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Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer)

Dissolution of Marriage and Division of Assets (Legal Opinion)

Rui Geraldo Camargo Viana


Advogado. Professor Titular sênior da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo (Largo de São Francisco).
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
advocacia@camargoviana.adv.br

Área do Direito: Família e Sucessões; Societário

Resumo da resposta aos quesitos: A sociedade ‘Y Ltda.’ universal que não implica partilha de bens. Cotas
foi constituída na constância do casamento entre mantidas em mancomunhão entre a separação de
Sr. K e a Consulente no regime da comunhão uni- fato e a partilha, devendo ser partilhados os lucros
versal. As cotas de referida sociedade – ou o pro- distribuídos nesse período. Necessidade de sobre-
duto sub-rogado – compõem o monte partível do partilhar as cotas ou o produto sub-rogado. Con-
divórcio, independentemente do nome do cônjuge clusão: a Consulente, meeira das cotas sociais da
em que estejam tituladas e da prova de esforço co- ‘Y Ltda.’, mantidas em nome do Sr. K, faz jus ao re-
mum. Cessão de cotas entre os cônjuges na vigên- cebimento de 50% (cinquenta por cento) do preço
cia da sociedade conjugal pelo regime da comunhão de alienação.

Sumário: 1. Preâmbulo. 2. Breve síntese dos fatos. 3. Escopo do trabalho. 4. Parecer. 4.1. Do casa-
mento. 4.2. Da dissolução do casamento e do momento da partilha de bens. 4.2.1. Da partilha de
bens e sobrepartilha. 4.2.2. Da mancomunhão. 4.2.3. Dos frutos do patrimônio conjugal. 4.3. O
caso concreto. 5. Resposta aos quesitos.

1. Preâmbulo
Consulta-nos a Sra. xxxx (doravante denominada “Consulente”), representada
por seu procurador xxxx, a respeito dos efeitos do regime da comunhão universal,
do termo final da sociedade conjugal e da partilha de bens.
Para tanto, a Consulente encaminhou-nos os seguintes documentos: (i) Cópia
de f. xxxx dos autos da ação de divórcio, processo xxxx, que tramita na xxxxª Vara
da Família e Sucessões da Comarca de xxxx (continuação da demanda com pedido
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de sobrepartilha); (ii) Cópia de f. xxxx dos autos da ação de tutela de urgência de


natureza cautelar movida pela Consulente em face de xxxx, processo xxxx, que
tramita na xxxxª Vara de Família e das Sucessões da Comarca de xxxx; (iii) Cópia
de fls. xxxx dos autos da ação declaratória, processo xxxx, que tramita na xxxxª
Vara de Família e das Sucessões da Comarca de xxxx.
Além das cópias e documentos apresentados nos processos tivemos acesso, tam-
bém: (iv) à matrícula atualizada xxxx (com o registro da venda feita para ‘C S.A.’);
(v) ao balanço da ‘D S.A.’ encerrado na data de xx.xx.xxxx; e (vi) escritura de com-
pra e venda de imóveis (Livro de Escritura/Procuração n. xxxx, f. xxxx, do xxxxº
Tabelião de Notas da cidade de xxxx).
Entende a Consulente que tem direito à partilha das cotas ou mesmo do produto
sub-rogado (valor de venda) porque a separação de fato ocorreu em momento pos-
terior à sua saída da sociedade (ocorrida no ano de xxxx), quando ainda era casada
com o Sr. K no regime da comunhão total, e por não ter sido feita a partilha das
cotas ou mesmo a venda efetiva quando do divórcio do casal.
A consulta nos é apresentada com os seguintes quesitos, que serão respondidos
ao final:
1. A sociedade ‘Y Ltda.’ (CNPJ xxxx) foi constituída enquanto as partes eram
casadas?
2. O fato de o cônjuge não ser titular de cotas de sociedade constituída na cons-
tância do casamento pelo regime da comunhão universal implica na exclusão do
bem do monte partível?
3. A saída da Consulente da sociedade ‘Y Ltda.’ equivale, para os efeitos legais,
à partilha de bens do casal?
4. Com a separação de fato (extinção do regime de bens do casamento), sem
que tenha havido a prévia partilha de bens, qual é o tratamento jurídico legal para
o patrimônio comum?
4.1. A parte que faz jus ao recebimento de quantia correspondente ao valor das
cotas sociais tem direito de receber os lucros distribuídos?
4.2. As cotas sociais mantidas em nome de um dos cônjuges podem vir a ser
futuramente partilhadas ou liquidadas?
5. O patrimônio líquido negativo de uma sociedade civil significa que ela não
tem valor econômico?
6. A quem deve ser atribuído o ônus da prova de “eventuais ganhos” [e/ou ma-
joração do valor da sociedade constituída pelas partes] que tenham ocorrido após
a separação de fato (fim da sociedade conjugal) do casal?
7. A Consulente faz jus ao recebimento de sua meação em relação às cotas da
‘Y Ltda.’?
De posse da documentação fornecida pela Consulente e daquelas que tivemos
acesso, passamos a análise do caso, conforme escopo da consulta.
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2. Breve síntese dos fatos


A Consulente e o Sr. K (doravante denominado simplesmente “Sr. K”) casa-
ram-se na data de xx.xx.xxxx, tendo adotado o regime da comunhão universal,
passando a Consulente a usar o nome de seu então marido. Dessa união, nasceram
os filhos xxxx (em xx.xx.xxxx) e xxxx (em xx.xx.xxxx), ambos maiores e capazes.
Na constância do casamento foram adquiridos diversos bens e direitos comuns.
Em relação aos bens imóveis adquiridos pelo casal, é fato que foram integralizados
na sociedade ‘BS.A.’ (CNPJ/MF xxxx), cujas cotas sociais foram doadas aos filhos,
reservado o usufruto aos pais. Além dessa sociedade, as partes constituíram outras,
dentre as quais a ‘Y Ltda.’ (CNPJ xxxx) (doravante denominada simplesmente ‘Y’)
(anteriormente denominada de ‘Y Sociedade Simples Ltda.’).
Relata a Consulente que, no mês de xxxx do ano de xxxx, por conveniência do
casal e não porque estavam separados, ela se retirou da ‘Y Ltda.’, cedendo todas as
cotas sociais que detinha ao seu marido sem receber qualquer quantia ou contra-
partida.
Em meados do ano de xxxx a Consulente viajou para os países xxxx e xxxx
em companhia de um dos filhos do casal. Ao retornar, e porque o apartamento do
casal passava por ampla reforma, seu ex-marido Sr. K sugeriu que ela não ficasse na
residência até que fosse finalizada a reforma.
A Consulente, então, hospedou-se na residência de um de seus filhos, retirando
alguns de seus pertences para viabilizar a reforma e aguardando o término da obra
para retornar à residência conjugal. Ocorreu que num determinado momento o Sr.
K teria trocado as fechaduras do imóvel, impedindo o regresso da Consulente ao lar.
Esclarece que, pensando no bem-estar da família e dos filhos, evitando desgas-
tes, não insistiu para retornar à residência conjugal e resolveu não instaurar litígios.
No ano de xxxx o Sr. K ajuizou a ação de divórcio e, na audiência realizada em
xx.xx.xxxx, foi homologado acordo no qual, dentre outras questões, reconheceu-
-se a existência de bens particulares de propriedade da Consulente [sem qualquer
ressalva quanto à existência de bens particulares eventualmente pertencentes ao Sr. K],
e expressamente consignado e ressalvado que as partes, em momento oportuno,
sobrepartilhariam as cotas sociais das empresas constituídas pelo casal.
Em 12.11.2015 a ‘B S.A.’, por ocasião de reunião de sócios, delibera e aprova a
venda de imóveis de propriedade da referida sociedade, em especial a alienação dos
imóveis onde funcionava a ‘Y Ltda.’ (matrículas xxxx, xxxx, xxxx, xxxx e xxxx, do
CRI da cidade de xxxx), pelo preço total de R$ 36.000.000,00 (trinta e seis milhões
de reais).
A venda desses imóveis foi concretizada por escritura pública (lavrada no xxxxº
Tabelião de Notas da cidade de xxxx, Livro xxxx, folha xxxx, na data de xx.xx.
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xxxx) prenotada nas respectivas matrículas na data de xx.xx.xxxx. O preço da


venda dos imóveis antes integralizados na sociedade ‘B S.A.’, cujas cotas eram usu-
fruídas pelo casal, foi partilhado entre a Consulente e o Sr. K.
Sem que tenha sido feita a prévia partilha das cotas sociais da ‘Y Ltda.’ ou mesmo
que a Consulente tivesse participado da negociação para viabilizar o recebimento
de sua meação, o Sr. K, na data de xx.xx.xxxx, assina a alteração do contrato social
da ‘Y Ltda.’, cedendo onerosamente as cotas que detinha para ‘C S.A.’ (CNPJ/MF
xxxx), que, no mesmo ato, cedeu uma cota para ‘D S.A.’ (CNPJ/MF xxxx).
Dos Balanços encerrados na data de xx.xx.xxxx da ‘C S.A.’ e da ‘D S.A.’ consta
a assunção das cotas da ‘Y Ltda.’ pelas Companhias em xx.xx.xxxx, por instru-
mento particular de compra e venda, sendo que o laudo de aquisição foi elaborado
por empresa independente, apresentando ágio de R$ 76.560.000,00 (setenta e seis
milhões quinhentos e sessenta mil reais) e mais valia de ativos intangíveis e força
de trabalho no montante de R$ 18.307.000,00 (dezoito milhões trezentos e sete
mil reais). Consta, também, que as Companhias assumiram obrigações contratuais
referentes à ‘Y Ltda.’ de R$ 11.500.000,00 (onze milhões e quinhentos mil reais).
Em razão da venda das cotas sem a prévia partilha de bens, a Consulente, em
xx.xx.xxxx, notificou a ‘C S.A.’ com o objetivo de “sustar a formalização do negó-
cio pelo registro da aquisição, visando equacionar todos os interesses envolvidos”.
A ‘C S.A.’, por sua vez, contranotificou-a em xx.xx.xxxx, esclarecendo que ad-
quiriu as cotas do Sr. K na condição de divorciado e, ainda que assim não fosse,
desnecessária a outorga do outro cônjuge na venda de bens móveis. Finalmente,
disse que elaborou estudo detalhado com a análise de todos os documentos rela-
cionados ao Sr. K e a sociedade e não constatou nada que pudesse desabonar ou
prejudicar o negócio.
Em adição, a Consulente, em xx.xx.xxxx, enviou nova notificação solicitando
cópia do documento elaborado e, para evitar prejuízos, que fosse retido todo e
qualquer pagamento ainda pendente ao Sr. K.
A Consulente, em xx.xx.xxxx, deduziu pretensão de sobrepartilhar o produto
das cotas sociais da ‘Y Ltda.’ nos autos da ação de divórcio e, visando bloquear a
quantia já recebida pelo Sr. K e ter conhecimento do negócio firmado entre ele e ‘C
S.A.’, ajuizou em xx.xx.xxxx ação de tutela de urgência de natureza cautelar.
O Sr. K, por sua vez, ajuizou em xx.xx.xxxx ação declaratória na qual visa o
reconhecimento judicial da data de separação de fato do casal como sendo no mês
de xxxx do ano de xxxx e, também, a exclusão de toda e qualquer pretensão de
partilha das cotas ou do produto da venda das cotas da ‘Y Ltda.’.
A audiência de tentativa de conciliação realizada nos autos da ação declaratória
foi infrutífera.
Essa é a síntese que interessa para o presente parecer.
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3. Escopo do trabalho
Como dito, quando do divórcio, as partes reconheceram a incomunicabilidade de
alguns bens, partilharam outros e expressamente relegaram para sobrepartilha, den-
tre outros, a discussão quanto às participações nas empresas das quais eram sócios.
Dentre essas empresas encontra-se a ‘Y Ltda.’. Entende a Consulente que tem
direito à partilha das cotas ou mesmo do produto da venda.
O Sr. K, no entanto, sustenta o contrário, alegando, resumidamente, que a Con-
sulente deixou o quadro societário da empresa no ano de xxxx – oportunidade em
que teria recebido seus haveres –, mesmo ano em que teria ocorrido a separação de
fato do casal; que na ocasião o balanço da empresa era deficitário e foi com o esfor-
ço exclusivo do Sr. K que a empresa se recuperou; tudo a tornar incomunicável o
valor econômico das cotas (e seus acréscimos).
Como já mencionado, três demandas originaram-se diante dessa controvérsia:
(i) continuação (pedido de sobrepartilha) da ação de divórcio; (ii) ação de tutela de
urgência de natureza cautelar movida pela Consulente em face do Sr. K; e (iii) ação
declaratória na qual o Sr. K pretende seja fixada a data da separação de fato e, ainda,
que a Consulente não tem direito ao recebimento de qualquer quantia decorrente
da venda da ‘Y Ltda.’.
Interessa particularmente aos fins do presente Parecer pontuar os efeitos da
separação de fato e a natureza jurídica dos bens não partilhados, mais especifica-
mente sobre a obrigatoriedade ou não de o ex-casal sobrepartilhar as cotas – ou o
produto sub-rogado – da empresa ‘Y Ltda.’.
Passemos à análise do caso.

4. Parecer
4.1. Do casamento
A família é uma realidade que, por questões organizacionais de uma sociedade,
necessita atenção e normas que a regulem, seja em relação aos indivíduos integran-
tes, seja em relação à ordem social.
No Estado Democrático Brasileiro, a família, conforme disposição inserta no
artigo 226 da Constituição Federal (CF), é considerada como base da sociedade e
tem especial proteção do Estado.
Até não muito tempo, pensava-se em família como a união de um homem e
uma mulher, unidos pelo laço do casamento. É certo que, hodiernamente, diversas
mudanças na família surgem numa sociedade agora globalizada: novos modelos
familiares, igualdade de gênero, filiação socioafetiva, exercício do poder familiar,
entre outros.
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Essas mudanças e o pluralismo das entidades familiares são bem retratados no


artigo do Desembargador Jones Figueirêdo Alves, intitulado “A família no contexto
da globalização e a socioafetividade como seu valor jurídico fundamental”1, no
qual ressalta:

A afetividade tem conduzido o direito de família à sua maior dimensão exis-


tencial, axiologicamente hierarquizada como valor jurídico, e cuja concretude
tem se prestado a demonstrá-la como função essencial da nova família, a família
contemporânea.
Em pensamento pós-moderno, o âmbito da família tem, por isso mesmo, novas
composições, pelo seu atual modelo plural, não monolítico ou nuclear, de forte
conteúdo solidarista e igualitário, em leitura da repersonalização de seus inte-
grantes.
Segue-se, daí, que o rol familiar não poderá mais ser taxativo, em lei, a partir
da família expressamente constituída pelo casamento, com acepção em apenas
e somente duas realidades: como família nuclear estrita, formada pelo casal sem
filhos, e como família nuclear consolidada, esta acrescida pela prole.
A própria Lei começa a consignar outras entidades familiares socialmente consti-
tuídas, como famílias monoparentais ou as formadas por uniões de fato. Diferentes
outras estruturas interpessoais têm sido admitidas juridicamente como famílias,
em visão pluralista conforme, delineando um novo álbum de família, a exemplo
das advenientes de (I) posse de estado de filho, (ii) das uniões concubinárias,
(iii) das unidades parentais sem chefia, como no grupo de irmãos ou (iv) das
pessoas sozinhas, solteiras ou viúvas, famílias single, a cuja configuração a ju-
risprudência brasileira vem recepcionar nos fins da proteção do bem de família.
E mais outras famílias são possíveis, como as reconstituídas, com prole de uniões
anteriores do casal, ou as fissionais, entendidas na Itália como entidade familiar
experimental, formada por pessoas denominadas celibertárias, cuja unidade de
convivência resume-se aos fins de semana ou períodos de lazer e viagem.
[...]
De fato, efetivamente, um imenso mosaico de novas entidades familiares, com
implicações jurídicas específicas, coloca-se presente.
A esse propósito, Lei brasileira, a de n. 12.010/2009, alterando o Estatuto da
Criança e do Adolescente e outras leis, carrega consigo a proclamação da família
extensa, conceituando-a como aquela que se reconhece existente e identificada,
pelas suas relações, com os característicos de vínculos da afinidade e da efetivi-
dade.

1. ALVES, Jones Figueirêdo. A família no contexto da globalização e a socioafetividade como


seu valor jurídico fundamental. In: CASSETTARI, Christiano (Coord.). 10 Anos de Vigên-
cia do Código Civil Brasileiro de 2002: estudos em homenagem ao Professor Carlos Alberto
Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 545-546.
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Não obstante a diversidade de entidades familiares, interessa ao presente Pare-


cer a família casamentária, que não está pautada somente na afetividade (respeito,
amor, afeto, preocupação recíproca), mas da qual emanam os deveres dos cônjuges
que estão submetidos aos cogentes regramentos estatais, inclusive quanto ao regi-
me de bens.

Casamento é um negócio jurídico complexo, com regras especiais na sua for-


mação, constituindo, ainda, uma instituição quanto ao conteúdo e um contrato
especial quanto à formação (teoria eclética ou mista). Desse modo, o casamento
gera efeitos jurídicos amplos, trazendo deveres para ambos os cônjuges que pre-
tendem essa comunhão plena de vida. Esses efeitos e deveres estão no plano da
eficácia do casamento, situando-se no terceiro degrau da “Escada Ponteana”.2

O casamento constituir-se-á pela união livre e formal de dois indivíduos (socie-


dade conjugal), visando à dignificação de seus integrantes.
A família casamentária tem por finalidade, na lição de Silvio Rodrigues3, “a)
disciplinação das relações sexuais entre os cônjuges; b) proteção à prole; c) mútua
assistência”.
Afirma, ainda, o autor que:

Por meio do matrimônio e estabelecendo a sociedade conjugal, propõem-se os


cônjuges a se unirem para enfrentar o porvir. Dentro dessa união satisfazem ao
desejo sexual que é normal e inerente à sua natureza; a aproximação dos sexos e
o natural convívio entre marido e mulher, ordinariamente, suscitam o desenvol-
vimento de sentimentos afetivos recíprocos, dos quais o dever de se prestarem
mútua assistência é mero corolário; da união sexual resulta a prole, cuja sobrevi-
vência e educação reclama a atenção dos pais. Assim, aqueles fins do casamento
estão intimamente ligados à natureza humana. Aliás, esse comportamento dos
pais em relação aos filhos, e do homem diante da mulher e vice-versa, manifesta-
-se de maneira constante e reiterada através de séculos e séculos. Dizer que o fim
do casamento é alcançar, dentro da instituição, aquilo que parecer ser a vocação
do ser humano é apenas repetir o que a história revela.

O casamento estabelece comunhão plena de vida, com igualdade de direitos e


deveres entre os cônjuges (CC, art. 1.511 c/c 1.5664 e CF, art. 226, § 5º), solidarie-

2. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil: direito de família. 5. ed. São Paulo:
Método, 2010. v. 5. p. 108.
3. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 27. ed. atual. por Francisco José Cahali, com anotações
ao novo Código Civil (Lei  10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2000. v. 6. p. 22-23.
4. São deveres de ambos os cônjuges: (a) fidelidade recíproca (inc. I); (b) vida em comum,
no domicílio conjugal – débito e crédito conjugal (inc. II); (c) mútua assistência (inc.
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dade e cumplicidade essa que se reflete no plano imaterial5 e material6 (patrimo-


nial). Visa, também, a dignificação de seus integrantes.
Além dos direitos e deveres enumerados pela Lei, Yussef Said Cahali7 (2005,
p. 57), valendo-se das lições de Carbonnier, ensina que:

São deveres “implicitement attachés aumariage”, de que fala Carbonnier: não é


a Lei que os estabelece, mas a moral conjugal segundo um modelo de conduta
social conceitualmente exigível. Assim, por exemplo, o dever de sinceridade, o
dever de tolerância, o dever de manter com o outro cônjuge uma certa comunhão
espiritual, o dever de velar pela própria honra a fim de não atingir, com o seu
comportamento e por via indireta, a honra do companheiro, seu sócio solidário.

Quanto ao regime de bens, a Lei Civil permite aos cônjuges a escolha dentre


os quatro regimes de bens existentes, ou a criação de outro, desde que respeitadas
algumas regras cogentes, da forma que melhor aprouver aos cônjuges.
Nesse sentido, ensina Rolf Madaleno que:

A Lei civil permite aos cônjuges e conviventes a escolha de um entre os quatro


regimes de bens existentes para regrar o lastro econômico destas entidades fami-
liares. Com a constituição da família pelo casamento ou através da união estável
tem-se a formação de uma unidade jurídica, titular do domínio dos bens que
compõem o seu patrimônio, este compreendido pela massa de bens do par afeti-
vo e que não se confundem com os bens particulares e individuais dos cônjuges,
salvo tenha o casal optado pelo regime da comunhão universal de bens, para
assim incluir no acervo da unidade de afeto também os aprestos. Desse modo,
enquanto vigente a sociedade conjugal, as normas referentes aos regimes de bens
são imperativas e restringem a vontade dos cônjuges, cuja liberdade na modifica-
ção do regime matrimonial deve atender às prescrições do § 1º, do artigo 1.639
do Código Civil, dependendo da mudança de autorização judicial, em pedido

III); (d) sustento, guarda e educação dos filhos (inc. IV); (e) respeito e consideração
mútuos (inc. V).
5. A título de esclarecimento, vale destacar os seguintes: fator de identificação social
(art. 1.565, CC), vínculo de afinidade (art. 1.525 CC), emancipação do cônjuge menor de
idade (art. 5º, parágrafo único, inc. II, CC), adoção do nome do cônjuge (art. 16 e 1.565,
§ 1º, CC), fixação de domicílio (art. 1.569, CC).
6. Os efeitos materiais decorrentes do casamento são: regime de bens entre os cônjuges e entre
estes e terceiros (art. 1.639 e ss., CC), assistência material mútua e recíproca (art. 1.568),
direito hereditário ao cônjuge sobrevivente (art. 1.829, CC), vantagens previstas na legis-
lação de servidores, da assistência e previdência.
7. CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. 11. ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o Có-
digo Civil de 2002. São Paulo: ed. RT, 2005.
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motivado de ambos os consortes, apurando o juiz a procedência das razões invo-


cadas e ressalvados os direitos de terceiros.8

A Consulente e Sr. K casaram-se em xx.xx.xxxx, pelo regime da comunhão uni-


versal (CC, art. 1.667), que, como cediço, caracteriza-se pela comunicação de to-
dos os bens dos cônjuges – particulares ou não –, sendo cada qual titular da metade
ideal (meação), ressalvadas apenas as exceções do art. 1.668 do CC.

Historicamente, a comunhão universal foi o regime legal adotado no direito brasi-


leiro até o advento da Lei do Divórcio, em 1977. Sua origem histórica remonta ao
direito medieval francês, com as chamadas comunhões tácitas, por meio das quais
grupos sociais passam a ter unidade econômica própria. O direito português filipino
previa, no silêncio das partes, o regime de bens então chamado de carta à metade,
por meio do qual o patrimônio do casal incorporava todos os bens de cada um de-
les. Comunicam-se, no regime de bens em apreço, todos os bens adquiridos antes e
depois do casamento, assim como as dívidas e os frutos dos bens incomunicáveis.9

No mesmo sentido é o escólio de Milton de Paulo Carvalho Filho, ao comentar


o artigo 1667 do Código Civil:

O regime da comunhão universal era o regime legal do ordenamento brasileiro,


até o advento da Lei do Divórcio em 1977, quando o regime da comunhão parcial
de bens passou a ocupar essa condição. [...] O regime da comunhão universal
deverá ser adotado pelos nubentes por meio da lavratura de pacto antenupcial
e caracteriza-se pela integração total do patrimônio particular de cada cônjuge
com o comum, constituindo um acervo único em que ambos são titulares de
metades ideais (meação), ressalvadas as exceções do art. 1.668.10

E ainda:
Por meio do pacto antenupcial, os nubentes podem estipular que o regime matri-
monial de bens será o da comunhão universal, pelo qual não só todos os seus bens
presentes ou futuros, adquiridos antes ou depois do matrimônio, mas também
as dívidas passivas tornam-se comuns, constituindo uma só massa. Instaura-se
o estado de indivisão, passando a ter cada cônjuge o direito à metade ideal do
patrimônio comum, logo, nem mesmo poderão formar, se quiserem contratar,
sociedade entre si (CC, art. 977).11

8. MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 186-187.
9. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. São Paulo: ed. RT, 2006. v. 5. p. 173.
10. CARVALHO FILHO, Milton de Paulo. Código Civil comentado. 4. ed. Barueri: Manole,
2010. p. 1873-1874.
11. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 22. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007. v. 5. p. 170.
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Segundo Pontes de Miranda, os princípios fundamentais da comunhão univer-


sal são os seguintes:

I – Tudo que há e que entra para o acervo dos bens do casal fica indistintamente,
como se fora possuído ou adquirido, ao meio, por cada um: os bens permanecem
indiviso na propriedade unificada dos cônjuges, a cada um dos quais pertence me-
tade imaginária que só se desligará da outra quando cessar a sociedade conjugal.
II – Tudo que cada cônjuge adquire se torna comum no mesmo momento em que
se operou a aquisição: é o casal, e não ele, que adquire. [...] Não seria erro dizer-
-se que o cônjuge, quando adquire, é “como” procurador do casal [...].
III – Os cônjuges são meeiros em todos os bens do casal, ainda que um deles
nada trouxesse, ou nada adquirisse, na constância da sociedade conjugal [...]. A
situação dos cônjuges é a de verdadeiros comunheiros ou societários, razão por
que – dissolvida a sociedade conjugal – se procede à divisão dos bens pela ação
de partilha.12

Apesar de o casamento da Consulente com o Sr. K ter ocorrido sob a égide do


Código Civil de 1916, certo é que a separação de fato e o divórcio se deram sob a
égide do Código Civil de 2002, que será a norma considerada no presente Parecer.
E o regramento atual (Código Civil de 2002) traz em seu artigo 1.668 o rol de
bens incomunicáveis, rol esse que é taxativo, de modo que todos os bens móveis ou
imóveis que não estejam nele previstos deverão ser partilhados com a dissolução
do vínculo conjugal.13

4.2. Da dissolução do casamento e do momento da partilha de bens


A sociedade e o vínculo conjugal, atualmente, podem ser dissolvidos concomi-
tantemente pelo divórcio, nos termos do art. 1.571 do CC e do art. 226, § 6º, da CF
(com a nova redação dada pela Emenda Constitucional 66/2010).
Afora a separação e o divórcio, a sociedade conjugal também termina pela morte
de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, sendo, inclusive,
aplicada a presunção da morte para efeitos de dissolução do casamento.
Inexiste na legislação civil brasileira previsão de ser a separação de fato meio de
dissolução da sociedade conjugal.

12. PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito de família. Atual. por Vilson Rodrigues. São
Paulo: Bookseller, 2001. v. II. p. 230-232.
13. “Os bens afastados da comunhão vêm discriminados expressamente. De modo que todos os
não incomunicáveis e não excluídos consideram-se comuns. Constituem os bens residuais,
não mencionados no art. 1.668 (art. 263 do Código anterior)” (RIZZARDO, Arnaldo. Direi-
to de família: Lei 10.406, de 10.01.2002. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 644).
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
Ensaios e Pareceres 245

Por separação de fato, entenda-se “o estado existente entre os cônjuges caracte-


rizado pela suspensão, por ato ou iniciativa de um ou de ambos os cônjuges, do re-
lacionamento sexual, ou coabitação entre eles, sem qualquer provimento judicial”
(Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 77.204).
Nas palavras de Orlando Gomes:

Separação de fato é a cessão da vida em comum dos cônjuges sem intervenção


do juiz. Configura-se pela conjunção de dois elementos, um objetivo, ou outro
subjetivo. O elemento objetivo é a própria separação, passando os cônjuges a
viver em tetos distintos, deixando, por outras palavras, de cumprir o dever de
coabitação, no mais amplo sentido da expressão. O elemento subjetivo é o ani-
mus de dar como encerrada a vida conjugal, comportando-se como se o vínculo
matrimonial fosse dissolvido. (Direito de família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999. p. 303).

Não obstante, está superada a discussão acerca dos efeitos que a separação de
fato produz, quer seja em relação a obrigações próprias do matrimônio (coabitação,
fidelidade, mútua assistência, etc.), quer seja em relação às repercussões patrimo-
niais decorrentes do casamento.
No plano dos interesses materiais, a separação de fato cessa o regime de bens,
passando a pertencer a cada cônjuge, particularmente, os bens adquiridos após a
desunião:

O fim da vida em comum leva à cessação do regime de bens, independentemente


do regime adotado, porquanto já ausente o ânimo socioafetivo, real motivação da
comunicação patrimonial. Esse é o momento de verificação dos bens para efeitos
de partilha.14

É da data da separação de fato que põe fim ao regime de bens. A partir de então, o
patrimônio adquirido por qualquer um dos cônjuges não se comunica, embora não
tenha sido decretada a separação de corpos, nem oficializada a separação de direito.15
“É a separação de fato que rompe, necessariamente, o casamento, inclusive o
regime de bens.”16
Como consequência do rompimento da sociedade conjugal, é colocado um ter-
mo final no regime de bens do casamento. Isso não implica, entretanto, partilha de
bens, que pode ser relegada para um momento posterior e oportuno.

14. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: ed. RT, 2009. p. 277.
15. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Op. cit., p. 191.
16. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2010.
p. 32.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
246 Revista de Direito Civil Contemporâneo 2018 • RDCC 16

Nesse sentido, Rolf Madaleno17 ensina que:


Desfeita a sociedade conjugal, desaparece o regime de bens e os sócios conjugais
têm a opção de promoverem com o seu processo de separação legal a partilha dos
seus bens. A partilha corresponde à divisão do patrimônio do casal, de acordo com
o regime convencionado, e se eleito regime de mancomunhão a separação estabe-
lece o direito à meação na dimensão projetada pelo regime patrimonial eleito, nela
incluindo aquestos e aprestos, ou só aquestos onerosamente adquiridos.
[...]
Parece certo concluir não ser exigência essencial da separação legal-consensual a
partilha dos bens, porque ela pode ser relegada para outro momento, inclusive di-
verso da posterior conversão da separação em divórcio. Certamente a realização da
partilha juntamente com a separação consensual evitaria o retorno dos separandos
para uma nova rodada processual, e também evitaria eventuais atritos futuros, ao
cuidar de inserir a partilha dentre as cláusulas da separação amistosa. Contudo, não
pode ser perdido de vista ser a partilha, às vezes, a fonte de atrito a dificultar o con-
junto de ajustes da separação amigável, pelas mais variadas razões, passando por
fatos comuns, como o de ser o único bem conjugal aquele exatamente constituído
do domínio familiar, ainda com financiamento hipotecário, cuja circunstância não
impede a partilha da economia. Mas vínculos conjugais de maior complexidade
também travam a imediata divisão do acervo conjugal, especialmente quando en-
volvem sociedades empresariais e atividades econômicas que não recomendam a
imediata divisão dos bens, encontrando-se os separandos na dependência de ava-
liações, auditorias em empresas, na coleta de elementos e informes cujo levan-
tamento pericial irá fornecer a exata noção do valor de seu lastro matrimonial,
podendo postergar para uma segunda fase a divisão de seu acervo comum.

A separação de fato, por óbvio, não implica em não partilhar os bens adquiridos
na constância do casamento, ainda que a partilha seja relegada para um momento
posterior.

4.2.1. Da partilha de bens e sobrepartilha


Pode ocorrer, tal qual a hipótese ora analisada, que os cônjuges, separados de
fato, não promovam imediatamente a separação judicial ou mesmo o divórcio e,
quando decidam fazê-lo, releguem a divisão de bens comuns para um momento
posterior, ou seja, para partilha ou mesmo para sobrepartilha.
“Nada obsta que, havendo demanda entre os cônjuges sobre a questão da divisão
do patrimônio conjugal, a partilha se dê em juízo sucessivo, ou melhor ulterior à
decretação da separação judicial.”18

17. MADALENO, Rolf. Op. cit., p. 187-188.


18. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 309.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
Ensaios e Pareceres 247

Isso porque a partilha de bens não é elemento obrigatório para o divórcio, que
pode ser concedido independentemente da divisão do patrimônio comum amea-
lhado durante o casamento (CC, artigo 1.581).
Essa questão, inclusive, já é objeto da Súmula 197 do Superior Tribunal de Jus-
tiça: “O divórcio direto pode ser concedido sem que haja partilha prévia de bens”.
Portanto, como dito, conquanto a separação de fato ponha um termo final no re-
gime de bens, sua extinção só se dará com a efetiva partilha do acervo pertencente
ao casal, atribuindo-se a cada cônjuge sua respectiva meação.
Tanto isso é verdade que Rolf Madaleno19, na obra já citada, ensina que:

Só se poderá cogitar a extinção sacramental do direito à partilha por conta da


meação conjugal se cada cônjuge tiver efetivamente recebido os bens que com-
põem a sua metade conjugal, salvo se tenham clara e expressamente renunciado
à meação, sendo pagos os tributos pelo destinatário da cessão dos direitos inci-
dentes sobre a meação cedida ou renunciada.
Enquanto não processada a partilha os cônjuges permanecem infinitamente co-
mo meeiros de seus bens conjugais, independentemente de haverem alcançado a
separação legal ou o divórcio.
Na seara dos regimes de comunhão, nem o silêncio e nem a contraditória pro-
núncia de inexistência de bens conjugais servem para operar como manifestação
de vontade, com força capaz de negar ou obstar a posterior partilha dos bens co-
muns e comunicáveis. A simples omissão ou mesmo a noção inexata sobre regi-
me de bens, ou sobre sua possível existência, não importa em renúncia à meação,
sendo imprescritível o direito à meação até a efetiva realização da partilha, ou até
a expressa renúncia ou cessão da meação, para daí sacramentar e formalizar a
divisão dos bens nupciais.

Note-se, por necessário, que na vigência do regime matrimonial o direito à mea-


ção, além de imprescritível, “não é renunciável, cessível ou penhorável” (CC/02,
art. 1.682).
Rolf Madaleno20, citando Iruzubieta, afirma que:

[T]rata-se de um princípio de ordem pública que não pode ser contrariado pela
vontade das partes e, portanto, não pode o cônjuge renunciar ao direito de perce-
ber a metade de seus ganhos aquestos, por conta da dissolução de sua sociedade.
Também não pode ceder esse direito (pois estaria renunciando), nem terceiros
podem se servir da meação para satisfação de créditos executivos. Porém, nada
impede a sua doação ou cessão depois da adjudicação do cônjuge, conquanto não
prejudique os herdeiros necessários.

19. MADALENO, Rolf. Op. cit., p.191-192.


20. Idem, p. 600.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
248 Revista de Direito Civil Contemporâneo 2018 • RDCC 16

Tem-se, portanto, que pode haver separação (de fato, judicial ou extrajudicial)
sem a prévia partilha de bens ou mesmo o divórcio sem que as partes atribuam uma
a outra a respectiva meação, relegando a partilha para momento posterior.
Pode ocorrer, ainda, a partilha parcial dos bens por ocasião da separação e do
divórcio, deixando para um momento posterior a finalização da divisão do patri-
mônio comum. Fala-se, nesse caso, em sobrepartilha de bens.
A sobrepartilha normalmente é utilizada caso os bens estejam em locais remo-
tos, sejam litigiosos ou de difícil ou demorada liquidação, ou mesmo nas hipóteses
em que existam bens cujo conhecimento só se dá após a partilha, em especial, os
sonegados (CC, art. 2.021 e 2.022).
Para a sobrepartilha, é necessária a abertura de nova divisão, incluindo-se os
bens que “ficaram de fora” quando efetivada a partilha. Nesse sentido:

Sobrepartilha subsequente à separação judicial convertida em divórcio. Bens (ações


de companhias de telefonia) omitidas na partilha. Provada a existência dos títulos,
que não foram considerados na partilha, e nada se provando que pudesse afastar
a presunção de que, tendo sido adquiridos na constância do casamento, a ambos
os ex-cônjuges pertencem, de se deferir a sobrepartilha, meio a meio. Sentença
confirmada. Apelação do ex-marido a que se nega provimento (Apelação 0031201-
-11.2011.8.26.0071; relator(a): Cesar Ciampolini; Comarca: Bauru; Órgão julga-
dor: 10ª Câmara de Direito Privado; j. 10.05.2016; Data de registro: 11.05.2016).

No caso ora analisado, verifica-se que, na audiência em que fora homologado o


acordo de divórcio, as partes reconheceram a incomunicabilidade dos bens adqui-
ridos pela Consulente após o término da sociedade conjugal, o Sr. K “abriu mão”
de sua participação na empresa ‘W Ltda.’, estabeleceu-se o condomínio na casa de
praia situada em xxxx e foi expressamente consignado que as partes discutiriam
pelas vias próprias eventuais alienações de bens comuns e participações societárias.
Inexiste renúncia manifestada pela Consulente quanto à partilha de quotas das
empresas do casal; e, se ela fosse existente, deveria ser interpretada restritivamente
(CC, art. 114).
Os bens relegados para sobrepartilha, portanto, foram os bens litigiosos (even-
tuais alienações de bens comuns para terceiros) e de difícil ou morosa quantifica-
ção ou liquidação (as participações societárias).

4.2.2. Da mancomunhão
Antes da partilha, o patrimônio continua a pertencer, em comum, aos cônjuges,
sem possibilidade de disposição, distinção ou preferência, sendo certo que nenhum
deles poderá alienar ou gravar direitos derivados desse patrimônio indiviso até que
ultimada a partilha.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
Ensaios e Pareceres 249

Trata-se da mancomunhão, regime sui generis que nos dizeres de Rodrigo da


Cunha Pereira21:

[É] a expressão que define o estado dos bens conjugais antes da sua efetiva par-
tilha. Difere do estado condominial, em que o casal detém o bem ou coisa si-
multaneamente, com direito a uma fração ideal, podendo alienar ou gravar seus
direitos, observando a preferência do outro.

Tem-se, portanto, que da separação de fato, até que ocorra a partilha ou mesmo
a sobrepartilha, o patrimônio comum subsiste, prevalecendo o regime de manco-
munhão, independentemente de sua titularidade: “É certo que, enquanto não rea-
lizada a partilha, subsiste de fato a sociedade conjugal no que concerne aos efeitos
patrimoniais do casamento, em consonância com o regime matrimonial de bens
em extinção.”22
Nesse sentido já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça, pontuando que:

A comunhão resultante do matrimonio difere do condomínio propriamente dito,


porque nela os bens formam a propriedade de mão comum, cujos titulares são
ambos os cônjuges. Cessada a comunhão universal pela separação judicial, o
patrimônio comum subsiste enquanto não operada a partilha.23

Na mancomunhão os bens não pertencem a cada um dos cônjuges em metades


ideias: pertencem ao casal (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito de família, atua-
lizado por Vilson Rodrigues, Campinas, Bookseller, 2001, p. 230, apud rel. Antonio
Vilenilson, TJSP, A.C. 248.610.4/8). Integram um patrimônio, ou seja, um complexo
de relações jurídicas, contendo ativos e passivos. Disso decorre a distinção com o con-
domínio, onde há a possibilidade de disposição de parte ideal da coisa.

4.2.3. Dos frutos do patrimônio conjugal


A permanência do patrimônio em estado de mancomunhão, com a utilização
exclusiva por apenas um dos proprietários, além de eventualmente gerar uma si-
tuação de desigualdade porque apenas um deles usufruir do bem, permite àquele
que não o utiliza receber os frutos e rendimentos.

21. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São
Paulo: Saraiva, 2015. p. 447.
22. CAHALI, Youssef Said. Op. cit., p. 735.
23. REsp 3710/RS, rel. Min. Antônio Torreão Braz, 4ª T., j. 21.06.1996, DJ 28.08.1995, p. 26636.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
250 Revista de Direito Civil Contemporâneo 2018 • RDCC 16

Separado o casal, modo frequente, fica o patrimônio na posse de somente um dos


cônjuges. Sendo dois os titulares e estando somente um usufruindo o bem, im-
positiva a divisão de lucros ou o pagamento pelo uso, posse e gozo. Reconhecer
que a mancomunhão gera um comodato gratuito é chancelar o enriquecimento
injustificado. Assim, mesmo antes da separação judicial e independentemente
da propositura da ação de partilha, cabe impor o pagamento pelo uso exclusivo
de bem comum.24

Em se tratando de sociedade empresarial, o divorciando que não aufere direta-


mente os lucros dela advindos tem o direito de receber a sua participação nos re-
sultados no período que sucedeu a separação de fato até a efetiva partilha das cotas
e/ou apuração de seus haveres e/ou liquidação da sociedade.
Essa conclusão decorre da exegese do CC, art. 1.027, o qual prevê que o cônjuge
separado concorrerá “à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”.
Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira25 ensina que:

É comum o casal dissolver a sociedade conjugal e não dissolver a sociedade patri-


monial. Enquanto não se partilha dos bens, é comum também que o patrimônio,
ou pelo menos a maior parte dele, fique sob a administração e domínio de apenas
um dos ex-cônjuges. Neste caso, se não houver o acordo sobre a relação condo-
minial que se estabeleceu pós dissolução do vínculo conjugal, e até que se efetive
a partilha, já que esta costuma significar anos e anos de litígio, é possível que se
faça a cobrança dos frutos das propriedades comuns de acordo com o regime de
bens.

Em hipótese parecida, o Tribunal de Justiça de São Paulo já determinou a dis-


tribuição de metade dos lucros e dividendos. Nesse sentido, vide AC 1006419-
-63.2014.8.26.0637, rel. Carlos Alberto Garbi, Comarca: Tupã, órgão julgador: 2ª
Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 19.09.2016; data de registro: 22.09.2016.

4.3. O caso concreto


No caso concreto, tem-se que a ‘Y Ltda.’ foi constituída na data de xx.xx.xxxx,
entre o casal Sr. K e a Consulente, na constância do casamento (celebrado em
xx.xx.xxxx) em regime da comunhão universal.
A constituição deu-se em partes iguais (50% para cada um, ainda sob a égide do
Código Civil de 1916), tendo como objeto social a exploração do ramo xxxx, com
capital social constituído por 100 cotas no valor nominal de CZ$ 100.000,00 (cem
mil cruzados), metade integralizado e a outra metade a integralizar.

24. DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 301.


25. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. Op. cit., p. 151.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
Ensaios e Pareceres 251

A subsequente alteração do contrato social é datada de xx.xx.xxxx, na qual,


além das adequações ao Código Civil de 2002, houve a cessão das cotas antes de-
tidas pela Consulente, ainda casada, residente e domiciliada no mesmo endereço que
o Sr. K pelo regime da comunhão universal: 49 (quarenta e nove) cotas foram atri-
buídas ao sócio remanescente, seu marido Sr. K, e 1 (uma) cota atribuída ao sócio
ingressante, Sr. L.
Na data de xx.xx.xxxx houve nova alteração do contrato social simplesmente
para modificar a denominação social da ‘Y Ltda.’ e o endereço da sede social. Em
xx.xx.xxxx ocorreu mais uma alteração do contrato social, desta vez para o fim de
adequar o objeto social às atividades que já eram exercidas, atualizando novamente
o endereço da sede.
Aos xx.xx.xxxx – ato contínuo ao divórcio, ocorrido em xx.xx.xxxx –, há mais
uma alteração do contrato social, na qual o Sr. K, agora na qualidade de divorciado,
recebe a cota antes cedida ao Sr. L e a sociedade se torna unipessoal pelo prazo
máximo de 180 (cento e oitenta) dias.
Finalmente, em xx.xx.xxxx, ocorre a transferência onerosa das cotas do Sr. K
para a ‘C S.A.’ que, ato contínuo, cedeu uma cota para ‘D S.A.’, adequando as dis-
posições sociais aos seus interesses.
Da síntese ora exposta (constituição e alterações), conclui-se que a sociedade
foi constituída (xx.xx.xxxx) na constância do casamento (xx.xx.xxxx) entre os
cônjuges, casados pelo regime da comunhão universal, anteriormente à vedação do
CC/2002, art. 977. De todas as alterações em nenhuma delas há aporte, aumento
ou modificação do capital social com a integralização, seja a que título for.
O art. 977 do Código Civil de 2002 veda a sociedade dos cônjuges casados na
comunhão universal entre si ou com terceiros. Essa vedação, no entanto, não en-
contra correspondente no CC/1916 e não atingiu as sociedades constituídas antes
da vigência do novo Código, em respeito ao princípio constitucional do ato jurídi-
co perfeito (art. 5º, XXXVI, CF).
Nesse sentido o Parecer DNRC/COJUR 125/03, segundo o qual a proibição não
atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor
do Código Civil de 2002, e alcança, tão somente, as que vierem a ser constituídas
posteriormente. Igual entendimento foi aprovado na III Jornada de Direito Civil
promovida pela Justiça Federal (Enunciado 204).
Analisando as alterações sociais da ‘Y. Ltda.’ verifica-se, como dito, que o capital
social se manteve inalterado [a sociedade foi constituída com 100 cotas e transferidas
as mesmas 100 cotas sociais] desde sua constituição até a venda das cotas, inexistin-
do qualquer aporte de capital e/ou modificação do objeto social.
Trata-se, evidentemente, de sociedade empresária que, embora constituída por
profissionais liberais, possui o caráter empresarial.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
252 Revista de Direito Civil Contemporâneo 2018 • RDCC 16

Vejamos explicação de Sergio Campinho a respeito: “O exercício da profissão


intelectual será, desse modo, elemento de empresa, nele não se encerrando a pró-
pria atividade. Os serviços profissionais consistem em instrumento de execução da
empresa.”26
Pois bem. As cotas sociais são bens móveis incorpóreos, conforme classificação
do CC, art. 83, inciso III; e, considerando que não estão elencadas nas exceções do
CC, art. 1.668, comunicam-se entre os cônjuges casados sob o regime da comu-
nhão universal.
Embora nos idos do ano de xxxx a Consulente tenha cedido ao Sr. K as cotas
que possuía na sociedade ‘Y Ltda.’ – cotas essas que ficaram em nome e sob a admi-
nistração exclusiva de seu então cônjuge –, permaneceram como bens comuns e,
portanto, pertencentes ao casal.
Restou preservado, assim, o direito à meação, vez que originadas e transferidas
as cotas entres os cônjuges na constância do casamento (CC, art. 1.667).
Nesse sentido:

Agravo de instrumento. Separação judicial. Regime da comunhão universal de


bens. Sendo o casamento regido pelo regime da comunhão universal de bens,
todo o patrimônio comum se comunica, nos termos do art. 1.667 do CCB. Des-
cabe a alegação de que a ex-mulher possui somente 5% das cotas capitais da
empresa, quando o regime de bens adotado é o da comunhão universal. Recurso
desprovido (TJRS, AI 70032052698, 7ª. Câm. Cível, rel. Des. Sérgio Fernando de
Vasconcellos Chaves, j. 23.06.2010 – Código Civil comentado, Min. Cezar Peluso
e outros, 5. ed., Manole, p. 1917).
“apelação. Divórcio. [...] Partilha de quotas sociais. Comunhão parcial de bens. Af-
fectio societatis. Quotas sociais não serão partilhadas, contudo, o valor representa-
tivo destas quotas na sociedade deve ser objeto de partilha. improvido o recurso do
autor e provido em parte o recurso da ré (Apelação 0006468-80.2014.8.26.0586,
2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, j. 28.06.2016).
Separação judicial. Partilha. Regime da comunhão universal de bens. 1 – Sendo o
casamento regido pelo regime da comunhão universal de bens, imperiosa a partilha
igualitária de todo o patrimônio comum, ou seja, comunicam-se os bens presentes
e futuros de cada cônjuge, nos termos do art. 1.667 do CCB. 2 – Também comporta
partilha o valor obtido pelas partes com a alienação dos automóveis, assim como
do estabelecimento comercial, e, não havendo consenso quanto ao valor a ser re-
partido, deverá ser apurado em sede de liquidação de sentença. Recurso provido

26. CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2010. p. 47-48.
Viana, Rui Geraldo Camargo. Dissolução do casamento e partilha de bens (Parecer).
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 16. ano 5. p. 235-261. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2018.
Ensaios e Pareceres 253

em parte (segredo de justiça) (TJRS, Ap. Cível 70.024.910.788, 7ª Câm. Civel, rel.
Sergio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 10.09.2008, DJ 17.09.2008 – Código
Civil comentado, Min. Cezar Peluso e outros, 5. ed., Manole, p. 1919).

Nessa condição, considerando também o que estabelece o CC, art. 2.022, as co-


tas mantidas em nome de um ou de ambos os cônjuges e que não foram objeto de
divisão (permanecendo, pois, em estado de mancomunhão) estão sujeitas à sobre-
partilha, em partes iguais (as cotas ou, no caso, o produto de sua venda). Vejamos:

Sobrepartilha. Partes casadas pelo regime da comunhão universal de bens. Socie-


dade empresária constituída na constância do casamento. Comunicação dos bens
presentes e futuros (art. 1.667 do Código Civil). Direito da autora de participação
na apuração de haveres da sociedade, ao tempo de sua retirada, à razão de 50%,
independentemente da divisão das cotas no contrato social. Sentença reformada.
Recurso provido. (Apelação 9087413-59.2004.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Pri-
vado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Salles Rossi, j. 12,05,2010, v.u.).

E no corpo desse julgado consta que:

A estipulação feita no contrato social visa a regular relações com terceiros e con-
ferir poderes de administração, assim como certas preferências ao sócio majori-
tário, mas não altera a relação patrimonial deste com sua esposa, seja ela sócia
ou não. Metade de seus bens, respeitadas as exceções legais, serão também de
sua esposa, o que importa dizer que a sobrepartilha, uma vez já excluída a autora
da sociedade, deve levar em consideração a participação desta em 50% das cotas
sociais ao tempo de sua retirada (fls. 53/57). [...].

Por isso, é irrelevante quem as titularize, seja a Consulente em nome próprio ou


em nome de seu ex-marido, devendo as cotas ser partilhadas, revertendo-se a favor
da Consulente o valor correspondente à sua meação.
Saliente-se, a esse respeito, que, quando do divórcio, a Consulente e o Sr. K rele-
garam de modo expresso à sobrepartilha as cotas das empresas das quais eram sócios:

1 – Partilha de bens: Em razão do casal estar separado de fato há aproximadamen-


te 10 (dez) anos, o divorciando reconhece que os imóveis situados no condomí-
nio xxxx, apartamentos xxxx e xxxx, na Rua xxxx, n. xxxx e xxxx, no município
de xxxx, adquiridos pela divorcianda no ano de xxxx, caberão exclusivamente
à ela porque adquiridos com seu esforço pessoal, não pretendendo sua partici-
pação em qualquer deles; A casa de praia situada na Alameda xxxx, n. xxxx, no
município de xxxx, caberá na proporção de 50% para cada parte. O divorciando
abre mão de sua meação da participação de que a divorcianda é titular na empresa
Z LTDA; As partes se ressalvam no direito de discutir pelas vias próprias eventuais
alienações de bens realizadas a terceiros, bem como as participações nas empresas em
que as partes são sócias para posterior sobrepartilha” (grifo nosso)
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Não tendo as cotas sido partilhadas na separação de fato do casal, tampouco no


divórcio – permanecendo no patrimônio comum até os dias de hoje, em mancomunhão –,
não socorria ao varão o direito de aliená-las, sob pena de burla à justa divisão pa-
trimonial em favor da meeira.
Como é cediço, no regime da comunhão universal, “nenhum dos cônjuges pode
dispor de sua parte nem exigir a divisão dos bens comuns. Tais bens são objeto de
propriedade coletiva, a propriedade de mão comum dos alemães, cujos titulares são
ambos os cônjuges.”27

Depois da separação de fato, da separação jurídica ou do divórcio, sem a reali-


zação da partilha, os bens permanecem em estado de mancomunhão, expressão
corrente na doutrina, que, no entanto, não dispõe de previsão legal. De qualquer
sorte, quer dizer que os bens pertencem a ambos os cônjuges ou companheiros
em “mão comum”. Tal distingue-se do condomínio: situação em que o poder de
disposição sobre a coisa está nas mãos de vários sujeitos simultaneamente. Esta
possibilidade não existe na comunhão entre cônjuges, companheiros e herdeiros.
Nenhum deles pode alienar ou gravar a respectiva parte indivisa (CC 1.314) e só
pode exigir sua divisão (CC 1.320) depois da partilha.28

Ocorre que o Sr. K alienou as cotas e, alegando que houve acréscimo econômico
em seu valor apenas após a separação de fato do casal – acréscimo esse que seria
oriundo de esforço exclusivo dele –, recusa-se a partilhar com a Consulente o pro-
duto de sua venda.
Para tanto, sustenta que o patrimônio líquido da empresa era negativo quando
da vigência do casamento – o que equivaleria ausência de valor econômico –, realida-
de essa que teria se alterado após a separação de fato.
Tal alegação, consiste, em teoria, fato impeditivo, modificativo ou extintivo
do direito da Consulente e, por isso, o ônus da prova a ele incumbe, nos termos
CPC/15, art. 373, II. Vejamos lição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade
Nery:

II: 15. Ônus de provar do réu. Quando o réu se manifesta pela primeira vez no
processo dentro do prazo para a defesa (CPC 335), abre-se-lhe a oportunidade de
alegar em contestação toda a matéria de defesa (CPC 336) e de propor, na mesma
peça, reconvenção (CPC 343). O réu deve provar aquilo que afirmar em juízo,
demonstrando que das alegações do autor não decorrem as consequências que pre-
tende. Ao réu cabe provar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direi-
to do autor. “La posizione dei convenuto e naturalmente piùcomoda, perche non sorge

27. GOMES, Orlando. Direito de família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 196.
28. DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 301.
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a suo cariconessun onere, finchél’attore non abbiaprovatoil fato constitutivo (‘actore


non probante, reusabsolvitur’); soltanto se il falto constitutivo sai provato, sorgerà
per lui la necessità di contrapporgliun’eccezione e diprovare i fattiimpeditivi, estintivi o
modificativisucui se fonda (‘reus in excipiendofitactor’) (Liebman. Manuale, n. 156,
p. 315). [...].29

Sem prejuízo do ônus da prova da referida alegação incumbir ao Sr. K, surge


como fator de relevância, para o deslinde deste Parecer, abordar a questão de impli-
car ou não o patrimônio líquido negativo de uma sociedade, necessariamente, na
ausência de valor econômico da mesma.
O patrimônio líquido de uma sociedade é apenas um de vários componentes
integrantes do seu valor econômico. O conjunto desses elementos, corpóreos e
incorpóreos, constitui o fundo de comércio.

Fundo de comércio ou estabelecimento comercial é o instrumento da atividade


do empresário. Com ele o empresário comercial aparelha-se para exercer sua
atividade. Forma o fundo de comércio a base física da empresa constituindo um
instrumento da atividade comercial. [...] Compõe-se o estabelecimento comercial
de elementos corpóreos e incorpóreos, que o empresário comercial une para o
exercício de sua atividade.30

São elementos incorpóreos do fundo de comércio e, por consequência, agrega-


dores de valor econômico da sociedade: o nome empresarial; o ponto comercial; o
aviamento e a clientela.
Tais elementos incorpóreos podem facilmente superar os elementos corpóreos
em valor, constituindo, não raras vezes, o patrimônio mais valioso de uma empresa.
Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Direito societário. Dissolução parcial de sociedade. Apuração de haveres. Inclu-


são do fundo de comércio. 1. De acordo com a jurisprudência consolidada do Su-
perior Tribunal de Justiça, o fundo de comércio (hoje denominado pelo Código
Civil de estabelecimento empresarial – art. 1.142) deve ser levado em conta na
aferição dos valores eventualmente devidos a sócio excluído da sociedade. 2. O
fato de a sociedade ter apresentado resultados negativos nos anos anteriores à exclu-
são do sócio não significa que ela não tenha fundo de comércio. 3. Recurso especial
conhecido e provido (REsp 907.014/MS, rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª
T., j. 11.10.2011, DJe 19.10.2011) (grifos nossos)

29. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comenta-
do. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: ed. RT, 2016. p. 1083.
30. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1985. v. 1.
p. 203-204.
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Portanto, mesmo que o patrimônio líquido seja negativo, é absolutamente pos-


sível – e provável – que a sociedade possua elevado valor econômico, desde que o
valor dos elementos incorpóreos supere as dívidas da sociedade.
Foi, aliás, o que se verificou no caso sob análise, no qual a ‘Y Ltda.’, com patri-
mônio líquido negativo, foi alienada pelo valor de R$ 86.300.000,00 (oitenta e seis
milhões e trezentos mil reais).
Da análise dos documentos fornecidos pela Consulente constata-se, ainda, que
se mostra incoerente e dissociada da realidade a alegação de que o valor obtido com
a alienação das cotas da ‘Y Ltda.’ decorre unicamente do esforço individual do Sr. K
em recuperar financeiramente a empresa.
O esforço da Consulente para a constituição do patrimônio comum era des-
necessário, diante do regime de bens – comunhão universal – adotado pelo casal
que, nos termos da Lei “[...] importa em comunicação de todos os bens presentes e
futuros dos cônjuges [...]” (CC, artigo 1.667).
Não bastasse, a evidenciar a ausência de razão da situação deficitária como justi-
ficativa para ausência de sobrepartilha das cotas, pondera-se que, desde a separação
de fato do casal até o divórcio, o patrimônio líquido negativo da sociedade aumen-
tou: no Balanço Patrimonial datado de xx.xx.xxxx era negativo em R$ 583.509,90
(quinhentos e oitenta e três mil, quinhentos e nove reais e noventa centavos). No
ano seguinte ficou negativo em R$ 630.145,03 (seiscentos e trinta mil, cento e qua-
renta e cinco reais e três centavos).
Tal constatação corrobora a tese de que o valor do patrimônio líquido é apenas
um dos elementos para aferição do valor econômico de uma sociedade e de suas
cotas sociais.
Ademais, conforme se observa do balanço de xx.xx.xxxx da adquirente ‘C S.A.’,
o patrimônio líquido da ‘Y Ltda.’ estava negativo em mais de oito milhões e meio
de reais, por ocasião de sua alienação.
Assim, a alegada recuperação com o esforço exclusivo e incomunicável da em-
presa pelo Sr. K inexiste, vez que ausente qualquer melhora financeira ou aumento
patrimonial da empresa.
No caso em exame, considerando que serão partilhados os valores representati-
vos das cotas, não apenas seus valores nominais, estas devem ser avaliadas pelo seu
valor econômico real, com a inclusão do fundo de comércio, e não pelo patrimônio
líquido contábil, o qual despreza todo o patrimônio incorpóreo da sociedade. Tal
entendimento encontra respaldo no Superior Tribunal de Justiça:

Comercial e processual civil. Dissolução parcial de sociedade. Apuração de have-


res. Inclusão do fundo de comércio. Juros de mora. Termo inicial. Honorários advo-
catícios. Art. 20, § 4º, do CPC. O fundo de comércio integra o montante dos haveres
do sócio retirante. Precedentes. Dentre os efeitos decorrentes da citação na ação de
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dissolução parcial da sociedade, ora cogitada, de conteúdo declaratório, não se po-


de incluir o de acarretar à sociedade ré, ora recorrente, o ônus de já ter de suportar
a incidência de juros moratórios desde a citação recebida, pois que estes só poderão
fluir a partir do título executivo a ser eventualmente constituído pela sentença que
fixar o valor do crédito que possa vir a ser reconhecido à sócia/recorrida” (REsp
n. 108.933-SC, por mim relatado, DJ de 30/11/1998). Recurso especial parcial-
mente conhecido e, nessa extensão, provido (REsp 564.711/RS, rel. Ministro Cesar
Asfor Rocha, 4ª T., j. 13.12.2005, DJ 20.03.2006, p. 278) (grifos nossos).

Considerando que a Consulente não recebeu a meação a que faz jus na ‘Y Ltda.’,
quer quando da cessão de suas cotas sociais, quer quando do divórcio, quer quando
da venda da empresa, as cotas ou o valor sub-rogado devem ser sobrepartilhados.
Quanto aos frutos do patrimônio conjugal, uma vez não partilhadas as cotas
sociais da ‘Y Ltda.’, ou seu valor representativo, é de se reconhecer o direito da
Consulente também ao recebimento dos lucros distribuídos pela empresa, na pro-
porção de sua meação, desde a separação de fato até a partilha.
Isso porque, constituindo-se as cotas sociais bens comuns ao casal, os respec-
tivos frutos delas advindos são partilháveis. Ora, se o Código Civil admite e prevê
que são comuns os frutos de bens particulares (excluídos da comunhão) – artigo
1.669 – não se pode concluir diferentemente sobre frutos derivados de bens co-
muns, mantidos em nome de um dos cônjuges em estado de mancomunhão, tal
como sucedeu no caso narrado.
In casu, a distribuição de lucros advindo da participação societária mantida em
nome do Sr. K (embora em estado de mancomunhão) deverá ser apurada, mediante
análise de livros societários, desde a separação de fato até a alienação feita à ‘C S.A.’
(distribuições retroativas, respeitada eventual prescrição), atribuindo-se à Consu-
lente metade a que faz jus sobre esses valores.
Vale observar, ademais, as seguintes circunstâncias – todas verificadas na escri-
tura pública de xx.xx.xxxx (Livro xxxx, folha xxxx, xxxxº Tabelião de Notas da cidade
de xxxx):

– a proposta de transação para a venda das cotas da sociedade foi efetuada em


xx.xx.xxxx, dois meses antes do decreto de divórcio ocorrido em xx.xx.xxxx;
– a proposta de aquisição da sociedade e fundo de comércio da ‘Y Ltda.’ era vin-
culada à venda dos imóveis objeto da escritura – que eram de propriedade da
empresa ‘B S.A.’;
– a empresa ‘B S.A.’ era sociedade coligada à ‘Y Ltda.’;
– na mesma data em que o Sr. K alienou as cotas da ‘Y Ltda.’, foram vendidos os
imóveis que eram de propriedade da empresa ‘B S.A.’;
– a Consulente e o Sr. K eram usufrutuários das cotas sociais da empresa ‘B S.A.’
de propriedade dos filhos do casal.
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Foi expressamente consignado na escritura de compra e venda que:

1) A outorgada compradora adquiriu, nesta data, a totalidade das quotas sociais (a


‘Transação’) de ‘Y Sociedade Simples Ltda’.com sede na Cidade de xxxx, na Rua
xxxx n. xxxx, inscrita no CNPJ/MF n. xxxx (a ‘Sociedade’). – 1.1) Considerando
que (i) a Sociedade desenvolve suas atividades exclusivamente nos imóveis obje-
to da presente escritura (os ‘Imóveis’), e que (ii) a outorgante vendedora é empresa
coligada à Sociedade e proprietária dos Imóveis, nos termos proposta referente à
Transação, formulada em xx.xx.xxxx, pela outorgada compradora, e aceita pelos
sócios da Sociedade, a Transação está vinculada à aquisição dos Imóveis pela
outorgada compradora. (destaques no original e grifos nossos)

Com efeito, os imóveis que foram vendidos em conjunto com as cotas sociais da
‘Y Ltda.’ eram de propriedade da empresa ‘B S.A.’ da qual a Consulente, apesar de usu-
frutuária das cotas de referida empresa, recebeu metade do preço da venda dos imóveis.
Então, não há razão lógica ou jurídica que justifique que a Consulente faça jus
ao recebimento de metade do preço da venda dos imóveis (titulados pela ‘B S.A.’),
mas não faça jus ao recebimento de metade do preço da venda das cotas sociais da ‘Y
Ltda.’, em especial porque decorre daquele negócio jurídico que a ‘Transação’ (com-
pra das cotas e fundo de comércio da ‘Y Ltda.’) está vinculada à aquisição dos imóveis.

5. Resposta aos quesitos


Diante de todo o exposto, passamos a responder aos quesitos formulados pela
Consulente:
1. A sociedade ‘Y Ltda.’ (Y S/C Ltda., CNPJ nº xxxx) foi constituída enquanto as
partes eram casadas?
Resposta: A sociedade ‘Y Ltda.’ foi constituída na data de xx.xx.xxxx entre Sr. K
e a Consulente, com capital social de CZ$ 100.000,00 (cem mil cruzados) com a
divisão igualitária das cotas sociais.
Considerando que a Consulente e o Sr. K casaram-se em xx.xx.xxxx, tem-se que
a sociedade foi constituída na constância do casamento no regime da comunhão
universal.
2. O fato de o cônjuge não ser titular de cotas de sociedade constituída na cons-
tância do casamento pelo regime da comunhão universal implica a exclusão do
bem do monte partível?
Resposta: O casamento no regime da comunhão universal pressupõe a formação
de um acervo único de bens (móveis e/ou imóveis) e direitos entre o casal – forma-
do quer por bens particulares, quer por bens comuns –, sendo cada um deles titular
da metade ideal dos bens.
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A formação desse patrimônio se dá independente da prova do esforço de cada


um dos cônjuges para a aquisição e/ou manutenção do patrimônio.
As cotas sociais são bens móveis incorpóreos e integram esse patrimônio co-
mum, mesmo que estejam sob a titularidade de apenas um dos cônjuges, e não
pressupõe o trabalho ou o exercício de algum tipo de atividade de ambos na socie-
dade respectiva.
O sócio que administra ou exerce função na empresa recebe remuneração espe-
cífica pelo trabalho desenvolvido na forma de pró-labore, quantia esta que não se
comunica com o cônjuge, mesmo no regime da comunhão universal (CC artigos
1.659, inciso VI, e 1.668).
O direito patrimonial das cotas sociais, portanto, ou o produto sub-rogado, deve
necessariamente integrar o monte partível.
3. A saída da Consulente da sociedade ‘Y Ltda.’ equivale, para os efeitos legais,
à partilha de bens do casal?
Resposta: A Consulente cedeu ao Sr. K, enquanto casada no regime da comu-
nhão universal e antes da separação de fato, as cotas da ‘Y Ltda.’ que estavam em
seu nome.
Destaque-se, a respeito, que do instrumento da saída da Consulente da socie-
dade ‘Y Ltda.’, o endereço declinado por ambos os sócios e casal é o mesmo; assim
como da ficha de rendimentos tributáveis do Imposto de Renda Exercícios 2007 e
2008, anos calendários 2006 e 2007, a Consulente recebeu rendimento tributável
da sociedade.
Com a cessão das cotas sociais, ela deixou de ser titular de cotas mantidas em
seu nome, e passou a ser titular das cotas mantidas em nome do então marido Sr.
K, em decorrência do regime de bens do casamento.
Destaque-se, inclusive, ressalva feita quando do divórcio da necessária posterior
partilha de cotas de sociedades existentes em nome do casal.
Essa cessão, portanto, não implica na partilha dos bens do casal.
4. Com a separação de fato (extinção do regime de bens do casamento), sem
que tenha havido a prévia partilha de bens, qual é o tratamento jurídico legal para
o patrimônio comum?
Resposta: Separado de fato o casal e antes que sejam partilhados seus bens, o
patrimônio continua a pertencer em comum aos cônjuges, em estado de manco-
munhão.
4.1. A parte que faz jus ao recebimento de quantia correspondente ao valor das
cotas sociais tem direito de receber os lucros distribuídos?
Resposta: No caso de cotas sociais, enquanto mantidas em mancomunhão, de-
vem os lucros distribuídos ser repartidos em partes iguais entre os cônjuges.
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4.2. As cotas sociais mantidas em nome de um dos cônjuges podem vir a ser
futuramente partilhadas ou liquidadas?
Resposta: As cotas sociais, ainda que mantidas em nome de um dos cônjuges,
desde que adquiridas na constância do casamento e sem que tenha havido prévia
partilha de bens, devem ser a qualquer tempo (sobre)partilhadas.
5. O patrimônio líquido negativo de uma sociedade civil significa que ela não
tem valor econômico?
Resposta: Não. O patrimônio líquido de uma sociedade é apenas um de vários
critérios que, em conjunto, compõem o seu valor econômico.
É o conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos – fundo de comércio; nome
empresarial; ponto comercial; aviamento e clientela – que constitui o fundo de co-
mércio e, por consequência, o valor econômico da sociedade.
O fato de uma sociedade possuir patrimônio líquido negativo, portanto, não
significa que ela não tenha valor econômico.
No caso em apreço, tem-se que a ‘Y Ltda.’ tinha patrimônio líquido negativo
quando da separação de fato da Consulente e do Sr. K, condição essa que se agra-
vou após a separação de fato e a alienação das cotas da empresa para terceiros (C
S.A.).
A existência de patrimônio líquido negativo, como visto dos documentos apre-
sentados, não foi impedimento para que, no laudo de aquisição elaborado por
empresa independente, existisse ágio de R$ 76.560.000,00 e mais valia de ativos
intangíveis e força de trabalho no montante de R$ 18.307.000,00.
6. A quem deve ser atribuído o ônus da prova de “eventuais ganhos” [e/ou ma-
joração do valor da sociedade constituída pelas partes] que tenham ocorrido após
a separação de fato (fim da sociedade conjugal) do casal?
Resposta: Ao impugnar o pedido de sobrepartilha de cotas sociais – ou o produ-
to sub-rogado – formulado pela Consulente, o Sr. K alega, como fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito da autora, que o produto da venda decorreu
de seu esforço exclusivo para recuperar a ‘Y Ltda.’, e que a venda foi posterior à
separação de fato do casal.
O ônus da prova de tais alegações, portanto, a ele réu incumbe (CPC/15, art. 373,
II), sob pena de todos os bens relacionados à ‘Y Ltda.’ (imóveis, cotas, valores sub-
-rogados, etc.) serem considerados adquiridos na constância do casamento, não
tendo sido apresentado qualquer elemento de prova nesse sentido.
7. A Consulente faz jus ao recebimento de sua meação em relação as cotas da
‘Y Ltda.’?
Resposta: Por tudo quanto exposto na presente consulta, e considerando que
(i) as cotas da ‘Y Ltda.’ foram constituídas na constância do casamento, com-
pondo o patrimônio comum do casal;
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(ii) mesmo com a cessão feita pela Consulente ao Sr. K, as cotas continuaram a
integrar o patrimônio comum;
(iii) após a separação de fato do casal, e à vista da inexistência de partilha, refe-
ridas cotas permaneceram em mancomunhão;
(iv) quando do divórcio, foram excluídos da partilha os bens particulares da
Consulente, sem qualquer ressalva quanto à existência de eventuais bens parti-
culares do Sr. K e, expressamente, relegadas para sobrepartilha as participações
societários do casal;
(v) inexistiu renúncia à meação;
(vi) a proposta de aquisição da sociedade e do fundo de comercio da ‘Y Ltda.’
estava vinculada à venda dos imóveis nos quais funcionava a sociedade; referidos
imóveis, pertenciam à “empresa coligada” [empresa ‘B S.A.’]; a Consulente, apesar
de usufrutuária das cotas de referida empresa, recebeu, pela venda dos imóveis, me-
tade do preço.
CONCLUI-SE que a Consulente, meeira das cotas sociais da ‘Y Ltda.’ mantidas
em nome do Sr. K, faz jus ao recebimento de 50% (cinquenta por cento) do preço
de alienação.
É a nossa opinião, salvo melhor juízo.
São Paulo, xx.xx.xxxx

Pesquisas do Editorial

Veja também Doutrina


• A dissolução de sociedade conjugal e o direito societário: a partilha que envolve quotas de
sociedade limitada, de Aline França Campos e Luciana Fernandes Berlini – RDPriv 80/149-
-173 (DTR\2017\2569);
• Divórcio e a partilha de quotas sociais, de Daniele Simões Solon Soares e Silva Namorato –
RDFas 3/29-37 (DTR\2015\2795); e
• Do regime jurídico do casamento - do regime de bens entre os cônjuges, de Carlos Al-
berto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf – RIASP 31/109-139
(DTR\2013\6466).

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