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O que fazem os poetas com as palavras por Roman Jakobson olsun Letras arglta-se deiner um texto, de Roman Jaksbsoa-— sondensaeio dn seunda confertocia que, | Novembro de i972, pro maior, invedinds inclusivamente 0 palo. Agradecemes a Jakobson 0 ‘audao com qos tesla a tradugio portuguesa deem confertacia © @ fer smog aulorizado a sua publicazlo, A poesia é um facto inelutivel. Dizem os antropélogos que nio ha um 86 grupo étnico desprovide de poesia, mesmo nas sociedades denominadas aprimitivasy. Trata-se, pois, dum fenémeno universal, exactamente como a linguagem. Em certos grupos étnicos apenas existe, a par da linguagem quotidiana, a linguagem poética; desconhecem-se, portm, sociedades em que, além da linguagem corrente, se cultive exclusivamente a prosa artis- tica, Esta é uma superestrutura, algo ja de mais camplicado, a meio-caminho entre a poesia, que é um dos péles, ¢ a linguagem de todos os dias, que € ‘9 outro. Note-se, por outro lado, que em certas sociedades $6 existe pocsia sob a forma de poesia cantada: ¢ o sincretisme primitivo da palavra poética eda misica. Mais: em certas tribos que nilo possuem miisica instrumental ‘opiem-se © conjunto pocsia-misica dum lado e a linguagem corrente do ‘outro. Nas tribes que possuem muisica vocal ¢ miésica instrumental obser- va-se, por via de regra, uma estreita ligagdo entre a misica instrumental ¢ a danca, Logo, dois sincretismos: misica instrumental-danga © misica ‘vocal-pocsia. Se considerarmos os movimentos do corpo, o fenémeno ganha maior complexidade: as fungSes semidticas desses movimentos sto duplas: signos da danga que acompanham a misica ou por ela slo acom- panhados — ¢ mimica, gestos que acompanham ou substituem a linguagem. E interessante registar que, em principio (pomos de remissa no poucos factos intermédios), so. 0s movimentos da parte inferior do corpo que mais s¢ ligam & musica, © 05 da cabega ¢ dos braros que se associam & linguagem. Seja-me permitido passar agora ao problema essencial da pocsia. Como se sabe, a palavra poesia, que é de origem gregt, pronde-se a um verbo que significa wcriam, e, na verdade, a poesia, nllo sendo o tinico aspecto criador, éodominio mais criador da linguagem. Quanto palavra verso, tem a mesma raiz que prose, visto que prosa deriva de provorsa, proversa; oratio Proversa é aquela que caminha resolutamente em frente, com uma ditecgiio estrita, Alm disso, versus quer dizer sretornon, um discurso que comporta regressos —e peso ser este um fendmeno fundamental, de que podemos tirar grande mimero de ilagdes. ~~Aqui, ao falar de poesia, refiro-me & poesia em verso, nio me ocupo de formas transitivas, & sempre preferivel comegar pelos pélos. Ora bem: que h& no verso que niio se observe na linguagem quotidiana? No verso temos unidades linguisticas de toda a espécie, mas, enquanto na linguagem corrente © seu regresso no conta, abstraimos da repeticlo dessas unidades, no verso @ repeticiio desempenha um papel de que cstamas conscientes. Projecta-se na linguagem poética o principio da equivaléncia na sequéncia; as sflabas, os acentos toram-se unidades equivalentes, No verso livre no slo os acentos, nlio sio as silabas, mas € a entoago da frase que se repete, formando por essa reiterag’o regular a prépria base do verso. Donde vem a importincia da repeticdo? Cumpre no esquecer que as frases so feitas de palavras © grupos de palavras, ¢ 2, por assim dizer, avivemos» a repe- tigtko das silabas, dos acentos, das entoagdes, as palavras que se corres: Pondem pela sua posigdo avaliamo-las subconscientemente do ponto de vista da sua equivaléncia, Vejamos que se passa com a rima: 0 que importa nio € 56a repetiglo dum grupo de fonemas, em finais de verso, importa, sini, as palavras a que esses fonemas pertencem. As palavras que rimam podem ser substantivos com o mesmo sufixo (revoliyde, renovaria, ete.), mas podem ser termos de categoria gramatical diferente que nada tenham que ver uns com os outros. H& poetas, escolas que se orientam para as rimas gramaticais, ¢ poetas, escolas que visam antes as rimas agramaticais, ‘ou, mais exactamente, antigramaticais. A questo fundamental reside, poesia, nas relagdes entre som ¢ sentido. Age a cada momento, estabele- cendo entre as palayras novos nexos, metaféricos ou metonimicos. Se aten- tarmos, por exemplo, em Fernando Pessoa, veremes que a rima é uma das coisas fundamentais na sua poesia, uma das razSes da sua grandeza, pelo poder de suscitar inesperadas aliangas de termos, de sentidos, que aceitamos como novos valores. Fala-se de estruturas ritmicas, fala-se de aliteragdo ou de rima: sio, sem diivida, realidades, mas no se trata sé de misica, estd sempre em jogo a relagdo entre som e sentido: tudo na linguagem é, nos seus diversos niveis, significante. Um problema que me impressionou é 0 papel da gramatica na poesia, Quando esiudante, li nos manuais que existem poemas (de Puskine, por exemplo) sem imagens, sem tropes, cuja forga tinica reside na forga da ideia e do sentimento. Na altura acreditei, depois tornei-me céptico. Mas acreditei, devo dizer, com certa sunpresa, A profundidade das ideias! Mas nilo silo textos magnificos, cheios de ideias profundas, a Declorapio dos Direitos do Homemt ou a Teoria da Relatividade de Einstein? E alguém os classificard de textos poéticos? Logo, para haver poesia parece necessirio algo mais. Li, por outro lade, comoventes cartas de amor ou lancinantes cartas de despedida de pessoas que iam matar-se. Pois bem: cram textos repassados de sentimento, néo eram poemas! E nfo se trata apenas da organizaglo ritmica: toda a organizagio interna eth em causa. Voltei a pensar no assunto quando tive de organizar alguns volumes de tradugdes do Puiskine em checo, Os melhores poetas checos puseram maos 4 obra, Conquanto entre as linguas russa e checa existam grandes semelhangas, comecei a observar certas faltas de correspondéncia, Alguns poemas foram traduzidos com perfeita exactidilo no concernente & estrutura dos versos, & estrutura das rimas, A escolha das imagens, ete. E, de repento, percebi que a tradugio nilo estava bem: manquejava aqui ow ali, A razlio estava ons diferengas de estrutura gramatical entre as linguas ealavas. Em certos casos, impoe-se uma grande atengilo ao papel das categorias gramaticais, Cito um exemplo, entre tantos que poderia aduzir, Uma tradu- go do russe, nlio jf em checo, mas noutra lingua eslava,o polaco: a tradugiio dum poema de Puskine feiia por um grande poeta polaco, J, Tuwim, excelente conhecedor do russe ¢ dotado de singular sonsibilidade lingulstica, © pocma, «Amein, é daqueles que se costuma considerar desprovidos de tropos ¢ figuras. Pois bem: a verso em polaco falhou completamente, Parqué? Por nilo se prestar a necessdria atenclo a uma diferenga que existe entre © russo © © polaco: em russo 0s pronomes pessoais acompanham normalmente, como sucede em francés, as formas verbais; a omissio dos pronomes pode ocorrer, mas tem uma funsiio enffitica, denuncia uma forte emogio; em polaco dé-se justamente o contririo: normalmente niio se empregam os pronomes, as desinéncias bastam para indicar as pessoas, ¢ usar Gf pronomes proveca uma impressio afectiva, envolve um tom tetérico. Dostoievski compos uma breve narrativa onde diz, trocande dum publicista russo: «Fizera-se tho vaidoso que omitia sempre o pronome da primeira pessoa» Ora no poema de Puskinc, onde dialogam um herdi ¢ uma heroina, hi um jogo fundamental entre os pronomes ew e rds; con- servando, na tradugiio, o pronome da 1.* pessoa, di-se ao texto um caricter excessivamente retérico. Se surgem complicagdes com a I.* pessoa, o mesmo suede com a 2.4, Porquanto em russo, como em francés, hi duas possibilidades: tu © vés. Tw, no pocma de Puskine, seria, em polaco, demasiado intimo; quanto a rds, niio existe em polaco: ou se emprega fu ou entilo @ 3." pessoa. Assim, ‘Tuwim encontrou-se perante um dilema: ou usar um modo de tratamento intimo de mais, que o poema nfo permite, ou a 3.* pessoa, tratamente tio cerimonioso, tio «oficial», que destruiria o texto. Aqui est, bem evidente, 4 importincia das eategorias gramaticais em poesia. Dediquei-me a0 estudo dos problemas de paralelismo, j4 detidamente analisados na China do séc. 1X com a penetragdo que se diria dum linguista do nosso tempo. Gerard Manley Hopkins, grande poeta inglés do séc. XIX, incompreendido em vida mas considerado hoje um classico, ¢ também excelente tedrico da poesia, fez, ainda estudante, observagdes muito agudas sobre o paralelismo, indicando a repeti¢lio de sons, a repetigdio de cate- gorias gramaticais, a repetisdo de construsies frisicas, fenémenos que é ficcil descobrir na Biblia mas que —acentuava Hopkins — se multiplicam também na poesia contemporiinea, apenas a um nivel de maior complexi- dade. E € exactamente assim. Nos manuais (nunca se deve acreditar nos manuais!) lé-se que 0 paralelismo candnico é monétono, outras vezes que, bruscamente, ¢ desrespeitado. Mas nio se vé que, por exemplo, no fragmento mais antigo do Cantico des Cénticos, nos versos «Vem do Libano, minha noiva,/Vem do Libano, vem», o paralelismo no foi quebrado, j4 que 0 imperative (ven) © 0 vocativo (minha nofva) se corres- Pondem na fungdo conativa; a pocsia do Ciintico dos Canticos & mais subtil que 05 manunis... Observamos aqui formas diferentes com idéntico valor, a combinagio da identidade com a diferenga que, como jé notava Edgar Allan Poé, gera a poesia. Encaremos o problema dos géncros gramaticais, Aparentemente no tem qualquer importincia, mas a verdade & que nds repartimos todas as ‘coisas, niio sé os seres animados como os inanimados, pelas categorias do masculino ¢ do feminino, dividimos o mundo segundo esta perspectiva. ‘Quando, na infincia, li os contos de Grimm, onde a Morte assume a figura dum velho, protestei junto de minha mie: «Mas a Morte é uma mulher!» ‘$6 depais aprendi que a palavra Morte (der Tod) & masculina em alemio. Mais tarde, deparou-se-me 0 caso duma tradugia dos poemas de Pasternak em checo. © livro, em russo, intitula-se Sestra moja zhizfi («Minha Irmi, @ Vida»). Mas em checo o vocdbulo que significa «vida» & masculino; © era impossivel traduzir Minha Jrmd, mas igualmente impensavel Mew Jnmio, a Vida. O tradutor, Josef Hora, poeta de clevada craveita, ia dando em doido... Um ditimo exemplo: o poema de Heine (Ein Frohtenhaun steht elnsam [...] Er trdumt von einer Palme...) em que duas irvores isoladas —um pinheito, no Norte, rodeado de neve, ¢ uma palmeira, no Sul, envol- vida no calor meridional — sonbam uma com a outra, exprimem um amor que a distincia ndo permite saciar. Pois bem: traduzido em russo.o poema fica adocicade de mais, um pouco perverso até, porque as palavras que, em russo, designam as duas arvores sio ambas femininas; na versdo francesa © efeito nic é menos estranho, visto que as duas drvores (wt pin solitaire ; un beaw palnier) ém names masculinos; sempre que li esta versio francesa sem explicas%o prévia, os ouvintes acharam-na grotesca... As consideragdes que estou a fazer levantam © problema das relagies entre Linguistica ¢ Poética. Dizin Santo Agostinho que um homem que ndo tem em conta a poesia ¢ ndo compreende a poesia nilo pode arrogar-se a qualidade de gramitico. Estou inteiramente de acordo com esta grande autoridade. Para ser gramitico —hoje dizemos linguista— ¢ preciso conhecer a lingua em todas as suas fungdes, ¢ a funglo podtica é universal, coexiste sempre. Comparece na poesia, onde organiza todas as restantes fungdes (nfo as climina: organiza-as), ¢ na prosa, na linguagem corrente, onde se torna subalterna. Em Santo Agostinho nao esti expressa mas parece implicita uma verdade complementar: niio nos podemos ocupar de poesia sem ter em conta a ciéncia da linguagem. Decerto, hi linguistas que, escravos da matéria verbal, no se mostram sensiveis ao valor estética. Esses, porént, so ox maus linguistas. Adoptando uma atitude mecanicista. ‘escapa-hes a extraordindria ductilidade da linguagem, a grande variedade das fungSes que esta desempenha. Claro, é necessiirio ter o sentido da poesia, saber distinguir na descrigdo lingulstica do texto o que € pertinente ¢ © que nio € pertinente do ponto de vista podtico, Por outro lado, ha criticos ou historiadores da literatura que, indife- rentes & arte verbal, apenas se interessam pela mensagem em si prdpria, pelo que as palavras significam. Mas esses so criticos defeituosos. Como no século XVI ponderava Sir Philip Sidney, um poeta nilo pode me com efeito, sé mente quem faz assergdes, ¢ um pocta no fax assercdes. © que dé valor a um poema, convém insistir, € a relacdo entre sons © sentides, 6 a estrutuca dos significados — problema semiintico, problema Tinguistico no sentido mais amplo do termo.

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