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A análise de textos literários com conotação religiosa deve ser feita levando em

conta a possibilidade de diálogo entre o fenômeno religioso e a literatura, sem a


necessidade de desprezar um em favor do outro. E sem imprimir ao trabalho artístico
uma função sacralizante. É preciso ter em conta, além disso, que a adesão religiosa
limita o alcance poético da obra. Nos casos dos poetas a partir da modernidade, a crise
religiosa é um fato frequente, fazendo com que suas obras unam o elemento religioso à
erudição secular e a diversas experiências culturais. Tais obras, muitas vezes, são
marcadas pela negação de preceitos religiosos tradicionais e pela irreverência. E Deus,
nelas, é lido a partir das coisas terrenas e abarca as contradições da natureza humana. A
fonte religiosa de tais escritores é sua própria individualidade.

O olhar poético, assim como o do cientista, é treinado para se deter nos detalhes
que passam despercebidos pelo olhar do homem comum. É por meio dessa atenção,
sensível e seletiva, que o poeta identifica, nas coisas vistas, o que não é observável.
Liga-se, então, seu ver ao imaginário, urdidos na linguagem poética, que transforma
essa rede de conexões em imagens verbais.

A atenção às coisas vistas, e ao que nelas se esconde, é um valor como o é a


memória. Ambos estão ligados à reelaboração constante do presente, dos sentidos da
existência. Trata-se do reconhecimento de entusiasmos, sejam nas alegrias, como na
angústia.

Depreendemos de nossa análise que o pensamento e o afeto estão atrelados ao


corpo e à experiência. A visão, as sensações físicas, a rememoração compõem o existir.
De modo que a poesia está ligada ao erótico, por ser metáfora e desvio. Assim como
também está ligada ao amor, por ser tentativa de recuperação do sentimento de
continuidade. O poético e o amor são experiências de autoconhecimento pelo contato
com o outro.

A narrativa bíblica é referência frequente na literatura ocidental. Na obra de


Lenilde Freitas, o texto mítico-sagrado é reatualizado em imagens poéticas e questões
sobre o sentido existencial.
Cercanias
Há um prazo certo

um tempo justo

para olhar este mundo

— de relance.

Num abrir e fechar de olhos,

vão-se as paisagens

cercanias e miragens

— última chance.

(1989, p. 24)

Cercanias é também o título do livro que contém esse poema. O terceiro de


poesia publicado por Lenilde Freitas.

Pombos

Um adeus de asas acena nas alturas

para quem desse gesto anda farto.

Manhãs despertam enferrujadas

e as horas voltam a correr como cavalos

a toda a brida.
Mil nuvens na lonjura se esgarçam

em despedida. Desencontros que disfarçam

a mão fechada do sol por sobre o pasto

a mão aberta de Deus por sobre

a vida.

(2010, p. 112.)

Um acontecimento da natureza, a revoada de pombos, é ponto de partida para o


dizer das perdas que insistem em nos acometer — quem desse gesto anda farto. O
tempo não cessa seu movimento, como cavalos a toda a brida, mesmo que que os dias
estejam estagnados com a ferrugem da ausência. No entanto, nota-se a mão aberta de
Deus por sobre a vida materializada na mão fechada do sol por sobre o pasto. A
continuidade dos fenômenos naturais como um alento, prova da passagem da vida e da
permanência dos cuidados de Deus para com suas crias.

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