várias doenças no momento da pesquisa ocorreu uma superposi-
crônicas. Suas forças acabavam. Depois de seis ção das vozes narrativas de Manjit, de seu filho e
anos, o filho de Manjit retornou à casa da família da esposa deste, não se pode ter certeza de que a
com sua mulher e filhos, e as rédeas da casa foram violência cometida contra a jovem noiva perma-
claramente transferidas para suas mãos. Naquela neceria calada. A vida punjabi estava cheia de
altura, o pai tinha perdido a visão, seus rins incidentes nos quais o poder de narrativas que
falhavam e ele estava preso ao leito. haviam permanecido inertes nos tempos dos pais
Não se pode dizer que nenhuma vingança adquiria vida e iniciava um novo ciclo de injúrias,
tenha sido aplicada ao pai. Cuidavam de seu violência, vingança, no tempo dos filhos.
conforto, mas ninguém na casa falava com ele, a Acredito, contudo, que o que descrevi no
não ser o estritamente necessário. Manjit encontrou caso de Manjit é um retrato de uma cultura e uma
grande alegria nos netos. Pensando em sua vida, forma de vida, criada nos conflitos de gerações e de
ela não acha que tenha de que se queixar. Conti- sexos. Fica evidente a existência de formas narrati-
nuei a visitá-la ao longo dos anos. “Você sabe de vas, simbólicas e sociais, nas quais se tece essa
tudo”, ela dizia. “Foi um tempo ruim, mas passou, violência difusa. No processo de sua articulação, às
com a graça de Deus. Nunca tive de suportar vezes de sua prática, a violência parece definir os
qualquer desonra por parte de meu filho ou de sua contornos dentro dos quais ocorre a experiência de
esposa.” uma forma de vida enquanto forma de vida huma-
na. “É possível manter-se firme quando o chefe da
casa se recusa a ocupar o lugar de chefe da família
Um esquete ou fragmento
que está negociando um casamento?” “Deve-se
A paciência de Manjit para encobrir o tem- tolerar em silêncio que uma moça de outra família,
po, de modo a selecionar determinados momen- casada com um dos nossos, seja surrada?” “Devo
tos, quando podia impor sua visão da verdade de deixar meu filho partir, em vez de manter a forma
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de família extensa que está desmoronando?” No Partição referiam-se a alguns casos famosos, como
caso de Manjit, cada uma dessas questões foi o de uma aldeia cujos homens mataram todas as
trabalhada no bojo de um enfrentamento com a mulheres quando suspeitaram da iminência de um
violência. Há outros lares nos quais a experiência ataque por um bando de muçulmanos, ou de uma
da violência nesse tipo de limite não toma a forma aldeia em cujo poço já não havia espaço para mais
de violência física, mas de violações de outros corpos depois de as moças terem-se jogado nele.
tipos. O que é significante é que são parte da fala Tais histórias inseriam os acontecimentos numa
através da qual, mesmo diante da violação, pede-se narrativa heróica, na qual mulheres comuns se
o reconhecimento da própria cultura e, ao mesmo comportavam como as famosas figuras mitológicas
tempo, reconhece-se essa cultura. Essa experiência do Padmavati ou do Krishnadevi, pois tinham
com o fazer-se de uma cultura é bastante diferente preferido a morte à desonra. Essas histórias enqua-
do outro tipo de violência, da qual Manjit foi vítima, dram a violência de modo a torná-la assimilável à
mas acerca da qual nunca pôde falar. Passarei agora experimentação da cultura com os limites da expe-
para essa pesada cortina de silêncio. riência humana. Mesmo diante da morte horrenda,
os homens sabem como se comportar de acordo
com as normas da masculinidade; as mulheres
Silêncio nos limites da fala
sabem o que é preciso fazer para preservar a honra
A violência que descrevi aqui constitui um de seus homens.
padrão recorrente, com variações diversas, no inte- Um passo além desses limites está nas histó-
rior das famílias e grupos de parentesco punjabi. O rias da Partição cuja autoria desaparece. Escutei,
interior das famílias não é, aqui, aquilo que é por exemplo, a história de uma mulher que fora
completamente ocultado, mas aquilo que se mostra estuprada por um grupo de homens aparentados
ou é mostrado, nas técnicas performativas que os de um biradari. Abandonada nua e desmaiada no
atores empregam para tornar o conflito e a violên- pátio interno, recuperou os sentidos graças aos
cia presentes nas ocasiões públicas. A habilidade esforços das mulheres do mesmo biradari, que
de “falar a violência” encontra-se nos recessos insistiam para que se lavasse e se vestisse. Ela não
dessa cultura de encenar e de contar histórias, no quis se levantar, rolava pelo chão e dizia que queria
interior dos domínios da família e do parentesco. O morrer ali mesmo, naquela soleira (dalhiz), esfo-
tempo não é algo meramente representado, mas meada e nua.
um agente que “trabalha” nas relações, permitindo Havia também a estranha história de mulhe-
que sejam reinterpretadas, reescritas, modificadas, res muçulmanas em Delhi, que foram raptadas e
no embate entre vários autores pela autoria das marcharam nuas até o rio, com o acompanhamento
histórias nas quais coletividades são criadas ou de uma banda, como numa procissão de casamen-
recriadas. Dentro desse contexto, a violência da to, e obrigadas a lavar-se no Yamuna em meio a
Partição é envolvida na experimentação com diver- cantos sânscritos para purificá-las, para que pudes-
sas vozes e modalidades nas quais se desenvolvem sem ser “re-convertidas” ao hinduísmo. Todas essas
narrativas familiares. histórias eram enquadradas pela voz coletiva anô-
Comparemos esse fato com o caráter de slides nima “dizia-se então” ou “escutavam-se estranhas
congelados das narrativas, ou melhor, das “não- histórias”. Ninguém jamais assumia a autoria dessas
narrativas” da violência da própria Partição. A histórias.
própria Manjit, quando concordou em falar comigo Embora a própria Manjit nunca tenha falado
acerca dos acontecimentos da Partição, resolveu comigo ou, até onde se sabe, com ninguém acerca
escrever um documento de uma página, repleto de do que aconteceu com ela no intervalo entre seu
metáforas sangrentas, como “rios de sangue corren- rapto e seu resgate pelo exército, tenho a impres-
do”, ou “mortalhas brancas cobrindo a paisagem são de que as histórias de ampla circulação acerca
até onde a vista alcançava” (ver Das, 1991). De das brutalidades feitas às mulheres durante a Parti-
modo geral, as histórias dos acontecimentos da ção criaram uma espécie de campo de força dentro
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do qual sua narrativa posterior se desenrolava. bem haver disputas entre as gerações, e de que a
Consideremos, por exemplo, a raiva de seu marido cultura é herdada por meios dessas disputas. As-
ao pensar que pudesse ter sido vítima de uma sim, há aquilo que Cavell chama de diferenças
armadilha, por ser um parente pobre e um homem horizontais nas formas que a vida humana assu-
muito mais velho, casando-se com uma moça me; diferenças, por exemplo, nas instituições do
desonrada. Havia o sentimento da própria Manjit, casamento ou da propriedade. O acordo quanto a
de que ela não podia falar. E ainda as declarações formas de vida nesse sentido é o que constitui
disfarçadas da mãe de seu marido, de que as diferentes formas; não é a concordância quanto
mulheres comiam os restos dos homens. Tudo isso ao que constitui a vida em si. Cavell indica esse
indicava que a família era mantida no campo de tipo de distinção chamando a atenção para a
força da história maior de rapto e estupro. No diferença de sentido entre termos tão próximos
entanto, toda a emoção ligada àquele acontecimen- quanto tomar posse e coroação, ou comer, ciscar
to primeiro era desviada para outras histórias que e devorar.
eram “dizíveis” dentro do universo de parentesco A idéia de formas de vida pode ser lida de um
das famílias punjabi. segundo modo, agora enfatizando o termo vida. Isso
Tentei conceber a violência que ocorre na se liga especialmente à idéia de que as forças
tessitura da vida tal como vivida no universo do específicas do corpo humano, bem como os senti-
parentesco como tendo um sentido de pretérito dos e a voz humanas, não são fixados de antemão.
composto, continuamente recomposto, ao passo Assim, testar os limites do humano requer o desen-
que a violência súbita e traumática que faz parte da volvimento de critérios aplicáveis à própria condi-
experiência da Partição parece ter sido congelada. ção de ser humano. O critério de dor, por exemplo,
O tempo não pode realizar seu trabalho de escrita, não se aplica ao reino inorgânico nem a máquinas.
reescrita e revisão no caso do segundo tipo de Do mesmo modo, segundo Wittgenstein, podemos
violência. Tentarei agora relacionar essa diferença dizer que um animal expressa medo ou alegria, mas
ao registro duplo no qual se pode entender a idéia será que podemos dizer que expressa esperança?
de “forma de vida” nas Investigações filosóficas de Assim como a diferença entre tomar posse e coroa-
Wittgenstein. ção expressava a idéia de diferenças horizontais, ou
A idéia de forma de vida costuma ser em- diferenças na forma, para Cavell, as expressões
pregada para enfatizar ou amenizar a natureza lingüísticas comer, ciscar e devorar, por exemplo,
social da linguagem e da conduta humana. Po- expressam diferenças verticais, diferenças na vida,
rém, como sugere Stanley Cavell (1989), se Wit- entre um ser humano, uma ave, ou um animal.
tgenstein pretendesse apenas desmontar a idéia É nessa noção de forma de vida, ou seja, no
de indivíduos isolados em seu uso da linguagem, sentido vertical de testar os critérios daquilo que é
o conceito não teria muito a oferecer. Cavell afir- humano, que, a meu ver, está envolvida a com-
ma que, quando Wittgenstein fala de seres huma- preensão da relação de Manjit com o caráter não-
nos que concordam quanto à linguagem que narrativo de sua experiência de rapto e estupro.
usam, esse acordo não deve ser entendido como Homens batem nas suas mulheres, cometem
uma concordância de opiniões, nem mesmo agressões sexuais, humilham-nas nas suas própri-
como um acordo contratual, como na noção de as criações de masculinidade — mas tal agressão
idéias e crenças compartilhadas. Há, antes, dois ainda é “dizível” na vida punjabi, por meio de
modos possíveis de ler a noção de acordo — o vários tipos de gestos e através do contar históri-
primeiro é o acordo nas formas que a vida pode as.5 Compare-se esse tipo de coisa à violência
assumir e o segundo é a idéia daquilo que distin- fantástica com que mulheres foram despidas e
gue a própria vida como humana. forçadas a marchar pelas ruas, ou à idéia de
Quanto às formas que a vida pode assumir, escrever slogans políticos nos órgãos genitais das
há numerosos exemplos nas Investigações de mulheres. Essa produção de corpos por meio de
que, dentro da noção do humano, pode muito uma violência que visivelmente rasgava o próprio
FRONTEIRAS, VIOLÊNCIA E O TRABALHO DO TEMPO 39

tecido da vida era tal que reivindicações da cultu- traça limites nos modos de ser humano? O encon-
ra através da disputa tornaram-se impossíveis. Se tro com a dor não é algo que se possa enfrentar
palavras são pronunciadas, são como sombras friamente. Como afirmei noutro trabalho, negar a
deslocadas de palavras cotidianas. Mas será que é afirmação de alguém de que sente dor não é um
possível, em relação a tamanha mutilação, dizer fracasso intelectual, é um fracasso espiritual —
oz di izzat lut gayi, sua honra foi roubada, como nosso futuro está em jogo (Das, 1996). As viola-
se diz do estupro, no singular? Ou aurat tan roz ções do corpo que não podem ser ditas, porque
varti jandi hai, mulheres são usadas/trocadas/ pertencem ao mundo das coisas, ou das feras, ou
consumidas todos os dias? Tais palavras foram das máquinas, contrastam com as violações que
realmente pronunciadas, e registradas por outros podem ser inscritas na vida cotidiana, quando se
pesquisadores, mas era como se o contato com pode permitir que o tempo realize seu trabalho
elas e, portanto, com a própria vida tivesse sido de reinscrição, reescritura ou revisão das memóri-
queimado ou embotado. O caráter hiperbólico da as da violência.
narrativa de Manjit sobre a Partição lembra o Fora da vida cotidiana, a violência dos tumul-
sentido wittgensteiniano da conjunção entre o hi- tos gera muita fala. Beth Roy (1994) considera que
perbólico e o sem razão. essa fala articula os roteiros ocultos de uma socie-
Sugiro, assim, que aquilo que constitui o dade, e, de fato, aqueles que foram influenciados
não-narrativo dessa violência é o que é indizível pelas notáveis descrições de E.P. Thompson dos
nas formas da vida cotidiana. Sugiro, ainda, que é tumultos de famintos na Europa tendem a ver as
porque o alcance e a escala do humano que é massas com melhores olhos. Afirmo que não pode
testado, definido e estendido nas disputas ineren- haver teoria geral do comportamento de massa.
tes à vida cotidiana que ela passa, da violência Dependendo de se as massas experimentam a
inimaginável da Partição, para formas de vida que violência nas fronteiras horizontais ou verticais das
não são vistas como pertencentes à própria vida. formas de vida, produz-se uma modalidade dife-
Ou seja, essas experiências da violência levantam rente, através da qual a violação pode ser vista. Cito
certas dúvidas quanto à própria vida, e não ape- um exemplo de experiência nas fronteiras verticais,
nas quanto às formas que ela pode assumir. Foi a partir de uma etnografia recente, absolutamente
um homem ou uma máquina que enterrou uma brilhante, dos tumultos comunais.
faca nos órgãos genitais de uma mulher depois de Um tema recorrente dos tumultos hindu-
estuprá-la? Eram homens ou animais que saíam muçulmanos, articulado ao auge da violência, é o
matando e colecionando pênis castrados como da castração masculina. A redefinição dos corpos
sinais de suas proezas? Existe uma profunda ener- masculinos gira em torno da questão da circunci-
gia moral na recusa de representar algumas viola- são. Num relato notável da circulação da fala
ções do corpo humano, pois tais violências são discursiva acerca do tema da circuncisão numa
vistas como sendo “contra a natureza”, definindo comunidade de tecelões muçulmanos e seus vizi-
os limites da própria vida. O alcance e escala nhos hindus, Deepak Mehta (1997) mostra os
precisos da forma de vida humana não são co- deslocamentos nos significados dos termos. Dentro
nhecidos de antemão, do mesmo modo que o da comunidade muçulmana, o termo para a circun-
alcance preciso de uma palavra não é conhecido cisão, khatna, refere-se tanto ao ferimento como à
de antemão. Mas a intuição de que determinadas feitura da masculinidade, através do termo evocati-
violações não podem ser verbalizadas na vida vo humdami, “desabrochar conjunto” do masculi-
cotidiana está no reconhecimento de que não se no e do feminino. Em conversas fora do contexto
pode trabalhá-las no âmbito do cotidiano queima- ritual, khatna passa a ser musalmani, “fazer um
do e embotado. muçulmano”, que pode ter dois significados opos-
Teria eu chegado perigosamente perto de tos. Para um homem muçulmano, musalmani é o
afirmar que a dor é intrinsecamente incomunicá- que o distingue do hindu, pois o membro masculi-
vel, ou que há uma natureza humana dada que no circuncidado incorpora, para ele, a dor essencial
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do se fazer um muçulmano; até os prazeres da A história começa com o primeiro homem


sexualidade lembram-no de suas obrigações para dizendo: “Não tenho nada a dizer. Estou morto.”
com Deus enquanto muçulmano. Para o homem Então prossegue, em forma de diálogo, acerca do
hindu, musalmani é apenas um marcador diacríti- modo como morreu. Um de seus companheiros
co do homem muçulmano, pelo menos na vida pergunta como ele realmente morreu. Morreu
cotidiana. quando forçou um homem, na ponta de sua espa-
Durante os tumultos, os termos se deslocam, da, a tirar a roupa da própria irmã? Não, conti-
e os circuncidados passam a ser chamados de nuou vivo. Então foi quando viu o mesmo ho-
katuas, os castrados. O ferimento que, na vida mem forçando um homem mais velho a tirar a
cotidiana, codifica a idéia da masculinidade nos roupa da própria esposa? Não, continuou vivo.
corpos masculinos torna-se então signo, para o Então, foi quando ele mesmo foi forçado a tirar a
hindu, da bestialidade dos corpos muçulmanos. roupa de sua irmã? Tampouco, ele continuava
Como animais selvagens, os katuas, segundo a vivo. Foi somente quando seu pai fitou seu rosto
visão hindu, não têm limites; podem, portanto, e morreu que ele ouviu a voz de sua mulher
ser mortos sem restrições. Do ponto de vista mu- perguntando: “Você não sabe que é você que está
çulmano, o homem hindu é representado como morto?” e percebeu que tinha morrido. Mas ele
sem espiritualidade, já que seu membro masculi- estava condenado a carregar o próprio cadáver
no nunca foi submetido à manipulação ritual; sua consigo para onde quer que fosse.
sexualidade é, portanto, animal, como a do mu- De Initzar Hussain volto à minha preocupa-
çulmano para o hindu. Formas especificamente ção com o cotidiano, onde é realizado o esforço
humanas de sexualidade são praticadas, desse de delimitar entidades “que têm o modo de ser de
ponto de vista, unicamente por muçulmanos. Ne- uma coisa” e entidades “que têm o modo de ser
nhuma dessas articulações que circulam livremen- de um trabalho”, na expressão de Heidegger. A
te durante os tumultos é recuperável no contexto oscilação entre a violência extraordinária e a vio-
da vida cotidiana. lência cotidiana não é, evidentemente, como a do
No caso de Manjit, pode-se dizer que sua tic-tac de um relógio. O contraste entre o modo
capacidade de se envolver na vida cotidiana estava das coisas e o modo do trabalho aponta para as
diretamente ligada ao fato de que, no tocante aos diferenças que venho procurando articular. Na
acontecimentos da Partição, a linguagem simples- vida de mulheres como Manjit, é o modo do
mente faltava. A falta de sociabilidade dos textos trabalho que define a relação com a violência da
que ela pode ter proferido ou escutado nos limites vida cotidiana. O rapto e possível estupro que
verticais, quando a própria vida estava sendo rede- sofreu não são passíveis de trabalho dentro dos
finida, seu silêncio, também constitui sua censura. contornos nos quais sua vida foi vivida. Mas pre-
Creio ser este caráter de censura o que está imerso cisamos recordar que, embora as narrativas crista-
nas narrativas de Manjit em relação à outra violên- lizadas da Partição celebrem apenas a vida das
cia, dizível, em sua vida. mulheres que se ofereceram em sacrifício herói-
Se a fala proferida durante os tumultos co- co, inúmeros homens e mulheres levaram adiante
munais não pode ser socializada ou domesticada o trabalho da vida cotidiana, em meio aos tumul-
nas narrativas da vida cotidiana, isso não significa tos e depois deles. Mulheres que fizeram as pazes
que não possa ser narrada de modo algum. No com seus raptores, que resistiram ao “resgate” e
registro do imaginário social, parece que a violên- às vezes lamentavam a perda de humanidade por
cia pode ser corporificada em histórias ou ima- parte de seus raptores junto com eles, e não
gens, contanto que se confundam as próprias contra eles, não estão inscritas nas histórias de
fronteiras da vida e da não-vida. Intizar Hussain sacrifício heróico. Uma delas é a história de duas
descreveu isso em sua história “Cidade do sofri- mulheres muçulmanas, raptadas e engravidadas
mento”, na qual três homens não identificados por um homem sikh. Elas tinham sido resgatadas
estão conversando. pelas autoridades militares e foram colocadas
FRONTEIRAS, VIOLÊNCIA E O TRABALHO DO TEMPO 41

num campo enquanto esperavam para serem de- de vida’ na qual a ‘fronteira’ se mantém firme como
volvidas aos parentes no Paquistão. Certa noite, signo” (Shields, 1993, p. 28). Em termos da distin-
desapareceram. Quando retornaram, no dia se- ção dizer/mostrar de Wittgenstein, Shields propõe,
guinte, foram interrogadas pelas autoridades e então, que essa propriedade de manter-se firme é o
confessaram que tinham sentido vontade de ver o que não pode ser dito mas pode ser mostrado por
pai dos filhos que esperavam uma última vez. A várias atividades, incluindo a das frases ditas que
ansiedade que domina a literatura e o cinema são apropriadas à situação. As observações de
relativos à Partição, quanto a saber se alguém é Wittgenstein em Da certeza (1969) apontam para o
humano, é superada, ainda que só por um instan- absurdo de supor que me seja necessário saber que
te, pela inserção na vida cotidiana e pela própria algo é uma cadeira, ou que sou uma mulher, ou que
falta de palavras, que constitui sua resposta à alguém deitado numa cama de hospital é um
violência. paciente, para realizar os atos de pegar uma cadeira
no canto, ou usar a terminação feminina num verbo
(se eu estiver falando hindi), ou perguntar como vai
Fronteiras: dizer e mostrar
em voz baixa. Entre as observações consideradas
Retorno mais uma vez à questão das frontei- por Shields estão as seguintes:
ras. Edwards (1982) indica a relevância das frontei-
ras nos últimos escritos de Wittgenstein para afir- Eu sei que um homem doente está deitado ali?
mar que critérios de sentido que dão à linguagem Não faz sentido! Estou sentado junto ao leito, olho
uma existência delimitada são constituídos pela atentamente para o rosto dele. Então não sei que
atividade humana, e não dados de uma vez por há um homem doente deitado ali? Nem a pergunta
todas. Assim, para ele as fronteiras parecem excluir nem a afirmativa fazem sentido. (Da Certeza, # 10)
a combinação de palavras que não fazem sentido
no interior de uma forma de vida — que são, assim, Minha vida mostra que eu sei ou tenho
retiradas da circulação humana. certeza de que há uma cadeira ali, ou uma porta,
Dizer “essa combinação de palavras não faz e assim por diante — digo a um amigo, por
sentido” a exclui da esfera da linguagem humana e, exemplo, “pegue uma cadeira ali”, “feche a porta”
conseqüentemente, limita o âmbito da linguagem. etc. etc. (idem, # 7). Na minha opinião, a interpre-
Mas se alguém traça uma fronteira, pode ser por tação de Shields pressupõe uma distinção um
várias razões. Se eu cercar uma área com uma cerca tanto radical entre as fronteiras da prática coletiva
ou uma linha, por exemplo, pode ser com o e do capricho individual. De fato, um dos aspec-
objetivo de evitar que alguém entre ou saia; mas tos da vida cotidiana é que ela está embasada
pode também fazer parte de um jogo, e os partici- numa linguagem corrente a cujo contexto se tem
pantes podem, digamos, ter de pular a cerca; ou acesso, de modo que “não faz sentido” falar em
pode mostrar onde acaba a propriedade de um e ter o conhecimento de que alguém é homem ou
começa a de outro, e assim por diante. De modo mulher. Mas existe um outro sentido da vida
que dizer que eu traço uma fronteira não é dizer cotidiana em Wittgenstein, no qual ela tem de ser
por que razão eu a traço (Wittgenstein, 1953, PI, # re-habitada, em que o sentido de ser “humano” é
499). testado quando a linguagem corrente falha ou
Como se deve interpretar a primeira pessoa simplesmente não existe. As observações de Wit-
nessa exposição do ato de traçar fronteiras com tgenstein acerca da dor são os melhores exemplos
diferentes objetivos? Shields (1993) critica Edwards que conheço em que a vida cotidiana tem de ser
por não distinguir adequadamente fronteiras da assegurada na ausência dessa linguagem corrente
prática coletiva e fronteiras que são traçadas por (ver Das, 1996). A distinção entre as fronteiras
um capricho individual. Para ele, “a verdadeira horizontais e verticais das formas de vida, tal
fronteira, a fronteira do sentido nas Investigações, é como formulada por Cavell (1989), apreende es-
o nexo da atividade humana, o costume ou ‘forma ses aspectos da vida cotidiana — assim, o contras-
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te não se situa entre práticas coletivas e caprichos BIBLIOGRAFIA


individuais, mas entre estar na linguagem corren-
te, na qual a certeza é pressuposta, ou na ausên- CAVELL, Stanley. (1989), Declining decline: Wittgens-
cia de linguagens como a da dor ou da paixão tein as a philosopher of culture. This new yet
para expressar (que é diferente de representar) a unapproachable America: lectures after Emer-
son after Wittgenstein. Chicago, University of
relação com o mundo. Em ambos os casos o Chicago Press.
indivíduo se apropria da linguagem, mas no pri-
DAS, Veena. (1976), “Masks and faces: an essay on
meiro caso a estabilidade do mundo é pressupos- Punjabi kinship”. Contributions to Indian Soci-
ta, ao passo que no segundo o sentido do contex- ology, N.S., 1: 1-30.
to nunca é totalmente garantido. Manjit me ajudou
__________. (1991), “Composition of the personal
a vislumbrar a complexa relação entre dizer e voice: violence and migration”. Studies in His-
mostrar, e as diferentes imagens de conhecimento tory, 7(1): 65-77.
por meio das quais é mantida a relação entre a __________. (1995), “Voice as birth of culture”. Eth-
vida cotidiana e o ceticismo, enquanto o tempo é nos, 3-4: 159-81.
chamado a trabalhar a violência. __________. (1996), “Language and body: transacti-
ons in the construction of pain”. Daedalus,
special issue on social suffering, Winter: 67-93.
DAS, Veena e BAJWA, R.S. (1993), “Community and
NOTAS
violence in contemporary Punjab”, in D.Vidal,
G.Tarabout e E. Mayer (eds.), Violences et Non-
1 “Taunt karde si”, ele dava “indiretas”, é uma expressão Violences en Inde, Purushartha, 16: 245 -59
comum. A expressão equivalente punjabi, tane dena, EDWARDS, James. (1982), Ethics without philosophy:
bolyian sunana, é comum na retórica cotidiana da fala Wittgenstein and the moral life. Tampa, Uni-
das mulheres. versity Presses of Florida.
2 A conjunção bom-mau é um eufemismo utilizado quan-
do se quer responsabilizar os próprios parentes pela
GILSENAN, Michael. (1996), Lords of the Lebanese
utilização de expressões insultantes ou indelicadas em marches: violence and narrative in an Arab
relação ao sujeito. Diferenças horizontais sutis marcam society. Berkeley, University of California
outras expressões, como gali (abuso) ou bak-bak (in- Press.
sensatez); suas implicações na verbalização das estraté- LEFEBVRE, Henri. (1968), Dialectical materialism.
gias de honra-vergonha são bastante diferentes. “Dife-
Londres, Jonathan Cape.
renças horizontais” se refere, aqui, ao tipo de diferença
encontrada em pares tais como coroação/posse, pro- NUSSBAUM, Martha. (1986), The fragility of goodness:
missor/intencional etc., conforme o emprego da expres- luck and ethics in Greek Tragedy and Philoso-
são por Cavell (1994). phy. Londres, Cambridge University Press.
3 Literalmente: Aurat da ki hai — aurat te admi da gun ROY, Beth. (1994), Some trouble with cows: making
khandi hai.
sense of social conflict. Berkeley, University of
4 Expliquei em trabalhos anteriores que alguns casamen- California Press.
tos entre hindus e sikhs ocorriam dentro dessa rede de
parentesco (ver Das 1977 e 1992). SHIELDS, Philip R. (1993), Logic and sin in the
writings of Ludwig Wittgenstein. Chicago, Uni-
5 Não quero dizer que seja, por isso, aceita de forma
versity of Chicago Press.
passiva. Aliás, toda a história de Manjit mostra um
profundo ressentimento. Tampouco afirmo que tais SCOTT, James. (1990), Domination and the arts of
formas de violência sejam sempre narráveis em todas as resistance. New Haven, Yale University Press.
sociedades humanas.
WITTGENSTEIN, Ludwig. (1953), Philosophical inves-
tigations. Edição de G.H . von Wright e G.E.M.
Anscombe. Oxford, Basil Blackwell.
__________. (1963), On certainty. Edição de G.E.M.
Anscombe e G.H. von Wright e tradução de
Denis Paul e G.H. von Wright. Nova York,
Harper and Row.

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