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- Antes, Ricoeur busca colocar os termos na mesa e fazer uma distinção entre esses conceitos e
o que permeia o capítulo todo será uma defesa de primazia da ética sobre a moral.
- Esse sétimo estudo gira todo em torno de uma frase, de uma definição, a definição de
perspectiva ética: visar a [verdadeira] vida boa com e para o outro nas instituições justas.
- Sobre a base do predicado “bom”, Ricoeur destaca 3 fases de um discurso que vai da
perspectiva da vida boa, passa pela solicitude e vai até o senso da justiça.
- Essa estrutura composta por esses 3 momentos do predicado “bom” aplicado às ações, dentro
do que Ricoeur chama de via reflexiva, correspondeu a estrutura homóloga do que ele chama
de “estima de si”;
- Ricoeur busca nesse capítulo desenvolver com alguma amplitude a afirmação do primado da
ética sobre a moral;
- Toda essa discussão ainda guarda relação com toda a proposta do livro porque ainda se
mantém na órbita da pergunta “quem?”. No caso, “quem age?”, “quem fala?”, “quem narra?”,
“quem é o sujeito da imputação?”;
- Da mesma forma que a proposição discursiva tem com relação ao locutor que se designa a
si mesmo a pronunciando, os predicados “bom”, “obrigatório”, aplicados às ações,
cumpririam o mesmo papel;
- As determinações éticas e morais da ação são tratadas como predicados de um novo gênero
e a relação dessas determinações com o sujeito da ação seria para Ricoeur uma nova mediação
no caminho de volta para o si-mesmo;
- Ao se colocar a teoria narrativa no ponto de junção da teoria da ação e da teoria moral, fez da
narração o que Ricoeur chama de transição natural entre descrição e prescrição, por isso no
final do capítulo anterior a identidade narrativa pode servir como mais abrangente na
esfera prática para além das ações simples descritas no quadro das teorias analíticas da
ação;
- Ética vem do grego, moral vem do latim – ambos os conceitos remetem “à ideia intuitiva de
costumes, com a dupla conotação [...] do que é tido como bom e do que se impõe como
obrigatório”;
- A partir desses termos, Ricoeur vai conceituar ética como estando justamente nesse campo
do que chama de “perspectiva de uma vida concluída” (p. 200) e moral para a “articulação
dessa perspectiva em normas caracterizadas ao mesmo tempo pela pretensão à
universalidade e por um efeito de constrangimento” (p. 200); ARISTÓTELES / KANT
- O próprio Ricoeur reconhece que na distinção entre perspectiva e norma se tem oposição
entre duas heranças: aristotélica (ética é caracterizada pela perspectiva teleológica) e kantiana
(moral é definida pelo caráter de obrigação da norma, por isso fala-se em deontologia);
- Ricoeur vai se perguntar no que essa articulação entre perspectiva teleológica (Aristóteles)
e momento deontológico (Kant) afetaria no exame da ipseidade, dizendo que essa articulação
com os predicados atribuídos às ações (bom, obrigatório), teriam uma réplica no plano da
designação de si: “é a perspectiva ética que corresponderá ao que nós chamamos daqui em
diante estima de si, e ao momento deontológico o respeito de si” (RICOEUR, p. 201)
Segundo a tese aqui proposta, deveria ser evidente: 1) que a estima de si é mais
fundamental que o respeito de si; 2) que o respeito de si é o aspecto que reveste a
estima de si sob o regime da norma; 3) enfim, que as aporias do dever criam situações
em que a estima de si aparece não somente como a origem mas como o recurso do
respeito quando já nenhuma norma certa oferece guia seguro para o exercício [...] do
respeito. (RICOEUR, p. 201)
- A perspectiva teleológica encadeia de modo direto a teoria da ação, seria nas avaliações
aplicadas às ações que se exprime o caráter teleológico; os predicados deônticos se impõem de
fora ao agente da ação, sob a forma do constrangimento que Ricoeur chama de moral.
- Ricoeur argumenta que visa o que já comentamos de estabelecer o primado da ética sobre
a moral, da perspectiva sobre a norma;
A “vida boa” é o que deve ser nomeado primeiro porque é o próprio objeto da
perspectiva ética. Qualquer que seja a imagem que cada um faz para si de uma vida
realizada, esse coroamento é o fim último de sua ação. É o momento de se lembrar da
distinção que Aristóteles faz entre o bem tal como o homem o visa e o Bem platônico.
Na ética aristotélica, só se pode tratar do bem para nós. Essa relação conosco não
impede que ele esteja contido em algum bem particular. É de preferência o que falta
a todos os bens. Toda ética supõe esse uso não-saturável do predicado “bom”.
(RICOEUR, p. 203)
- Ricoeur vai argumentar que uma lição que podemos retirar de Aristóteles seria a) o de ter
procurado na práxis a ancoragem fundamental da perspectiva da vida boa; b) tentado constituir
a teleologia interna à práxis como princípio estruturante da perspectiva da vida boa.
- Comenta como que seria necessária uma espécie de hierarquia entre fins, com um fim
“maior” que seria a Eudaimonia, mas Ricoeur critica dizendo que “na ordem das razões” não
ofereceria uma “análise coerente dessa hierarquia das ações e dos fins correspondentes”
(RICOEUR, p. 204).
- Fala sobre a discordância entre comentadores com relação aos livros III e VI: no livro III,
tudo repousa na ligação entre escolha preferencial e deliberação, em que se apresenta um
modo de deliberar que escaparia da ordem dos fins:
Essa limitação da deliberação aos meios é repetida três vezes: “nós deliberamos não
sobre os próprios fins [observem o plural] mas sobre os meios de atingir os fins [ta
pros to télos]” [...]. Certamente, compreendemos que seja eliminado do campo da
deliberação tudo o que escapa ao nosso poder: de um lado, as entidades eternas, de
outro lado, todos os acontecimentos que não poderiam ser produzidos por nós. Mas
daí a reduzir as coisas que dependem de nós aos meios, existe um passo que é
transposto nos exemplos que seguem: o médico não se questiona se ele deve curar,
nem o orador se deve persuadir, nem o político se deve estabelecer boas leis. Uma vez
que cada um colocou um fim, ele examina como e por qual meio ele o realizará, sendo
a deliberação a escolha do meio mais apropriado. (RICOEUR, p. 204)
- Se a deliberação deve ter por objeto as coisas que dependem de nós, diz o Ricoeur (p. 204),
“os meios de nossos fins são realmente o que é o mais em nosso poder”;
- Ricoeur comenta de um ponto do argumento aristotélico que considera perplexo: “Aristóteles
teria ignorado que um homem pode ser colocado numa situação de escolher entre se tornar
médico, orador ou homem político?”
- Ele ainda se pergunta: a escolha entre muitos cursos de ação não seria uma escolha sobre os
fins, ou seja, “sobre sua conformidade mais ou menos limitada ou longínqua com um ideal de
vida, ou seja, com o que é considerado por cada um como sua perspectiva de felicidade, sua
concepção da ‘vida boa’?”
- Para Ricoeur, tais questionamentos evidenciam que o modelo meio-fim não recobriria
completamente o campo da ação; pelo contrário, diz Ricoeur (p. 205), esse modelo parece
conduzir ao que chama de uma “falsa estrada”, pois convida a construir todas as relações entre
fins subordinados e um fim último sobre uma relação que permanece fundamentalmente
instrumental.
- Ricoeur argumenta que buscará procurar na revisão do conceito de ação o meio para
responder as dificuldades do texto aristotélico com recursos do pensamento contemporâneo;
- O autor lembra que foi necessário dilatar e hierarquizar o conceito de ação, elevando-o ao
nível do da práxis, colocando em alturas diferentes na escala da práxis as práticas e planos de
vida, “reunidos pela antecipação da unidade narrativa da vida” (RICOEUR, p. 206).
- O princípio unificador de uma prática (ofício, jogo, arte) seria a dimensão significativa
trazida “pela noção de regra constitutiva que abre o espaço de sentido no qual podem
desenvolver-se apreciações de caráter avaliativo (e ulteriormente normativo) ligadas aos
preceitos do bem-fazer” (RICOEUR, p. 207)
- Nesse ponto, Ricoeur (p. 207) introduz a noção de “padrões de excelência”, a partir do
MacIntyre, que “são regras de comparação aplicadas aos resultados diferentes, em função de
ideais de perfeição comuns a uma certa coletividade de executantes, e interiorizados pelos
mestres e virtuosos da prática considerada”, e que permitem qualificar como bons um médico,
um arquiteto, um pintor e assim por diante;
- Essa noção de bens imanentes à prática auxilia na compreensão da integração das ações
particulares nessa unidade mais ampla do que se apresenta como “planos de vida”, desse
grau mais elevado de integração das ações (em suas mais diversas formas de manifestação) nos
projetos tidos como mais universais, mais globais (vida profissional, vida de família, lazer,
associativa, política)
- Para Ricoeur, isso auxiliaria a enfrentar o que ele apresenta como dificuldade da EN, ou seja,
na relação entre meio e fim, ir além de algo que, em primeiro momento, se apresenta tal como
um algo já dado: “o médico já é médico, sem se questionar se deseja permanecer assim; suas
escolhas são de natureza puramente instrumental: curar ou operar, purgar, cortar” (RICOEUR,
p. 208).
[...] o que acontece com a escolha da vocação médica? Aqui o modelo meio-fim já
não é suficiente. Trata-se antes de especificar os vagos ideais concernentes ao que é
considerado como “vida boa” a respeito do homem completo, usando dessa phronésis
[...]. As configurações da ação que chamamos planos de vida procedem então de um
movimento de vaivém entre os ideais longínquos [...] e o modo de pesar vantagens e
inconvenientes da escolha de um tal plano de vida no domínio da prática. (RICOEUR,
p. 208-209)
- CONCEITO DE PLANO DE VIDA: o conceito “vida” não deve ser tomado num sentido
meramente biológico, mas no sentido ético-cultural. Segundo Ricoeur (p. 209), a palavra vida
diz respeito à pessoa completa. A palavra “vida” recebe “a dimensão apreciativa, avaliativa,
do ergon que qualifica o homem como tal. Esse ergon está na vida, tomada em seu conjunto, o
que é o padrão de excelência de uma prática particular”.
- O termo vida designa tanto o enraizamento biológico da vida quanto a unidade do homem
completo, enquanto lança sobre si o olhar da apreciação;
- CONCEITO DE UNIDADE NARRATIVA: o que importa mais é a junção que a narrativa
opera entre as estimações aplicadas às ações e a avaliação dos próprios personagens. Essa
unidade narrativa de uma vida assegura que o sujeito da ética não seja diferente daquele a
quem a narração destina uma identidade.
- No plano de vida está envolvido ou está marcado por um caráter voluntário, voluntarista no
termo de Ricoeur; unidade narrativa envolve a composição entre acasos, causas diversas,
intenções e assim por diante, que formariam o todo narrativo;
- Esse plano de vida teria como um horizonte a noção de “vida boa”, que seria, para cada um,
o que Ricoeur (p. 210) coloca como “nebulosa de ideais e de sonhos de cumprimento com
respeito à qual uma vida é considerada mais ou menos realizada ou irrealizada”.
- Essa “vida boa” seria justamente o “em vista de que” tendem as nossas ações; uma
finalidade na finalidade, uma abertura na estrutura global da práxis que aparece quando temos
dúvida com relação à orientação da nossa vida;
- Segundo Ricoeur (p. 210-211), seria “num trabalho incessante de interpretação da ação e de
si mesmo que prossegue a pesquisa da adequação entre o que nos parece o melhor para o
conjunto de nossa vida e as escolhas preferenciais que governam nossas práticas”.
- Ricoeur (p. 211) conclui esse primeiro ponto do “visar a vida boa” introduzindo o ponto de
vista hermenêutico: “entre nossa perspectiva da ‘vida boa’ e nossas escolhas particulares,
desenha-se uma espécie de círculo hermenêutico em virtude do jogo de vaivém entre a ideia de
‘vida boa’ e as decisões mais marcantes de nossa existência (carreira, amores, lazeres etc)”,
assim também o é no texto em que “o todo e a parte compreendem-se um ao outro”.
- A relação entre interpretação do texto da ação e auto interpretação enriquece o conceito do si;
no plano ético, interpretação de si se torna estima de si, estando suscetível à contestação, ao
conflito de interpretações no exercício do julgamento prático.
- Perspectiva ética tem como definição “visar à verdadeira vida com e para o outro nas
instituições justas” (p. 211). Agora, objetiva-se questionar como a solicitude, o segundo
componente da perspectiva ética, se relaciona com o primeiro componente?
- A tese de Ricoeur (p. 212) seria a de que “a solicitude não se ajunta de fora à estima de si,
mas que ela desdobra a sua dimensão dialogal até aqui passada em silêncio”, entendendo por
desdobramento a ruptura na vida e no discurso, ruptura que cria as condições de uma
continuidade de segunda ordem;
- Isso tudo para tentar resolver o paradoxo da concentração sobre si em contraposição à
abertura sobre o horizonte da vida boa;
[...] não foi por acaso se se falou constantemente de estima de si e não de estima de
mim [moi]. Dizer si não é dizer eu [moi]. Certamente, a minha totalidade está
implicada de um certo modo na ipseidade, mas a passagem da ipseidade à minha
totalidade é marcada pela cláusula “cada vez” (alemão: eu), que Heidegger tem o
cuidado de juntar à posição de minha totalidade. O si, diz ele, é cada vez meu. Ora,
sobre que se fundamenta esse “cada vez” senão sobre a referência não-dita ao outro?
Sobre a base desse “cada vez”, a minha posse de minhas experiências é de algum
modo distribuída por todas as pessoas gramaticais. Mas em que condição esse outro
será não uma reduplicação do eu, um outro eu, um alter ego, mas verdadeiramente
um diverso de mim? (p. 212)
- Ser digno de estima está relacionado às capacidades do si – um ser que pode avaliar suas ações
e, estimando bons os fins de algumas dentre elas, é capaz de se avaliar a si próprio, de se estimar
bom.
- Como exemplo sobre se a mediação do outro é ou não requerida nesse trajeto da capacidade
à efetuação, Ricoeur (p. 213) fala sobre as filosofias do direito natural;
- Nesse momento texto, Ricoeur começa a tratar sobre a amizade a partir do Aristóteles
justamente pra mostrar esse papel de mediador do outro;
- Amizade guarda relação com uma ética, é uma virtude, uma excelência.
- Ricoeur coloca a questão se é preciso amar a si mesmo para amar um diverso conduz ao centro
da problemática do si e do diverso de si;
- Para entrar na questão, seria necessário fixar duas teses: a) amizade é uma noção
essencialmente equívoca, por isso seria necessário interrogar seu objeto (philéta), distinguindo
3 espécies de amizade (segundo o bom, o útil, o agradável);
O lado “objetivo” do amor de si fará precisamente que a philautia – que faz de cada
um o amigo de si mesmo – não seja nunca predileção não-mediatizada de si mesmo,
mas desejo orientado pela referência ao bom.
Segunda tese prévia: qualquer que seja o lugar da philautia na gênese da amizade,
esta se dá de repente como uma relação mútua. A reciprocidade pertence a sua
definição mais elementar e envolve desde então a questão disputada do primado da
philautia. Esta nunca será, a não ser um aspecto dependente da gênese de sentido antes
que da cronologia dos sentimentos de mutualidade. Essa reciprocidade, veremos, vai
até a comunhão de um “viver junto” – enfim, até a intimidade. (RICOEUR, p. 214)
- Mutualidade, aqui, no sentido de que cada um ama o outro como o que ele é: “Não é [...] o
caso da amizade utilitária onde um ama o outro em razão da vantagem esperada; ainda menos
na amizade agradável” (p. 215)
- Amizade ainda não é justiça, porque justiça guarda relação com as instituições (são regidas
pela justiça, por isso abrange numerosos cidadãos), e a amizade rege as relações interpessoais
(só tolera um pequeno número de parceiros, segundo Ricoeur). Assim como a igualdade é
proporcional na justiça, na amizade “só reina entre pessoas de bem, de classe igual; [...] a
igualdade é pressuposta pela amizade, enquanto que, nas cidades, ela permanece um algo a se
alcançar” (p. 216)
- Ricoeur cita Aristóteles, afirmando que este declara que “o maior bem que o amigo deseja a
seu amigo é que ele permaneça o que ele é e não por exemplo um bem”, acrescentando a
passagem aristotélica de que o homem não desejaria todos os grandes bens aos amigos, porque
desejaria principalmente “para si as coisas que são boas” (p. 216);
- Se, como Aristóteles coloca, o intelecto escolhe o que há de mais excelente para ele mesmo,
essa reflexidade é repartida como igual entre si mesmo e o outro, não impedindo que a
amizade seja desinteressada;
“A posse dos amigos – lemos com surpresa – é considerada comumente o maior dos
bens exteriores” [...]. É de notar que, para desatar esse nó, Aristóteles é constrangido
a jogar os trunfos maiores de sua metafísica, a saber, a distinção entre ato e potência,
do que resulta a noção de posse que está em jogo aqui.
Se o homem bom e feliz tem necessidade de amigos, é que a amizade é uma
“atividade” (énergéia) a qual é evidentemente um “vir a ser” e, portanto, somente a
atualização inacabada da potência.
- Como atualização inacabada da potência, se engana com relação ao ato e, sob a égide da
necessidade, um vínculo é estabelecido entre atividade e vida, entre felicidade e prazer. Nas
condições de efetuação da vida, considerada “na sua bondade intrínseca e em seu
consentimento consumado, que concorre a amizade” (p. 218).
- Para Ricoeur, para responder ao questionamento se um homem pode ser amigo de si mesmo,
o ponto está justamente nessa afirmação de que a própria existência do homem é para ele
próprio desejável:
Esse próprio desejável [...] não é estranho à necessidade de amigos que o homem feliz
experimenta. Essa necessidade refere-se não somente ao que existe de ativo e de
inacabado no viver-junto como também ao tipo de carência ou de ausência que diz
respeito à relação mesma do si com sua própria existência. (p. 219)
- De Aristóteles, diz Ricoeur, o ponto seria conservar essa ética da mutualidade, da divisão,
do viver-junto;
- Ainda, Ricoeur defende que a afirmação de que “só um si pode ter um diverso de si” (p.
219) encontra sua legitimação na ideia de que “a estima de si é o momento reflexivo originário
da perspectiva da vida boa. A amizade acrescenta à estima de si, sem nada suprimir”,
acrescentando a ideia de “mutualidade na troca entre humanos que se estimam cada um a
si próprio”.
- A questão ainda seria em saber quais traços poderíamos atribuir à solicitude que já não se
encontram na amizade
- Para Ricoeur, a amizade constitui somente um ponto frágil de equilíbrio em que o dar e receber
são iguais por hipótese;
- Ricoeur fala sobre a bondade e a noção de respeito que subjaz à essa concepção de bondade
que é tomada tanto como qualidade ética dos fins das ações quanto a orientação da pessoa a
outrem (como se uma ação não pudesse ser considerada boa se não fosse feita em favor de
outrem); (p. 222)
- Ricoeur cita Levinas:
- Para abordar essa noção de respeito, Ricoeur retoma a HIPÓTESE DO TRABALHO, QUE
SERIA O PRIMADO DA ÉTICA SOBRE A MORAL.
- Esse estatuto seria o que Ricoeur chama de “espontaneidade complacente”, que estaria
ligada à estima de si na perspectiva da vida boa. É da espontaneidade benevolente que “o
receber iguala-se ao dar da destinação à responsabilidade, sob o modo do reconhecimento
pelo si da superioridade da autoridade que lhe prescreve agir segundo a justiça” (p. 223).
- Trata-se de uma igualdade não como a da amizade (que o dar e receber se equilibram), mas
uma igualdade que compensa a dissimetria resultante do primado do outro na situação de
instrução;
- Ricoeur coloca o sofrimento como sendo a outra extremidade da solicitude: “O outro é agora
esse ser sofredor do qual não cessamos de marcar o lugar vazio em nossa filosofia da ação,
designando o homem como ativo e sofredor” (p. 223);
- Esse sofrimento não é somente de ordem física ou mental, mas um sofrimento marcado pela
“diminuição até a destruição da capacidade de agir, do poder-fazer, sentidos como um golpe
à integridade do si” (p. 223).
- Esse poder-fazer parece ter uma relação com o desejo de partilhar a dor dos outros. Essa
benevolência, ou beneficência, faz com que o outro parece reduzido à condição de somente
receber: “[...] é dessa maneira que o sofrer-com se dá [...] para o inverso da destinação à
responsabilidade pela voz do outro”, e, diferente desse caso, “sobrevém uma espécie de
igualação, da qual o outro sofredor é a origem, graças ao que a simpatia é preservada de se
confundir com a simples piedade, onde o si goza secretamente o saber-se poupado”;
- Na verdadeira simpatia, diz Ricoeur, “o si, cuja potência de agir é no começo maior que a
de seu outro, encontra-se afetado por tudo o que o outro sofredor lhe oferece em troca. Porque
procede do outro sofredor um dar que já não é precisamente tirado da sua potência de agir e de
existir, mas da sua própria fraqueza” (p. 223);
- É nesse ponto que reside a prova da solicitude, a compensação por uma autêntica reciprocidade
na troca que compensa justamente a desigualdade de potência: “na hora da agonia, refugia-se
no murmúrio dividido das vozes ou no aperto débil de mãos que se cumprimentam” (p. 224);
- Mas o próprio Ricoeur comenta que sobre esse ponto do ser-afetado será retomado no décimo
estudo; o ponto aqui é que o sofrimento do outro destacado no si seriam sentimentos
espontaneamente dirigidos para outros (p. 224)
- O termo solicitude foi escolhido justamente para mostrar a união íntima entre
perspectiva ética e a parte afetiva dos sentimentos;
Tentemos [...] ter uma visão de conjunto do leque interno das atividades
desenvolvidas entre os dois extremos: da destinação à responsabilidade, em que a
iniciativa procede do outro, e da simpatia para com o outro sofredor, em que a
iniciativa procede do si amante, surgindo a amizade como um meio em que o si e o
outro partilham com igualdade o mesmo desejo de viver-junto. Enquanto na amizade
a igualdade é pressuposta, no caso da injunção vinda do outro ela só é restabelecida
pelo reconhecimento pelo si da superioridade da autoridade do outro; e, no caso da
simpatia que vai do si ao outro, a igualdade só é restabelecida pela confissão partilhada
da fragilidade e finalmente da mortalidade. (RICOEUR, p. 225).
- A solicitude acrescenta à estima de si (esse momento reflexivo do desejo da vida boa) a estima
da ausência, por isso fala-se em necessidade de amigos: “pelo choque da solicitude sobre a
estima de si, o si se apercebe ele próprio como um outro entre os outros” (p. 225). Apercepção
no sentido de reversibilidade, insubstituibilidade, similitude.
- Reversibilidade: pode ser vista na troca de pronomes pessoais, ou seja, “quando eu digo ‘tu’
a um outro, ele compreende ‘eu’ por si mesmo. Quando ele se dirige a mim, na segunda
pessoa, eu me sinto concernido na primeira pessoa; a reversibilidade tem por objetivo
simultaneamente os papéis de alocutor e de alocutário e uma capacidade de designar a si mesmo
presumida igual no destinatário do discurso e em seu destinador” (p. 226).
- No entanto, ainda assim só os papéis é que são reversíveis. Na insubstituibilidade, o ponto
são as pessoas que têm esses papéis: ela é “pressuposta na prática do discurso, [...] com relação
ao ancoradouro do ‘eu’ empregado” que faz com que “eu não abandone meu lugar e não
revogue a distinção entre aqui e acolá, mesmo quando em imaginação e em simpatia eu me
coloco no lugar do outro” (p. 226).
- Segundo Ricoeur (p. 226), o que a solicitude acrescenta é essa “dimensão de valor que faz
com que cada pessoa seja insubstituível na nossa afeição e na nossa estima. [...] é na
experiencia do caráter irreparável da perda do outro amado que aprendemos, por transferência
do outrem para nós mesmos, o caráter insubstituível de nossa própria vida”.
- “É [...] para o outro que eu sou insubstituível. Nesse sentido, a solicitude responde à estima
do outro por mim mesmo” (p. 226).
- A similitude, por sua vez, está acima da reversibilidade dos papéis e insubstituibilidade das
pessoas.
A similitude é o fruto da troca entre estima de si e solicitude para outros. Essa troca
autoriza a dizer que não posso me estimar eu mesmo sem estimar outrem como eu
mesmo. Como eu mesmo significa: tu também tu és capaz de começar alguma coisa
no mundo, de agir por razões, de hierarquizar tuas preferências, de estimar os fins de
tua ação e, assim fazendo, de te estimar tu mesmo como eu me estimo eu mesmo. A
equivalência entre o “tu também” e o “como eu mesmo” repousa em uma confiança
que podemos ter como uma extensão da atestação em virtude da qual eu creio que
posso e que valho. Todos os sentimentos éticos evocados mais acima dependem dessa
fenomenologia do “tu também” e do “como eu mesmo”. Porque eles afirmam
realmente o paradoxo incluso nessa equivalência, o paradoxo da troca no lugar mesmo
do insubstituível. Tornam-se assim fundamentalmente equivalentes a estima do outro
como um si-mesmo e a estima de si-mesmo como um outro. (RICOEUR, p. 226-227)
- Ricoeur inicia esse último momento da definição de perspectiva ética destacando duas
asserções: i) o viver-bem não se limita às relações interpessoais, pelo contrário, se estende à
vida das instituições; ii) a justiça apresenta traços éticos que não estariam contidos na solicitude,
especialmente uma exigência de igualdade. “A instituição como ponto de aplicação da justiça,
e a igualdade como conteúdo ético do sentido da justiça” (p. 227).
- Isso resultará em uma nova determinação do si, a do cada um, ou seja, a cada um o seu direito.
- Ricoeur ainda argumenta que seria por costumes comuns e não por regras constrangedoras
que a ideia de instituição se caracteriza; esse primado ético do viver-junto sobre os
constrangimentos – vinculado ao sistema jurídicos e à organização política – significa (citando
H. Arendt) a distância que separa o poder-em-comum da dominação. (p. 228)
- Ricoeur retoma Weber que conceitua a instituição política como a relação de dominação que
distingue entre governantes e governados; uma relação de dominação que marca i) uma cisão e
ii) uma referência à violência;
- Citando Arendt, Ricoeur destaca que “o poder procede diretamente da categoria da ação
irredutível às de trabalho e de obra: essa categoria toma uma significação política [...] irredutível
à gestão estatal, se assinalamos, de um lado, a condição de pluralidade, e, de outro, a de
concertação” (p. 228).
- Essa dimensão temporal não diz respeito ao passado somente, mas ao futuro; ao durar, não
passar, mas permanecer.
- Esse é um ponto recorrente na filosofia política, na teoria das formas de governo, o problema
da corrupção do regime, por exemplo.
- A fragilidade do poder não recai mais na vulnerabilidade dos mortais, mas é uma fragilidade
de segundo grau, ou seja, das instituições;
- Conceito de concertação: “ação pública como [...] um tecido (web) de relações humanas no
seio do qual cada vida humana desenvolve sua breve história”;
- Espaço público e publicidade
Por mais evasivo que seja o poder na sua estrutura fundamental, por mais
enfraquecido que esteja sem socorro de uma autoridade que o articule sobre uma
fundamentação sempre mais antiga, é ele, como querer agir e viver junto, que traz à
perspectiva ética o ponto de aplicação de sua indispensável terceira dimensão: a
justiça. (p. 231)
- Aqui Ricoeur começa a dar alguma pincelada em pontos que ele vai desenvolver no estudo
seguinte, questionando o lugar do sentido da justiça: se no plano ético e teleológico ou moral e
deontológico;
- Nesse sentido, retoma o Rawls, questionando se sua obra são seria “do princípio ao fim a
verificação de que é numa linha kantiana, portanto essencialmente deontológica e em oposição
a uma tradição teleológica, encarnada pelo utilitarismo, que a ideia de justiça pode ser
repensada? Não se pode contestar que a reconstrução por Rawls da ideia de justiça se inscreve
numa perspectiva antiteleológica” (p. 231)
- Mas é a uma teleologia diferente daquela dos utilitaristas de língua inglesa que a ideia de
justiça se liga, ou seja, uma teleologia que emprega o termo virtude, segundo a qual a justiça
seria a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento, citando Rawls.
- “O justo”, diz Ricoeur, “olha dos dois lados: do lado do bom, do qual ele marca a extensão
das relações interpessoais nas instituições; e do lado do legal, o sistema judiciário conferindo à
lei coerência e direito de coerção” (p. 231)
- De um lado, você tem que o sentido da justiça não se esgota no direito, na construção de
sistemas jurídicos que não cessa de suscitar;
- Ricoeur ainda afirma que seria melhor fazer o uso do termo “senso da justiça”, “senso do
justo e do injusto”, justamente porque é pela via da sensibilidade, do sensível ao injusto, da
queixa, que nos inserimos nesse campo.
[...] o senso da injustiça não é somente mais pungente, porém mais perspicaz que o
senso da justiça; pois a justiça é quase sempre o que falta, e a injustiça o que reina. E
os homens têm uma visão mais clara daquilo que falta às relações humanas do que da
maneira correta de organizá-las. Em consequência, mesmo nos filósofos, a injustiça é
a primeira que movimenta o pensamento. (p. 231-232)
- Nessa linha, Ricoeur começa o debate sobre a intersecção entre o aspecto público e o aspecto
privado da justiça, distributiva nesse caso, ou seja, do passar do plano interpessoal ao plano
institucional, a partir do livro V da EN.
- Aristóteles considera o domínio das ações prescritas pelas leis como uma “parte” do “todo”;
e como é a lei positiva que define a legalidade, não se poderia ter a organização institucional
porque a parte não poderia ser menos ético-política que a virtude do todo que a engloba;
- Ricoeur se questiona se seria censurável o que chama de limitação do campo da justiça por
Aristóteles ao tê-la definido como justiça distributiva: seria preciso levar em consideração a
flexibilidade do termo distribuição, que seria justamente o elemento de distinção que faltaria à
noção de querer agir junto:
- Esse conceito é importante para Ricoeur porque “não dá razão nem a um nem a outro
protagonista de um falso debate sobre a relação entre indivíduo e sociedade. Na linha do
sociologismo à moda de Durkheim, a sociedade é sempre mais que a soma de seus membros;
do indivíduo à sociedade não há continuidade” (p. 234)
- Ao delimitar o quadro ético-jurídico, Ricoeur coloca a igualdade como núcleo ético comum
entre justiça distributiva e reparadora;
- A igualdade aritmética não convém em razão da natureza das pessoas e coisas dividias: “as
pessoas têm, numa sociedade antiga, um mérito (axia) desigual ligando a méritos desiguais,
que, aliás, as diversas constituições definem diferentemente; por outro lado, as partes são elas
próprias, fora da justiça, desiguais, deveríamos dizer, suscetíveis de uma partilha selvagem,
como na guerra e na pilhagem” (p. 235-236).
- Nesse sentido, a justiça distributiva consiste em “tornar iguais duas relações entre uma pessoa
e um mérito a cada vez. Ela repousa, portanto, em uma relação de proporcionalidade de quatro
termos: duas pessoas e duas partes” (p. 236).
- O ponto de Ricoeur não é saber se a igualdade pode ser definida sempre em termos de
mediação e etc., mas o de “recolher a força convincente e durável da ligação entre justiça e
igualdade” (p. 236);
- Segundo Ricoeur, a igualdade seria para a vida nas instituições o que a solicitude é nas
relações interpessoais; a solicitude “dá como comparação de si um outro que é um rosto [...]
a igualdade lhe dá como comparação um outro que é um cada um”; o caráter distributivo do
“cada um” passa do plano gramatical ao plano ético;
- O senso da justiça supõe a solicitude, porque ela toma as pessoas como insubstituíveis; na
verdade, a justiça acrescenta à solicitude, pois seu campo de aplicação seria a humanidade
inteira.
- Sobre a base do predicado “bom”, Ricoeur destaca 3 fases de um discurso que vai da
perspectiva da vida boa, passa pela solicitude e vai até o senso da justiça. Essa estrutura
composta por esses 3 momentos do predicado “bom” aplicado às ações, dentro do que Ricoeur
chama de via reflexiva, correspondeu a estrutura homóloga do que ele chama de “estima de
si”. Ricoeur argumenta que seria necessário submeter a perspectiva ética à prova da norma,
porém só vai desenvolver isso posteriormente.