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A Face Religiosa do Bolsonarismo

Por Jorge Alexandre Alves*

Por maiores que sejam os desgastes sofridos pelo governo, nada indica que Bolsonaro corre sérios riscos de ser removido
da presidência da república em curto prazo. Nem mesmo as revelações feitas pelo site jornalístico The Intercept a respeito
da trama articulada entre o ex-juiz e ministro Sério Moro e os procuradores do Ministério Público, a fim de condenar Lula
e impedir a vitória eleitoral das esquerdas. Por mais escandalosas que sejam as revelações feitas por Glenn Greenwald,
parece que o condomínio que se instalou no Planalto ainda possui algum capital político capaz de mantê-lo no poder. Por
enquanto...

Que o bolsonarismo preferiria exercer o poder de forma tirânica, impondo sua visão fascista e policialesca de mundo, não
se tem mais dúvidas. Da mesma forma, já está claro que ele não possui um projeto para o Brasil. Ou melhor, é cada vez
mais evidente que seu projeto de poder é incompatível com as instituições democráticas e republicanas. Sua ação ocorre
ao arrepio dos pressupostos básicos da convivência política, de pluralidade de ideias e de garantia de direitos básicos,
ignorando a já combalida Constituição de 1988.

Ao mesmo tempo, são cada vez mais fortes as suspeitas que associam o governo com as milícias urbanas do Rio de
Janeiro. Se considerarmos que o chefe do Executivo tem o apoio grande latifúndio – sustentado desde os tempos coloniais
por milícias armadas (jagunços e pistoleiros) também – a suspeita que recai sobre o presidente não pode ser atribuída a
nenhuma teoria da conspiração. Assim podemos supor que, sendo derrotado, Bolsonaro não deixará o poder de forma
pacífica. O que explica parcialmente sua aposta na radicalização do abismo político que hoje divide os brasileiros.

Também é evidente que seu discurso e dos seus assessores mais próximos produz uma narrativa que despreza a boa
argumentação lógica, a racionalidade teórica, as pesquisas acadêmicas e à fidelidade aos dados. Assistimos,
estarrecidos, a uma verdadeira exaltação da ignorância e da burrice. Quaisquer opiniões, mesmo sobre temas da mais
alta complexidade, são impostas como válidas, ainda que não se sustentem em dois minutos de debate.

Para tanto, o governo impôs uma verdadeira guerra cultural, cujos alvos são as artes, a intelectualidade, as universidades
e escolas públicas brasileiras. A educação virou campo minado e, na ótica bolsonarista, encontra-se distorcida por desvios
que pervertem a juventude. Virou espaço da balbúrdia, da doutrinação político-partidária que transforma estudantes em
inocentes úteis. Temos um governo que considera artistas e sobretudo professores como inimigos do Brasil. Trata-se de
uma visão de mundo anti-iluminista, na qual o conhecimento é reduzido à condição de rasteira doutrinação ideológica.

Dessa forma, elaborações retóricas das mais absurdas são feitas em nome da família, da liberdade e do “cidadão de
bem”. Acusações morais e ataques pessoais se tornaram estratégia corriqueira da disputa política, com vistas a
demonizar aqueles que se opõem a esse verdadeiro teatro do absurdo. Usam da liberdade de expressão para atentar
contra a própria democracia.

Tudo isso ocorre diante de uma grande mídia que se comporta de forma ambígua e condescendente com a situação.
Algumas empresas de comunicação, afetadas economicamente porque perderam importante fonte de renda oriunda da
propaganda do governo, até atacam o Poder Executivo nas suas aparentes sandices. Por outro lado, contribuem com a
desinformação da população. Maquiando dados e valores, defendem uma reforma/deforma da Previdência como se fosse
uma questão de salvação nacional.

Aquilo que os canais de TV chamam de “interesse do país” somente beneficia o setor financeiro (bancos) às custas da
proteção social da população. Isso explica o papel lastimável que parcela da imprensa teve no último domingo de Maio,
quando apoiadores do governo foram às ruas. Ao dizer que os bolsonaristas eram “a população” que se manifestou a
favor das “reformas que o Brasil precisa”, a cobertura midiática dos atos varreu para debaixo do tapete as bandeiras mais
autoritárias associadas ao presidente. Pautando-se em meias-verdades, prestaram grande desserviço à democracia
brasileira, em nome da agenda econômica que defendem.

Ao circo dos horrores que se instalou no país, junta-se o fundamentalismo cristão em sua mais abjeta versão. Trata-se
de uma leitura religiosa totalmente contrária aos critérios mais básicos da prática de Jesus conforme descrita nos
Evangelhos. Ao inferir a condição de “salvador da pátria” a um homem do perfil do atual mandatário do país, esses cristãos
se tornaram idólatras, por seguirem cegamente um falso messias, verdadeiro arauto da morte.
Púlpitos de não poucas paróquias e templos do catolicismo e de diferentes confissões evangélicas foram fundamentais
para eleger Bolsonaro e seus aliados em 2018. Segmentos ligados ao fundamentalismo cristão (seja católico ou
protestante) estiveram intimamente ligados à coligação política que venceu as eleições gerais do ano passado.
Atualmente, a reação desse grupos aos vazamentos feitos pelo site The Intercept tem um controvertido “hater” católico
como protagonista, cuja atuação ocorre principalmente através das redes sociais.

Portanto, o governo brasileiro é uma associação perversa entre violência política de matriz fascista, propostas econômicas
ultraliberais, de atuação ambientalmente predatória, práticas sociais homofóbicas e intolerantes. Tudo isso amalgamado
por um discurso religioso fundamentalista, seja de vertente neopentecostal evangélica, seja de matriz católica. No caso
do catolicismo, os setores que apoiam o bolsonarismo se situam no integrismo ultraconservador de ênfase tridentina; e
nos setores radicalizados do pentecostalismo católico, sobretudo nas chamadas comunidades de vida e de aliança.

Esse posicionamento, com o beneplácito de algumas autoridades eclesiásticas, tem se dado de forma controvertida. Um
grupo de apoiadores católicos fotografados fazendo as emblemáticas “arminhas” com as mãos embaixo da imagem do
Sagrado Coração de Jesus, em plena cúria metropolitana de uma das principais dioceses brasileiras, durante a campanha
eleitoral, nos dá a exata noção do que representa esse apoio. Da mesma maneira, tivemos uma “consagração” do país a
Nossa Senhora ocorrida dentro do Palácio do Planalto semanas atrás, conduzida pelo presidente, com dois bispos
católicos fazendo o papel de acólitos de esdrúxula cerimônia, patrocinada por segmentos conservadores da Igreja. Dentre
os presentes, um deputado federal ligado a uma das maiores expressões do pentecostalismo católico do Brasil.

O tal evento foi uma grande peça de propaganda do governo junto à massa católica. Do ponto de vista formal, essa
consagração foi uma triste pantomima fundamentalista. Primeiro, porque o Brasil já havia sido consagrado à Virgem Maria
em 1946, em cerimônia presidida pelo Cardeal Jaime Câmara, então arcebispo do Rio de Janeiro. Segundo porque tal
consagração, se nunca tivesse sido realizada antes, deveria ser conduzida por um eclesiástico, e não por uma autoridade
civil. A esse respeito, os organizadores da cerimônia alegaram candidamente se tratar de uma renovação do ritual feito
há mais de 70 anos...

Salta aos olhos a mudança nas relações entre católicos e evangélicos pentecostais de perfil conservador. Antes, a
identidade eclesial distinta era suficiente para mútuos ataques, em tempos de aceleradas mudanças do quadro religioso
brasileiro. Entre 1990 e 2010 não seria equivocado identificar uma disputa entre essas frações junto aos mesmos
segmentos da população. Ambos os grupos religiosos era pouco afeitos ao ecumenismo, coisa tida como excessivamente
liberal e esvaziadora de suas identidades eclesiais, por exemplo.

Historicamente, integristas e tridentinos nunca toleraram pentecostais católicos. A estética carismática, manifestada na
liturgia, nas devoções e em inovações celebrativas (como o repouso no espírito e as missas de cura e libertação) eram
tidas pelos ultraconservadores como uma infiltração protestante no catolicismo. Havia também um certo elitismo
socioeconômico que reforçava a intolerância em relação a tudo que lembrava o movimento carismático que possui um
apelo mais popular.

Entretanto, o avanço do conservadorismo em escala universal na Igreja, sobretudo no começo do século XXI afetou
diretamente os ambientes eclesiais no Brasil. Isso pode ser constatado através da intensificação do formalismo litúrgico,
da forma como os novos padres são formados e pela absolutização do poder clerical, já sob Bento XVI. Nesse momento
ganhou terreno certo discurso moral, vinculado às temáticas relacionadas ao comportamento sexual. Temas como a
prática do aborto, a homossexualidade, a contracepção artificial e as questões de gênero passam a ter maior relevância
no debate pastoral e na pregação cotidiana das lideranças católicas.

Esse panorama produziu mudanças importantes na forma como os diversos segmentos conservadores dentro do
catolicismo passam a olhar uns aos outros. Internamente, posições parecidas em relação à agenda de costumes
imprimida pelas autoridades eclesiásticas – baseadas em certa concepção da moral católica – vão operar uma paulatina
aproximação entre grupos diversos, o que permite a aproximação entre frações do campo pentecostal-católico e outros
clãs do conservadorismo eclesial.

Do mesmo modo, ao longo da última década ocorre uma aproximação política entre tais segmentos e denominações
evangélicas, sobretudo de matriz (neo)pentecostal. Paradoxalmente, essa aproximação promoveu uma espécie de
“ecumenismo” às avessas. Ora, o movimento ecumênico historicamente estabelecido sempre teve uma agenda
progressista e também procurou se pautar por um profundo e respeitoso diálogo teológico.
O fenômeno que presenciamos no Brasil não se sustenta nessas bases. Ao contrário, essa aproximação “ecumênica” de
sinal trocado se estabelece a partir de uma agenda comum. Aqui podemos destacar alguns temas de políticas públicas –
como o Ensino Religioso; o projeto “Escola sem Partido” e o combate à chamada “ideologia de gênero”. No campo político,
a unidade é construída no antagonismo radical a tudo possa ser considerado de esquerda. Questões de ordem teológica
e projetos de caráter pastoral não estão formalmente na pauta dessa aliança aparentemente ocasional.

No estado do Rio de Janeiro, alianças entre segmentos conservadores católicos e evangélicos ocorre pela primeira vez
em 2001, na aprovação da Lei estadual do Ensino Religioso confessional. Em 2006, as vésperas das eleições, uma
campanha de difamação fez uma candidata de esquerda ao Senado perder uma eleição tida como ganha. Ela atribuiu
sua derrota a posições de grupos católicos que ostensivamente militaram contra ela na última semana antes da votação.
Mas considerando o perfil religioso da população fluminense naquela época, sua derrota não se daria sem a mobilização
dos segmentos evangélicos conservadores também.

Ainda na década passada, a mobilização contrária a um material sobre educação sexual produzido pelo MEC e que iria
se distribuído às escolas foi motivo de aproximação entre a bancada evangélica e deputados católicos de viés
conservador. Essa aproximação em tornos de pautas moralmente conservadoras deu origem à “bancada da bíblia”. Hoje,
esses parlamentares constituem um dos grupos de lobby mais poderosos do Congresso Nacional.

Não à toa, partidos conservadores, inicialmente nanicos, vêm crescendo em quantidade de parlamentares. Tais
agremiações – como o PSL e o PSC – comportam militantes com origem tanto no catolicismo quanto neopentecostalismo
evangélico. O estado do Rio de Janeiro ilustra bem esse fenômeno. O vice-governador tem origem no pentecostalismo
católico. A base do governo na ALERJ tem o apoio de parlamentares evangélicos (alguns são pastores) e de
parlamentares ligados ao integrismo católico.

Esta última fração católica hoje está engajada internamente na luta contra a Teologia da Libertação, contando com o
apoio de várias autoridades eclesiásticas do Regional Leste I da CNBB. Ao mesmo tempo iniciaram uma cruzada contra
o marxismo cultural nas universidades públicas. Na política são aliados de ocasião de outros segmentos fundamentalista
de outras confissões cristãs, dentro do ideário do “ecumenismo às avessas” já descrito nesse texto.

Essa inserção política do fundamentalismo religioso católico, outrora mais presente nos tradicionais partidos políticos de
direita, como o DEM, o PSDB e o partidos do chamado Centrão, hoje converge para a base do Bolsonarismo. É claro que
esses partidos ainda conservam sua presença em certos segmentos da direita católica (Geraldo Alckmin – ligado ao Opus
Dei – talvez seja o seu principal representante em escala nacional) e também defendem pautas conservadoras. Mas a
hegemonia do conservadorismo religioso hoje cerra fileiras ao grupo político diretamente ligado ao Presidente da
República.

No caso do catolicismo romano, esse fato se torna uma grande contradição. O discurso progressista do Papa Francisco
é frontalmente contrário a esses grupos. O Bispo de Roma tem sido um crítico ácido das bandeiras política conservadoras
e do ultraliberalismo econômico. Do ponto de vista eclesial, sua crítica ao luxo dos eclesiásticos, a hipertrofia ritual das
liturgias e do clericalismo tem causado descontentamentos e promovido fortes resistências na Cúria Romana e em várias
partes do mundo.

No Brasil, essa oposição ocorre sobretudo pela indiferença às orientações e aos textos escritos pelo pontífice. E se
manifesta de forma mais evidente na política, quando militantes católicos, apoiados por religiosos (padres, bispos e até
cardeais!) se filiam a correntes políticas defensoras exatamente daquilo que Francisco mais tem se colocado contrário. É
como se o Papa ainda fosse Bento XVI ou João Paulo II ou mesmo Pio XII!

Bergoglio sabe o que se passa no Brasil. Tem sido sutil, mas assertivo quando trata de questões que estão no centro dos
debates políticos no país. O Sínodo dos bispos para a Amazônia tem deixado o governo exaltado não à toa. E isso está
bem evidente para o conjunto do episcopado brasileiro. Basta olhar a nova composição da CNBB, para desgosto público
dos catolibãs.

A contradição existente hoje dentro do catolicismo não é uma novidade na história recente da Igreja. A filiação de
segmentos fundamentalistas católicos ao Bolsonarismo se vincula ao apoio dado por parcelas da Igreja ao Golpe de 1964
no Brasil. Isso também aconteceu em outros momentos históricos do século XX. Basta lembrar do apoio de parcelas do
catolicismo dado ao franquismo na Espanha, à ditadura de Salazar em Portugal, a Mussolini na Itália e mesmo a Hitler
na Alemanha Nazista.
O professor Róbson Sávio Souza, da PUC-MG, escreveu excelente artigoi no qual ele traça uma radiografia do governo
Bolsonaro. Demonstrando a violência estrutural que se torna mais aguda com esse governo, ele conclui que o atual
consórcio que se instalou no Poder Executivo exerce um necrogoverno. Na mesma linha, Pedro Ribeiro de Oliveira,
analisando nossa conjuntura em fala realizada em um encontro regional do Movimento Fé e Política ii, faz referência a
uma política cujo efeito mais nefasto seria a morte daqueles que se opõem a esse estado de coisas, dos mais pobres e
do meio ambiente.

Assim, se temos uma necropolítica em implantação no Brasil, articulada em escala globo, resta-nos questionar que papel
podem ter as religiões nesse cenário devastador. Ao vermos o fundamentalismo cristão engrossando as fileiras do
bolsonarismo, não há como deixar de destacar o caráter paradoxal dessa escolha política por parte desses grupos. No
caso do catolicismo, a contradição é ainda mais evidente, por causa do Magistério de Francisco.

Portanto, fica evidente que tais segmentos – católicos e evangélicos – a despeito da mensagem de vida pregada por
Jesus de Nazaré nos Evangelhos, se colocam na contramão dos princípios mais fundamentais que eles deveriam
professar. Contudo, ao fazerem tais opções, traduzem a necropolítica bolsonarista termos de uma crença obscura, a partir
de suas pregações nos púlpitos das igrejas e nos meios de comunicação. Enfim, esse apoio nefasto se fundamenta não
na fé na vitória da vida sobre a morte e no que Jesus entendia ser o Reino de Deus, mas sim em uma necrorreligião.

* Jorge Alexandre Alves é Sociólogo, Mestre em Educação pela UFRJ, professor do IFRJ e participa do Movimento Fé e
Política

i
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589960-da-violencia-estrutural-ao-necrogoverno-breve-radiografia-do-
bolsonarismo
ii
III Encontro de Fé e Política do Sul-Fluminense. Realizado em Barra Mansa, no dia 15/06/2019.

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