Apropriação tecnológica e coesão social: a identidade dos movimentos
culturais no contexto da pandemia
Cairo Henrique Lima
Atualmente, efeitos catastróficos resultantes da pandemia global de COVID-19 tem
se aprofundado rapidamente em múltiplas dimensões de nossa vida social, dilatando a percepção cotidiana de um contexto excepcional (SANTOS, 2020). Por um lado, tais mudanças têm trazido alvoroço e desorientação aos grupos socialmente mais vulneráveis (população de rua, trabalhadores informais, comunidades carentes, portadores de deficiência, etc.), por outro, tem motivado reações estratégicas por parte dos que dominam na hierarquia política e econômica de poder (política institucional, empresariado, mídia televisiva e jornalística, setor bancário, etc.). O posicionamento da elite política e econômica de negligenciar a distribuição adequada de meios de conservação da vida em favor da racionalidade neoliberal – tanto por insuficiência de bens e equipamentos de saúde, quanto por imperícia administrativa – tem como resultado a formação de antagonismos às demandas dos que se reúnem pela vulnerabilidade, tendo em vista a impossibilidade de isolamento que os coloca em descontinuidade com as propostas de gerenciamento global da pandemia (DARDOT; LAVAL, 2014). Por assim dizer, essas imagens de identidade coordenam diferentes grupos ao redor de narrativas comuns de diferenças e semelhanças (BHABHA, 1998), que distanciam pelo medo, mas aproximam pela solidariedade. Nesse sentido, a demanda pela preservação de hábitos relacionais durante o contexto da pandemia tem muitas vezes sido satisfeita pela mediação de práticas comunitárias virtuais, tais como as lives, videoconferências, salas de aula online, entre outras formas de transmissão remota de informações na Web. Dado esse contexto, nos voltamos em particular, para as práticas virtuais de representação dos movimentos culturais, cuja capacidade comunicacional, ancorada na estética e no discurso, se baseia na produção e circulação de videogravações em plataformas digitais, notadamente o YouTube (GARCEZ; DUARTE; EISENBERG, 2011). Essa apropriação de espaços tecnologicamente mediados proporcionaria a diversos movimentos sociais e culturais a oportunidade de reagrupar suas identidades coletivas e redefinir seu direcionamento comunitário durante o contexto de exceção da pandemia. Com base em nossa pesquisa em andamento, temos por objeto um conjunto de fenômenos interno aos movimentos culturais – nomeadamente o Hip-Hop - destacando o RAP (gênero musical), os slams de poesia e as batalhas de rima (práticas culturais). Já há algum tempo tais fenômenos vem se inserindo nos espaços virtuais, particularmente na plataforma digital YouTube (NEVES, 2017; RODRIGUES; SANTOS, 2017; VIEIRA DA SILVA, 2018), cujo valor analítico diferencial repousa em seus aspectos audiovisuais, abertos à interação virtual em tempo real, crescentemente eleita como experiência suplementar àquela das práticas culturais em si. Nossa hipótese de que as narrativas político-culturais que organizam e dão sentido a essas práticas tem sido cada vez mais projetadas e alojadas no espaço representacional das mídias digitais a partir de conteúdo audiovisual, se torna mais nítida e estabelece continuidade com o contexto de isolamento social (que impele as identidades culturais a imergirem na virtualidade em busca de coesão). Esse processo de ressignificação contextual modifica o entendimento pragmático da Internet, que passa a projetar modelos virtuais suplementares às condições materiais das práticas de representação (HALL, 2016), que então, reorganizam as categorias de experiência da realidade: o que há pouco tempo se apresentava como possibilidade se torna necessidade, pois a normativa de isolamento recorta e circunscreve nosso espaço relacional no interior da Web, em mídias digitais, jornais online e transmissões remotas. Desse modo, o contexto pandêmico atribui ao uso dos espaços sociotécnicos virtuais um significado excepcional, com caráter prioritário de utilidade social geral, não apenas ao passar a trabalhar em casa, para fazer transações financeiras online ou atenuar a clausura do tédio, mas também, para adquirir informações e se conectar a redes de relações construídas pela identificação comum com uma narrativa particular (coesão), que seja correspondente ou derivada da forma predominante de organização da experiência pessoal “pré-pandemia” e que confirme sua autoatribuição na alteridade (HALL, 2003).
O ascendente atravessamento virtual da rotina levaria então agrupamentos socio-
culturais a reorganizar a experiência de suas práticas no interior de espaços virtuais compatíveis com sua modalidade expressiva ou gênero comunicativo (GILROY, 2001) – acreditamos que a linguagem audiovisual utilizada, por exemplo, no YouTube, seja capaz de visibilizar iniciativas desta ordem. Desde o inicio da quarentena muitos tem sido os modos como diversos agrupamentos identitários (órgãos políticos institucionais, setores do sistema educacional, artistas e movimentos culturais, entidades religiosas, etc.) passaram a se apropriar da mediação tecnológica para disponibilizar ao grupo, meios de produzir coesão interna, reagrupando os componentes coletivos de suas identidades para retomar ou redefinir suas atividades enquanto conjunto. Alguns exemplos da apropriação tecnológica com fins de coesão durante o contexto da pandemia envolvem as lives (transmissões audiovisuais em tempo real), apropriadas por: órgãos políticos institucionais, professores e alunos inseridos em modelos EAD, artistas e movimentos culturais em shows e eventos adaptados, ou até reuniões remotas por motivo de credo. Podemos dizer que a responsabilidade na elaboração eficaz dessas interações virtuais vem se tornando comunitária ou solidária, pois, na heterogeneidade dos grupos sociais agenciados nos novos espaços relacionais, muitos não têm acesso à tecnologia, outros não têm a habilidade ou o conhecimento necessário para participar (SANTOS, 2020). A despeito dessas restrições, no segmento Hip-Hop dos movimentos culturais temos observado uma narração virtual de práticas habituais na agenda social desses grupos (MATOS, 2015). Artistas da cena musical RAP (RODRIGUES; SANTOS, 2017) têm utilizado as lives para reunir público (na própria casa, performando um show, gravando um videoclipe, arrecadando doações, etc.), bem como destacado os temas políticos agregados pelo contexto lírica e esteticamente. De modo similar, slams de poesia e batalhas de rima, práticas culturais tradicionalmente situadas no espaço público urbano (NEVES, 2017; VIEIRA DA SILVA, 2018), estão reformulando suas capacidades técnicas para produzir experiências virtuais adaptadas que suplantem as condições materiais das práticas transferindo-as ao contexto do “novo normal” – as competições de poesia e de rima utilizam as lives para reunir, semanal ou mensalmente, internautas que comungam uma mesma identidade cultural (público, poetas/MC’s, apresentadores, etc.). Por enquanto, estes são alguns dos apontamentos sociológicos possíveis sobre a relação entre cultura e tecnologia durante o contexto da pandemia global de COVID- 19.