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Resumo: Um dos expoentes da Psicologia da Gestalt que mais enfatizou a necessidade do método fenomenológico na psicologia
foi Köhler. Para ele, o método fenomenológico permite abordar adequadamente aquilo que ele denomina a “experiência direta”,
sem cometer os erros oriundos do introspeccionismo clássico. O objetivo deste artigo é detalhar o método fenomenológico de
Köhler no âmbito de sua teoria da percepção. Ao fim, pretende-se mostrar que ele é central para a fundamentação da Gestalt,
por servir como ferramenta para distinguir o objeto da física do objeto da experiência direta.
Palavras-chave: Intencionalidade; Fenomenologia; Wolfgang Köhler; experiência direta.
Abstract: Köhler was one of the authors of Gestalt psychology that most emphasized the need of the phenomenological method.
For him, the phenomenological method allows properly approach the “direct experience” without committing the errors derived
from classical introspection. The purpose of this article is to detail the phenomenological method of Köhler in his theory of
perception. At the end, we intend to show that it is central to the fundaments of the Gestalt psychology. The phenomenological
method serves as a tool to distinguish the direct object of external experience from the physical object.
Keywords: Intentionality; Phenomenology; Wolfgang Köhler; direct experience.
Resumen: Köhler fue uno de los autores de la psicología Gestalt que más insistieron en la necesidad del método fenomenológico.
Para él, el método fenomenológico permite abordar adecuadamente la “experiencia directa” sin cometer los errores derivados
de la introspección clásica. El propósito de este artículo es detallar el método fenomenológico de Köhler en su teoría de la per-
cepción. Al final, tenemos la intención de mostrar que es fundamental para los fundamentos de la psicología de la Gestalt. El
método fenomenológico sirve como una herramienta para distinguir el objeto directo de la experiencia externa del objeto físico.
Palabras clave: Intencionalidad; Fenomenología; Wolfgang Köhler; experiencia directa.
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Sávio P. Peres
faculdades de Psicologia, quem quisesse trabalhar com O que deve ser assinalado para o argumento que será
esta disciplina, e mais particularmente com psicologia desenvolvido neste artigo são os conceitos de observa-
experimental, deveria cursar uma faculdade de Filosofia. dor näive e a distinção entre objetos experienciados, tais
Daí que a grande maioria dos expoentes da primeira ge- como eles aparecem fenomenologicamente, por um lado,
ração de psicólogos experimentais alemães do início do e objetos físicos, por outro. Esta distinção joga um papel
século XX tinha formação em filosofia, como é o caso central para o projeto da psicologia da Gestalt, já que ela
de Katz e Köhler. está relacionada com a correta compreensão da noção
Neste contexto não é de se espantar que Husserl, de “experiência direta”, tida por Köhler como o domínio
após se transferir a Göttingen em 1901, tenha sido pro- fundamental da psicologia. Ou seja, a experiência direta
fessor de Katz e, além disso, o examinador de sua tese, está vinculada com os dados produzidos por observado-
publicada em 1911, Os modos de aparência da cor (1911) res ingênuos. O detalhamento desse vínculo permite es-
(Die Erscheinungsweisen der Farben). Este trabalho, que pecificar conceitualmente aquilo que Köhler entende por
projetou Katz no ambiente intelectual alemão, recebeu fenomenologia. Não é nosso objetivo, é preciso salientar,
não só um parecer favorável de Husserl, como também abordar o tema da experiência direta, tal como hoje em
foi apontado por Köhler como um trabalho fundamental dia é abordada por psicólogos e pesquisadores que se va-
para a constituição da psicologia da Gestalt (Köhler, 1961). lem das ideias da psicologia da Gestalt. Embora seja uma
Particularmente importante neste trabalho é o fato de que tarefa importante, nosso objetivo é outro, consiste em elu-
Katz opõe-se claramente à concepção de sensações puras, cidar as posições filosóficas de Köhler sobre o assunto.
abordando as cores como fenômenos, e não simplesmen-
te como meras sensações (Köhler, 1961).
A vida e a obra de Katz se situam no centro do jogo 1. Alguns elementos históricos da Psicologia da Ges-
de forças que há entre fenomenologia, psicologia experi- talt: a herança brentaniana
mental e Gestalt. Dada essa condição, a citação de Katz
apresentada acima deve ser examinada com cuidado. Em 1947, Köhler, já residindo nos Estados Unidos,
Um mero passar de olhos pode induzir confusões. Logo publica a sua famosa Psicologia da Gestalt. Não é exage-
de início, percebemos que há uma peculiaridade na ma- ro afirmar que se trata de uma das obras mais influen-
neira em que Katz entendia o método fenomenológico. tes da Gestalt, não só pelo sucesso editorial, constituin-
Tratava-se, para ele, de um tipo de descrição “fiel” e “sem do uma das mais compactas introduções a Gestalt2, mas
preconceitos” dos fenômenos (Katz, 1950, p. 18). Em sua também porque nela Köhler opera uma incisiva crítica
opinião, Husserl não era, de maneira alguma, o inventor a dois modelos de psicologia influentes em seu tempo,
do método, mas apenas alguém que “fez uso sistemático o introspeccionismo clássico, defendido por Edward
do método e expandiu suas aplicações” (Katz, 1950, p. Titchener (1867-1927), e o behaviorismo clássico de John
18). Aliás, o método não era, para Katz, sequer exclusi- B. Watson (1878-1958). Para isso, Köhler se empenha em
vamente filosófico, pois o âmbito de aplicação mais pro- clarificar o conceito de experiência direta, mostrando que
veitosa era justamente a psicologia. “Em psicologia, uma o erro do introspeccionismo clássico reside em sua má
atitude sem preconceitos é referida como descritiva ou compreensão, enquanto o behaviorismo, contrapondo-se,
fenomenológica” (Katz, 1950, p. 18). Justamente por ter com razão, a essa má compreensão, acaba por rechaçar
um conceito amplo de fenomenologia, Katz observa que: por completo o conceito de experiência direta. Contudo,
a experiência direta constitui não só um autêntico domí-
Köhler fez uso extensivo da fenomenologia mais do
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
que qualquer outro psicólogo da Gestalt. As suas O texto é uma edição revisada que saiu em 1947 de uma obra origi-
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A Fenomenologia de Köhler e o Conceito de Experiência Direta
nio de investigação da psicologia, como também é a con- Contudo, há em Köhler várias diferenças importan-
dição de possibilidade epistemológica não só de qualquer tes com relação a Brentano. Cito duas que são particu-
psicologia, mas também da física. larmente importantes para o argumento deste artigo. A
Para Köhler, introspeccionismo clássico e behavio- primeira é que, para Köhler, o objeto tal como percebido
rismo são metodologicamente e epistemologicamente entra no domínio de investigação da psicologia, enquan-
ingênuos. O primeiro compreende o conceito de experi- to, para Brentano, apenas os atos (o que ele denomina de
ência direta pelo viés de preconceitos derivados de uma “fenômenos psíquicos”) entram no domínio da psicolo-
concepção mecânica da natureza, oriunda da fisiologia gia. A segunda diferença, que em certo sentido deriva da
do século XIX (1929/1968, p. 62-80). O segundo consis- primeira, reside no tratamento dado por Köhler ao objeto
te basicamente em uma tentativa atrapalhada de imitar tal qual é dado na experiência. A “objetividade” que é di-
o método das ciências naturais, mais particularmente o retamente dada no ato psíquico não é identificada, como
da física (1929/1968, p. 23). Enquanto o primeiro crê que em Brentano, ao conteúdo de sensações (1874, p. 115).
o dado intuitivo básico são as sensações, vinculadas me- Para Köhler, o que é percebido na percepção externa é
canicamente com estímulos locais, o segundo crê que o um percepto, o qual não pode ser reduzido a uma coleção
dado básico é “o mundo físico observável”. Ambos os mé- de sensações, nem ao conteúdo sensorial da percepção
todos não apenas partem de pressupostos equivocados, exterior. Esta irredutibilidade do percepto ao conteúdo
como também assumem um pressuposto comum: a visão sensorial é uma concepção que, segundo Köhler, a esco-
mecânica da natureza (Köhler, 1929/1968, p. 62-80), vi- la da Gestalt tirou de Ehrenfels (1890), aperfeiçoando-a
são essa que, embora tenha sido superada na física já no (Köhler, 1961, p. 2).
início do século XX, continua a modelar, em particular
na época em que Köhler escrevera o texto, o pensamento
científico dos psicólogos. Estes, ignorantes da física do 2. As propriedades do percepto e as propriedades do
século XX, continuavam a se inspirar na mecânica clás- mundo físico
sica ao confeccionar suas teorias psicológicas.
Em certo sentido, é possível afirmar que a corren- Um dos pontos de partida da exposição de Köhler é to-
te psicológica da Gestalt tem uma de suas origens em mar a física como exemplo de ciência. O mundo, tal como
Brentano, intermediada por seus alunos, especialmen- aparece na experiência perceptiva, não corresponde ao
te Stumpf (1936-1948), fundador do instituto de Berlim, mundo tal qual é concebido pela física. Sejam quais fo-
e Ehrenfels (1856-1932), cuja obra mais influente é Über rem as propriedades do mundo da física, elas não são as
Gestaltqualitäten (cf. Smith, 1994). Por essa razão, não é de mesmas do mundo tal como experienciado na vida coti-
se admirar que várias das posições defendidas por Köhler diana e na experiência direta. O mundo da experiência
se aproximam em muitos pontos de Brentano de Psicologia direta muitas vezes possui propriedades contraditórias.
do ponto de vista empírico (1874) dado que, para ambos: “O mundo do homem é algo de confuso e revela seu cará-
1) Há a distinção entre objeto da experiência dire- ter subjetivo em qualquer exame crítico de suas proprie-
ta (percepto, objeto fenomênico) e coisa física. (Köhler, dades, no mundo dos físicos não são toleradas quaisquer
1966/1971, p. 87). Para Brentano, tanto quanto para confusões ou contradições.” (Köhler, 1929/1968, p. 10). A
Köhler, o objeto físico tem uma existência “transfenomê- vara imersa sobre a água parece quebrada, o Sol é ver-
nica”. (Köhler, 1938, p. 104; Brentano, 1874, p. 11). Essa melho quando se põe e amarelo quando atinge o zênite.
distinção é válida até para nossos corpos. A esse respei- Os exemplos abundam, podemos lembrar aqui do expe-
to, Köhler afirma que “o corpo fenomênico enquanto per- rimento que Locke oferece no capítulo VIII do segundo Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
cepto tem que ser claramente distinguido do organismo livro do Ensaio sobre o Entendimento Humano (1689/1975,
físico”. (1938, p. 65) p. 146). Se uma pessoa esfria uma mão e aquece a outra
2) A relação da experiência com o objeto experien- e logo na sequência submerge ambas as mãos em um re-
ciado é intrínseca à própria experiência. Para Köhler cipiente com água, a água parecerá quente a uma das
(1929/1968, p. 19), o objeto experienciado é parte da ex- mãos e fria à outra; ainda assim, a temperatura física da
periência consciente (1929/1968, p. 19). Para Brentano água é a mesma.
(1874, p. 115), o fenômeno psíquico contém uma objeti- Segundo Köhler, a história da física revela de modo
vidade imanente. Brentano distingue entre ato e objeto inequívoco que seu desenvolvimento se deu de maneira
imanente, os quais são interdependentes, ou seja, um não a se afastar cada vez mais da experiência direta, já que
pode existir sem o outro. Köhler distingue um aspecto esta possui muitas propriedades contraditórias. Houve,
subjetivo do aspecto objetivo da experiência (Köhler, devido a essas propriedades contraditórias, uma descon-
1929/1968, p. 18). fiança crescente em relação ao mundo tal como aparece
3) A própria experiência direta, bem como o objeto e o impulso de descobrir o mundo tal como ele é. E há
imediato da experiência, é um produto de processos fi- alguns séculos atrás, a física e biologia começaram a “so-
siológicos cerebrais (Brentano, 1974; Köhler, 1960/1978a, lapar a confiança singela dos seres humanos no sentido
p. 129-147; 1929/1968, p. 20,22). de considerar este mundo (n.d.r: o mundo da experiência
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direta) como a realidade” (Köhler, 1929/1968, p. 10). Já a Finalmente, porém, as qualidades primárias da rea-
experiência de Locke, citada anteriormente, deixa claro lidade singela mostraram-se tão subjetivas quanto as
que as propriedades do objeto experienciado são depen- secundárias: a forma, o peso e o movimento das coisas
dentes do sujeito. O projeto da física consiste não em des- tiveram de ser interpretados da mesma maneira que as
cobrir as características dos objetos tais como aparecem, cores e os sons; também eles dependiam do organismo
mas sim as propriedades do mundo físico, as quais devem que os experimentava e eram meros resultados finais
ser independentes da subjetividade daquele que conhece. de complicados processos no seu âmago. (Köhler,
1929/1968, p. 11)
gia, com Descartes e a partir dele o problema que irá se tal e uma substância física; b) o interacionismo, em que
instaurar e irá ocupar o centro gravitacional da filosofia duas substâncias heterogêneas interagem causalmente;
até o fim do século XIX será o problema epistemológico c) o vitalismo (1960/1978a, p. 145; 1929/1968, p. 80), em
(Rockmore, 2011, p. 1-16). Um dos problemas mais abor- que as leis físicas não são válidas para organismos vivos.
dados diz respeito à possibilidade de acesso cognitivo Contra essas posições, ele defende um tipo particular de
ao mundo exterior ao sujeito. Descartes procura legiti- emergentismo, em que alguns processos físicos (proces-
mar a possibilidade epistêmica de se conhecer o mundo sos cerebrais) são “acompanhados” por processos psíqui-
exterior fundamentando-se na bondade de Deus. Locke cos (1960/1978a, p. 145). O que especifica o tipo particu-
aceita a distinção operada por Descartes entre a consci- lar de emergentismo da Gestalt é a tese do isomorfismo,
ência e o mundo exterior, mas rejeita a solução cartesia- pela qual se afirma que “as características estruturais
na procurando uma nova solução ao problema do acesso dos processos cerebrais e dos eventos fenomenológicos
da consciência ao mundo exterior, com sua doutrina das são as mesmas.” (1960/1978a, p. 145). Isso reforça a ne-
qualidades primárias e secundárias (McCann, 2006, p. cessidade de uma fenomenologia, pois esta pode oferecer
63). Köhler, como antes já havia feito Brentano, não mais descrições adequadas dos eventos fenomenológicos, as
aceita a distinção operada por Locke entre qualidades quais cumprem um importante papel para investigação
primárias e secundárias. da relação mente-corpo.
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A Fenomenologia de Köhler e o Conceito de Experiência Direta
4. O objeto experienciado é uma experiência tal qual descobrimos, de maneira simples e desprovida
de crítica” (Köhler, 1929/1968, p. 9), mundo da “atitude
A experiência consciente, uma vez que é causada natural” (Köhler, 1929/1968, p. 9) e ainda “mundo feno-
por processos cerebrais, é dependente do mundo físico. menológico”. (1960/1978a, p. 134)
Já o mundo físico não é dependente do mundo subjetivo. b) O mundo da experiência indireta; também desig-
Dito isto, podemos apresentar a seguinte estrutura argu- nado por mundo da física, ou para usar um termo cunha-
mentativa apresentada por Köhler (1929/1968, p. 19-21): do por Köhler, em 1938, um mundo “transfenomênico”.
1) A experiência perceptiva é causada por processos (Köhler, 1938).
cerebrais.
2) A experiência é um todo composto de partes. A forma como essas três distinções estão articuladas
3) As partes da experiência são também experiências. será exposta nas seções subsequentes.
4) O objeto percebido (pecepto) é uma parte da
experiência.
5) Logo, o objeto percebido é uma experiência. 6. O duplo significado da oposição “subjetivo e obje-
tivo”
Köhler, desta forma, usa de maneira intercambiável
os termos “objeto da experiência” e “experiência objeti- Como pudemos notar, a acusação de subjetivismo
va”. Isso conduz a maneiras de falar que, no mínimo, cau- se fundamenta na premissa de que “toda experiência é
sam certa estranheza. Quem observa um objeto observa, subjetiva”. Mas essa premissa não pode ser simplesmen-
portanto, uma experiência objetiva (1929/1968, p. 20). te aceita. Como o termo subjetivo pode ser empregado
Com isso, Köhler opera uma expansão do significado do em dois sentidos, é preciso, antes de simplesmente afir-
termo “objeto”, o qual pode se referir tanto a um objeto mar que a experiência é subjetiva, saber em que sentido
fenomênico (percepto ou experiência objetiva), quanto a o termo está sendo empregado. Há, segundo Köhler, dois
um objeto físico. sentidos nos quais se diz que a experiência é subjetiva:
1) Uma experiência é subjetiva na medida em que é
resultante de processos fisiológicos que ocorrem no orga-
5. Uma possível objeção: subjetivismo nismo, em especial de processos cerebrais. Em oposição,
apenas o mundo físico é objetivo. O próprio organismo,
No momento em que Köhler afirma que o objeto que como faz parte do mundo físico, é objetivo. De acordo
percebemos é uma experiência objetiva, ele tem consci- com esse sentido, tudo o que é ou está na consciência
ência de que está correndo o risco de “psicologizar” todo é subjetivo, assim como qualquer objeto de que temos
objeto que não seja o objeto físico. Por essa razão, é de se consciência imediata. Segundo Köhler, tal conceito de
esperar a seguinte objeção à teoria de Köhler, a qual se subjetivo só faz sentido em contraposição ao conceito de
fundamentaria no seguinte raciocínio: objetivo, o qual serve para designar o objeto físico, on-
a) Toda experiência é consciente. tologicamente independente da subjetividade. Sem uma
b) Todas as partes da experiência são também noção mínima de mundo físico “transfenomênico”, tal
experiência. conceito de subjetivo não faria sentido.
c) O objeto experienciado é uma parte da experiência. 2) Uma experiência é subjetiva na medida em que
d) Logo, o objeto experienciado é subjetivo. ela se manifesta como subjetiva. Ex.: um pressentimen-
to, um sentimento, uma fantasia, uma obsessão, um de- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
Esta conclusão parece indicar que Köhler subscreve sejo de comer morangos. O polo oposto desta acepção é o
uma forma de subjetivismo solipsista. O que é dado na que aparece como objetivo. Ex: a cadeira que eu percebo,
percepção não é nem o mundo físico, nem dados de sen- a caneta que sinto com meus dedos e assim por diante.
sação, nem conteúdos sensoriais, mas sim perceptos. Mas (Köhler, 1929/1968, p. 21). Tais objetos não se apresentam
o que é um percepto? Não se trata de algo mental e priva- como algo privado e pessoal, tais como meus sentimen-
do? Köhler, para escapar desta acusação, opera uma série tos e minhas fantasias. Consequentemente, tais objetos,
de distinções conceituais bastante engenhosas: dados na experiência direta, são “experiências objetivas”.
1) Distingue duas formas de se conceber a oposição
conceitual subjetivo-objetivo. (Köhler, 1929/1968, p. 18). A fim de facilitar o emprego dos termos, passemos a
2) Distingue experiência direta (imediata) da expe- distinguir entre “geneticamente subjetivo” e “fenomeno-
riência indireta (mediata). (Köhler, 1929/1968, p. 20). logicamente subjetivo”.
3) Distingue dois mundos, vinculando cada um de- “Geneticamente subjetivo” é predicado de toda
les a uma forma de experiência: e qualquer experiência, uma vez que toda experi-
a) O mundo da experiência direta (Köhler, 1929/1968, ência é resultado de processos no organismo físico.
p. 10); também designado por “mundo cotidiano”, “mun- “Fenomenologicamente subjetivo” é predicado de deter-
do em que vivemos” (Köhler, 1929/1968, p. 20), “mundo minadas experiências ou de certas partes de uma experi-
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ência. Assim, temos a seguinte situação. Toda experiência co, do organismo físico e do objeto físico corresponden-
é geneticamente subjetiva. Entretanto, ela pode ser “fe- te. “O que chamamos de self é apenas um percepto mais
nomenologicamente subjetiva” ou “fenomenologicamente acessível... Quando lidamos com a percepção, devemos
objetiva”. É sobre esta última que agora iremos nos ater. distinguir com precisão entre o eu, enquanto perceto e o
organismo físico em questão.” (1966/1971, p. 83).
Köhler não dá margens a más interpretações, é exa-
7. A experiência objetiva tamente este o sentido: “Além disso, a única maneira de
que disponho para investigar as realidades físicas con-
Para introduzir o conceito de experiência objeti- siste em observar experiências objetivas (observing ob-
va, Köhler usa como exemplo o tempo de sua infância. jetive experience) e delas tirar as conclusões adequadas”
Quando criança, ele tomava aquilo que era dado direta- (1929/1968, p. 20). Ou seja, o que o físico observa ao olhar
mente como existindo independentemente de suas expe- no galvanômetro não é um objeto físico, mas algo que é
riências. “Em meu mundo original, inúmeras variedades parte de seu campo visual, tanto quanto o fio metálico
de experiência mostraram-se inteiramente objetivas, isto que ele vê. Tanto o galvanômetro quanto fio que ele vê
é, existindo ou ocorrendo externa e independentemente.” manifestam eles mesmos como partes da experiência ob-
(1929/1968, p. 18). O que Köhler procura mostrar é que o jetiva (manifest themselves as parts of objective experien-
conceito de experiência objetiva só possui significado na ce) (Köhler, 1929/1968, p. 21).
medida em que o sujeito compreende que há um mundo Ora, uma das conclusões que se pode tirar deste es-
físico por trás do mundo da experiência direta. Ao tomar quema apresentado por Köhler é que toda “experiência de
contato com o mundo físico (átomos, energia, campos ele- algo” é compreendida como uma relação entre dois aspec-
tromagnéticos), o mundo que tínhamos como mundo real tos de uma mesma experiência englobante. No momento
passa a ser tomado como mundo fenomênico e o mundo em que ele afirma coisas como “observo uma experiên-
físico passa a ser agora o mundo real. O realismo ingênuo cia objetiva”; (1929/1968, p. 20) “o aparelho se manifesta
consiste em tomar o mundo tal como dado na experiência como parte do campo visual” (Köhler, 1929/1968, p. 21),
direta objetiva como o mundo real. (1960/1978a, p. 134). “Estou ciente da presença da mistura (n.d.r: vinagre) gra-
Se Köhler é realista, o é no sentido de aceitar a tese de ças a certas experiências objetivas que tenho diante de
que há uma realidade e que essa é uma realidade física mim.” (1929/1968, p. 21), fica claro que as experiências
transfenomênica (Engelmann, 2002, p. 4,10). objetivas são “observadas”, estão “diante de mim”, fazem
Se eu observo uma cadeira, o que ocorre é que obser- parte integrante de “meu campo visual”. O ato de obser-
vo, segundo Köhler, uma experiência objetiva. Por mais var é uma experiência subjetiva, enquanto o observado
estranho que seja, Köhler é claro: quem observa algo di- é uma experiência objetiva.
retamente, observa uma experiência ou parte de uma Para Köhler, não compreender as coisas desta forma
experiência. Tal maneira de compreender as coisas pode é ingenuidade, a mesma ingenuidade que ele tinha na
levar a consequências aparentemente absurdas, às quais infância, época em que ele não havia descoberto a ex-
podem ser expressas nas seguintes perguntas: periência direta, já que a condição de possibilidade de
1) Como é possível que um objeto que vejo como es- concebê-la é adquirindo conhecimentos sobre o mundo
tando longe de mim seja uma experiência minha, pro- da física. Em nossa vida cotidiana, observarmos a todo
duzida por mim? instante apenas nossas experiências, mas, devido à nossa
2) Como é possível que o objeto fenomenológico seja inclinação natural ao realismo ingênuo, tomamos irre-
dotado de validade intersubjetiva? Se o que percebo é algo fletidamente o percepto como realidade (1960/1978a, p.
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
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A Fenomenologia de Köhler e o Conceito de Experiência Direta
que aparece tal como aparece, é claro que a física não é o próprio sujeito tem acesso direto às suas experiências.
uma ciência de fenômenos. Não obstante, os fenômenos As experiências são privadas e cada pessoa tem acesso
constituem a base necessária a partir da qual compreen- apenas às suas próprias. Como consequência, quem quer
demos o mundo físico. Apenas o homem ingênuo acre- estudar a experiência deve observar suas próprias expe-
dita que descrever o mundo tal como ele percebe signifi- riências. Mas como isso é possível? Afinal, argumenta o
ca adotar a assim chamada “a atitude objetiva do físico”. behaviorista, “A introspecção e seus objetos são fatos que
É justamente aí que Köhler se prepara para atacar a in- se situam dentro do mesmo sistema, sendo diminuta a
genuidade dos behavioristas clássicos. Estes, justamente possibilidade de que a primeira não afete os segundos.”
por quererem imitar os procedimentos adotados na física, (Köhler, 1929/1968, p. 13). No momento em que busca-
embora sem conhecê-la e sem uma reflexão epistemoló- mos apreender reflexivamente a tristeza que vivíamos,
gica adequada sobre a mesma, acabam imitando não a a tristeza perde sua força e é modificada. Ou seja, a ex-
física, mas uma caricatura da mesma. Por serem incapa- periência, tal como originariamente vivida, altera-se em
zes de compreender que há uma experiência fenomeno- virtude do ato reflexivo.
logicamente objetiva, embora geneticamente subjetiva, A objeção levantada pelos behavioristas sustenta-se
procuram excluir toda e qualquer experiência do domí- em alguns pressupostos assumidos (1929/1968, p. 23): a)
nio da psicologia. Acreditam, desta forma, que estão in- Considerar que é possível observar, com o uso dos senti-
vestigando o mundo objetivo, o mesmo de que falam os dos, o mundo físico ou qualquer sistema físico. b) Supor
físicos. Raciocinam os behavioristas clássicos: se o obje- que observar experiências implica em introspecção. c)
to de estudo dos físicos é o mundo exterior observável, Supor que, na física, o observador se encontra fora do
logo o objeto de estudo da psicologia também deve ser o sistema que observa. d) supor que fazer parte do siste-
mundo exterior observável e não o “mundo interior sub- ma que se observa é fator que impede o conhecimento
jetivo”. Guiado por esta presunção, o behaviorista crê que deste sistema.
o autêntico objeto da psicologia é o comportamento ob- Contra tais objeções, é preciso observar que o físi-
servável e não a experiência direta. No entanto, o beha- co não tem outro ponto de partida possível e outra base
viorista não percebe que: possível senão a experiência direta (1929/1968, p. 23;
1) Só pode descrever o comportamento observável se 1960/1978a, p. 131). Ora, o que é dado na experiência di-
ele tem uma experiência perceptiva do comportamento reta do físico não é um objeto físico, mas um objeto fe-
do animal que ele pretende observar. nomênico, o qual nada mais é do que o efeito de proces-
2) O que é dado na percepção não é “realidade” ex- sos no interior de seu organismo, assim como o ato de
terior, física, ontologicamente independente da mente, observar a experiência objetiva também o é. Em suma,
senão o efeito de estímulos físicos sobre o organismo. sujeito que percebe e objeto percebido são produtos de
um mesmo sistema, a saber, o organismo. Mas isto não
Ao fazer isso, o behaviorismo comete dois erros, fru- constitui, ao ver de Köhler, um grave problema, pois na
tos da ingenuidade. Em primeiro lugar, ele nega que a física algo análogo ocorre. “De fato, no caso da observa-
psicologia seja uma ciência da experiência direta, mas ção física, a situação é semelhante: o material a ser ob-
emprega a experiência direta como ferramenta epistê- servado e o processo de observação pertencem ao mes-
mica. (Köhler, 1929/1968, p. 23). Em segundo lugar, ele mo sistema”. (Köhler, 1929/1968, p. 23). Daí que o físico
crê que, ao descrever o que é dado na experiência dire- não se encontra em melhor situação do que o psicólogo.
ta, ele está investigando o mundo real, identificando-o Mas se a física não busca descrever o mundo tal qual
com o mundo físico. Portanto, o erro do behaviorismo é aparece, o que dizer então de ciências que se pretendem Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
“dar a impressão de que o mundo físico e fisiológico, em explicitamente descritivas, como a botânica e a anatomia?
si mesmos, são diretamente conhecidos e que, no caso Levando às últimas consequências o que Köhler afirma,
deles, partidários do behaviorismo, o conhecimento nada devemos considerar que elas, tanto quanto o behavioris-
tem a ver com a experiência direta”3 (1929/1968, p. 21). mo, não são ciências aptas a descrever o mundo físico,
senão ciências que descrevem experiências objetivas. Em
suma, se cada experiência objetiva, por definição, é ape-
10. Sujeito e objeto como partes de um mesmo sis- nas efeito de processos fisiológicos, então todas as ciên-
tema cias observacionais nada mais são do que ciências que
descrevem efeitos subjetivos de processos que ocorrem
Uma das razões alegadas pelos behavioristas para ne- no organismo, mas não o próprio mundo físico. Mas é
gar que a psicologia possa ser uma ciência da experiência aceitável afirmar que todas as ciências descritivas e ob-
reside em um famoso argumento, segundo o qual apenas servacionais estão destinadas a descrever fatos mentais
e não o mundo físico?
Em 1960, em função do desenvolvimento do comportamentalismo,
3
Embora, a princípio, soe inverossímil, parece não res-
Köhler reconhece que “Os modernos psicólogos do comportamento
tar alternativa a Köhler senão optar pela afirmativa. As
não mais sustentam a ideia de que o mundo fenomenológico foi
inventado pelos metafísicos.” (1960/1978a, p. 131). ciências descritivas têm por domínio objetos que, embo-
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Sávio P. Peres
ra geneticamente subjetivos, são fenomenologicamente saída de Köhler? Sua estratégia é interpretar o conceito
objetivos. Mas tal situação é aceitável? Um anatomista de experiência objetiva a partir do conceito de mundo da
estaria disposto a aceitar que o que ele descreve não é o experiência direta, o qual não é outro que o mundo coti-
mundo em si, mas uma experiência (mesmo que objetiva)? diano. A análise da experiência direta objetiva torna-se,
Não se trata de uma forma disfarçada de “subjetivizar” portanto, análise o mundo da vida cotidiana. Este não é
a realidade? Não se trata apenas de uma nova versão da nada de subjetivo, pois é, do ponto de vista fenomeno-
teoria brentaniana do objeto imanente? Köhler não de- lógico, objetivo. Ou seja, embora o mundo da física seja
fende que todo objeto percebido e experienciado é ape- ontologicamente independente, é possível falar em ou-
nas um objeto mental e não existe realmente? A resposta tro mundo, ontologicamente dependente do sujeito. Mas
de Köhler, como nós já havíamos indicado, consiste em o fato de ele ser ontologicamente dependente do sujeito
vincular a experiência direta objetiva ao mundo cotidia- não implica que ele seja um mundo de meras aparên-
no, vinculando este último ao mundo físico por meio da cias. “Quando falo a respeito de uma cadeira, refiro-me
tese do isomorfismo. à cadeira de minha vida cotidiana e não a um fenômeno
subjetivo”. (Köhler, 1929/1968, p. 20). Köhler acrescenta
que, em nossa atitude natural, somos todos realistas in-
11. Conclusão: o mundo cotidiano como mundo da gênuos, pois tomamos os perceptos como existindo in-
experiência direta objetiva dependente de nós. (1960/1978a, p. 134)
Há, por assim dizer, dois mundos, o da física e o da
Vimos que, levando às últimas consequências, o pen- vida cotidiana. O mundo da experiência direta, embora
samento de Köhler aparentemente conduz a um proble- dependente do organismo, não deixa de ser objetivo e de
ma. Se o objeto visto não é um objeto real, mas apenas ter uma consistência própria. Ele não é algo que está sob
uma experiência objetiva, Köhler então não poderia ser a ação de minha vontade ou uma criação ex nihilo de
considerado um psicologista? Afinal, não há em Köhler meu organismo. Como consequência, Köhler acaba por
uma estranha mistura de realismo fisicista com um sub- introduzir uma espécie de dupla ontologia: o mundo da
jetivismo solipsista? Não defende Köhler a tese de que o experiência imediata e o mundo da experiência media-
sujeito tem acesso direto apenas às suas próprias expe- ta. A cadeira, tomada como “experiência objetiva”, é tam-
riências? Isso não implicaria na redução das leis lógicas bém “algo externo, sólido, estável e pesado”. (1929/1968,
a leis naturais do pensar? Não é isso uma forma de psi- p. 18) E esta mesma cadeira deve ser distinguida da ca-
cologismo (Husserl, 1900/1968)? É interessante obser- deira física.
var que os psicólogos da Gestalt estavam informados de Dada essa situação, as experiências objetivas, vincu-
tais possíveis objeções e buscaram se defender. Koffka lando entre si, constituem o mundo da vida. Mas é preci-
(1935/1975, p. 579), por exemplo, defende-se ao observar so observar que o mundo da vida cotidiana é, por assim
que a concepção de Husserl de psicologia era demasiada- dizer, imanente, no sentido de que tanto o processo de
mente limitada, na medida em que este considera que as ver um objeto quanto o objeto percebido são produções
“relações psicológicas são fatuais e externas”. E Köhler do organismo. Mas se assim é, podemos perguntar: o que
(1938, p. 45-49) faz uma longa discussão sobre o tema, na garante a validade intersubjetiva dos perceptos? Como
qual ele procura mostrar as diferenças entre suas posi- eles podem ser simultaneamente privados e intersubje-
ções e a de Husserl. Uma dessas diferenças é que Köhler tivamente acessíveis, de modo a legitimar a afirmação de
(1944/1978b, p. 116) não vê razão para a efetuação da epo- que eles fazem parte de um “mundo”? É esse “mundo”
ché, isto é, o procedimento metodológico empregado por privado ou não? Em Psicologia da Gestalt (1929/1960),
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
Husserl (1913/1950), que consiste na suspensão da tese Köhler não entra em detalhes sobre esse ponto, se limitan-
de um mundo transcendente e independente da consci- do a afirmar que isso não é um problema na física e que
ência. Por razões sistemáticas, Köhler não poderia acei- dois pesquisadores entram facilmente em acordo quanto
tar, pois, como vimos, ele defende que as experiências ao valor marcado por um ponteiro de um galvanômetro
são resultados de um mundo não fenomenológico, dado (Köhler, 1929/1968, p. 23). Ao que parece, Köhler aceita
na experiência mediata, a saber, o mundo físico. Ao as- que o percepto possui, em determinada medida, validade
sumir essa posição, a fenomenologia da Gestalt assume intersubjetiva. Mas como é possível essa validade se os
traços peculiares. perceptos são produções do organismo? Não seria de se
Toda ciência que pretende descrever o mundo obser- supor que cada pessoa tenha acesso apenas aos seus pró-
vável, dentro da perspectiva da Gestalt, nada mais é do prios perceptos? Não seria estranho que dois organismos
que uma ciência que descreve experiências objetivas. produzam o “mesmo” percepto? Ao que parece, o cami-
Parece difícil senão impossível sustentar a tese de que nho da solução é considerar que, embora duas pessoas
as experiências objetivas não pertencem ao domínio de nunca vejam exatamente o mesmo percepto, para fins
investigação da psicologia, já que a fenomenologia da práticos é possível afirmar que duas pessoas podem ver
Gestalt trabalha a serviço da psicologia. Mas isso não o “mesmo” percepto ou ter a “mesma” experiência objeti-
reduziria uma imensa área do saber à psicologia? Qual a va. Köhler parece sugerir a seguinte fundamentação para
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A Fenomenologia de Köhler e o Conceito de Experiência Direta
isso. A objetividade do mundo fenomenológico cotidiano, O mundo da vida cotidiana e o sujeito que vive a vida
do mundo em que vivemos, é derivada da objetividade do cotidiana fazem parte de um mesmo sistema e ambos só
mundo físico. A condição de possibilidade da experiência existem, por assim dizer, como correlatos (1929/1968,
da objetividade se encontra na objetividade do próprio p. 23). Sem o sujeito não há o mundo da experiência obje-
organismo. É o organismo, em sua dinâmica com a glo- tiva direta (mundo cotidiano), e sem este, não há vida sub-
balidade dos estímulos recebidos, que gera todas as expe- jetiva possível. Mas o que dizer da relação entre o mundo
riências, tanto as fenomenologicamente objetivas quanto da física e o mundo cotidiano? A resposta de Köhler é que
as fenomenologicamente subjetivas. A experiência feno- o segundo depende ontologicamente do primeiro, ao passo
menologicamente objetiva tem como seu correlato mais que o primeiro depende epistemologicamente do segun-
imediato não o objeto físico, mas um processo cerebral, do (1929/1968; p. 24, 1938, p. 145). O mundo cotidiano é
com o qual ela compartilha características estruturais, condição de possibilidade do conhecimento do mundo
segundo a tese do isomorfismo. A objetividade das estru- da física e das demais ciências (Köhler, 1929/1968, p. 20,
turas cerebrais garantiria, se é válida a tese do isomorfis- 21). Essa posição é mantida por Köhler em 1960, seis anos
mo, a objetividade dos perceptos. Com essa tese a Gestalt antes de sua morte: o mundo fenomenológico é de onde
pode vincular pesquisas fenomenológicas com pesquisas se retira todo material para a dita construção do mundo
fisiológicas, extrapolando o domínio da fenomenologia físico (1960/1978a, p. 135). Do ponto de vista epistemo-
em estrito senso. Assim, os psicólogos da Gestalt usam a lógico, o mundo físico é apenas suposto. Mas, ao contrá-
fenomenologia em duas direções. As descrições fenome- rio de outros fenomenólogos, como Husserl (1913/1950),
nológicas possuem valor por si só, mas também servem ou filósofos que empregaram o método fenomenológico
como meio de acesso ao mundo não fenomenológico, em (Heidegger; 1927/2012, p. 103-111), Köhler não só aceita a
particular, os processos cerebrais. Essa posição ainda hoje tese de um mundo exterior e independente, como enten-
se mantém, por exemplo, no recente artigo Gestalt Factors de que a tarefa do cientista é conhecê-lo. Mas, para isso,
in the visual neurosciences, Spillmann and Ehrenstein como já salientamos, é necessária a experiência imedia-
defendem que a Gestalt foi “mais do que uma simples fe- ta ou fenomenológica, a qual precede não só logicamente
nomenologia” (2003, p. 1573), pois foi uma das primeiras quanto temporalmente a experiência mediata, pela qual
abordagens sistemáticas “para inferir processos cerebrais temos acesso inferencial ao mundo físico. Tanto na his-
a partir de perceptos.” (2003, p. 1573). tória do indivíduo quanto na história da humanidade,
Um dos aspectos interessantes do pensamento de o conhecimento do mundo fenomenológico precede o
Köhler, que o aproxima de várias outras correntes de fe- conhecimento do mundo físico e de suas propriedades.
nomenologia, é a concepção de que a objetividade “per- (Köhler, 1929/1968, p. 10). Mas é preciso enfatizar que a
cebida” não é uma objetividade física, independente da experiência fenomenológica não possui apenas primazia
consciência. Resulta daí uma expansão do conceito de cronológica, mas também lógica e epistemológica, pois é
objetividade. Uma vez que ser objetivo, do ponto de vis- a condição de possibilidade da experiência mediata. Mas
ta fenomenológico, significa manifestar fenomenologi- se o mundo cotidiano tem prioridade epistemológica, isso
camente como objetivo, não há razão para se prender ao não significa prioridade ontológica. O mundo físico não
preconceito de considerar que objetividades devem ter é dependente ontologicamente do sujeito, já que toda ex-
um aspecto coisal e concreto. Nota-se isso em famoso periência é geneticamente subjetiva, ou seja, é resultado
texto de Köhler, de 1944, “Fato e valor”, onde ele defen- de processos cerebrais.
de que o valor, embora seja excluído das ciências natu-
rais, as quais querem explicar tudo em termos de fatos Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
neutros, não é, por isso, fenomenologicamente subjetivo. Apoio
Pelo contrário, “fenomenologicamente, o valor está loca-
lizado em objetos e ocorrências” (Köhler, 1944/1978b, p. Está pesquisa teve o apoio da FAPESP.
116). O valor é dado na experiência direta como algo tão
objetivo quanto uma cadeira percebida. Afirmar que o
valor é fenomenologicamente subjetivo seria falsificar Referências
“nossos dados primários de observação” (1944/1978b, p.
116), seria recusar a evidência. Como exemplo, Köhler Araújo, S. d. F. (2013). O Manifesto dos filósofos alemães
afirma que, em uma melodia, pode-se notar “lenta in- contra a psicologia experimental: introdução, tradução
e comentários. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 13(1),
quietação ou força tranquila”. (1944/1978b, p. 116). Essa
298-311.
posição não espanta e é até mesmo esperada dado o que
foi apresentado até aqui. Tudo o que aparece diretamen- Aristotele. (2009). Metafisica (G. Reale, Trad.). Milano:
te como objetivo não é, em caso algum, nada de físico. Bompiani. (Originalmente publicado no séc. IX a.C)
Assim sendo, não há porque considerar que o que é o
Brentano, F. C. (1874). Psychologie vom empirischen Standpunkt.
objetivo deve ter uma aparência física ou uma consis- Leipzig: Verlag von Duncker & Humblot.
tência concreta e sensível.
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Sávio P. Peres
Descartes, R. (1973). Meditações. In V. Civita (Ed.), Descartes Smith, B. (1994). Austrian philosophy: the legacy of Franz
(Vol. XV). São Paulo: Abril Cultural (Originalmente pu- Brentano. Chicago: Open Court.
blicado em 1641).
Spillmann, L., & Ehrenstein, W. H. (2003). Gestalt factors in
Engelmann, Arno. (2002). A psicologia da gestalt e a ciência the visual neurosciences? In J. S. Werner & L. M. Chalupa
empírica contemporânea. Psicologia: Teoria e Pesquisa, (Eds.), The visual neurosciences (p. 1573-1589). Cambridge,
18(1), 1-16. MA: MIT Press.
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