Você está na página 1de 307

AAUTONOMIACOMO

vAroR E A ARTICULAqÁO
DE POSSIBILIDADES
Um estudo do movimento dos
professores indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre, a partir dos seus
encontros anuais
ABYA
4 20s
q,z
A AUTONOMIA COMO VALOR
EAARTICULAqÁO DE
POSSIBILIDADES
Um estudo do movimento dos professores
indígenas do Amazonas, Roraima e Acre,
a partir dos seus encontros anuais

ROSA HELENA DIAS DA SILVA

Instituto de Antropología Aplicada

1ililil||ilffiüililililililil

Ediciones
Abya - Yala
1998
A AUTONOMIA COMO VAIOR
E A ARTICULAqÁo nn IoSSTBILIDADES
Rosa Helena Dias da Silva

UNIVERSIDADE DE SÁO PAULO


FACULDADE DE EDUCAQÁO

Programa de Pós-Graduagáo em Educagáo


Area: Cultura, Organizagáo, Educagáo
Tese apresentada ) Faculdade de Educagáo da Universidade de Sáo paulo
como parte dos requisitos para obtengáo do tínrlo de Doutor em Educagdo.
Orientadora: Profa. Dra. Roseli Fischmann
Sáo Paulo dezembro/l997

Edición: Ediciones ABYA-YALA


12 de Octubre 14-30 y Wilson
Casilla: 17-12-719
Teléfono: 562 633 - 506 247
Fa* (593-2) 506255
E-mail: editorial@abyayala.org.
enlace@abyayala.org
admin -info@abyayala.org
Quito-Ecuador

Autoedición: Abya- Yala Editing


Quito - Ecuador

Impresión: Docutech
Quito Ecuador

ISBN: 9978-04-459-0

Impreso en Quito-Ecuador, 1998


"O pessoal está se reunindo para mudar essa escola, Estamos nos reu-
nindo para ver como seria a escola ideal para nós'i
(Relatório do II Encontro dos Professores Indlgenas do Amazonas e
Roraima, Manaus, 1989)

"(,,.) é necessário formar e valorizar profissionais rtoltados para a pró- .

pña comunidade, vimnilo a nossa autonomia e para que as escolas


sirvam como instrumento paru apermanéncia dos jovens e¡n nossas
aldeias e nño como portas de saída".
(Documento final do IX Encontro dos Professores Indígenas do Ama-
zonas, Roraima e Acre, Sáo Gabriel da Cachoeira,1996)

.:&
,*
.*
'&
#
Resumo
""¡.

s
*r A partir do estudo do movimento dos professores indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre, tendo como eixo de análise referencial seus
Encontros anuais e as próprias experiéncias dos professores indígenas
participantes deste movimento, na prática cotidiana em suas regióes, o
presente trabalho procura verificar o papel cultural, polltico e pedagó-
gico desta articulagáo/organizagáo indígena na construgáo de Escolas
Indígenas.
Tiabalha-se com a concepgáo de "escola indígena" como nova
forma de instituigáo educacional, definindo-se a servigo de cada povo,
enquanto instrumento de afirmagáo e reelaboragáo cultural. Ao mes-
mo tempo, uma escola que contribua na conquista de espago político
no campo da educagáo pelos povos indígenas, dentro do Estado Brasi-
leiro, buscando novas relagóes interculturais, no marco do reconheci-
mento do Brasil enquanto país pluricultural, assim como a superagáo
da perspectiva integracionista. Uma escola indígena que se contrapóe,
assim, á idéia e realidade das "escolas para os lndios".
O trabalho analisa ainda os limites e possibilidades das escolas
indlgenas, enquanto recurso político-cultural de afirmagáo das identi-
dades no confronto e/ou enfrentamento da realidade atual, no que se
refere ao contato interétnico, identificando os avangos, contradigóes e
tensóes deste processo.

Esta tese foi elaborada com auxílio da FAPESP e do CNPq.


Abstrat

Taking as a starting point the study of the movement of indige-


nous teachers of Amazonas, Roraima and Acre and having as an ana-
listical reference, their anual meeting and their daily experiences in
their regions, the present essay tries to verifr the cultural, political and
pedagogical role of this indigenous organization in the building up of
indigenous schools.
We work with the concept of "indigenous school" as a new form
of educational institution, defining itself at the service of each people
as an instrument of identity affirmation and cultural reelaboration. At
the same time as a school that contributes to the conquest of a politi-
cal space in the education area by indigenous peoples within the Bra-
zilian state seeking for new intercultural relations, recognizing Brazil as
a pluricultural country and overcoming the integration perspective. An
indigenous school that opposes the idea and reality of "school for in-
dians".
The essay also analizes the limits and possibilities of indigenous
schools as a political-cultural resource of affirmation of identity in the
confrontation with actual reality as regards interethnic contact identif-
ying the advances, contradictions and tensions of this process.

This thesis was elaborated with the help of FAPESP and CNPq.
SUMÁRIO
RESUMO ..........7
ABSTRAT ..........9
suMARro ........11
SIGIASIITILIZADAS.... .......I3
AGRADECIMENTOS .....I5
l.APRESENTAQÁO
escolha
1.1. Definigáo do tema: justificando uma . . . . . . . .19
1.2.Opgóesteórico-metodológicas .......21
2. TNTRODUQÁO
2.1. Delimitagáo da temática: educagáo indlgena e educagáo
escolarindígena .......29
2.2.Brevehistórico da educagáo escolar indlgena . . . . . . . .33
2.2.l.llma proposta de delimitagáo: as diferentes fases
esuascaracterísticasprincipais .... .......33
2.2.2.Relagáo entre Povos Indígenas e Estado Nacional:
polltica e legislagáo indigenista no Brasil . .. .. . ...42

3. O MOVIMENTO DOS PROFESSORES INDÍGENAS DO


AMAZONAS, RORAIMA E ACRE: A CONSTRUQÁO
DE UMA TRAIETÓRIA
3.l.Retrospectivahistórica... .....61
3.2.OsEncontrosanuais(f988a 1997). .........65
3.3. Caracteúzagáo e mapeamento do movimento .
. . ...149
3.4,Caúter educativo do movimento: educagáo e organizagáo . .162
3.5. A forga dos valores, das idéias e dos ideais:
aDeclaragáodePrinclpios.. .......164
3.6. Eixos articulatórios: o político,o culturale o pedagógico ...183
3.T.Slntesedopercursodomovimento.... .....187
4. PROFESSORES INDIGENAS: PAPEL E PERSPECTIVAS
4.1. De monitor a professor: professores e projetos indígenas
deescola ......205
4.2. P rática político-ped agógica: concepgóes, estratégias
einiciativas ...207
4.3. Aforga pedagógica da oralidade . . . . .2tO
4.4. A escrita na construgáo de uma outracidadania: escola
ecidadaniaindígena ........212
5. IDENTIDADE, IDENTIDADES:
ESCOLAS, MOVIMENTO E AUTONOMIA INDfGENA
5.1 .Movimento indígenai ayez e avozdos professores . . . ., . . .221
5.2. Interculturalidade e solidariedade interétnica:
para além das próprias fronteiras . . . .223
5.3. Cultura: a aproximagáo de um conceito . . . , .225
5.4. O direito á diferenga: conquistando igualdade
nadiversidade... ....227
5.5. Da apropriagáo á inovagáo: "indianizagáo"
da instituigáo escolar

| 6. CONSIDEMQóES FINAIS: A CUtSe


DE CONCLUSÁO . .. . .23s

BIBLTOGRAFIA .. , ,.. ...253


ANEXOS

1-EntrevistacomBartomeuMeliá. .....265
2 - Entrevistas com quatro professores indígenas . . . . . . .270
3 - Participagáo de Gersem dos Santos Luciano no
II Congresso Ibero-Americano de História da Educagáo
Latinoamericana. .....288
4 - Relatório de Sebastiáo Duarte, representante no
/MEC
Comité Assessor do . . . .296
5-DocumentosproduzidosnosEncontros .....301
SIGLAS UTILIZADAS
ANAf Associagáo Nacional de Apoio ao fndio
ANE Articulagáo Nacional de Educagáo
CEDI Centro Ecuménico de Documentagáo e Informagáo
CESE Coordenadoria Ecuménica de Servigos
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CIR Conselho Indígena de Roraima
COIAB Coordenagáo das Organizagóes Indlgenas da Amazónia
Brasileira
COLE - Congresso de Leitura do Brasil
COPIAR Comissáo dos Professores Indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre
CPI/AC Comissáo Pró-fndio do Acre
CTPCC Centro de Treinamento Profissional Clara Camaráo
FOIRN Federagáo das Organizagóes Indlgenas do Rio Negro
FUNAI Fundagáo Nacional do fndio
IER/AM Instituto de Educagáo Rural do Amazonas
ISA Instituto Sócio Ambiental
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educagáo Nacional
NEPE Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educagáo/Universidade
do Amazonas
MEC Ministério da Educagáo e Desportos
OPAN Operagáo Amazónia Nativa
OPIR Organizagáo dos Professores Indlgenas de Roraima
SIL Summer Institute of Linguistics
SPI Servigo de Protegáo ao fndio
UA Universidade do Amazonas
UNIMEP Universidade Metodista de Piracicaba
USP Universidade de Sáo Paulo
Agradecimentos

Durante o perlodo inicial, setembro de 1993 a fevereiro de 1996


a pesquisa foi desenvolvida com auxílio financeiro da FAPESP. Gosta-
ria de registrar que a relagáo com FAPESP foi além do simples suporte
financeiro, delineando-se como um tipo de "parceria", que trouxe con-
tribuigóes muito significativas, possibilitando-me oportunidade de
uma interlocugáo privilegiada, por intermédio de sua assessoria cientí-
fica. Os pareceres de acompanhamento com seus comentários, críticas
e sugestóes de leitura representaram importantes orientagóes, ajudan-
do a avangar consistentemente o trabalho. Os cinco relatórios semes-
trais, elaborados para a entidade, serviram também como retorno di-
reto e imediato ao movimento. A partir de setembro de 1996 tenho re-
cebido apoio do CNPql. Agradego a essas duas instituigóes o apoio que
me possibilitou chegar até aqui.
Gostaria de destacar também, enquanto parte decisiva deste tra-
balho, a presenga de minha orientadora Prof". Dra. Roseli Fischmann.
A relagáo pedagógica nascida entre nós extrapola sua tarefa principal
(de orientagáo no processo cientlfico e académico) pois nossa identifi-
cagáo e compromisso nascem antes, sáo lagos invislveis aos olhos, mas
que fortalecem as esperangas de quem aPosta e se esforga em ser mais
um, na construgáo de um mundo solidário e plural.
Agradego as pertinentes crlticas e sugestóes recebidas da banca,
por ocasiáo dos sucessivos Exames Gerais de Quaüficagáo de mestrado
e doutorado2, composta pelo Prof. Dr. Márcio Silva e Prof", Dr". Maria
Cecllia Sanches Teixeira.
De fundamental importáncia tem sido a possibilidade de convi-
véncia na assessoria ao movimento, com os professores Márcio Silva e
Marta Azevedo. Esse relacionamento de trabalho e reflexáo conjunta,
além da amizade e companheirismo académico, muito tem significado
para meu crescimento intelectual.
16 Rosa Helena Dias da Silva

É importante lembrar o quáo importante foi esse momento de


"volta aos bancos da escola"; das disciplinas cursadas; dos textos e liv-
ros estudados; das discussóes e debates com professores e colegas de
cursos; da participagáo em diversos eventos científicos, como as reu-
nióes anuais da ANPEd, em especial as discussóes realizadas no GT
"Movimentos Sociais e Educagáo". Gostaria de agradecer a ProF Maria
da Glória Gohn (UNICAMP) por ter me incentivado e recomendado a
participagáo neste espago.
Quero rememorar aqui alguns dos professores que tiveram uma
importáncia especial no processo da minha formaqáo académica bási-
ca. Ao anotar seus nomes, ficam também registrados os meus agrade-
cimentos: Valdeir fustino, |osé Carlos e Vera Lúcia dos Santos Abraháo
(UFMS/Dourados); Luis Carlos Freitas e Ruti Iofñly (LINIMEP).
Registro ainda a contribuigáo significativa que tem representa-
do os momentos de estudo com Bartomeu Meliá, propiciados pela Ar-
ticulagáo Nacional de Educagáo do CIMI. Desde a décadade setenra, as
elaboragóes de Meliá tem tido expressivo valor para o avango das dis-
cussóes sobre a temática da educagáo escolar indígena em nosso país3.
De igual valor tem sido a convivéncia com outros agentes indi-
genistas do CIMI, através da socializagáo das diferentes práticas, da
confrontagáo das diversas iniciativas, do debate e teorizagáo coletiva.
Náo cito nomes porque sáo muitos os companheiros, todos igualmen-
te importantes e queridos. Guardo com carinho o nome e o rosto cie ca-
da um.
Ao Egon - companheiro da minha vida - um obrigada muito especial,
por me abragar cotn amor.
Thmbém ds "minhas meninAs" (Aruana, Thafs e Thriana), pela alegria
de crescer com elas.
Aos meus pais - Oswaldo e Tula - por ter com eles aprendido a culüvar
valores fundamentais, coftto A solidariedade e o segredo de ser sempre jo-
vem na esperan?a.
Ao mano Osvaldo José, que ao enfrentar limites concretos da existéncia
humana, repartiu comigo momentos Preciosos de sua comPeténcia no
" mundo do s computadores".

Ndo poderia deixar de lembrar, com ut carinho especial, os professores


indígenas do Amazonas, Roraima e Acre. Durante este período, em que
estou tendo o privilégio de poder aprofundar teoricamente questóes que
vivenciam etn seu cotidiano, continuam juntando seus esforgos na cons-
trugño de escolas realmente indígenas. A eles, dedico este trabalho.
1. APRESENTAQAO

l.l. Definigáo do tema: justificando uma escolha

O tema-título do presente trabalho surge da importáncia do pa-


pel que os professores indígenas véem desempenhando, no atual mo-
mento histórico dos povos indlgenas no Brasil, em sua pútica concre-
ta de construgáo das Escolas Indlgenas.
Conforme analisou Silva (1995), "embora táo antiga quanto a
colonizagáo do Brasil, a escola indígena e, de modo mais amplo, a edu-
cagáo escolar presente em áreas indígenas Passaram a ser objeto de re-
flexáo e crítica e, em alguns casos, de uma'revolugáo pedagógica', há
cerca de parcos vinte anos. (...) Nas aldeias e nas áreas indígenas, é tam-
bém a década de 70 que vé as tentativas pioneiras de construgáo de
uma educagáo escolar sintonizada com os interesses, os direitos e as es-
pecificidades de povos e culturas indígenas. (...) Esta tendéncia, ainda
ausente ou incipiente em muitas localidades, é, no entanto, a grande
novidade e o fruto principal de um processo recentemente iniciado,
mas rapidamente amadurecido, do qual, os encontros e as associagóes
de professores lndios sáo hoje o polo mais avangado"4.
Por razóes familiares, no ano de 1979, fui residir em Dourados-
MS. Nessa oportunidade, tive meu primeiro contato com a problemá-
tica dos povos indígenas no Brasil. A situagáo dos Guarani, Kaiowá e
Terena, residentes na Reserva Indígena de Dourados, distante poucos
quilómetros da cidade, chamou-me a atengáo pela sua gravidade.
Ameagados constantemente na sua esPeranga de vida, esses povos so-
friam (e sofrem) agressóes que póem em risco sua integridade física e
cultural.Iniciei, na ocasiáo, o curso de Pedagogia, na Universidade Fe-
deral do Mato Grosso do Sul, concluindo-o, posteriormente, na Uni-
versidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP.. Ainda em Dourados, no
10 semestre de 1983, participei de um Programa de Pré-Escola junto ao
povo Kaiowá, em convénio com a UNIMEP. Em 1984 e 1985, estive
temporariamente afastada do trabalho direto com a questáo indlgena,
retornando a ele só em 1986, quando, a convite do Secretariado Nacio-
nal do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), passei a integrar a
20 Rosa Helena Dias da Silva

equipe do jornal Porantim, o que perdurou até o final de 1988.


Nos anos seguintes - 1989 a 1992, meu trabalho indigenista na
regiáo amazónica esteye basicamente ligado i questáo da educagáo es-
colar indígena. Acompanhei as discussóes sobre o assunto e também
assessorei o entáo nascente "Movimento de professores indígenas do
Amazonas e Roraima'l tendo participado dos seus II, III, IV e V Encon-
tros Anuaiss. Durante o mesmo período, pude ainda acompanhar o
trabalho da COPIAR - Comissáo dos Professores Indlgenas do Amazo-
nas e Roraima, cuja criagáo ocorreu ao final do II Encontro (1989). A
COPIAR tem sido, desde a sua criagáo, responsável pela elaboragáo,
coordenagáo e administragáo dos projetos paraareal:zagáo dos Encon-
tros,como será tratado adiante6.
Após ter vivenciado todo esse processo, senti a necessidade de
analisar, através da reflexáo e estudos, os desafios colocados pela práti-
ca. Por ter uma vivéncia de compromisso com os povos indígenas, es-
tava em busca de uma agáo teórico-prática coerente, que significasse
apoio eficaz a seus esforgos para garantir seus direitos. Neste caso, o di-
reito a ter educagáo própria, diferenciada e adequada aos seus interes-
ses, direito esse assegurado pela
Constituigáo Federal de de 1988 e re-
centemente reafirmado na Lei n" 9.394196 - Lei de Diretrizes e Bases da
Educagáo NacionalT. Buscava entáo um aprofundamento teórico que
propiciasse novos conhecimentos e aperfeigoamento da prática junto
ao movimento.
Os próprios índios tém essa expectativa em relagáo aos assesso-
res, como se pode constatar na fala de Gersem dos Santos Luciano, do
povo Baniwa, Alto Rio Negro/AM,lideranga expressiva do Movimento.
Dentre diversas idéias e conceitos levantados ao responder á questáo:
"O que o assessor pode ser na luta dos povos indígenas?", Gersem des-
taca8:

Sem dúvida a assessoria é muito importante e valiosa, mas precisa


ser suficientemente boa, Faz-se necessório que o assessor tenha um conhe-
cimento profundo e crítico do seu meio social e do seu trabalho - forma-
gño profissional; pois somente com boa e eficiente qualificagño no seu meio
social teró condigóes de ser um bom assessor9.

Desde 1991, quando a idéia deste estudo comegou a ser gesta-


dalo, tenho discutido a proposta da pesquisa com membros da CO-
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 2l

PIARII e com diversos professores e liderangas indígenas, com o intui-


to de o trabalho poder, desde seu início, cooperar com o próprio mo-
vimento, verdadeiro "dono" desta experiéncia, o responsável pelos
avangos nessa trajetória.
Iniciei, assim, meu mestrado na Faculdade de Educagáo da Uni-
versidade do Amazonas, em abril de 1992, tendo cursado quatro disci-
plinas. Porém, o programa de mestrado daquela instituigáo estava en-
caminhado para a área de lingulstica, o que náo preenchia minhas ne-
cessidades e expectativas.
Busquei entáo um lugar onde pudesse tealizar a contento minha
proposta de trabalho, que me permitisse desenvolver um estudo sobre
a possibilidade das escolas indígenas serem instrumental de afirmagáo,
resisténcia e reelaboragáo cultural. Esta dinámica construgáo tem se
dado especialmente através da articulagáo e organizagáo dos professo-
res indlgenas, o que colocava a adequagáo da via da análise educacio-
nal.
A Faculdade de Educagáo da Universidade de Sáo Paulo foi en-
táo a instituigáo escolhida. Tirl oportunidade, concretizada com minha
aprovagáo no processo de selegáo Para o mestrado (inlcio de 1993) e
posterior passagem de nlvel para o doutorado (abril de 1996), rePre-
sentou um desafio instigante e motivador.

1.2. Op9óes teórico-metodológicas

Objetivei, através da análise sistemática da experiéncia do movi-


mento de professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, verifi-
car a possibilidade de construgáo de escolas indígenas que, além da ta-
refa de introduzir conhecimentos sobre a sociedade envolvente a seus
alunos, estejam a servigo de cada povo, sendo instrumentos de sua afir-
magáo e reelaboragáo cultural, no contexto dinámico do contato inte-
rétnico.
Ciente de que tema táo específico, e ao mesmo tempo táo com-
plexo, requeria abordagem interdisciplinar' em uma persPectiva de
cooperagáo entre os vários campos do saber, busquei o intercámbio,
em especial nas áreas referentes ) Educagáo e á Antropologia Social.
Com tal opgáo metodológica pretendi ampliar o referencial teórico, o
que me permitiu análise mais abrangente e profunda, contemplando
22 Rosa Helena Dias da Silva

os diversos aspectos e dimensóes da problemática estudada.


A pesquisa orientou-se no entendimento de que a questáo indi
gena náo estií desvinculada das questóes globais do país, ao contrário,
é parte destas. E neste sentido que se vincula a questáo étnica á discus-
sáo nacionall2. Segundo Polanco (1985), "os sistemas étnicos sáo con-
formagóes sociais submetidas ao processo histórico, cujas bases sócio-
culturais, condigóes de reprodugáo e formas de vinculagáo política so-
frem constantes modificagóes; estes trés planos relacionados e em per-
manente transformagáo sáo o ponto de partida fundamental para a
compreensáo da problemática étnica e ao mesmo tempo, para avaliar a
forga histórica que contém"I3.
Para grupos étnicos, adoto a elaboragáo de Frederik Barth, se-
gundo o qual, "grupos étnicos sáo formas de organizagáo social em po-
pulagóes cujos membros se identificam e sáo identificados como tais
pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias
da mesma ordem"l4,
A metodologia empregada para análise dos movimentos sociais
populares (Gohn, 1987) foi utilizada como suporte, dispensando-se a
devida atengáo ás diferengas básicas existentes de forma a ampliá-la pa-
ra a análise das especificidades da questáo étnico-cultural. Desta forma,
procurei identificar o princípio articulatório básico do movimento,
suas características específicas, assim como detectar suas origens.
Para observar o caráter educativo do movimento e sua proposta
pedagógica, tanto a ideal, pensada e projetada pelos professores indíge-
nas e comunidades, como a que está sendo construída neste processo,
procurei conhecer e analisar o caráter objetivo e o subjetivo de suas
agóes, ou seja, as práticas e os valores simbólicos do movimento, sua
agáo, suas idéias, seus ideais e suas esperangas.
Quanto aos procedimentos metodológicos específicos, o trabal-
ho insere-se na categoria analítico-descritiva, acrescido de característi-
cas de pesquisa-agáo (Barbier, 1985), no marco da busca de novos pa-
radigmas para apesquisa educacional, que rompam com o enfoque po-
sitivista, como v6em fazendo as abordagens qualitativas.
Segundo Bogdan e Bikle (apud Ludke, 1986)ls sáo característi-
cas da pesquisa qualitativa: l) ter o ambiente natural como sua fonte
direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento. Os
problemas sáo estudados no ambiente em que eles ocorrem natural-
mente, sem qualquer manipulagáo intencional do pesquisador.
A autonomia como valor e a articulaQdo de possibilidades 23

2) Os dados coletados sáo predominantemente descritivos. To-


dos os dados da realidade sáo considerados importantes.
3) A preocupagáo com o processo é muito maior do que com o
produto.
4) O "significado" que as pessoas dáo )s coisas e á sua vida sáo
focos de atengáo especial pelo pesquisador. Captar a "perspectiva dos
participantes", isto é, a maneira como os informantes encaram as ques-
tóes que estáo sendo focalizadas, é fundamental.
Náo é objetivo deste trabalho, assim, fazer generalizagóes, nem
táo pouco obter um "resultado médio" como em pesquisas tipo "Sur-
vey" ou levantamento, pois estes, de maneira geral, reúnem e anulam
as diferengas existentes. Ao contrário, é meu objetivo mostrar a diver-
sidade de práticas e situagóes, compreendendo as tramas que se passam
no movimento e nas aldeias.
O ponto de partida foi a curiosidade investigativa despertada
por questóes da prática, na convivéncia e assessoria ao movimento dos
professores indígenas. Dentre as várias possibilidades existentes para
enfocar e investigar o tema aqui proposto, optei por priorizar, como
fonte principal, a ótica dos próprios professores indígenas participan-
tes do movimento em questáo. Assim, sáo tarefas fundamentais a que
me propus, escutar e procurar compreender aquilo que eles tém pro-
curado refletir e construir sobre suas realidades, dentro de seu proces-
so de articulagáo e organizagáo16.
Ao analisar o papel do pesquisador, Menga Ludke e Marli André,
afirmam que: "é pelo seu trabalho como pesquisador que o conheci-
mento especlfico do assunto vai crescer, mas esse trabalho vem carre-
gado e comprometido com todas peculiaridades do pesquisador, inclu-
sive, e principalmente, com suas definigóes polltic¿s"I7.
Conforme descrito anteriormente, tenho uma história indige-
nista construída na vivéncia do trabalho de apoio, assessoria e alianga
com os povos indígenas, em especial na Amazónia, prioritariamente
junto aos professores indlgenas. O meu papel de assessora é anterior ao
de pesquisadora. E assim que os professores indígenas me reconhecem:
como aliada. De minha parte, um dos pontos que mereceu mais aten-
9áo foi a permanente análise e reflexáo entre esse compromisso ético e
o rigor cientlfico na investigagáo. Da mesma forma, mantive os profes-
sores do movimento permanentemente informados do andamento da
pesquisa, entrelagando as conclusóes parciais do trabalho ao andamen-
24 Rosa Helena Dias da Silva

to do movimentol8.
Desta forma, durante todo o processo, procurei evitar fatos iso-
lados, onde houvesse preocupafp excessiva com a pesquisa. Esta sem-
pre encaixou á programagáo já existente, aproveitando os momentos
se
demandados pelo próprio movimento, como encontros, cursos, reu-
nióes, visitas )s áreas. A participagáo nos momentos planejados pelo
movimento propicia um maior conhecimento da questáo estudada, ao
permitir que os participantes, em sua maioria, sejam "informantes", no
sentido das pesquisas convencionais.
Como já afirmei anteriormente, há uma profunda reflexáo e teo-
rizagáo sendo construída coletivamente que merece ser conhecida e va-
lorizada. O trabalho minucioso de pesquisa, estudo, reflexáo e análise
pode assim ser inserido nos significativos momentos que já existem na
dinámica do movimento. O reconhecimento da adequagáo dessa escol-
ha está presente nos convites que recebo para trabalhos de assessoria.
Tial proceder, de fato, fundamenta-se na convivéncia, confianga e res-
peitabilidade já conquistada anteriormente.
Menga Ludke e Marli André, ao tratar da dimensáo social da pes-
quisa e do pesquisador,lembram que estamos "mergulhados natural-
mente na corrente da vida em sociedade, com suas competigóes, inte-
resses e ambigóes, ao lado da busca legítima do conhecimento científi-
co. Esse mesmo conhecimento vem sempre e necessariamente marcado
pelos sinais de seu tempo, comprometido portanto com sua realidade
histórica e náo pairando acima dela como verdade absoluta. A constru-
gáo da ciéncia é um fenómeno social por exceléncia. (...) como ativida-
de humana e social, a pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga de
valores, preferéncias, interesses e princípios que orientam o pesquisa-
dor"19.
Propus-me a somar com aqueles pesquisadores que entendem
que é necessário construir uma nova atitude de pesquisa: colocando o
pesquisador no meio da "cena investigada", participando e tomando
partido na "trama da pega". Nesta perspectiva, a questáo da construgáo
de um "olhar abrangente" para o conhecimento da realidade é funda-
mental e exige constante aprendizado2o.
Um pressuposto desta tese que também merece explicitagáo é o
entendimento de que o "fato" pesquisado é um processo, a construgáo
de uma experiéncia inacabada. Captar essa realidade dinámica e com-
A autonomia como valor e a articulaEAo de possibilidades 25

plexa, em sua realizagáo histórica, é um desafio. E, nesse sentido, que


identifico a contribuigáo específica deste estudo e pesquisa para o
avango do conhecimento especlfico do assunto em foco: a educagáo es-
colar indlgena.
Assim, concebo como necessidade a construgáo permanente
desta teoria, o constante confronto com a prática e a "devolugáo" (in-
terlocugáo) com o movimento. A pesquisa seria entáo a produgáo de
alguns resultados, que intentam ajudar na descoberta de possíveis so-
lugóes para os problemas.
Quanto ás técnicas de investigagáo utilizadas, destaco a observa-
gáo participante, os constantes diiílogos, em diversos e significativos
momentos, o contato pessoal com a realidade estudada e a convivéncia
direta de sete anos com o movimento dos professores indlgenas2r.
A respeito do que chamei acima de "devolugáo/interlocugáo"
com o movimento, gostaria ainda de tecer alguns comentários sobre
dois momentos em particular.
Em primeiro lugar, o Seminário de Pesquisa, realizado durante o
MI Encontro, contou com a presenta de 36 pessoas (31 professores in-
dígenas e 05 assessores, sendo eles, Marta Azevedo, do Mari/USR Már-
cio Silva, da UNICAMR além de trés pessoas do CIMI). Após apresen-
tagáo do trabalho, o Prof. Gersem dos Santos Luciano, Baniwa, no pa-
pel de comentaristazz,falou sobre seu entendimento de que uma das
forgas do movimento está nas aliangas e de que essas só sáo verdadei-
ras e eficazes se "ttm conhece o outro". Nesse sentido, o processo da pes-
quisa é am "permitir conhecer-se". Destacou a necessidade do entrosa-
mento entre o movimento e as assessorias, dizendo que teffios que nos
entender, precisamos nos conhecer sempre mais para ter melhor condigño
para assessorar, para continuar assessorand&3. Logo após, o Prof. Már-
cio Silva colocou a sua análise sobre o processo da minha pesquisa. Se-
gundo suas palavras, ela mostra que "é posslvel uma agáo política indi-
genista juntamente com uma agáo de pesquisa". Avaliou que o anda-
mento da pesquisa esta colaborando para que se "quebre o preconcei-
to com o pesquisador". lá no momento dos debates, o professor indl-
gena Euclides Pereira, Macuxi, de Roraima, recolocou preocupagóes
gerais quanto á questáo de pesquisas em áreas indlgenas. Relembrou
exemplos de pesquisadores que após terem sido recebidos pelas comu-
nidades, tendo acesso a seus conhecimentos, sua vida e realidade, váo
embora sem deixar notícias, e o que é o pior, acabam chegando a con-
26 Rosa Helena Dias da Silva

clusóes que váo contra os próprios índios2a. Fez colocagóes sobre a


minha pesquisa, dizendo que foi importante saber que havia autoriza-
gáo e consentimento, por parte dos professores, para sua realizagáo.
Avaliou que, através da pesquisa, os próprios professores (principal-
mente aqueles que náo puderam participar mais diretamente dos En-
contros), poderiam conhecer a história de seu movimento. Fez ainda a
seguinte observagáo: ao folhear um dos Relatórios de PaquisúS vi mui-
tas falas dos professores, muitas citagóes, e acho muito importante que vo'
cé esteja valorizando esse caráter científico dos eventos - nño se pode des-
prezar os Encontros!
O segundo momento que destaco refere-se ao subsídio elabora-
do entre novembro e dezembro de 1996, o qual náo estava previamen-
te programado. De fato, essa elaboragáo surgiu da necessidade do pró-
prio movimento indígena26 divulgar sua experiénciaprática e de refle-
xáo sobre a temática da educagáo escolar em suas aldeias. A iniciativa
partiu de Gersem dos Santos Luciano, ex-membro da COPIAR e, na
época, coordenador geral da COIAB (Coordenagáo das Organizagóes
Indígenas da Amazónia Brasileira), tendo sido concretizada na forma
de um "Informativo", para o que Gersem solicitou minha contribui-
9áo27 '
permitir que o movimento fosse "assesso-
Esta foi uma forma de
rado pelo próprio movimento", ou seja, ao resgatar as discussóes e ela-
boragóes já construídas coletivamente, e devolvé-las aos participantes,
estes tém a oportunidade de reavaliá-las, reafirmá-las ou redimensio-
ná-las. Entendo que esta é uma questáo fundamental para o avango in-
terno das discussóes, posigóes e propostas Para a educagáo escolar in-
dígena na regiáo, visto a densidade e expressivo significado desse mo-
vimento. É ainda, uma maneira de contribuir para que os novos parti-
cipantes entrem em contato com as reflexóes produzidas, rememoran-
do conjuntamente as análises e posigóes já tomadas, quanto aos temas
tratados2S. Poderíamos dizer que a escrita estaria sendo usada assim,
como um novo instrumental político-pedagógico e de comunicagáo, a
servigo da "memória coletiva".
A experiéncia indigenista recente, em contato direto com essa
realidade, conforme explicitado, despertou-me para o tema, e é meu
desejo compreender, através da pesquisa científica, questóes relevantes
dessa temática, elaborando um trabalho que seja significativo Para o
A autonomia como valor e a articulagao de possibilidades 27

próprio movimento indlgena e possa contribuir para a discussáo teó-


rica que se faz atualmente no Brasil no campo interdisciplinar de estu-
do dos povos indlgenas.
2. INTRODUqAO

2.1. Delimitagdo dt temática: educagáo indlgena e educagáo escolar


indígena

Para tratar do tema da Educagáo Escolar Indígena faz-se neces-


sário delimitá-lo dentro da questáo mais ampla da Educagáo Indíge-
na29.
O fato de o processo educativo nas sociedades indígenas apre-
sentar diferengas radicais quanto i educagáo escolar geral pode levar á
conclusáo equivocada de que náo existe educagáo indígena. Conforme
Meliá, em seu livro Educagño Indígena e Alfabetizagño, "pressupóe-se
que os lndios náo tém educagáo, porque náo tém a nossa educagáo"3o.
Esse tipo de preconceito tem gerado, desde os primeiros tempos
coloniais, como veremos mais adiante, a idéia de que é necessário "fa-
zer a educagáo do índio". E, com essa Perspectiva que, historicamente,
tém-se implantado os projetos escolares Para as populagóes indlgenas.
Em outras palavras, a escola e aalfabetizagáo entram em cena como si-
nónimos de educagáo.
Na obra acima citada, Meliá trabalha nogóes e conceitos de edu-
ca9áo indígena e propóe um quadro onde sintetiza o contraste entre
educagáo indígena e educagáo escolar "para o lndio". Podemos consta-
tar diferengas fundamentais que demarcam os dois conceitos e que
perpassam os processos: os objetivos e fungáo social da própria educa-
gáo, seus meios e condigóes de transmissáo e a natureza dos conheci-
mentos.
Um dos pressupostos básicos desta pesquisa é o entendimento e
afirmagáo de que tém existido historicamente formas próprias de edu-
cagáo indígena, e de que as pedagogias indígenas constituem-se em va-
lor fundamental, que deve também orientar os trabalhos escolares. En-
tendo educagáo como todo conhecimento que uma comunidade ou
povo possui e que é de domínio de todos, transmitidos de pais para fil-
hos e necessários para viver bem. Neste sentido, educagáo náo é o mes-
mo que escola. E o processo através do qual toda pessoa aprende a vi-
ver. Essa aprendizagem se dá na família, na comunidade e no povo3l.
30 Rosa Helena Dias da Silva

Nesse processo, a educagáo escolar, ao surgir e se desenvolver enquan-


to um novo espago e tempo educativo, necessariamente deve basear-se
nos princípios educativos e métodos próprios de aprendizagem dos po-
vos indígenas, conforme garante, mesmo, a Constituigáo do Brasil, pa-
ra entáo acrescentar outros conhecimentos, necessários para a vida
atual.
Um segundo pressuposto é de que a escola náo é o único lugar
de aprendizado. Nas palavras do professor Gersem dos Santos Luciano,
do povo Baniwa, regiáo do Rio Negro/AM,

ela é uma maneira de organizar alguns tipos de conhecimento pa-


ra ensinar ds pessoas que precisam, através de uma pessoa que é o profes-
sor. Escola nño é o predio construído ou as carteiras dos alunos, sño os con-
hecimentos, os saberes. Também a comunidade possui sua sabedoria para
ser comunicada, transmiüda e distribuída.

Ao referir-se aos povos indígenas do Rio Negro, Gersem, que é o


atual Secretário de Educagáo do Município de Sáo Gabriel da Cachoe!
ralAM, aponta alguns valores e mecanismos da educagáo tradicional,
na sua avaliagáo, mantidos e valorizados até hoje:

A família e a comunidade ou povo sño os responsáveis pela educa-


gño dos filhos. E na família que se aprende a viver bem: ser um bom caga-
dor, um bom pescador, um bom marido, uma boa esposa, um bom filho,
um membro solidário e hospitaleiro da comunidade;
Aprende-se a fazer roga plantar, fazer farinha;
Aprende-se a fazer canots, cestarias;
Aprende-se a cuidar da saúde, benzer, curar doengas, conhecer
plantas medicinais;
Aprende-se a geografia das matas, dos rios, das serras; a matemá-
tica e geometria para fazer canoas, retnos, rogas; cacuri, etc;
Ndo existe sistema de reprovagño ou selegño;
Os conhecimentos específicos (como o dos pajés) estao a servigo e ao
alcance de todos;
Aprende-se a viver e combater qualquer mal social, para que nño
tenha na comunidade criangas órfñs e abandonadas, pessoas passando fo-
me, mendigos, velhos esquecidos, roubos, violéncia, etc;
Todos sño professores e alunos ao tnesmo teffipo.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 3I

E extremamente importante reconhecer que os Povos indígenas


ainda mantém viva as suas formas de educagáo tradicional, que podem
contribuir na formagáo de uma política e prática educacional adequa-
da, capaz de atender aos anseios, interesses e necessidades diárias da
realidade hoje.
Como afirma Stephen Corr¡ "os Povos Indlgenas sáo sociedades
viáveis e contemporáneas, com complexos modos de vida, assim como
com formas progressistas de pensamento que sáo muito pertinentes
para o mundo attal"32.
Também Meliá, por ocasiáo de sua Conferéncia no l0o COLE,
destacou que "as propostas indlgenas de escola provocam medo por
parte da nossa sociedade pelas idéias revolucionárias que coloca. As
propostas de escolas indígenas colocadas pelos próprios povos, mos-
tram-nos a inutilidade de muitas coisas; nossa sociedade já aceitou to-
da comédia que é a escola"33.
Ao longo do trabalho, procuraremos explicitar as características
e conteúdos deste terceiro34 conceito: a educagáo escolar indígena35.
Os objetivos oficiais (em vigor até 1988) de aculturagáo e inte-
gragáo dos índios á sociedade nacional, instrumentalizados ao longo
dos anos pela escolarizagáo, tém sido confrontados com os ideais de
autonomia dos povos indlgenas. Estes tém reivindicado o direito a uma
educagáo escolar diferenciada e específica.
Um terceiro pressuposto inicial está ligado á avaliagáo de que a
escola é hoje uma espécie de necessidade "pós-contato", que tem sido
assumida pelos lndios, mesmo com todos os riscos e resultados contra-
ditórios já registrados ao longo da história. A escola é assim, dentro
deste contexto, um lugar onde a relagáo entre os conhecimentos tradi-
cionais e os novos conhecimento deveráo se articular de forma equü-
brada, além de ser uma possibilidade de informagáo a respeito da so-
ciedade nacional, faciütando o "diiílogo intercultural" e a construgáo
de relagóes igualitárias - fundamentadas no respeito, reconhecimento e
valorizagáo das diferengas culturais - entre os povos indígenas, a socie-
dade civil e o Estado. Sabemos que essa é inclusive a perspectiva aPon-
tado pelos "Novos Parámetros Curriculares do MEC", onde figura, en-
tre os "temas transversais", a questáo da diversidade cultural.
32 Rosa Helena Dias da Silva

De fato, é do ámbito desta tese defender que a escola, um dos


principais instrumentos usados durante a história do contato para des-
caracterizar e destruir as culturas indígenas, pode vir a ser hoje um ins-
trumental decisivo na reconstrugáo e afirmagáo das identidades. O de-
safio que se coloca é o de pensar as escolas indígenas nos seus limites e
possibilidades - dentro da realidade atual, cada dia mais norteada por
tendéncias homogeneizadoras e globalizantes.
'(...) A escola, como estrutura historicamente determinada, e
portanto, palco das mesmas contradigóes que permeiam toda socieda-
de, é espago privilegiado para a construgáo também de uma contra-
ideologia, na medida em que é a cultura sua matéria prima"36.
Esta tem sido também a avaliagáo dos índios quanto ) presenga
das escolas em suas vidas e as possibilidades vislumbradas, quanto ao
futuro. Vejamos algumas citagóes que podem ilustrar essa perspectiva
assumida pelo movimento:

Se nño tivesse branco no meio dos Tikuna, talvez até hoje nño teria
escola'i (Prof. Alírio Mendes, Tikuna - Relatório do I Encontro/I988)
"Para nós a escola é um instrumento para nós defender, conhecer e
entender melhor o mundo do branco para enfrentar as políticas contrárias
e Proteger a nossa cultura. No meio de tudo esn dificuldade, uma parte

estó sendo aproveitada a chegar com objetivo surgido pela comunidade e


agora nós jó temos professor próprio e a tianga continua e continuará
aprendendo. Nño tem como parar'i (Professores Guarani3T)
'A escola foi o principal instrumento de destruigño cultural dos po-
vos, mAs também pode ser o principal instrumento de reconstrugño e afir-
magño de uma nova era.(...) Particularmente, os dez anos de trabalho na
FOIRN, sempre dedicado á luta mais global dos índios e mais precisamen-
te d educagño indígena, me convenceram de que o caminho da educagño
escolar indígena é a nossa grande esperanga de conquista definitiva dos
nossos direitos e da nossa terra'l (Prof. Gersem dos Santos Luciano, Ba-
niwa - Informativo FOIRN/Educagáo - 1996)
'(...) é necessório formar e valorizar profissionais yoltados para a
própria comunidade, visando a nossa autonomia e para que as escolas sir-
vam como instrumento para a permanéncia dos jovens em nossls aldeias
e nño como portas de saída'i (Documento final do IX Encontrollggí)
A autonomia como valor e a articulaQío de possibilidades 33

'A escola entrou como utn corpo estranho, A escola entra e se aPos-
sa da comunidade. Nño é a comunidade que é seu dono. Hoje, os índios
comegam a dar as regras para o jogo da escola: 'td, vocé fica aqui, mas des-
sa forma!'Temos leis que dño respaldo, mas ainda nao estamos sabendo
usar", (Prof. Bruno38, Kaingang)
"Precisamos pegar esses mecanismos colocados de fora (no caso, a
escola) e fazer deles parte da nossa sociedade. Precisamos nos organizar
conto povo: preservar nossa cultura, nossa língua...mas ndo podemos pre-
servAr a fome!" (Prof. Orlando |ustino, Macuxi39).

Assim, poderia afirmar que, ao aceitar a escola, e mesmo reivin-


dicá-la, os lndios a tem "re-significado", dando a ela um novo valor: a
possibilidade de decifrar o mundo "de fora", "dos brancos". Em síntese,
decifrar a nova realidade advinda do contato. Longe de ser uma "ade-
sáo" ao nosso modelo, é, neste sentido, uma estratégia de resisténcia4o.

2,2.Breve histórico da educagáo escolar indígena no Brasil

2.2.1. Uma proposta de periodizagño: as diferentes fases e suas caracte-


rlsticas principaisal

Para melhor entender a complexidade da questáo, poderíamos


tragar um perfil da educagáo formal desenvolvida em áreas indlgenas
no Brasil. Com esse objetivo, Mariana Leal, propóe uma divisáo da His-
tória da Educagáo Escolar entre os Povos Indlgenas no Brasil em qua-
tro fases distintas. "A primeira situa-se á época do Brasil colónia, em
que a escolarizagáo dos índios esteve a cargo exclusivo de missionários
católicos, notadamente os jesuítas. Um segundo momento é marcado
pela criagáo do Servigo de Protegáo aos índios - SPI em 1910, e se es-
tende á política de ensino da FUNAI e sua articulagáo com o Summer
Institute of Linguistics - SIL - e outras missóes religiosas. O surgimen-
to de organizagóes indigenistas náo governamentais e a formagáo do
movimento indígena organizado, em fins da década de 60 e nos anos
70, época da ditadura militar, marca o inlcio da terceira fase. A última
delas, iniciativa dos próprios povos indígenas, a partir da década de 80,
visa definir e autogerir seus processos de educagáo formal"42.
Afránio Peixoto, na introdugáo do livro Cartas jesuíticas 2 - Car-
tas avulsas (Navarro, 1988), mostra-nos com precisáo as características
34 Rosa Helena Dias da Silva

da primeira fase: "mas vieram os Jesuitas. Veio com elles a Virtude. Pa-
ra os Colonos, que a esqueciam e repudiavam, passada a Linha. Para os
Índios, cannibaes, intemperantes, sensuaes, que jámais conheceram
freio e reserva. (...) E ambas as ragas, dominou, por fim, a moral priva-
da e publica dos |esuitas. Depois, foram mestres e instruiram. (...)
aprendendo a lingua da terra, e pela grammatica,a logica, o latim, pas-
sando o humanismo, para chegar á theologia moral e a philosophia.
(...) A história do Brasil colonial se faz, de 1549 a 1777, com a colabo-
ragáo do Governo, da Companhia de Jesus, e do Povo. Esses colabora-
dores teriam parte deseguaes, no decorrere do tempo. A principio, o
primeiro assistia, assentindo ou determinando; o ultimo, heterogeneo,
se misturava, assimilando-se, e se corrigindo: dominavam, pelo consel-
ho, pelo exemplo e pela fé, os fesuitas. Depois, com a modificagáo do
Povo, que já náo era de fndios e Reinóes, mudados em mamelucos,
mestigos, já Brasileiros, Governo e Povo passaram a entender-se direc-
tamente, do meio para o fim da história colonial. A Companhia de fe-
sus criou o Brasil enfante"43.
Partindo de um foco de elaboragáo europeu, o objetivo da pri-
meira fase, era assim anegagáo da diversidade dos índios ou, em outros
termos, o total aniquilamento das diversas culturas e a incorporagáo de
máo-de-obra indígena á sociedade nacional. Porém, segundo Meliá
(1979), a educagáo missionária, através de fracassos e frustragóes, mos-
trou logo sua inoperáncia. "O educador constata que o índio náo
aprende e que no profundo do seu ser é intocáve1"44. O que vemos en-
táo, desde aquela época, é que formas propriamente indígenas de resis-
téncia ás novas situagóes de contato foram desenvolvidas.
No prefácio do livro comemorativo ao jubileu de ouro das Mis-
sóes Salesianas no Amazonas (1915-1965), intitulado DeTupñ a Cristo,
verificamos com toda clareza o objetivo integracionista, tendo como
principais veículos a catequese e a educagáo escolar: "nessas páginas
imprime-se a marca divina dos santos evangelizadores; entre eles os je-
suítas da primeira hora e os salesianos e Dom Pedro Massa, interpóe-
se um tempo vasto; mas os aproxima uma coeréncia infleúvel. E An-
chieta que ressurge com outros processos, outra linguagem, outras dis-
ponibilidades materiais e humanas, portanto outras possibilidades, em
que se inclui, pasmosa a da concentragáo e a da difusáo do conheci-
mento"45.
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 35

A segunda fase é marcada pela tentativa do Estado de reformu-


lagáo da política indigenista, orientada agora pelos ideais positivistas
do comego do século. Entra em cena a preocupagáo com a diversidade
lingüística e cultural dos povos indígenas no país.
Com a criagáo da FUNAI-Fundagáo Nacional do fndio, em
1967, houve algumas mudangas mais significativas. Elege-se o ensino
bilíngüe como forma de "respeitar os valores tribais". Em 1973, o Esta-
tuto do índio - Lei 6001173, tornou obrigatório o ensino das línguas
nativas nas escolas indígenas. A característica da política indigenista da
FUNAI, assim como sua política de ensino, era a dos "Programas de
Desenvolvimento Comunitário". Respaldados á época pela Organiza-
gáo das Nagóes Unidas, tais programas foram instituídos no perlodo
pós-guerra pelos países capitalistas desenvolvidos para criar melhores
condigóes de vida no Terceiro Mundo, fortemente influenciados pela
chamada "teoria da evolugáo social", segundo a qual, é necessário "re-
cuperar o atraso", em busca de certo modelo de desenvolvimento vi-
gente á época.
Lembre-se porém que, conforme mostrou Egon Heck, "a partir
da década deT},implanta-se um modelo de indigenismo, onde os mi-
litares estarao em todo o sistema - desde o presidente da República até
a chefia do Posto. Só assim garantir-se-á uma polltica harmonizada
com os rumos do'milagre'. A reestruturagáo do órgáo dar-se-á nessa
diregáo: seráo ampliados os servigos de assisténcia (saúde e educagáo),
expandindo-se a presenga do Estado sobre a maior parte da populagáo
indlgena no país"46.
Podemos atestar tal concepgáo na leitura do Relatório do Curso-
Seminário'Antropologia, Indigenismo e Desenvolvimento" promovi-
do pela FLTNAI, em agosto de 1975, em parceria com o Instituto Indi-
genista Interamericano, tendo como colaboradores o Ministério das
Relagóes Exteriores; o Ministério da Aeronáutica e o SIL. No item "re-
comendagóes" consta, entre outros, "desenvolver programas educacio-
nais e de desenvolvimento comunitário que estimulem, capacitem e
possibilitem a participagáo ativa do grupo e que venham a motivá-lo a
assumir gradativamente as iniciativas, responsabilidades e decisóes.
Respeitando-se naturalmente os graus de integragáo de cada grupo e as
peculiaridades regionais, os projetos de desenvolvimento comunitário
devem visar a criagáo de pré-cooperativas e cooperativas nos postos in-
digenal"47.
36 Rosa Helena Dias da Silva

Ainda no mesmo documento podemos verificar mais uma vez


tal visáo. No tópico "Educagáo de adultos", foi registrado que "a educa-
9áo de adultos indígenas náo deve cumprir somente esforgos iniciais,
mas ter uma continuidade que habilite a ascensáo do indivlduo, trans-
formando-o num agente de progresso; e que a principal caracterlstica
do indigenismo, hoje, é educagño e desenvolvimento de comunidades,
dentro das realidades e caracterlsticas regionais e nacionais"48.
A questáo do bilingüismo, como forma de assegurar e respeitar
o "património cultural das comunidades indígenas" (artigo 47 do Esta-
tuto do índio), entra em contradigáo com os objetivos integracionistas
da educagáo escolar oferecida na prática pela FUNAI. Neste sentido, a
educagáo bilíngüe firmou-se como tática para garantir interesses civi-
lizatórios do Estado brasileiro. Neste processo desempenha papel deci-
sivo o SIL que foi convocado á agáo pela própria FUNAI, sob a alega-
9áo de falta de pessoal interno capacitado para essa tarefa. Conjugando
métodos linguísticos a proselitismo religioso, este modelo educacional
colocou-se a servigo das políticas oficiais de integragáo dos povos indí-
genas á sociedade nacional49.
Na avaliagáo de diversos autores, há consenso quanto á inade-
quagáo dos programas educacionais empreendidos pela FUNAI, SIL e
outras missóes religiosas no país. Destacamos a criticade Silvio Coelho
dos Santos, ao se referir á política de ensino levada a cabo pela FUNAI,
através de suas escolas entre o povo Kaingang, Xokleng, Guarani e Xe-
tá, no sul do país, como "coerente com os interesses da classe dominan-
te". Segundo ele, a própria política indigenista oficial é a responsável
pelos fracassos dos processos de educagáo escolar vigentes nessas áreas.
As escolas, as quais seguiam o padráo das escolas rurais brasileiras,
eram desconectadas da realidade indígena. Nesse sentido, o autor vé a
necessidade da educagáo estar dentro de um conjunto mais amplo de
medidas que tenham como objetivo "valorizar o indígena e sua cultura
tradicional"5o.
É interessante registrar que Meliá (1979), concordando com as
críticas de Santos (1975), acrescenta que essa educagáo escolar oficial
para índios "náo difere estruturalmente, nem no funcionamento, nem
nos seus pressupostos ideológicos, da educagáo missionária"Sl.
Há documentos onde se confirma essa perspectiva oficial dos
projetos de escolarizagáo governamentais e de missóes religiosas. Cita-
rei dois.
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 37

O primeiro éum documento assinado por Jaime de Mattos, che-


fe da Divisáo de Educagáo da FUNAI,en23 de maio de 1980. Vejamos
um trecho expressivo: "o principal projeto da FUNAI na área de edu-
cagáo, é o Centro de Tfeinamento Clara Camaráo-CTPCC, criado em
2}ljaneirol70, com o nome de Centro de Capacitagáo e Liderangada4^
Delegacia Regional, por convénio firmado entre a FTINAI e o municí-
pio de Tenente Portela e a Igreja de Confissáo Luterana no Brasil, am-
pliado em 1975 com o objetivo de formar monitores nas áreas de agri-
cultura e saúde, além de monitores de educagáo,para afingáo como al-
fabetizadores na língua nativa. Até a presente data o CTPCC já formou
32 monitores de educagáo".
Há de se avaliar a ineficácia de tal proposta: sabendo que o do-
cumento citado data de 1980, e que o Centro foi criado em 1970, con-
tabiliza-se que em dez anos, houve a formagáo de apenas 32 "monito-
res de educagáo".
O segundo documento é De Tupa a Cristo, e refere-se ao trabal-
ho dos salesianos, na regiáo do Rio Negro. Para ilustrar o conteúdo
desse documento, vejamos o trecho a seguir: "o único modo eficaz era
o de atrair os jovens para centros, fora de seu mundo' onde, sob in-
fluéncia formativa do missionário se pudesse, Ientamente, PreParar
cristáos fervorosos e bons cidadáos. (...) Perdurava, porém, a preocu-
pagáo sobre a sorte daqueles jovens que formados na missáo, deviam
depois voltar ao seu mundo indígena. Continuariam fiéis á prática cris-
tá? Organizaram-se entáo aldeias que ficaram confiadas aos cuidados
do missionário itinerante. "estes as visita frequentemente, constrói ali a
capela e a escola, dando-lhes mestres cristáos e catequese dos adultos.
(...) As fronteiras náo seriam melhor defendidas por um exército do
que o fazem os missionários, integrando nas leis nacionais os índios,
cuja rlnica pátria já foi, um temPo, a floresta. Por isso o governo do
Brasil foi sempre generoso em auxílios para sustentar as missóes' e a
Congregagáo lhe é grata por tantos favores"52.
Marco mais recente e importante na análise desta segunda fase
foi a realizagáo de um encontro de Educagáo Indígena em nível nacio-
nal, promovido pela Comissáo Pró-fndio de Sáo Paulo - CPI/SR de 10
a 14 de dezembro de L979, que reuniu pessoas ligadas direta ou indire-
tamente a experiéncias concretas com educagáo escolar em áreas indl-
genas no Brasil. O objetivo era possibilitar, através da troca de informa-
gáo e o debate, a identificagáo de problemas comuns ás várias experién-
38 Ros¿ Helena Dias da Silva

cias da época, e a busca de caminhos para construtáo de uma educagáo


formal adequada ás necessidades reais dos povos indígenas no país. As
discussóes encontram-se sistematizadas e registradas no livro A questño
da Educagdo Indígenas3. Mais uma vez, chegou-se á conclusáo de que a
educagáo oficial oferecida aos lndios, tanto a estatal, quanto a missio-
nária, tinha contribuído para o fortalecimento da relagáo de desigual-
dade já existente entre os segmentos indígenas e a sociedade nacional.
Houve uma certa alteragáo nesse quadro quando, em 1991, oco-
rreu o "esvaziamento" da FLINAI, que teve a maioria de suas responsa-
bilidades divididas entre os Ministérios. Coube ao Ministério da Edu-
ca9áo "coordenar as a9óes referentes á educagáo indígena". Tais agóes
seráo "desenvolvidas pelas Secretarias de Educagáo dos Estados e Mu-
nicípios em consonáncia com as Secretarias Nacionais de Educagáo do
Ministério da Educagáo" (artigo I e 2 do Decreto Presidencial de n" 26
de oalo2lgL).
A promulgagáo deste decreto desencadeou diversas reagóes con-
trárias por parte de organizagóes indígenas e indigenistass4. Desta for-
ma, o Governo Federal resolveu, através da portaria interministerial
559, de 1610419l, acatar grande parte das reivindicagóes dos povos in-
dígenas sobre educagáo escolar. A portaria que regulamenta a compe-
téncia do Ministério da Educagáo para coordenar as agóes referentes á
educagáo indígena, tem como objetivo:
"Garantir que as agóes educacionais destinadas ás populagóes
indígenas fundamentem-se no reconhecimento de suas organizagóes
sociais, costumes, línguas, crengas e nos seus processos próprios de
transmissáo do saber".
Apesar deste avango no entendimento sobre o papel da educagáo
escolar indígena, a portaria náo determina quem fica responsável pela
elaboragáo dos programas, o que significa que, mais uma vez, os índios
náo tiveram assegurado o direito de definir, como pedem suas mais re-
centes reivindicagóes, suas próprias concepgóes de educagáo escolar, de
acordo com os processos tradicionais de aprendizagem e os interesses
de cada povo. Todavia, assinalaram-se com a portaria 559, novas dire-
trizes para implantagáo de uma política de ensino fundada no respeito
á diversidade cultural do país.
A autonomia como valor e a articubcúo de possibilidades 39

A terceira fase indicada por Mariana Leal caracteriza-se entáo


pela formagáo de projetos alternativos de educagáo escolar, com a par-
ticipagáo de Organizagóes Náo-Governamentais (ONGs) de apoio a
causa indlgena. Estas surgiram no final dos anos 70, período da dita-
dura militar. Data desta época também, arealizagáo de Assembléias In-
dígenas em todo o país que propiciaram a articulagáo de liderangas in-
dígenas até entáo isoladas entre si, e do quadro político mais amploss.
A discussáo sobre educagáo escolar indígena apareceu frequentemente
nestas reunióes, como a Assembléia realizada em 1981, no Alto Purus -
Amazonas, contando com a participagáo das na9óes Apuriná, Kaxi-
nauá, farawara, famamadi, Kulina, Macuxi e Wapixana. Nessa ocasiáo,
os índios reclamaram da falta de escola para alfabetizar seus filhos. Po-
rém, deixaram claro que náo querem uma escola

como funciona para os brancos, mas sim uma escola que faga com
que o índio queira conünuar ser índio e nño ficar desejando abandonar a
aldeia; essa escola det e ter professores indígenas e ficar dentro das malo-
caf6.

O que caracteriza as agóes empreendidas neste perlodo por en-


tidades de apoio (Comissáo Pró-fndio de Sáo Paulo - CPI/SP; Comis-
sáo Pró-fndio do Acre - CPI/ACRE; Centro Ecuménico de Documen-
tagáo e Informagáo - CEDI57; Associagáo Nacional de Apoio ao fndio
- ANAf; Conselho Indigenista Missionário - CIMI e Operagáo Anchie-
ta - OPAN58) é o compromisso com a causa indlgena, no sentido de
oferecer ás populagóes indígenas uma educagáo formal compatível
com seus projetos de autodeterminagáosg. Várias universidades (USR
UNICAMR UFRJ) passaram também a contribuir com assessorias es-
pecializadas6o.
Merecem ser lembrados ainda, como material significativo para
se conhecer melhor alguns programas de agáo, os Encontros de Educa-
9áo Indlgena6l, realizados pela OPAN, cujos relatórios encontram-se
reunidos no livro A conquista da estitñ2.
Uma experiéncia que ilustra o modelo alternativo da educagáo
escolar para povos indígenas é a desenvolvida desde o início dos anos
80 pela CPI/AC, o projeto de educagáo indígena "LJma experiéncia de
autoria". A partir de 1983 tem recebido apoio do "Projeto Interagáo",
cuja proposta básica é "integrar cultura e educagáo visando a com-
40 Rosa Helena Dias da Silva

preensáo da relagáo entre o processo cultural vivido pela comunidade


e o chamado saber sistematizado universal; e como essa relagáo deveria
se projetar nos currículos"63.
Outra erperiéncia educativa que deve ser lembrada é aquela de-
senvolvida desde 1973, entre os Tapirapé da aldeia de Santa Terezinha-
MT, por missionários ligados ao CIMI. O processo de escolarizagáo
vem sendo paulatinamente assumido pela comunidade Thpirapé, espe-
cialmente no tocante á elaboragáo do currículo e regimento da escola.
Em 1988, a "Escola Estadual de l" Grau Indígena Tapirapé" foi recon-
hecida oficialmente. Essa conquista abriu precedentes para outras co-
munidades indígenas, servindo como exemplo concreto que anima ou-
tras lutas, na própria regiáo e pelo Brasil afora.
Durante a realizagáo do III Encontro de Educagáo Indígena da
OPAN, 1986, is vésperas da convocagáo da Assembléia Nacional Cons-
tituinte, "reconheceu-se a necessidade e urgéncia de realizagáo de um
encontro de caráter diferente, que congregasse representantes dos mo-
vimentos indlgenas e das organizagóes náo-governamentais de apoio á
sua luta, além de universidades e instituigóes nacionais, oficiais ou náo,
direta ou indiretamente comprometidas com a educagáo indígena"6a.
Segundo Monserrat (1989), "tal evento, o Encontro Nacional de
Educagáo Indígena, promovido pela Fundagáo Nacional Pró-Memória,
Ministério da Cultura, e pelo Museu do fndio do Rio de Janeiro, subor-
dinado e FUNAI (através do Núcleo de Educagáo Indígena), realizou-
se no Rio de |aneiro em outubro de 1987, e reuniu mais de 60 represen-
tantes de 27 entidades e instituigóes nacionais"65.
Vejamos as palavras de Aracy Lopes da Silva, ao lembrar que es-
sa reflexáo crítica da educagáo escolar presente em áreas indígenas, te-
ve início há duas décadas: "essa conta nos remete a meados da década
de 70, tempo marcado por intenso processo de reorganizagáo da socie-
dade civil e da constituigáo de novos atores no cenário político brasi-
leiro. Entre os movimentos que tomaram vulto nesse período estáo os
propriamente indígenas e os que resultaram na criagáo das entidades
civis de apoio á causa indígena. No contexto da busca de informagóes,
na formulagáo de projetos e reivindicagóes próprias e na defesa de seus
direitos, o debate dos povos indígenas e seus interlocutores na socieda-
de nacional trouxe a educagáo escolar indígena para o primeiro pla-
no"66.
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 4l

Finalmente, é na quarta fase desta divisáo histórica, referente á


autogestáo indígena em suas escolas, que se localiza a presente pesqui-
sa.
E bom relembrar, como vimos anteriormente, que a questáo da
educagáo escolar esteve sempre presente no horizonte das reivindica-
góes do movimento indígena organizado, sendo o direito a uma edu-
ca9áo diferenciada e específica uma de suas principais metas, dentro
dos ideais de autonomia. Esta assume, no confronto de cada sociedade
indígena com a sociedade envolvente, significados específicos. Existem
porém reivindicagóes comuns no que tange á questáo da autonomia
política, económica e territorial. Fazparte desse processo amplo e com-
plexo a possibilidade da construgáo de uma educagáo escolar auténti-
ca e diferenciada, fundada nas especificidades sócio-culturais de cada
povo. Diversas e expressivas experiéncias estáo em andamento em to-
do o pals no sentido de garantir o direito á uma educagáo específica e
diferenciada, e, mais que isso, que sejam os próprios povos indígenas
os autores e protagonistas destes processos6T.
Assim, o que define e delimita a experiéncia descrita e analisada
nesta tese, é a questáo da ctiagáo e autogestáo dos processos de educa-
gáo escolar indígena. Essa é sua especificidade; os próprios povos indí-
genas estarem discutindo, propondo e procurando, náo sem dificulda-
des, realizar seus modelos e ideais de escola, segundo seus interesses e
necessidades imediatas e futuras. E um dado novo, que distingue, em
sua raiz, essa erperiéncia, de outras em curso, mesmo as chamadas "al-.
ternativas", já que sáo colocadas "de fora, mesmo que com boa inten-
gáo"68. Seria de fato, tentativa concreta de transformar a "educagáo es-
colar para índio" em "educagáo escolar do índio"69. E, nesse sentido,
um tema novo na história da educagáo escolar indígena no Brasil.
Remetendo-nos novamente á Arary Lopes da Silva, vemos que
"nas aldeias e nas área indígenas, é também a década de 70 que vé as
tentativas pioneiras de construgáo de uma educagáo escolar sintoniza-
da com os interesses, os direitos e as especificidades de povos e cultu-
ras indlgenas. Processo intenso, rápido, política e criativamente inova-
dor, transformou a escola indígena característica dos anos anteriores -
definida e gerida desde fora, imposta e estranha aos índios - em espa-
9o de articulagáo de informagóes, práticas pedagógicas e reflexóes dos
próprios lndios sobre seu passado e seu futuro, sobre seus conhecimen-
tos, seus projetos e a definigáo de um lugar em um mundo globaliza-
42 Rosa Helena Dias da Silva

do. Esta tendéncia, ainda ausente ou incipiente em muitas localidades,


é, no entanto, a grande novidade e o fruto principal de um processo re-
centemente iniciado, mas rapidamente amadurecido, do qual os encon-
tros e as associagóes de professores índios sáo hoje o pólo mais avanga-
do"7o.
Conforme nos lembra Ruth Monserrat, ao analisar experiéncias
educacionais em curso em vários outros palses, destando o México, Pe-
ru e Equador, todas apontam "como saída comum para a educagáo das
minorias étnicas, o horizonte da autonomia na criagáo e gestáo de es-
colas autenticamente indígenas"7l.
Para situar o tema da história da educagáo escolar indlgena no
Brasil, é ainda de fundamental importáncia também visualiza-lo den-
tro do contexto da história das relagóes que se estabeleceram entre os
povos indígenas e o Estado Nacional. Para isso, procurarei tragar sua
Base Legal, conforme a Política e Legislagáo Indigenista Oficial.

2.2.2. Relagño entre Povos Indígenas e Estado Nacional:


política e legislagdo indigenista no Brasil

Para compreender melhor essa complexa problemática, é preci-


so inseri-la na história das relagóes políticas que se estabeleceram entre
o Estado nacional e os povos originários do continente, contexto no
qual se localiza a presente discussáo sobre o papel, dever e responsabi-
lidades do Estado quanto aos povos indígenas, interessando, neste caso,
em particular, o direito á educagáo escolar.
Como se sabe, a "problemática indígena"72 inicia-se com a che-
gada dos portugueses. O Estado brasileiro foi se formando sobre as te-
rras e domínios de inúmeros povos que ocupavam o território conti-
nental onde inicialmente aportaram portugueses e, posteriormente,
franceses, ingleses, holandeses e, sob cativeiro, membros de nagóes ori-
ginárias do continente africano,
Ao olharmos o processo de consolidagáo do Estado brasileiro
através dos períodos colonial, imperial e republicano, pode-se afirmar
que a presenga dos povos genericamente denominados de indígenas,
sempre constituiu preocupagáo para as forgas colonizadoras.
Conforme anaüsou Eugénio Costa, "a questáo indígena sempre
esteve, na história brasileira, intimamente associada á construgáo do
estado e aos problemas militares"73.
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 43

A mesma avaliagáo fez Egon Heck ao afirmar que "a formagáo


do Estado Nagáo teve nas forgas armadas um de seus elementos bási-
cos, e se deu num processo antagónico aos interesses dos povos nati-
vos. O que dá, á integragáo, uma conotagáo de negar aos lndios sua
condigáo de povos diferenciados"T4.
Uma estratégia jurídica utilizada foi a limitagáo da capacidade
civil dos índios. "Como uma das formas de viabilizar a dominagáo do
território, prevaleceu entre as forgas colonizadoras a idéia de que os
ocupantes originários do território invadido, náo se constituíam como
unidades políticas próprias e independentes, mas como aglomerados
de indivlduos sem organizagáo sócio-cultural. Esta concepgáo ensejou
a criagáo de mecanismos que tornassem estes indivíduos partes inte-
grantes do corpo social dominante".7s
Dentre esses mecanismos, destacaram-se os projetos de escolari-
zagáo que podemos denominar "escolas para lndios"
E, entáo, neste contexto histórico que se coloca a trajetória da
educagáo escolar indígena.
Desde suas origens, como poderemos constatar, as leis que se es-
tabeleceram para normatizar e regular as relagóes com os povos indí- .

genas tiveram como fim último a prerrogativa da integragáo (incorpo-


ragáo).
Assim, política e juridicamente, a "relativa incapacidade" como
meio para a incorporagáo foi a concepgáo mantida no período Repu-
blicano, através do disposto no art 6" - IU e parágrafo único da lei no
3071, de 1" de janeiro de 1916, que dispóe sobre o Código Civil, cujo
teor é o seguinte:
"Art. 6o - Sáo incapazes, relativamente a certos atos (art.l47, no
III) ou á maneira de os exercer:
III - Os silvícolas
Parágrafo único - Os silvícolas ficaráo sujeitos ao regime tutelar,
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará i medida
que se forem adaptando á civilizagáo do pals".
O que podemos desde logo perceber é que náo havia interesse
em viabilizar o respeito e a convivéncia com grupos distintos em sua
organizagáo social, económica e cultural.
44 Rosa Helena Dias da Silva

As forgas políticas hegemónicas na comunidade majoritária de-


finiram que a existéncia dos índios no Brasil passava por uma "adapta-
gáo á civilizagáo do país", concepgáo esta que veio a ser referendada pe-
la Constituigáo Federal, promulgada em 1934 (art. 5" XIX), mais tarde
reañrmada na de 1946 (art 5o XV-r) e também na de 1967169 (art. 8"
XVII-o) e denominada como "incorporagáo".
Guimaráes nos lembra que, historicamente, "a capacidade civil
das pessoas está relacionada a sua compreensáo sobre os valores e so-
bre o funcionamento das relagóes económicas da comunidade brasilei-
ra". Desta forma, conforme disposto no Código Civil, entendeu-se que
os lndios: "1o)tinham que participar da comunháo nacional para que
as riquezas existentes nas suas terras fossem trazidas ao mercado;
2o)neo tinham conhecimento e compreensáo do funcionamento da'ci-
vilizagáo do país'e que se fossem considerados com capacidade total,
seriam prejudicados económica e/ou moralmente"T6. Como se sabe, ás
forgas dominantes da sociedade nacional interessava que a utilizagáo
das riquezas existentes nas terras indlgenas ocorresse conforme a ótica
do sistema económico predominante na comunidade brasileira77. Re-
side neste propósito ideológico a base da incorporagáo.
Atualmente, a Constituigáo de 1988 inaugurou no Brasil a pos-
sibilidade de novas relaqóes entre o Estado, a sociedade civil e os povos
indígenas, ao superar, no texto da lei, a perspectiva integracionista, e re-
conhecer a pluralidade cultural. Em outros termos, o direito á diferen-
9a fica assegurado e garantido, e as especificidades étnico-culturais va-
lorizadas, cabendo á Uniáo protegé-las.
Assim, a substituigáo da perspectiva incorporativista pelo respei-
to á diversidade étnica e cultural é o aspecto central que fundamenta a
nova base de relacionamento dos povos indígenas com o Estado.
Localiza-se aí uma questáo fulcral para o debate da educagáo es-
colar indígena. "Reside na obrigagáo do respeito a todos os bens indí-
genas o fundamento do instituto da autonomia, no qual passa a se ba-
sear o relacionamento dos povos indígenas com o Estado"78. Como,
dentro destes princípios de autonomia e respeito á diversidade, pode
ser analisado o fato da educagáo escolar indígena ser tratada náo como
sistema próprio, mas atrelada ás regras da "educafo fundamental"?7g
É preciso lembrar que dentre os "bens indígenas", estáo os de na-
ttreza material -riquezas naturais, património e integridade ftsica dos
membros das nagóes e imaterial - valores culturais e morais -, estando
A autonomia como valor e a articulagío de possibilidades 45

contidos neles, todos os aspectos reconhecidos expressamente no art.


23I da Constituigáo. E no contexto dessas garantias conquistadas que
se enquadra o direito á educagáo escolar indlgena específica e diferen-
ciada.
'Ao reconhecer as nagóes indígenas e determinar o respeito aos
seus bens, o Estado brasileiro admite a existéncia de ordenamentos ju-
rídicos dos povos indígenas como fontes reguladoras de conduta, de
maneira que as normas estatais de natureza infra-constitucional náo
prevalegam sobre o ordenamento jurídico das comunidades"S0.
Náo estaria assim realmente garantido na lei a concretizagáo de
processos próprios de escola, segundo os sistemas educacionais indíge-
nas, conforme interesses, necessidades e tradigóes de cada povo, no ce-
nário de sua interagáo com a sociedade mais ampla? E nesse ponto que
residem as maiores dificuldades, problemas, conflitos e tensóes enfren-
tadas pelos povos indlgenas nos processos de concretizagáo de suas es-
colas: sáo as contradigóes entre autonomia e oficializagáo. Surgem
inúmeros problemas e pontos de estrangulamento, como, por exem-
plo, o conflito entre o discurso da especificidade e aprática dos concur-
sos prlblicos para contratagáo, onde é exigida a prova de que os profes-
sores estáo capacitados para atuar em suas comunidades; conflitos en-
tre o direito á educagáo escolar diferenciada e i frustragáo dos currícu-
los próprios náo aprovados pelas instáncias governamentais compe-
tentes; conflitos entre a diversidade cultural, as pedagogias indígenas e
as metodologias homogeneizantes e as formas de avaliagáo individua-
lizadas.
Sabemos que há uma enorme distáncia entre os direitos con-
quistados e a realidade vivida. Neste sentido, vemos que as escolas - in-
dlgenas e náo-indígenas - podem contribuir decisivamente neste pro-
cesso lento e complexo de mudanga de mentalidade e de práticas. As-
sim, as escolas teriam um papel fundamental na promogáo de valores
como o respeito mútuo e a solidariedade, orientando os estudantes pa-
ra um convlvio social equilibrado e respeito aos direitos humanos.
Através de informagóes amplas e corretas sobre os diferentes povos e
culturas que contribuem para a formagáo da sociedade brasileira, as
criangas poderáo entender a importáncia da diversidade e formar uma
postura de cidadania onde a pluralidade é um valor. Com certeza, to-
do esse processo ajudará na superagáo de preconceitos e discrimina-
góes.
46 Rosa Helena Dias da Silva

Agora, cabe ao Estado e aos cidadáos compreenderem e conhe-


cerem os valores das comunidades indlgenas, o esforgo para a com-
preensáo e convMncia com os povos indígenas agora é da sociedade
brasileirasl.
Escolhi uma citagáo de Silva e Grupioni (1995) que sintetiza
aquilo que esses autores chamaram de "desafios políticos e sociais do
século XXI: por mais homogeneizadora que se pretenda a agáo do Es-
tado, concebido a partir da Revolugáo Francesa como modelo capaz de
garantir a igualdade dos cidadáos perante a lei, as associagóes e moti-
vagóes étnicas, intermediárias entre o indivíduo e o Estado, persistem,
ao lado da consciéncia crescente da ineficiéncia do Estado para, na prá-
tica, garantir a igualdade juridicamente afirmada (Maybury-Lewis,
1983). Alguns dos maiores desaños políticos e sociais do século XXI se-
ráo, com certeza, a redefinigáo da idéia do Estado-nagáo e a reelabora-
gáo de procedimentos e nogóes que garantam, aos cidadaos e aos po-
vos, tanto o direito á igualdade quanto o direito á diferenga"82.
. Thmbém Francisco Oliveira nos fala sobre essa questáo: "a deses-
truturadora presenga dos grupos indígenas na cena política explode o
grande mito do Estado brasileiro: este náo é um Estado de uma única
nagáo homogénea, ocidental. Este é um Estado que, doravante, tem que
se haver com um Outro, ou melhor, vários Outros radicais que, náo
obstante conviverem dentro das mesmas fronteiras, pertencem a uni-
versos culturais totalmente diferentes, valores diferenles, relagóes dife-
rentes com o ecossistema (mais funcionais, diga-se de passagem), rela-
góes de produgáo totalmente distintas, que falam outras línguas..."83
Destaco, a seguir, os artigos da Constituigáo que dizem respeito
aos direitos dos povos indígenas, especialmente quanto á questáo de
uma educagáo escolar específica e diferenciada que valorize as próprias
culturas e garanta as condigóes para uma relagáo equilibrada e iguali-
tária com a sociedade nacional, enquanto partes constitutivas desta
mesma sociedade.
'Art. 231. Sáo reconhecidos aos lndios sua organizagáo social
costumes, línguas, crengas e tradigóes e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo á Uniáo demarcá-
las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (CAPÍTULO Vm -
DOS ÍNDTOS).
autonomia como valor e a articulagío de possibilidades 47
.A

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direi-


tos culturais e acesso ás fontes da cultura nacional, e apoiará e incenti-
vará a valorizagáo e a difusáo das manifestagóes culturais.
gS1" O Estado protegerá as manifestagóes das culturas popula-
res, indlgenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional (CAPfTULO III - DA EDUCAQÁO, DA
CULIURA E DO DESPORTO - SEQÁO rr - DA CULIURA).
Art.210. Seráo fixados conteúdos mínimos para o ensino funda-
mental, de maneira a assegurar formagáo básica comum e respeito aos
valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
gS2" O ensino fundamental regular será ministrado em língua
portuguesa, assegurada ás comunidades indígenas também a utilizagáo
de suas llnguas maternas e processos próprios de aprendizagem (CA-
PfTULO III - DA EDUCAqAO, DA CULTURA E DO DESPORTO -
SEQAOr-DAEDUCAQAO)".
Essa temática inscreve-se também no marco da nova Lei Diretri-
zes e Bases da Educagáo Nacional - LDB, em particular em seu artigo
78:
"O Sistema de Ensino da Uniáo, com a colaboragáo das agéncias
federais de fomento a cultura e de assisténcia aos índios, desenvolverá
programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educagáo es-
colar bilíngue e intercultural aos povos indlgenas, com os seguintes ob-
jetivos:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recu-
peragáo de suas memórias históricas, areafirmagáo de suas identidades
étnicas; avalorizagáo de suas línguas e ciéncias;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso ás
informagóes, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacio-
nal e demais sociedades indígenas e náo-índias".
fá o artigo 79, complementa:
'A Uniáo apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensi-
no no provimento da educagáo intercultural ás comunidades indíge-
nas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
gS1" Os Programas seráo planejados com audiéncia das comu-
nidades indlgenas.
5S2" Os Programas a que se refere este artigo, incluídos nos Pla-
nos Nacionais de Educagáo, teráo os seguintes objetivos:
48 Rosa Helena Dias da Silva

I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de ca-


da comunidade indígena;
II - manter programas de formagáo de pessoal especializado,
destinado á educagáo escolar nas comunidades indígenas;
III - desenvolver currículos e programas específicos, neles in-
cluindo os conteúdos correspondentes ás respectivas comunidades;
IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático espe-
cífico e diferenciado.
E bom lembrar o Decreto n" 26 de O4l02l9l, através do qual o
Presidente da República determina que:
"Art. 1" - Fica atribuída ao Ministério da Educagáo a competén-
cia para coordenar as agóes referentes á Educagáo Indígena, em todos
os níveis e modalidades de ensino, ouvida a FUNAI.
Art. 2o - As agóes previstas no art. 1" seráo desenvolvidas pelas
Secretarias de educagáo dos Estados e Municlpios, em consonáncia
com as Secretarias Nacionais de Educagáo do Ministério da Educagáo".
Com a Portaria Interministerial n" 559 de 1610419l, os Minis-
tros da Justiga e da Educagáo estabelecem que as agóes educacionais es-
colares destinadas ás populagóes indígenas seráo fundamentadas no re-
conhecimento de suas organizagóes sociais, costumes, línguas, crengas
e tradigóes e nos seus processos próprios de transmissáo do saber, con-
forme art. lo.
Além disso, determina que esta educagáo possa "garantir aos ín-
dios o acesso ao conhecimento e o domínio dos códigos da sociedade
nacional assegurando-se ás populagóes indígenas a possibilidade de de-
fesa de seus interesses, a participagáo plena na vida nacional em igual-
dade de condigóes, enquanto etnias culturalmente diferenciadas" (art.
?o\
A Portaria trata ainda do financiamento da educagáo escolar in-
dígena, reafirmando o preceito constitucional de que a educagáo é um
dever do Estado; da formagáo e capacitagáo específica do quadro de
pessoal que irá atuar nas escolas indígenas, dando-se preferéncia aos
professores indígenas.
Determina que, "no processo de reconhecimento das escolas des-
tinadas ás comunidades indígenas, sejam consideradas, na sua norma-
tizagáo, as características especlñcas da educagáo indígena no que se re-
fere a: a) conteúdos curriculares, calendário, metodologias e avaliagáo
adequados á realidade sócio-cultural de cada grupo étnico; b) materiais
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 49

didáticos para o ensino bilíngue, preferencialmente elaborados pela


própria comunidade indígena, com conteúdos adequados ás especifici-
dades sócio-culturais das diferentes etnias e á aquisigáo do conheci-
mento universal; c) cumprimento das normas legais e respeito ao ciclo
de produgáo económica e ás manifestagóes sócio-culturais das comu-
nidades indígenas; d) funcionamento de escolas indígenas de ensino
fundamental no interior das áreas indígenas, a fim de náo afastar o alu-
no índio do convlvio familiar e comunitário; e) construgáo das escolas
nos padróes arquitetónicos característicos de cada grupo étnico" (art.
8").
No ano de 1994, o MEC, através do Comité de Educaqáo Esco-
lar Indígena (instituído e regulamentado pelas Portarias no 60192 e
490193),langa as "Diretrizes para a Polltica Nacional de Educafo Es-
colar Indlgena". Esse documento significou um salto de qualidade ru-
mo e construgáo das escolas indígenas específicas e diferenciadas, in-
terculturais e billngues.
Persiste, contudo, em alguns pontos, a perspectiva da "escolas
para lndios", que precisa ser superada. Há também a questáo de que é
um texto que, ao declarar uma intengáo de mudanga, projeta uma no-
va postura frente á problemática da educagáo escolar indlgena. Na prá-
tica, porém, dependerá de vontade e decisáo polltica e muito esforgo
por parte dos envolvidos, para que, de fato, a realidade das escolas in-
dlgenas possam espelhar os princípios das "Diretrizes".
O texto das Diretrizes explicita uma nova postura, enfoque e
perspectiva com relagáo ao entendimento do papel da educagáo esco-
lar indígena, no contexto do reconhecimento da pluralidade étnica e
cultural do Brasil. Em seu item 3 - "Princípios gerais" afirma:
"A escola indígena tem como objetivo a conquista da autonomia
sócio-económico-cultural de cada povo, contextualizada na recupera-
9áo de sua memória histórica, na reafirmagáo de sua identidade étnica,
no estudo e valorizagáo da própria língua e da própria ciéncia - sinte-
tizada em seus etno-conhecimentos, bem como no acesso ás informa-
góes e aos conhecimentos técnicos e cientlficos da sociedade majoritá-
ria e das demais sociedades, indígenas e náo-indígenas. A escola indi
gena tem que ser parte do sistema de educagáo de cada povo, na qual,
ao mesmo tempo em que assegura e fortalece a tradigáo e o modo de
ser indígena, fornecem-se os elementos para uma relagáo positiva com
outras sociedades, a qual pressupóe por parte das sociedades indígenas
50 Rosa Helena Dias da Silva

o pleno domínio da sua realidade: a compreensáo do processo históri-


co em que estáo envolvidas, a percepgáo crítica dos valores e contra-va-
lores da sociedade envolvente, e a prática da autodeterminagáo. Como
decorréncia da visáo exposta, a educagáo escolar indígena tem que ser
necessariamente especlfica e diferenciada, intercultural e bilíngue"
(ponto 3.6).
Neste sentido, uma dificuldade que se mantém é quanto ao des-
conhecimento da situagáo e mesmo do próprio documento. A tltulo de
ilustragáo registro uma recente experiéncia vivida: fui convidadaaPal.
ticipar de um curso promovido pelo IER/AM - Instituto de Educagáo
Rural do Amazonas, sobre educaqáo escolar indígena, onde estavam
presentes técnicos e Secretários Municipais de Educagáo de sete muni-
cípios do estado. Como um dos subsídios principais Para as discussóes,
levei, além de material sobre o movimento dos professores indígenas, o
meu exemplar das "Diretrizes". Nenhuma das pessoas ligadas ás Secre-
tarias Municipais conheciam o documento, sendo necessário que o em-
prestasse para ser fotocopiado, já que está esgotado.
Retomando o enfoque das políticas mais amplas e da questáo ju-
rídica em nível mundial (no campo do Direito Internacional), julgo
importante registrar a Convengáo (169)84 sobre povos indígenas e tri-
bais em países independentes, adotada pela 76" Conferéncia Interna-
cional do Trabalho (Genebra, junho de 1989).
O que fundamentou a aprovagáo desta Convengáo foi a observa-
gáo de que "em muitas partes do mundo estes povos náo gozam dos di-
reitos humanos fundamentais na mesma proporgáo que o resto da po-
pulagáo", e o reconhecimento de suas aspiragóes "a assumirem o con-
trole de suas próprias instituigóes, seu modo de vida e seu desenvolvi-
mento económico"85.
No mesmo documento, podemos ler que a nova Convengáo re-
visa normas anteriores da OIT, especialmente a Convengáo 107 (1957),
que presumia a integragáo dos índios, e "é aplicada aos povos indíge-
nas em países independentes cujas condigóes sociais, culturais e econó-
micas os distinguem de outros setores da coletividade nacional". Os
conceitos básicos sáo o respeito e a participagáo. "Respeito á cultura, á
religiáo, dorganizagáo social e económica e á identidade própria: a pre-
missa de existéncia perdurável dos povos indígenas e tribais"86.
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 5l

Conforme o texto da Convengáo, "a consciéncia de sua identida-


de indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamen-
tal para detectar os grupos interessados; em outras palavras, nenhum
Estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade de um po-
vo indígena ou tribal que se reconhega como tal".
Neste sentido, a utilizagáo do termo "povos", na nova Convengáo
(e que também figura na atual LDB - artigo 78) responde á idéia de que
náo sáo "populagóes", mas sim "povos", com identidade e organizagáo
própria.
Quanto ) temática da educagáo escolar, há, na Convengáo 169,
seis artigos especlficos que váo do art.26 ao 31. Todos contemplam os
dois princípios básicos: respeito e participagáo; falam da igualdade de
oportunidades e do direito ) especificidade, incluindo a auto-criagáo e
gestáo dos processosST.
Nesse processo, um dado relevante e definidor desta outra/nova
perspectiva é o movimento dos professores indígenas, enquanto gruPo
de pressáo (caráter reivindicatório); grupo de política educacional in-
dígena nova (elaboragáo de princípios e metas); esPago de potenciali-
zagáo, do ponto de vista pedagógico-político-cultural e de articulagáo
de experiéncias.

NOTAS

No período de margo a agosto/96 atuei como professora da disciplina


Sociologia da Educagáo, na Faculdade de Educagáo da Universidade do
Amazonas (contrato temporário).
Foram realizados dois exames de Qualificagáo devido á especificidade e regras
do processo vivido, de "passagem de nlvel do mestrado ao doutorado". A
aprovagáo de tal passagem deu-se na l4la Reuniáo Ordinária da CPG/FEUSR
em 12.O4.96
Entre outros que reconhecem esse papel de Meliá, afirma Marta Capacla: "O
üwo seguinte, Educagdo indlgena e alfabetízagño, de Bartomeu Meliá, foi basea-
do em um seminário do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) de 1978, ao
final de uma década marcada pela crescente mobilizagáo indlgena. A partir das
discussóes realizadas naquele seminário, Meliá langa o termo'educagáo para o
indígena', ressaltando assim que as sociedades indlgenas já possuem seu
próprio sistema educacional, ao qual a educagáo escolar deveria justapor-se, e
náo substituir, (...) Langa também questóes relativas aos conteúdos e materiais
didáticos que deveriam ser utilizados nesta nova proposta de escola indlgena,
52 Rosa Helena Dias da Silva

Configura-se a partir daqui, portanto, um novo momento da escola indígena,


em que comegam a ser discutidas alternativas á educagáo escolar até entáo ofer-
ecida aos índios" (CAPACLA,Marta. O debate sobre a educagño indlgena no
Brasil (1975-1995), Brasllia/Sáo Paulo, MEC/Mari-USP, 1995, p.20)
SILVA,Aracy Lopes da."Prefácio" in CAPACLA,MaTIa Valéria.O debate sobre a
educagño indígena no Brasil - 1975/1995, Brasflia/Sáo Paulo, MEC/Mari/USR
1995, p.9 e l0 (grifos meus)
Minha participagáo no II, III e IV Encontro se deu de forma indireta, garanti-
ndo as questóes de infra-estrutura (viagens, hospedagem e alimentagáo) e na
assessoria técnico-administrativa (projetos e prestagño de contas). A partir do
V Encontro, minha atuagáo deu-se de maneira mais di¡eta. Passei a fazrr parte
do quadro de assessoria aos Encontros (e ao movimento, através do apoio i
COPIAR). No perlodo de estudo (1993 a 1995), apesar de estar residindo em
SáoPaulo, pude estar presente no VI, VII e VIII Encontro. A partir de 1996, de
volta á regiáo, participei do IX e X Encontro. Desta forma, posso afirmar que só
náo participei o I Encontro ( 1988), tendo tido contato com ele através da leitu-
ra de seu Relatório.
No capltulo 3, ao tratar da historiografia do movimento, sáo oferecidos dados
sobre a Comissáo: sua constituigáo, papel, dinámicas, e outras informagóes rel-
evantes para esta tese.
Reservarei, no corpo do trabalho, um item específico p¿¡ra comentar a questáo
da base legal da educagáo escolar indlgena, dentro da legislagño atual, em par-
ticular a nova LDB.
Para as citagóes referentes á palavra dos índios, estarei usando a seguinte mar-
cagáo: recuo, aspas e o itálico. As demais viráo apenas entre aspas.
FERREIRA,Mariana Kawall LeaI. Da origem dos homens d conquista da escrita:
um estudo sobre povos indígenas e educagño escolar no Brasil, Dissertagáo de
mestrado, Departamento de Antropologia, USR Programa de Pós-Graduagáo
em Antropologia Social, Sáo Paulo, 1992
t0 Gostaria de registrar que foi através de uma consideragáo do Prof. Márcio Silva,
em carta pessoal dirigida a mim, datada de 31.07.9I (após realizagáo do IV
Encontro) que me coloquei a questeo-chave - a questáo da autonomia, que foi
a motivagáo inicial e impulsionadora, a partir da qual fui amadurecendo a elab-
oragáo do Projeto de Pesquisa. Refiro-me i frase "uma escola indígena, para ser
boa, precisa primeiro (e no mínimo) ser dos índios, para depois ser boa".
Agradego ao Márcio por esta instigante "provocagáo".
11 Por ocasiáo do VI Encontro/I993, primeiro evento do qual participava agora
como assessora-pesquisadora (tendo inclusive realiz¡do algumas atividades
especlficas da pesquisa), pude firmar, junto aos professores da Comissáo uma
"carta de intengóes" e compromissos, que foi assinada por ambas as partes,
como uma espécie de acordo conjunto a respeito do processo de pesquisa-agáo
e suas trés faces: a pesquisa académica; a prática de assessoria indigenista e a
continuidade do compromisso. Esse compromisso já constava de meu projeto
de pesquisa aprovado por FAPESP.
A autonomia como valor e a articula7áo de possibilidades 53

12 Alain Touraine, em artigo especial para a Folha de Sño Paulo, Caderno "Mais!"'
do dia l2lnov/95, intitulado "A revolta das comunidades", chama a atengáo
para a questáo de que "a idéia de nagáo está sendo substituída por formas de
associagáo que tém como base a religiáo e a etnia. (...) Atualmente, a resistén-
cia á abertura internacional dos mercados é imposta pela no9áo de comu-
nidade, ou seja, pela identidade cultural de uma populagáo definida por sua
natureza social comum: língua, etnia, sexo ou idade. (...) A própria idéia
nacional mudou de sentido. Para os herdeiros de Rousseau, ela designava a cri
agáo de uma coletividade de cidadaos livres; hoje, na esteira do Pensamento
alemáo, ela designa o vínculo representado por uma comunidade cultural ou
histórica".
13 POLANCO,Héctor Dlaz.A queúao Etnico-nacional, México, Editorial Línea,
1985 (tradugáo de Júlio Gaiger)
14 BARTH,Frederik.Los grupos étnicos y sus fronteiras - la organización social de las
diferencias culturales,Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1976.
15 LUDKE,Menga e ANDRE,Marli.Pesquísa etn educagña: abordagens qualitativas,
Sáo Paulo, EPU, 1986
16 Sem me furtar de explicitar aquilo que tenho pensado a respeito do tema em
estudo, priorizarei trazer para o debate académico, através da tese, a
profunda reflexáo coletiva empreendida durante os dez Encontros anuais já
reaüzados. Fago esta oPfáo, convencida da importáncia deste olhar respeitoso
sobre esse processo que está sendo levado adiante com muito esforgo e
'
seriedade, náo sem contradigóes e impasses, Por Parte dos principais envolvi-
dos, caracterizando uma experiéncia inédita no país, que se inscreve na tenta-
tiva do efetivo estabelecimento de novas relagóes, seja com a própria escola,
entre os diferentes povos, com a sociedade brasileira e o Estado.
L7 LUDKE e ANDRE, op. cit
18 Pode-se, por exemplo, ler no Parecer ao 10 Relatório que apresentei: "O proces-
so de reelaboragáo do olhar da bolsista sobre o problema que investiga, de mil-
itante a pesquisadora (...) parece estar em pleno curso". lá o patecer ao 2o
Relatório aponta para a superagáo de algumas dificuldades detectadas anteri-
ormente: "Estáo superadas no texto, as dificuldades apresentadas anterior-
mente, no tocante ao predomfnio de um tom miütante sobre o analítico". O
parecer ao 3o Relatório reconhece que "a assessoria combinada i pesquisa dá i
bolsista a oportunidade de ser assessorada também: uma pesquisa-agáo basea-
da numa interlocugáo clara e simétrica, com ganhos, trocas e descobertas nas
duas diregóes, o que é extremamente positivo como metodologia de pesquisa e
como atuagáo indigenista". Creio poder afirmar que essa complexa articulagño
é tarefa permanente, quando se vive dois mundos - o académico e o dos movi-
mentos sociais - ao mesmo tempo.
19 LUDKE e ANDRE, op.cit.
20 Neste sentido, Hall (1978) ao elencar as caracterlsticas essenciais para um bom
etnógrafo, "(...) ser capaz de tolerar ambiguidades; ser capaz de trabalhar sob
sua própria responsabilidade; deve inspirar confianga; deve se pessoalmente
comprometido, autodisciplinado, senslvel a si mesmo e aos outros, maduro e
54 Rosa Helena Dias da Silva

consciente; deve ser capaz de guardar informagóes confidenciais", nos mostra o


quáo diftcil é esse processo, que demanda um empenho e esforgo pessoal em
aprender e reaprender constantemente.
2l A preocupagáo maior tem sido com o processo. porém, é claro, há que se
respeitar os prazos-limites oficiais e apresentar um "resultado final', (ainda que
com a certeza de que é sempre "náo-definitivo", inacabado - uma das possibili-
dades de leitura e interpretagáo da realidade estudada).
22 Anteriormente, eu havia convidado duas pessoas para cumprirem a fungáo de
"comentaristas": um, o Prof. Gersem, como "parecerista-interno" (enquanto
professor indígena participante do movimento) e o outro, prof. Márcio Silva,
como "parecerista-externo" (no sentido de ser uma das assessorias ao movi-
mento.).
23 Os trechos em "itiilico" sáo palawas do prof. Gersem
(diário de campo)
24 contou a seguinte história, que üustra bem os riscos desse
conflito: "Há muito
tempo atrás, um portuguCs yeio estudar os bichos da Amazónía EIe pegou uma
aranha e tirou uma perna Depois falou pró aranha: anda aranha! e a aranha
andou, mesmo mancando um pouco. Tempos depois, ele tirou mak urna perna
dela' E falou: anda aranha!aranha quase já nño conseguia andar. Mais dias e
ea
ele tirou mais outra perna,outra, e outra. E disse: Anda aranha! Anda aranha!
e
E a aranha já nño podia andar. Entño ele concluiu:,aranha sem perna é surda".
25 Todos os Relatórios de Pesquisa foram enviados aos professores, através de sua
Comissáo, e encontram-se guardados no arquivo do movimento.
26 o Informativo - tablóide, cam24 páginas e tiragem de 4.000 exemplares - foi
uma publicagáo reaüzada sob responsabilidade de trés organizagóes indlgenas:
FOIRN (Federagáo das Organizagóes Indígenas do Rio Negro), COIAB e
COPIAR; com parceria e apoio do CIMI.
27 Minha contribuigáo deu-se no sentido de sistematizar alguns trechos do meu
Relatório para Exame de Qualificagáo (mestrado), dentro de uma proposta de
tópicos que pudesse dar uma visáo geral da problemática e situar a experiéncia
dos professores indígenas. Tal proposta, apresentada por mim e discutida e tra-
balhada posteriormente em conjunto com prof. Gersem, ficou assim definida:
Editorial; Breve histórico da educagáo escolar indígena; o movime¡rto dos pro-
fessores: histórico, encontros anuais, Declaragáo de princípios, principais
temáticas; IX Encontro/1996; algumas experiéncias que tem dado certo; a real-
idade do Rio Negro: povos indígenas e escolarizagáo - desaños e perspectivas;
escolas indígenas e projetos de futuro.
28 |á que, como poderá ser constatado nos relatos sobre as dinámicas do movi-
mento, há sempre um relevante número de professores que participam pela
primeira vez dos Encontros, e mesmo, há um grande número deles que nunca
participaram de nenhum dos encontros realizados.
29 Agradego a Marta Azevedo, primeira pessoa que me apresentou a fundamental
observagáo quanto á necessidade e importáncia desta delimitagáo, por ocasiáo
da discussáo e elaboragáo de uma política para a educagáo escolar indlgena no
Amazonas, processo este centralizado pelo IER/AM - Instituto de Educaqáo
Rural do Amazonas, entre l99l e 1992.
A autonomia como valor e a articulaEAo de possibilidades 55

30 MELIA,Bartom ev Educagño e AIfub eümgño, Sáo Paulo, Loyola, I 979,


-Indlgena
p.9
3l Neste sentido, o conceito de educagáo está intimamente interügado ao de cul-
tura, enquanto aprendizado social de determinadas estruturas, mecanismos e
modelos exemplares, no contexto de cada sociedade. A discussáo da confluén-
cia dos dois conceitos - cultura e agáo pedagógica - será feita no capítulo 5.
32 CORRlStephen. "Guardianes de la tierra sagrada" in Revista especial da
Survival Internacional, 1994 (tradugáo da autora)
33 Anotagóes pessoais da Conferéncia "Bilinguismo e Leitura'l 10o COLE, UNI-
CAMR l7 a2rlo7l95
34 O primeiro conceito é "educagáo indlgena" e o segundo, "educagáo para o
fndio".
35 "O Movimento de Professores Indígenas do Amazonas e Roraima vém insistin-
do - e com toda razáo - no uso da expressáo 'EDUCAQAO ESCOLAR
INDIGEN{ reservando a expressáo'EDUCAQAO INDIGENA para os proces-
sos tradicionais de elaboragáo e transmissáo de conhecimentos de cada uma
das Sociedades Indígenas" (Trecho da carta do Prof. Márcio Silva, datada de
30/out/91, enderegada e COIAB - Coordenagáo das Organizagóes Indlgenas da
Amazónia Brasileira / Arquivo COPIAR)
36 Ml¡ZZlLLI,Sueli.A pedagogia além do discurso, Piracicaba, Ed. UNIMER
1992,p. 15
37 Documento dos Guarani do Ocoy/PR sobre Escola e Currículo Indígena,
abriV95
38 Depoimento de Bruno, Kaingang, durante sua participagáo na mesa-redonda
intitulada 'A posigáo das Organizagóes Indígenas", no Encontro Interno
"Leitura e escrita em escolas indlgenas: domesticagáo X autonomia", durante o
10o coLE, IINICAMR julho/95
39 Depoimento do prof. Orlando, Macuxi, na mesa-redonda 'A posigáo das
Organizagóes Indlgenas", no Encontro Interno "Leitura e escrita em escolas
indígenas: domesticagáo X autonomia", representando a COPIAR, durante o
10o coLE, UNICAMP, julho/95
40 Agradego á Iara Tatiana Bonin, companheira do CIMI e colega na assessoria ao
movimento dos professores; atualmente cursando mestrado em Educagáo na
[INB, também na temática da educagáo escolar indlgena, por repartir comigo
suas idéias e análises. Mais adiante trarei para o debate dois outros trabalhos
que, anteriormente a esta elaboragáo, já chegaram a conclusóes que apontam
para a mesma análise. Refiro-me aos textos de Mariana Kawall Leal Ferreira e
Arlindo Gilberto de Oüveira Leite.
4l Como se sabe, toda tentativa de periodizagáo corre o risco de náo abarcar a
complexidade histórica da temática em foco; além de dar margem i posslveis
interpretagóes estanques, perdendo assim a dinámica interna de cada fase
esbogada. Assim, com relagáo ls fases propostas, esclarego desde já que elas náo
se esgotam; ao contrário, se interpenetram. Lamentavelmente, é posslvel
encontrar hoje experiéncias e projetos de escolas "indlgenas" que poderiam ser
exemplos paradigmáticos ainda da primeira fase. A periodizagáo é, neste senti-
56 Rosa Helena Dias da Silva

do, uma escolha, de caráter instrumental, que náo pretende esgotar a abrangén-
cia do aspecto histórico. No foco principal da tese, este breve histórico da edu-
cagáo escolar indígena no Brasil tem o caráter de contextualizagio do debate.
42 FERREIRA,Mariana Kawall Leal.Da origem dos homens d conquista da escrita:
um estudo sobre povos indlgenas e educagño acolar no Brasil, Dissertagáo de
mestrado, Departamento de Antropologia, USR Programa de Pós-Graduagáo
em Antropologia Social, Sáo Paulo, 1992
43 NAVARRO,Azpilceta e ovttos.Cartas Avulsas - Cartas Jesuíticas 2, Sáo Paulo, Ed.
Universidade de Sáo Paulo, 1988 (Introdugáo deAfranio Peixoto)
44 MELIA,Bartomeu. op.cit.
45 Missóes Salesianas do Amazonas.De Tupd a Cristo, fubileu de ouro (1915-
1965), Rio de |aneiro, 1965 (Prefácio de Pedro Calmon)
46 HECK,Egon.Os índios e a caserna - Políticas Indigenistas dos Governos mil-
itares - 1964 a 1985, Campinas, TINICAMR 1996, p. 84 (Dissertagáo de
Mestrado)
47 Ministério do Interior. "Conclusóes do Curso-Seminário de Antropologia,
Indigenismo e Desenvolvimento", Ilha do Bananal, agosto/75, arquivo FUNAI
48 ldem, ibidem, grifos do próprio relatório.
49 NEWMAN,BARBARA. "Ensino billngue: uma ponte para a integragáo" in
Informaüto da FWAI, no 14, set/75, Brasília. A concepgáo de bilinguismo
como "ponte" (enquanto passagem/transigáo) - esta é a perspectiva adotada e
assumida pelo Summer Institute of Linguistics (SIL), expressa nesse texto.
50 SANTOS,Silvio Coelho dos. Educagño e Sociedades Tribais, Movimento, Porto
Alegre, 1975
5l MELIA,Bartomeu. op. cit.
52 Missóes Salesianas do Amazonas.De Tupñ a Cristo, Edigáo comemorativa ao
Jubileu de ouro (1915-1965)
53 Comissáo Pró-fndio. A questño da educagño indlgena, Sáo Paulo, Brasiliense,
198 I
54 Na avaliagáo de Luis Doniseti B. Grupioni, "a passagem da educagáo escolar
indlgena da FUNAI para o MEC com o decreto 26191 potencializou as possi-
bilidades de concepgáo de uma política de educagáo escolar indlgena, de aco¡-
do náo só com os novos preceitos constitucionais, mas também apoiando-se
em experiéncias significativas de projetos pilotos desenvolvidos por entidades
de apoio aos índios (algumas delas com experiéncias há mais de 15 anos) e de
encontro a propostas e reivindicagóes formuladas no bojo de uma nova faceta
do movimento indígena: refiro-me ds organizagóes de professores indígenas.
Para isto contou também a fragilidade, de um lado, e a incompeténcia, de outro,
da a9áo da FUNAI nesta área" (GRUPIONI,Luis "De alternativo a oficial: sobre
a (im)possibilidade da educagáo escolar indlgena no Brasil", Comunicagáo
apresentada na mesa redonda "Escola i¡dlgena: um caso particular de escola?"
no Encontro Interno "Leitura e Escrita em escolas indígenas: domesticagáo X
autonomia'', no 10o COLE, UNICAMB 1995.
55 A primeira Assembléia Indígena foi realizada em Diamantino/MT, em 1974.
56 fornal Porantim no 29 pg.6.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 57

57 Atualmente, ISA (Instituto Sócio-ambiental)


58 Atualmente, OPAN (Operagáo Amazónia Nativa)
59 "Em 1969, foi criada a OPAN, como uma organizagáo voltada para a mobiliza-
9áo de leigos que se dispunham a trabalhar com populagóes marginalizadas,
em especial com os indígenas. Em 1972, foi criado o CIMI, ligado á
Conferéncia Nacional dos Bispos do Brasil, que iniciou sua eústéncia fazendo
uma (auto) crltica da atuagáo da Igreja junto is populagóes indígenas e tragan-
do novas linhas de atuateo pastoral que tinham como prioridade maior a
autodeterminagáo dos polos indígenas e a defesa de suas terras. Em fins da
década de 60 e inícios da de 70, comegaram a surgir diversas outras organiza-
góes náo governamentais dispostas a atuarem em favos das populagóes indlge-
nas, como a Comissáo Pró-lndio, o Centro Ecuménico de Documentagáo e
Informagáo, a Associagáo Nacional de Apoio ao Indio e o Centro de trabalho
Indigenista, algumas trabalhando em ámbito regional, outras com atuagáo
mais ampla" (MONSERRAT,RuIh. "Conjuntura atual da educagáo indígena" in
EMIRI,Loreta e MONSERRAT,RuIh.A conquista da escrita, Sáo Paulo,
Iluminuras, 1989, p.245 e 246.
60 "Em fungáo das atividades desenvolvidas na área de educagño pelo CIMI,
OPAN e CPI/AC, colocou-se para esses órgáos a necessidade de contar com
assessorias específicas, o que resultou o consequente engajamento de várias
universidades no trabalho referente á educagáo indígena (idem, ibidem).
6l 'A partir de 1982, com intervalos regulares de dois anos, a OPAN promoveu e
reaüzou quatro Encontros de Educagáo Indígena, no decorrer dos quais houve
nítida evolugáo das propostas iniciais, ainda dentro da perspectiva'alternativa'
(I Encontro-1982),para a da preemente necessidade de transformar o'alterna-
tivo' em'norma oficial'no encaminhamento da escola indlgena em geral (IV
Encontro- I 988) " (idem, ibidem).
62 EMIRI,Loreta e MONSERRAT,RuIh.A conquista da escrita, Sáo Paulo,
Iluminuras, 1989, p.ll
63 CABRAL,Ana; MONSERRAT,Ruth e MONTE,Nieta.Por uma educagño indlge-
na diferenciado" Brasília, Fundagáo Pró-Memória, 1987
64 MONSERRAI,Ruü, op.cit.
65 Idem, ibidem. Neste Encontro foi criado o Grupo de Trabalho "Mecanismos de
A9áo Coordenada", denominado BONDE.
66 CAPACIA,MaTIa Valéria. O debate sobre educajdo indfgena no Brasil (1975-
1 995 ), Brasllía/Sáo Paulo, MEC/Mari, 1995

67 Para conhecer mais sobre essa realidade, Ier Com as próprías mños - Professores
indlgenas construindo a autonomia de suas escolas, editado pelo CIMI, Brasflia,
1992
68 Conforme Meliá, em entrevista concedida a esta pesquisadora, em I9t06194 em
Sáo Pau]o,
Para ilustrar a complexidade envolvida nesta "passagem" - de escolas para os
índios para escolas indígenas, chamo a atengáo para as marcas históricas deix-
adas, como é o caso dos nomes das escolas. No levantamento feito pelo
IER/AM (Instituto de Educagáo Rural do Amazonas) em 1997, pode-se con-
58 Rosa Helena Dias da Silva

tabilizar que, das 445 escol¿s indígenas do Amazonas, apenas 15,7o/o (equival-
. endo a 70 escolas) possuem nome indígena. Das demais (375 escolas),84,3olo do
total tem nomes [gados ao processo de colonizagáo: 68,80/o ganharam nomes
ligados ao cristianismo (em especial, nomes de santos); 22,4o/o tem seus nomes
inspirados na "história oficial'l dos heróis nacionais, incluindo al, de D. Pedro I
e II i Marechal Rondon; de Duque Estrada i Amazonino Mendes. Os 8,8olo
restantes incluem idéias e valores externos, como "Príncipe Encantado",
"Campo Alegre", "Nova Esperanga", "Novo Sonho", "Novo Horizonte".
70 CAPACLA, op. cit. (prefácio)
7l MONSERRAT,RuIh. "Professores indlgenas versus índios professores" in
Boletim da ABA, abril/93, no 16, p.9
72 O termo "problemática indígena" refere-se aqui is questóes históricas e atuais
advindas do contato dos povos indígenas com a sociedade envolvente
73 COSTA,Eugénio.O Projeto Calha Norte: antecedentes Políticos, Sáo Paulo, USR
1992, p.l7l (Dissertagáo de Mestrado).
74 HECK, op. cit., p.2l
75 GUIMARÁES,PauIo Machado."A polémica do fim da tutela aos lndios':
Brasília, texto datil., out/1996
76 GUIMARÁES, op. cit.
77 'A sociedade capitalista, enquanto modo de produgáo, gera desigualdade social
na medida em que privatiza os meios de produgáo, pois onde há propriedade
privada dos meios de produgáo existe também a transformagáo do trabalho em
mercadoria e, portanto, existe uma relagáo entre trabalho e capital, que gera
conflitos, tensóes e toda a dinámica da sociedade de classes" (conforme FER-
NANDES,Florestan.Movimento socialista e Partidos políticos, Sáo Paulo,
Hucitec, 1980, p. l9)
78 GUIMARÁES, op. cit.
79 Esta indagagáo será retomada posteriormente, pois, na minha avaliagáo, aí
reside um dos principais impasses desta discussáo e prática das escolas indíge-
nas.
80 GLIIMARAES, op.cit.
8l Há, neste sentido, uma inversáo necessária: antes eram os índios que tinham
como prerrogativa conhecer a sociedade envolvente, para "adaptar-se", "incor-
porar-se", "integrar-se". Na perspectiva do respeito ) diversidade étnica, da qual
decorre a autonomia, é i sociedade náo-índia que se coloca agora a necessidade
de conhecer as sociedades indígenas.
82 SILVA e GRUPIONI, op. cit., p. 16
83 OLIVEIRA,Francisco. 'A reconquista da Amazónia" in Novos Estudos -
CEBRAP, no 38, p.13, 1994
84 Tal Convengáo encontra-se agora em processo de ratificagáo por parte dos
Estados Membros. Já foi ratificada por vários países, entre eles, Noruega,
México, Colómbia e Boüvia. No Brasil, a discussáo esta paralisada.
85 OlT-Organizagáo Internacioanl do Tiabalho.Convengño (169) sobre potos indí-
genas e tribais em países independentes e resolugño sobre a afio da OIT concer'
nente aos Povos indígenas e tribais, Brasília, dezembrolL992
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 59

86 Idem. ibidem.
87 Lembro ainda dois importantes fóruns de discussáo, debates e tomada de
posigóes, onde a questáo dos direitos indlgenas está na pauta dos trabalhos: na
ONU-Organizagáo das Na9óes Unidas, está sendo elaborado um projeto de
"Declaragáo Universal dos Direitos Indlgenas", para aprovagáo, possivelmente,
ainda nessa década, por ser ela, como se sabe, declarada como "Decénio dos
povos indlgenas" (1995-2005). Na "Carta da Terra", redigida em 1992
(ECO/92), por Organizagóes Náo-Governamentais do mundo inteiro, é recon-
hecido "o lugar especial dos Povos Indlgenas da Terra, seus territórios, seus cos-
tumes e sua relagáo singular com a Terra".
3. O MOVIMENTO DOS PROFESSORES
INDÍGENAS DO AMAZONAS,
RORAIMA E ACRE: A CONSTRUQAO
DE UMA TRAIETORIA
"Se, de um lado, os últimos vinte e poucos anos foram marcados
por problemas e ameagas crescentes i sobrevivéncia dos povos in-
dígenas no Brasil - o que nos enche de t¡isteza e indignagáo -, de
outro, estes foram anos de organizagáo e fortalecimento do movi-
mento indlgena, de avangos na Legislagáo Indigenista e de envol-
vimento positivo de setores náo-lndios da sociedade civil na ques-
táo indlgena".88

3. l. Retrospectiva histórica

O Movimento dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima


e Acre pertence ao contexto e conjuntura histórico-política táo bem
sintetizado por Silva, na epígrafe desta segáo. Articulado principalmen-
te através de seus Encontros Anuais, surgiu como resposta á necessida-
de de refletir sobre problemas comuns vividos pelos professores indl-
genas destas regióes e encontrar alternativas para uma mudanga nos
rumos da educagáo escolar, visando garantir que a cultura e os etno-
conhecimentos sejam respeitados e valorizados.
Acreditar na urgéncia e na possibilidade da conquista de escolas
verdadeiramente indlgenas, que estejam a servigo de cada povo, sendo
instrumentos de resisténcia e mesmo recuperagáo cultural, enfim, que
contribuam no processo histórico de sobrevivéncia enquanto povos et-
nicamente diferenciados, é a forga articulatória que une os professores
indígenas nesse movimento.
Podemos perceber que professores, liderangas e comunidades
véem a escola como algo que pode colaborar na construtáo mais am-
pla do seu projeto de autonomia. Conforme Castoriadis (1987),"a edu-
cagáo (que vai do nascimento á morte) é uma dimensáo central de to-
da política de autonomia"89. Nesse sentido, construir seu projeto de
autonomia posslvel e viável, é desafio para o próprio movimento. A es-
62 Rosa Helena Dias da Silva

cola pode transformar-se em um lugar onde se cria e recria a própria


cultura e se confronta com o novo, que advém das novas situagóes ge-
radas pelo contato, seja com a sociedade envolvente (náo-índia), seja
nos contatos interétnicos.
Dentre os vários trabalhos que tém recentemente enfocado a te-
mática da educagáo escolar indígenagO, com énfase na autonomia e
protagonismo indígena, destaco dois que chegaram á conclusóes que
apontam para a mesma perspectiva da presente pesquisa.
Mariana Kawall Leal Ferreira, em sua dissertagáo de mestrado
"Da origem dos homens d conquista da escrita: um estudo sobre povos in-
dígenas e educagño escolar no Brasil', defendida em 1992 na Universida-
de de Sáo Paulo, demonstra que a escola é um dos instrumentos de
contato que sáo apropriados pelos índios, que a utilizam como estraté-
gia de construgáo política de suas identidades atuais.
Já Arlindo Gilberto de Oliveira Leite, em sua dissertagáo" Educa-
gño Indígena Ticuna: livro didático e identidade étnica", apresentada á
Universidade Federal do Mato Grosso, em 1994, analisa que o processo
vivido pelo povo Ticuna para a formagáo de um sujeito político coleti-
vo, reforgou a resignificagáo da escola que já vinha sendo vivenciada
por eles, ao se apropriarem, autonomamente, destes espagos formais,
inclusive transformando seu caráter integracionista anterior numa
possibilidade de reconstrugáo da identidade, na complexa situagáo de
contato.
Quanto irs origens do Movimento, nos relatos feitos, nota-se,
claramente, que, poderíamos dizer, existe uma "pré-história" do Movi-
mentogl, um "antes" dos Encontros. Muito já eru feito por diversos
professores indígenas em suas regióes, sendo que os Encontros servi-
rÍrm para detonar um processo organizativo, e possibilitar a articulagáo
e o intercámbio das diferentes experiéncias, aglutinando assim as for-
gas que estavam, de certo modo isoladas.
É importante registrar que a própria proposta da realizagáo de
um primeiro encontro, que colocasse em contato professores indígenas
de diversos povos, para conhecimento mútuo do que se estava fazendo,
partiu de um pedido formal de professores Ticuna ao regional Norte I
do CIMI92. Estes, desde 1983 encontram-se em Processo de discussáo
sobre a problemática da escola indígena e outras questóes envolvidas
em seu trabalho pedagógico e, a partir de 1986, organizam-se na
OGPTB - Organizagáo Geral dos Professores Tikuna Bilíngües93.
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades 63

Conforme Silva e Azevedo (1995), "os professores Tikuna talvez


tenham sido os primeiros a se organizar e, de certa forma, inspiraram
todos os outros'1 Na avaliagáo destes autores, "há uma série de marcas
no Movimento de professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre
que permitem constatar uma forte influéncia das reflexóes elaboradas
pelos professores Tikuna durante a década de oitenta"94.
Vejamos, recorrendo ao importante trabalho de Arlindo Leite,
um pouco da trajetória dos professores Tikuna, enquanto parte cons-
titutiva fi.rndamental da história do movimento dos professores aqui
estudado.
"A constituigáo do sujeito político coletivo Ticuna teve como
suportes a reconstituigáo da identidade étnica e organizagáo grupal em
nível das relagóes intra societárias e inter societárias, ou seja, na esfera
das relagóes das diversas aldeias Ticuna entre si e na esfera das relaqóes
entre o povo Ticuna e a sociedade nacional. (...) Desde que passou a
fazer parte do universo Ticuna, a escola tornou-se um elemento con-
stitutivo da educagáo Ticuna, juntamente com os processos educativos
tradicionais e com várias outras dimensóes que foram acrescidas desde
que se estabeleceram as relagóes interétnicas com os brancos: práticas
comerciais, experiéncias religiosas, atividades políticas, uso dos meios
de comunicagáo social, etc. Noutros termos: o processo de socializaqáo
Ticuna passa, hoje, pelas formas tradicionais, fundadas na sabedoria
ancestral e pelas formas incorporadas a partir do contato com o
mundo branco - entre as quais, a escola. As duas vertentes náo se apre-
sentam de modo sucessivo ou paralelo, como se fossem duas formas
separadas de construgáo social - a indígena tradicional e a ocidental
moderna -, mas de modo globalizante e dialético, em que todos os ele-
mentos sociais disponíveis sáo organizados e reorganizados continua-
mente, proporcionando uma visáo de mundo e uma pauta de conduta
que garanta a maior consisténcia posslvel ao modo de ser Ticuna hoje.
(...) O estabelecimento da instituigáo escolar entre os Ticuna esteve
fortemente vinculado ás forgas missionárias atuantes na regiáo (Igrejas
Batista, Católica, da Cruz), que viam na escola um instrumento hábil
para veiculagáo de suas ideologias e interesses próprios. Entretanto, em
que pesem as marcas deixadas por essas influéncias, os Ticuna vivem
hoje uma experiéncia de escola laica. Pode-se dal depreender que desde
cedo os Ticuna perceberam a importáncia dos recursos proporciona-
dos pela escola para a concretizagáo de um relacionamento mais efi-
64 Rosa Helena Dias da Silva

ciente com a sociedade envolvente, procurando ter acesso a eles através


das vias que se apresentaram disponíveis, as quais foram por algum
tempo (e ainda sáo em alguns casos) as instituigóes religiosas atuantes
em seu território. Deste modo, por um lado os Ticuna se adaptaram is
propostas de escolarizagáo que os missionários apresentaram, mas, por
outro (e fundamentalmente), adequaram-nas aos seus próprios inter-
esses. (...) Durante a década de 80, expandiu-se ainda mais o movi-
mento de escolarizagáo entre os Ticuna, com a instalagáo de escolas em
praticamente todas as aldeias, inclusive as menores. A implantagáo das
escolas resultou fundamentalmente do esforgo das próprias comu-
nidades que, convictas da sua importáncia, providenciaram espago ffsi-
co, materiais básicos (lousa, giz, cadernos, lápis, borrachas), escolheram
professores dentre os moradores da própria aldeia ou buscaram-nos
noutras aldeias, ajudaram a prover o seu sustento e motivaram as cri-
angas para o estudo. Os próprios Ticuna que já tinham estudado um
pouco ou estavam estudando em séries mais adiantadas, foram assu-
mindo o magistério nas primeiras séries, organizando-se aos poucos e
procurando formas de se capacitarem para o desempenho mais
proficuo de seu trabalho. No final de setembro de 1983, realizou-se
uma importante reuniáo de professores Ticuna. Foi planejada com a
finalidade de discutir primordialmente o problema da contratagáo dos
professores pelas prefeituras dos municípios sob cuja jurisdigáo estáo
as aldeias Ticuna. (...) Uma das conseqüéncias notáveis destes eventos'
em que os professores Ticuna davam passos mais seguros em busca de
seus objetivos, foi a substituigáo dos professores "civilizados" que ainda
atuavam em suas aldeias, por professores Ticuna. Thl procedimento
manifestou com muita clareza uma tomada de consciéncia conjunta
acerca da importáncia de serem os próprios Ticuna a decidir sobre os
rumos da educagáo escolar em suas aldeias. Delegar as tarefas escolares
a professores náo-Ticuna significava subordinarem-se a interesses
alheios - e via de regra antagónicos - a construgáo de conhecimentos
que, em grande parte, determinariam o futuro do próprio povo. Ou
seja, seria trabalhar contra si mesmos"95.
Escolhi uma citagáo dos próprios professores Ticuna, que ilustra
o que procuramos demonstrar acima:
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 65

Para nós Ticuna, o que contribuiu foi principalmente a gente ofer-


ecer resisténcia ao trabalho dos brancos em sala de aula e usar o
nosso próprio material didático na sala de aula. Isto foi uma forga,
a resisténcia contra os brancos e a participagño de comunidades no
trabalho dos professores. Antes do I Encontro, a gente jó vinha tra-
balhando junto ás comunidades co,n a elaboragño de material
didático. Os Encontros contribuíratn com nós em articulagño com
outros povos e troca de experiéncias e manter as escolas resistentes
contra o regimento dos brancos. Nós vamos continuar trabalhando
como sempre96.

3.2. Os Encontros anuais de 1988 a 1997

Nesse processo de organizagáo, os Encontros anuais represen-


taram momentos decisivos, onde as articulagóes culturais e pollticas
tornaram-se possíveis, e as trocas de experiéncias e conhecimentos fiz-
eram surgir uma nova concepgáo de educagáo escolar indígena, que
respeita os conhecimentos, as tradigóes e os costumes de cada povo,
valorizando e fortalecendo a identidade étnica, ao mesmo tempo que
procura passar conhecimentos necessários para uma melhor relagáo
com a sociedade náo-índia.
Novamente, busquemos eru(ergar na experiéncia paradigmática
Ticuna que é, como vimos anteriormente, forga matriz, fundante desta
articulagáo mais ampla, eual a concepgáo de escolarizagáo.
"Partindo do modelo'civilizado'de escola, conhecido por via da
subjugagáo cultural, passaram a forjar algo novo, feito á sua imagem e
semelhanga, uma escola Ticuna. Uma escola, sim, com sua origem for-
mal nitidamente náo indígena, mas exibindo agora a marca incon-
fundlvel do perfil Ticuna: uma escola onde se falava Ticuna, onde se
estudava e se preservava a língua Ticuna, onde se estudavam assuntos
relativos ao mundo Ticuna, onde as avaliagóes eram feitas á moda
Ticuna, onde a comunidade Ticuna dizia a sua palavra, onde Ticuna
formava Ticuna, onde se estabeleciam relagóes com a sociedade envol-
vente de forma a garantir os interesses Ticuna, onde - e sobretudo - as
decisóes eram tomadas pelos Ticuna"97.
Neste contexto, a escola e a organizagáo dos professores indíge-
nas tem possibilitado assim a conquista de espagos pollticos dentro do
Estado brasileiro. Na expressáo de Azevedo e Ortolam, "as organizagóes
66 Rosa Helena Dias da Silva

indígenas desempenham o papel de interlocutoras das comunidades


junto ao Estado e á Sociedade Civil, papel este que antes dos anos 70
era assumido por certos profissionais (antropólogos, indigenistas, jor-
nalistas, etc.) e entidades que apoiavam a luta indígena"98.
Viveiros de Castro, em seu instigante texto "Autodeterminagáo
indígena como valor", observa que "náo pode haver autodeterminagáo
sem alguma forma de representagáo política dos índios a nível local e
nacional, isto é, sem que a polltica indígena (uma politics) náo busque
influenciar a política indigenista através de canais propriamente políti-
cos"99.
Analisando os Relatórios e Documentos produzidos nos suces-
sivos Encontros, que sáo alvos desta pesquisa, assim como demais
materiais de registro histórico coletados, podemos perceber que as
questóes foram surgindo para o movimento seguindo certa lógica, o
que trouxe uma ordem muito dinámica ás discussóes. Partiram de
reflexóes que se iniciaram evidenciando e reforgando o fato de que
existe (e sempre existiu) a educagáo indlgena tradicional de cada povo
e observa-se que a énfase central dos Encontros tem sido as discussóes
de caráter mais global, priorizando aspectos dos fundamentos, princí-
pios, bases e objetivos gerais da educagáo escolar indlgena. Seja na
escolha dos temas, seja na definigáo das pautas, essas temáticas apare-
cem com maior destaque. Quanto irs questóes técnico-pedagógicas, de
operacionalizagáo dos diferentes processos escolares, tém sido enfo-
cadas em momentos diversos - cursos, reunióes e encontros - , a nível
local.
Passarei, a seguir, i descrigáo e análise de cada um dos dez
encontros, organizando o relato nos seguintes itens, destacando sempre
seu caráter cultural-político-pedagógico:
Síntese do Encontro;
Descrigáo e anillise;
Conclusóes;
Quadro sinótico.

Darei tratamento especial ao I Encontro, por ter sido o deton-


ador de todo o processo seguinte de continuidade do movimento. Da
mesma forma, enfatizarei o X Encontro, pela importáncia histórica e
pelo significativo momento de auto-avaliagáo interna e coletiva. Sáo,
no contexto da pesquisa, o "início" e a "atualidade", dentro da delimi-
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 67

taqáo escolhida: 1988 a 1997. Também o VII Encontro será relatado


mais amplamente já que foi, dentro do período mais intenso dos tra-
balhos da pesquisa, um importante momento para mim. Refiro-me á
realizagáo do Seminário de Pesquisa, previsto no Projeto e incorpora-
do á programagáo do evento, enquanto parte deste.

3.2,1. 1 Encontro - Manaus/1988

3.2.1.1. Síntese

No I Encontro (1988), a partir da pergunta: "Como se aprende


a viver?", cada grupo pode relatar o seu "jeito", a sua maneira de edu-
car, dentro de suas comunidades. Após os trabalhos sobre a educagáo
tradicional de cada povo, um segundo passo foi dado, no sentido de
problematizar o porqué da existéncia da escola, ou seja, os seus obje-
tivos. Neste momento, a reflexáo foi desencadeada pela pergunta: "Se
já existia educagáo na originalidade, para que funciona a escola
atual?" Em seguida aos dois momentos iniciais, deram continuidade ás
reflexóes, norteados por duas novas indagagóes: "que tipo de escola
desejam" e "como deve ser a escola que queremos". As discussóes fi.nais
procuraram responder a seguinte pergunta: "Quais os passos que pre-
cisamos dar para conseguir a escola que queremos?"

3.2.1.2. Descrigáo e an¡ílise

Ao enfocar a primeira questáo, a respeito das formas próprias de


educagáo, percebo que, desde logo, se complexifica a questáo, posto
que, estáo reunidos no movimento sempre mais de uma dezena de
povos indlgenas distintosl0o, e o que se constata é que "existem tantos
modelos de educagáo indígena, quantas .¡¡n.urr'101.
Porém , dentro da diversidade dos conteúdos e formas apresen-
tadas nas exposigóes, há aspectos que se repetem. Assim, esta recorrén-
cia (de atitudes, modos de atuar, práticas e valores) constante em todos
os relatos, sugere serem estas, algumas das caracterlsticas gerais da edu-
cagáo indígena:
68 Rosa Helena Dias da Silva

oPrende-se a viver dentro da vida cotidiana;


adquire-se os conhecimentos necessórios para a vida, com o pai, a
mñq e a comunidade; aprende-se pelo exemplo e pela experi-
mentagño;
a tradigño cultural dos antepassados é valor fundamental e base do
trabalho pedagogico; preserva-se a tradigño da oralidade;
valoriza-se o trabalho, como meio educativo e como insergño na
vida do grupo;
o valor fundamental da teta é afirmado constantetnente;
aprende- se a conhecer e respeitar a natureza.

Destaca-se, como princípios, a alegria e o prazet de viver.


Vejamos alguns autores que, com suas análises, esclarecem o observado
acima.
"As sociedades indígenas brasileiras, como, aliás, muitas outras
sociedades em todo o mundo, se educaram perfeitamente durante
. séculos sem recorrer d alfabetizagáo, conseguindo, com meios quase
que exclusivamente orais, criar e transmitir uma rica heranga cultural.
(...) Também se pensou, com frequéncia, que a educagáo indígena é
simplesmente utilitária, orientada somente á sobrevivéncia, sem tempo
nem interesse para a cultura. (...) o lndio está educado para o prazer de
viver e o seu'tempo de cultura', dedicado a rituais, jogo ou simples
gracejos, é mais extenso e intenso do que aqueles das sociedades mod-
ernas que trabalham para comer. O índio trabalha para viver'102.
A crianga indígena participa ativamente, e de forma integrada,
da vida da comunidade. Ou seja, de todos os seus momentos, incluin-
do tanto as festas e rituais como as atividades produtivas - ou propria-
mente de trabalho: como caga, pesca, roga, entre outros. Esse "acom-
panhar" a vida do grupo é parte intrínseca do processo de
formagáo/educagáo.
"A crianga indígena faz em miniatura o que o adulto faz. Vive no
jogo a vida dos adultos. Aprende as atividades sociais rotineiras, partic-
ipa da divisáo social do trabalho e adquire as habilidades de usar efazer
instrumentos e utensílios de seu trabalho, de acordo com sua idade e a
divisáo de sexo"lo3.
Em duas histórias relatadas no livro 100 Kxiti (estórias)
Tukanoll4,poderemos constatar a predomináncia de tais idéias:
A autonomia como valor e a articulaQao de possibilidades 69

Yoge
"Certo dia fui pescar. Tínhamos um cacholro marupiara: era só eu
entrar na cafloa que ele, nadando, atral/essava o rio e lá se manda-
va atrás de cutias, pacas, etc. Comecei a lidar com meus anzóis e
consegui, como de costurne, bastante peixes que acrescentados aos
que costumava pegar meu pai, davam Para o jantar e para o dia
seguinte, de manhñ, na refeigño principal. De repente ouvi o
cachorro latir e cada vez mais se aproximar da beira. Nño passou
muito tempo e eis que uma cutia, pulou no rio. Ndo perdi tempo:
avancei em diregño a ela e levantei tneu retno para dar-lhe uma
pancada na cabega e ffiatá-la. Qual o qué? A cano*, muito peque-
na, nÁo colaborou. Na hora que eu ia lascar o golpe, ela virou.
Fiquei alagado, os peixes que eu tinha pescado sumiram e a cutia,
feliz da vida, conseguiu atravessar o rio. O cachorro ficou olhando
prá mim cotno quem diz: Adeus jantar... Voltei para casa. Minha
mñe foi a primeira a perceber o tneu desapontamento. E entño eu
lhe contei tudo. Riu-se a valer. Riram todos, Porque entre nós,
quando um menino nño se sai bem, nño é objeto de compaixño.
Assim, os meninos crescem mais corajosos e prestam muita atengño
para nño errAr em nAdA".

Akheto
"Todos os anos, em pleno verño, meu pai saía para ir pescar no
baixo rio Tiquié. Demorava algumas vezes até um més A volta.
sempre era festejada. Quantos peixes costumal)a trazer! Que ale-
gria, especialmente entre nós pequenos!
Nño é que, chegando eu aos noye ou dez anos (ndo lembro bem,
pois nós, indígenas, sotnos ainda os donos do tempo e ndo o con-
trário), pensei comigo mesmo, sem dizer nada aos outros:
- Tenho que fazer como ftreu pai, o verño estó uma beleza, voltarei
com a canoa cheia de peixes.
Dito feito, marquei o dia da saída. Levantei-me animado como
nunca: banho bem cedinho, como é costume entre nós, depois a
refeigño que é a principal do dia. Daí em diante nño parei mais um
minuto, preparei tudo: remo, canoa, arco, flexa, anzóis, iscas...
Entño, vendo que tudo estava em dia fui despedir-me de minha
mñe, de meu pai e dos outros:
7O Rosa Helena Dias da Silva

- Vou pescar. daqui a uln més estarei de volta. lrño ver quantos
peixes!
- Ótimo Akheto! - responderam - Añuató nd añupetikñto (leve
lembrangas nossa para todos).
E eu entrei na minha canoazinha e comecei a remar com toda a
forga. Depois de uns cinco estiróes,levantei o olhar em direfio das
áreas da beira do rio: vi o sol querendo também ele se despedir. Que
fazer? Conünuar, faltava coragem; voltar para casa era a derrota
completa. Parei e fiquei indeciso. Porém ao descambar do sol, nño
tive mais dúvidas: o jeito foi voltar.
Cheguei em casa na hora do jantar, Ninguém percebeu, Pensar em
largar tudo e cair na rede, cansadíssimo, foi uma coisa só. Depois
de uns minutos ouvi a voz de minha mñe:
- Akheto, baóge atyó (venha comer).
O que se seguiu, todo mundo pode imaginar..."

Numa passagem do livro Entre os índios Mynkylos, há um relato


muito expressivo, no qual podemos verificar que os jogos e brin-
cadeiras para os povos indígenas náo sáo só do domínio da infáncia. Ao
contrário, sáo elementos do dia-a-dia da comunidade como um todo:
"a chegada é uma verdadeira festa e os Mynky oferecem muita chicha
de mandioca aos visitantes. Logo os homens iniciam o seu esporte mais
típico: o jogo de cabega, com a bola feita com leite de mangabeira. Dos
Mynk¡ só os idosos participam do jogo, pois para os mais jovens, aqui-
lo é novidade. Pelo meio-dia, interrompem o jogo e váo todos ao cór-
rego banhar-se. Nas horas mais quentes conservam-se dentro das mal-
ocas, em alegre convívio. Pela tarde voltam a jogar".
Uma outra descrigáo de um dia passado na aldeia, junto ao povo
Kulina (no Amazonas), feita por Roberto lswt56hl06 nos ajuda a visu-
alizar essa relagáo íntima com a natureza: "é de admirar as criangas
Kulina brincando, se encharcando, se enlameando, se lambuzando no
terreiro da aldeia em dia de aguaceiro. Como em nenhum lugar neste
rio, os risos e a conyersa fiada, e a alegria desse povo convertem a tris-
teza do tempo, em tempo de espera e ptazer".
Contrariamente, segundo Jean Chateau, em seu livro O jogo e a
criangal0T,nas sociedades de tradigáo ocidental, a crianga logo percebe
que o trabalho que lhe é permitido pelos adultos "é uma tarefa menor",
sem utilidade realmente expressiva e da qual ela tem pouca autonomia
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 7l

("é vigiada de perto"; "náo pode fazer sozinha"). Duas idéias centrais
elaboradas por Chateau sáo: "é por ser estranha ao mundo do trabalho
que a crianga se afirma através do jogo"; "participar das tarefas adultas
é sonho de toda a crianga".
Como se sabe, o jogo
e a brincadeira sáo elementos importantes
na educagáo infantil. 'A originalidade aqui é que o índio, já desde
pequeno, brinca de trabalhar. Seu brinquedo é, conforme o sexo, o
instrumento de trabalho do pai ou da máe. O índio, que brincou de
trabalhat depois vai trabalhar brincando. O seu jogo é brinquedo que
náo lhe deu ilusóes, que depois a vida lhe negará. Pequenos arcos e fle-
chas nas máos de um menino ou pequenos cestos dependurados na
cabega de uma menina, que vai com a máe buscar mandioca na roga,
sáo cenas que tém encantado qualquer visitante de uma aldeia indíge-
na,r 108.
O que podemos perceber no contato direto com a realidade
indlgena e através de relatos de diferentes experiéncias, é que a crianga
aprende brincando, num clima de ampla liberdade.
Ao falar especificamente da educagáo das criangas do povo
Kaiowá (no Mato Grosso do Sul), Meliá (1979) nos mostra que: "no
primeiro perlodo (de um a trés anos), é sobretudo a comunidade que
atua sobre a crianga, aprovando ou rechagando suas atividades ou
comunicando-lhes através do jogo e de exemplos da própria vida, ati-
tudes e valores. De trés a cinco anos, a criangada constitui uma ver-
dadeira mini-sociedade, onde a vida adulta é imitada em todas as ativi-
dades diárias, até as religiosas. O respeito que os pais tém para a cri-
anga, o modo de falar com ela, quase nos pareciam exagerados. O adul-
to considera o papel da crianga na sociedade com muita seriedade. O
que náo quer dizer que as relagóes entre eles sejam tensas ou tristes.
Adulto brinca com crianga e crianga brinca .o- u¿uhe"lO9.
Quanto a questáo do conhecimento da natureza, remetamo-nos
a alguns autores que tém trabalhado esta temática. Em seu texto "O
impacto da conservagáo da biodiversidade sobre os povos indígenas'l
Andrew Gray coloca que "os povos indígenas tém uma vasta riqueza de
conhecimentos relativos a seu ambiente, construlda ao longo de sécu-
los. Este conhecimento náo inclui somente informagóes sobre difer-
entes espécies de animais e plantas, seus comportamentos e suas utili-
dades, mas também informagóes sobre o modo como aspectos do uni-
verso se inter-relacionam". E vai além, ao afirmar que para os povos
72 Rosa Helena Dias da Silva

indígenas "o conhecimento do ambiente depende de contatos com o


mundo invisível dos espíritos que desempenham um papel fundamen-
tal na garantia da reprodugáo da sociedade, da cultura e do ambiente.
(...) Para eles, o conhecimento é simultaneamente material e espiritual
e os seres humanos geralmente náo estáo separados daquilo que os
povos náo-índios concebem como o'mundo ¡¿¡g¡¿|"'110.
Thmbém Eduardo Viveiros de Castro nos traz idéias acerca desta
relagáo - sociedades indígenaslnaturezalsaber. "A relagáo entre os
povos indígenas e a floresta é mediada decisivamente por suas formas
de organizagáo sociopolítica. A natureza é natrreza para uma
sociedade determinada, fora da qual se reduz a uma abstragáo vazia.
Dessocializar tal saber é expropriá-lo e inutilizá-lo praticamente". Este
autor procura destacar que as relagóes que se estabelecem entre home-
ns e natureza náo sáo naturais mas sim imediatamente sociais. Este
aspecto eminentemente social (das relagáo entre sociedades e natureza)
"recebe um reconhecimento explícito nas culturas indígenas, em con-
traste com a concepgáo objetivante de natureza entretida pela mod-
ernidade 66ids¡¡al"lIl.
Segundo Eduardo Carrara, "a natureza, para os lndios, náo é só
o lugar de onde retiram sua subsisténcia através da coleta, agricultura,
caga e pesca; mas é também objeto de uma observagáo cuidadosa e
atenta que nomeia, ordena e classifica as diversas espécies naturais do
meio em que vivem. Enfim, consiste este aprendizado da natureza em
uma das principais substáncias do pensamento indígena"ll2.
Contudo, a consciéncia das contradigóes e complexidade dos
problemas e desafios enfrentados na realidade histórica vivida, acres-
centou (para a maioria dos povos) aos conhecimentos tradicionais, a
urgente necessidade de entender a dinámica da sociedade majoritária,
assim como de ter o domínio sob novos saberes, que os ajudem no
encaminhamento das novas situagóes. Esse processo, na maioria das
vezes, é permeado por conflitos/tensóes e dominagáo, exercidos por
parte da nossa sociedade. Daí o fato de que, ao falarem sobre o hoje,
venha a tona expressóes que denotam angústias, sentimento de lamen-
to - uma espécie de "saudade" de um passado náo vivido. É como se
aflorasse uma certa "nostalgia'l um desejo de "retorno ás origens" que,
como se sabe, já náo sáo as mesmas.
Trechos de relatos, a seguir, ilustram essa situagáo:
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 73

"Para saber como se aprende aviver, depende de certos fatores - por


exernplo, a descaracterizagño cultural de muitas comunidades,
motivada pela invasño das áreas'i (Professores Macuxi/RR)
'A língua Wapixana está bastante falida. Há muita interferéncia
do Governo'l (Professores Wapixana/RR)
"O costume da queima da face, cheirando pimenta, quase nño se
faz mais. A nossa línguo nño estava escrita, estamos fazendo agora
a nossa cartilha,,," (Professores Tucano/AM)
'As tradig1es dos pais foram acabadas um pedago. Mas queremos
renascer esta tradigño, fazer um renascimento da nossa história.
Por fazemos um estudo paralelo das duas culturas, vendo o que
isso
é bom ou mau", (Ptofessores Desano/AM)
'A educagño era toda de pai para filho. Moróvamos na beira do
Solimóes e plantávamos na praia. O principal ponto era nño deixar
faltar a alimentagdo. Nas praias se plantava junto e ünha muita
brincadeira, alegria. Hoje, quando queremos plantar na praia, logo
aparece alguém prá falar que é dono da praia e nós nño podemos
plantar". ( Professor Kambeba/AM)
"Me sinto envergonhado porque nño sei falar a minha língua. Eu
nño vi e nem vivi esta época de meus avós. Nño vi a vida boa que
eles levavam antes". (Professor Mayoruna/AM)

Ao tratarem da questáo "se já existia educagáo na originalidade,


pr¡ra que funciona a escola atual", os relatos dos grupos evidenciaram
alguns conflitos existentes na questáo do contato da sociedade envol-
vente com as populagóes inügenas, assim como nas relagóes que se
estabelecem entre as diferentes culturas e os diversos modelos de
sociedades. Dentre eles, a introdugáo da educagáo escolar ou seja, da
escola enquanto nova instituigáo; posto que, como lembram Emiri e
Monserrat, "(...) o espago da aldeia acaba por ser invadido por uma
realidade que logo reclama para si o status de uma verdadeira institu-
igáe"l 13.
Mostrou ainda que os professores percebem os antagonismos e
contradigóes presentes nesse espato, bem como visualizam as possibil-
idades de uma escola diferenciada, que desempenhe papel relevante,
dentro das necessidades da realidade atual. Assim, "a escola em si é
assumida, mesmo com seus eventuais perigos"l14.
74 Rosa Helena Dias da Silva

Dentro desses dois tópicos, vejamos alguns pronunciamentos de


professores indígenas, que falam por si só, yoltadas para a análise da
situagáo das escolas hoje, conforme grandes perspectivas:

Críticas á escola :

A escola nño levou em conta os valores e a cultura. Dentro do pro-


grama atual, a escola ndo tem conteúdo sobre nosso povo, nossa
cultura (Professores do Rio Negro)
Achamos que todo povo tem seu jeito, a sua maneira de educar.
Antigamente foi de um jeito e hoje é completamente diferente. A
populagño envolvente de Roraima - o branco - fez mudar a nossa
maneira de ser, Nossa sociedade nunca pensava que ia chegar a
situagío de hoje (Professores Wapixana).
Diversos professores dao aula na língua Macuxi, mas na clandes-
tinidade. Proíbem os professores de ensinar as coisas Macuxi. Os
profasores sño pagos para falarem sobre coisas que nño sño deles
(Professores Macuxi).
O branco ensina a ler, escrever, ffias depois que o aluno sabg ele
nño gosta mais. Fica com medo do aluno saber mais (Prof. Alírio
Moraes, Tikuna/AM).

Contradigóes, possibilidades e alternativas:


Na realidade, nós - o próprio sistema educaüvo do governo existe
assim - fomos preparados para a defesa: 'vocé tem que estudar
senño é enganado'. A escola prepara para enfrentar o Progresso que
vem chegando. Agora temos que ver como vai ser a escola do nosso
jeito que quereffios (Professores do Rio Negro/AM).
A escola atual pode ser positiva ou negativa. Pode fazer com que
esquecemos nossa cultura, nossa língua. É, importante que o proces-
so da escola seja indígena, part manter os nossos costutnes, Para
ensinar a nossa língua, Precisamos de conhecimentos do mundo
indígena e do branco (Professores do Médio Soümóes).
Como vamos organizar nossa língua, nosst cultura, nossa história?
Daí organizamos o Centro de Formagño, ano passado, com 16
alunos; esse ano 32 alunos e 3 professores. Esta escola tem o objeti'
vo mais voltado para a nossa cultura, nossas tradigíes, nño para
profi ssio nalizar ( Professores Macuxi/RR).
A autonomia como valor e a articulaEAo de possibilidades 75

A escola funciona para dar maior conhecimento e defender nossos


direitos, Serve para entrar em contato com os brancos. Nós, Sateré,
temos a Escola Agicola. Nessa escola temos 26 alunos e estamos
fazendo renascer os costumes. Temos que aprender muito com os
mais velhos. A escola é dos lndios Sateré-Maué. Ela foi construída
depois que todos os capitAes fizeram um encontro e decidiram pela
escola (Professores Sateré-Maué).

Durante o debate da questáo "que tipo de escola desejam",


travou-se um debate a respeito do ensino profissionalizante. Este tema
vem a tona em fun9áo das variadas e distintas propostas de escolas
profissionalizantes e de projetos económicos (especialmente os
agropecuários), que sáo oferecidos ou mesmo implantados nas comu-
nidades indígenas. Encontra-se intimamente ligado á questáo do
desenvolvimento tecnológico e da visáo de integragáo.
Conforme Roberto C. de Oliveira, "mito ou náo, a tecnologia
tende a ser pensada como o supra sumo do progresso - e gera ideolo-
gias correspe¡ds¡¡s5Dl 15.
Como as sociedades indígenas, táo diferenciadas material e cul-
turalmente do modelo ocidental, podem fazer frente ao avango da
sociedade moderna industrial?
Pensando essas questóes, Carrara vai mais além ao indagar:
"qual seria a alternativa tecnológica (económica), excluído o modelo
extrativista (sem renovagáo dos recursos naturais), para garantir ter-
ritórios indlgenas, dos quais dependem os índios para sobreviver fisica
e culturalmente? Seria a aplicagáo de tecnologias agrícolas ou pastoris,
a fim de adaptá-los forgosamente a um modelo de desenvolvimento
agrícola ou pastoril? ou, o resgate de conhecimentos indlgenas dos cic-
los ecológicos, das plantas, dos animais, enfim do manejo do meio
ambiente que realizam em suas terras muito antes do contato com os
brancos e da onda ecológica estar em voga?"116
Voltando novamente i elaboragáo de Gray (em seu texto sobre
povos indlgenas e biodiversidade), veremos que, na perspectiva dos
povos indígenas, os projetos próprios de desenvolvimento, além de
privilegiarem iniciativas locais, "se esforgam para articular as dimen-
sóes 'cultura' e 'política' do desenvolvimento a abordagens susten-
táveis". O resultado desses processos, segundo esse autor, é um "'auto-
76 Rosa Helena Dias da Silva

desenvolvimento'que coloca a responsabilidade e o controle sobre os


projetos nas mAos das próprias comunidades indígenas"l17.
Constato no entanto que, o significado de "profissional" para os
povos indígenas náo tem o mesmo teor da concep@o de nossa
sociedade. Quando falam em escola profissionalizante, pensam em
uma forma de aprender técnicas novas para produzir alimentos, com
objetivo de garantir e melhorar as suas condigóes de vida. O valor dado
é o de sobrevivéncia, náo no sentido mínimo, mas no sentido de, como
já foi citado, "trabalhar para viver". As categorias que se interligam, por-
tanto, sáo vida e trabalho, e náo trabalho e acumulagáo, como na
sociedade envolvente.
Castro (1994) também se refere a essas questóes de contraste ao
formular que "a categoria que comanda as relagóes entre homem e a
natureza é, para a modernidade ocidental, a produgáo, concebida como
ato de subordinagáo da matéria ao desígnio humano. Para as
sociedades amazónicas, a categoria paradigmática nesse contexto é a
reciprocidade, isto é, a da comunicagáo simbólica entre sujeitos que se
interconstituem pelo ato mesmo ¿u ¡.o.¡'118.
Vejamos algumas citagóes, contidas no Relatório do I
Encontro/1988, onde poderemos comprovar o exposto acima:

Precisamos de técnicas para trabalhar na agricultura. E necessário


hoje, para nossa sobrevivéncia, a escola profissionalizante". (Prof.
Fausto Manduláo, Macuxi/RR).
"A escoh profissionalizante é um meio que o índio pode ter. A
tradigño é nossa esséncia, vai nos acompanhar setnpre. Precisamos
conhecer mais para defender nossos direitos. (Prof. Domingos
Sávio, Tucano/AM).
Através da escola profissionalizante pode-se registrar o que antes
era só a cultura oral. Os projetos estño chegando, e muitas vezes nós
aceitamos porque a caga e a pesca jd é pouca. Estarnos partindo
pora a escola profissionalizante por causa disto (Prof. Henrique,
Desano/AM).
Precisamos nos profissionalizar neste sentido, usando o conheci-
tnento para nossa sobrevivéncia. A escola agrícola é para orientar
para aprender a defender a terra. Precisamos pegar uma parte
desta escola para a escola da tradigño continuar (Professores
Sateré/AM).
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 77

Outra preocupagáo que também transparece é a questáo da


saída dos jovens para estudar fora, visualizando-se, como uma possív-
el solugáo, o fato de poderem contar com escolas, para continuidade
dos estudos, dentro da própria aldeia.

Quando alguém sai da aldeia para estudar na escola profissional-


izante na capital, esquece tudo (Prof . Nírio Moraes, Tikuna/AM).
Na minha comunidade de Vila Betánia, saiu um jovem para a
escola agrícola em Manaus e ficou fora j ou 4 anos. Quando
voltou, tinha perdido a língua e ndo quer mais aprender (Prof,
Francisco luliao, Tikuna/AM).

Remetendo-nos novamente ao texto de E.Carrara, este chama a


atengáo para o fato de que "a tecnologia por si só náo determina a
transformagáo social. Uma tecnologia estranha á prática e ao entendi-
mento indígena náo é adotada de imediato pelos índios, mas deve
adaptar-se e por eles ser adaptada ao seu modo específico de organiza-
gáo cultural e social, o que inclui seus conhecimentos d¿ ¡¿¡u¡s2a"l19.
Alguns relatos deixam entrever que os professores indígenas tém
levantado questionamentos nos quais figuram essa problemática:

Temos que ter muito cuidado. Precisamos de escolas profissional-


imntes só quando for para servir para a comunidade, senño
viramos cobaia. Na minha visño, a escola profissionalizante é para
servir aos nossos interesses (Prof. Fausto Manduláo, Macuxi/RR).
O sistema profissionalizante é próprio do sistema capitalista: neces-
sidade de produzir muito, preparar para o mercado de trabalho.
Estudamos e depois voltamos para a comunidade e nño nos adap-
tamos e acabamos voltando para o branco. É, o que tem acontecido
conosco. Muitos tem voltado para a comunidade e cotno nño con-
seguem ganhar ünheiro, foram embora. No sistema da tradigño,
vejo a cidadania voltada para a comunidade (Professores
Desano).
A Prefeitura de Sño Gabriel está construindo uma Escola Agrícola.
Me pergunto o que está por traz disso; é algo necessário, é válido ou
nño? Uma coisa é: se esse tipo de escola é pedida pela povo e outra
se é imposta pelo governo (Prof. Gersem Luciano, Baniwa).
78 Rosa Helena Dias da Silva

3.2,1.3. Conclusóes

Nos trabalhos realizados em grupos, os professores elaboraram


seus fundamentos e bases pedagógicas, discorrendo sobre os vários
aspectos envolvidos na questAo do processo de ensino-aprendizagem:
metodologia, conteúdos, estratégias, avaliagáo, material didático, par-
ticipagáo da comunidade, relagáo professor-aluno e ética profissional.
Destaco a produgáo do grupo de professores da regiáo do Médio
Soümóes (povos Marubo, Mayoruna, Kambeba e Kokama), por sua
consistente elaboragáo, a qual sintetiza de certa forma as discussóes
realizadas:

7o Uma escola ligada d teoria e d prática.


O método de ensinar os meus alunos sou eu que vou procurar. Eu
tenho que ver como meus alunos aprendem melhor e eu vou Procu-
rar adaptar o meu trabalho.
Tem professor que só está preocupado só com o dinheiro. O profes-
sor vem só escrever, escrever e os alunos só copiam, E aí faz a prova
só das coisas escritas. Isto eu acho que nño serve para o aluno indí-
gena.
O professor deve estar voltado para a prótica. Se o professor ndo
sabe a prática, chama quem sabe. Por exemplo: na aula de ciéncias,
nño é só o que o professor lé nos livros; deve chamar alguém da
comunidade para estudar as plantas medicinais na prótica. O pro-
fessor deve pedir ajuda da comunidade nas aulas.

2o Estudo de sua Cultura.


Trabalhar na aula de cerdmica, artesanato. Vem alguém da comu-
nidade que sabe mexer com isso e ensina. Al, o professor aprende
junto com os alunos.
Trazer pessoas para contar os mitos, a história do seu povo. Enffio
aí entra tudo: língua, cultura, teoria e prática, Desta forma o aluno
ndo perde a sua cultura.
3" F-vitar o &odo rural dos alunos indígenas,
Se a crianga vai para a cidade ele perde a cultura, a tradigño dele.
Só com os dois pontos anteriores é que podemos evitar isso.
A autonomia como valor e a articulagóo d.e possibilidades 79

4o Livros que vem ile fora,


Os livros que o Estado oferecem sño livros fora da reaüdade do
lndio do Amazonas. Como é que um professor bilíngüe vai ensinar
cotn este livro? Tem que adaptar os livros a realidade de cada lugar,
de cada povo.

50 Quantidade e Qualidade.
Os alunos só estudam para tirar dez na prova, é muito errado, ele
quer ficar sabiddo. Isso ndo está com nada. Precisamos nos preocu-
par coln a qualidade, se ele estó oprendendo mesmo. A nota nño diz
tudo. As vezes, quem tira cinco nño quer dizer que aprendeu fttenos
que aquele que tira dez.
A escola que nós precisamos é onde o professor se preocupa com a
qualidade, nño com a quantidade" (Relatório I Encontro/1988).
Foram enfatizados, como necessidades urgentes e prioritárias,
dois eixos básicos: organizagáo e formagáo. Assim, vejamos trés
diferentes citagóes que se somam neste sentido:
"Primeiro: organizar os professores bilíngües. Essa organizafio é o
primeiro passo, é fundamental para conseguirmos a escola que
queremos" (Professores Macuxi).
"Segundo: a capacitagño dos professores bilíngües. Sem essa capac-
itagño nño podemos fazer nada para nossa comunidade, para os
no ssos oluno s" (Professores Tikuna).
"Para conseguir, temos que incentivar a organizagño e a capaci-
tagño dos professores bilíngües" (Professores do Rio Negro).
Foi elaborado e aprovado documento final do Encontro, no qual
os professores afirmam que, segundo eles, a escola deve ser:
'bilíngue;
voltada á cultura de cada povo;
fundada nas tradigóes;
conscientizadora, tendo em vista a autodeterminagdo
deve trabalhar na defesa dos direitos indígenas;
ter metodologia própria;
ter seu papel avaliado pela ,o*ur¡¿o¿r"120.
80 Rosa Helena Dias da Silva

I ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS E RORAIMA

DATA l5 a l8/outubro/1988

LOCAL Manaus/AM, "Casa Jordáo"

No PARTICIPANTES 4I

N. POVOS t4

LISTAGEM POVOS Baniwa, Desano, Kambeba, Kichwa,Kokama,


Makuxi, Marubo, Mayoruna, Munduruku,
Pira-Tapuia, Sateré-Mawé, Tikuna, Thkano,
Wapixana

REGIÓES 05 - Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes e Roraima

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Formas originais de Educagáo; Educagáo


escolar; Tipos de Escola; Troca de
experiéncias

DOCUMENTO PRODUZIDO Posicionamentos resultantes do Encontro,


de "como deve ser a escola indígena"

ORGANIZADOR CIMI

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Francisco Loebens; Edna e


Feüsberto Damasceno; Silvia Bonotto. MT:
Eunice Dias de Paula) e Universidade do
Amazonas (Graqa Barreto e Odile Lescure)

DESTAQUES Debate sobre "ensino profissionalizante" e


presenga do Prof. Gabriel Ashanga, do povo
Kichwa, do Rio Napo, Equador, representando
o Programa de Educagáo Bilíngue do AIto
Napo

CONTEXTO POLÍTICO Promulgagáo da nova Constituigeo


A autonomia como valor e a articulaEáo de possibilidades 8l

3.2.2. lI ENCONTRO - Manaus/ I 989

3.2.2.1. Síntese

Num segundo momento da história do Movimento, em seu II


Encontro (1989), foram realizados trabalhos no intuito de avaliar o
que foi reüzado durante o ano pelos professores, em suas regiÓes, no
sentido de buscar atingir os objetivos dentro dos princlpios que elen-
caram para a construgáo de uma verdadeira escola indígena. Estes
foram organizados seguindo o seguinte roteiro: "o que estamos fazen-
do para conseguir a escola que queremos; quais as dificuldades que
estamos enfrentando e quais os avantos". Destacaram-se agóes
empreendidas no sentido de garantir que as escolas indígenas sejam
reconhecidas e regulamentadas em nível oficial, pois, como explicitam
os professores de Roraima: o nño reconhecimento das escolas indlgenas é
uma das difiatldades mais graves, no que diz respeito aos trabalhos clan-
destinost2r. Também os esforgos Para manterem-se articulados foram
citados como importante para o fortalecimento do Movimento e a
conquista de seus ideais escolares. Quanto ás dificuldades, sáo
inúmeras e variam em grau de complexidade de regiáo para regiáo.
Como problemas comuns, foram mencionados: a questáo das llnguas
indlgenas e a situagáo complexa de diversidade lingüística presente no
Movimento.

3.2.2.2. Descrigáo e análise

Existem regióes onde vivem vários povos' falantes de sua llngua


original, como no Rio Negro (povos Tucano, Desano, Baniwa,
Piratapuia, Baré, dentre outros); lugares onde as llnguas indlgenas
tradicionais quase já náo existem, como em Roraima (povos Macuxi e
Wapixana); e povos que náo falam mais sua língua nativa, passando o
portugués a ser a língua indígena atual, como no Médio Solimóes
(povos Kokama, Kambeba, Mayoruna, Miranhal22). Nesse sentido, há
professores que falam só o portugués, e há comunidades que tem
rejeitado o aprendizado de sua llngua.
Podemos analisar que isso se dá por influéncia de uma visáo
negativa que foi trazida e difundida pelo processo histórico de contato
82 Rosa Helena Dias da Silva

(colonizador), ou mesmo por uma atitude de "autodefesa", já que as


línguas indígenas eram tidas como sinal de atraso e "náo-civilizagáo".
M. Manuela Carneiro da Cunha fala sobre essa situagáo: "grupos
indígenas do Brasil, sobretudo os de contato mais antigo com a popu-
lagáo neobrasileira, foram induzidos a falarem línguas novas, primeiro
a língua-geral, derivada do tupi e propagada pelos jesuítas, mais tarde
o portugués, por imposigáo expressa do Diretório dos índios pombali-
no (art.6.). Processos de discriminagáo contra as línguas indígenas
foram usados nas escolas salesianas contemporáneas. sáo conhecidas
ainda situagóes, impostas pelo desprezo dos regionais pelos'caboclos'
ou 'bugres', em que os índios se envergonham do uso de suas lín-
guas"l23.
Vejamos o exposto acima, exemplificado por dois relatos de pro-
fessores indígenas, contidos no Relatório do II Encontro/l9g9:

Os alunos nño querem mais falar sua língua, se sentem enyer-


gonhados, tém medo. Entño isso é uma dificuldade para nós.
(Professores de Roraima).
No meu caso tá mais difícil porque só tem o meu avó que sabe falar.
Nós estamos em processo de readquirir a língua. (prof. Mariano
Cruz, Kambeba/AM).

Cabe aqui também uma reflexáo acerca do termo "bilíngue". por


ser um conceito de importáncia fundamental, procurei entáo me
munir de subsídios que pudessem auxiliar-me na tarefa a que me prop-
unha, ou seja, entender as diversas concepgóes de bilinguismo e suas
implicagóes para a temática em estudo. Tive a oportunidade, muito
gratificante e significativa, de poder discutir essa questáo através da
confrontagáo e comparagáo das elaboraqóes teóricas de trés estudiosos
do tema: Bartomeu Meliá, Ruth Monserrat e Márcio Silval24.
Quanto á posigáo de Meliá, pude aprofundá-la através da leitura
de texto de sua autoria, "El modelo ARAKUARENDA, o el bilinguismo
radical'125.
Neste seu trabalho, que analisa a realidade dos Guarani na
Bolívia, afirma que "o bilingulsmo aceita o desafio de que uma língua
náo só está em contato, mas também numa estreita interrelagáo com
outra, porém náo aceita nem a substituigáo do vencido, nem a diglosia
do colonizado, mas busca o diálogo entre dois sistemas linguísticos".
A autonomia como valor e a articulagío de possibilidades 83

Porém, o próprio autor já nos alerta quanto á complexidade de


tal processo, ao ponderar, "até que ponto seja isto possível, náo só em
nlvel de indivlduos particulares, como também fenómeno social glob-
al, é muito discutlvel".
Ao falar sobre a situagáo encontrada na Bolívia, onde a preten-
sáo do projeto colonial de substituir as línguas indígenas pelo castel-
hano nem sempre se concretizou conforme o que se havia programa-
do, tendo resultado na coexisténcia de duas línguas em uma mesma
sociedade, avalia que "esta coexisténcia porém está muito longe de
estar equilibrada e ser harmónica". E continua, "a guerra entre línguas
se tem solucionado mal, resultando em ruínas de sistemas".
Durante um Encontro de Estudo da Articulagáo Nacional de
Educagáo (ANE) do CIMI, pude encontrar-me pessoalmente com R.
Monserrat. Aproveitei para discutir com ela a posigáo de Meliá, expos-
ta na entrevista concedida a esta pesquisa (anexo 1). Após uma
primeira leitura da transcrigáo da entrevista, Monserrat concordou
com a análise de Meliá quanto as possibiüdades da escola indígena.
Este afirmou: "entáo, escola, mesmo na língua indígena, náo deixa de
ser implicitamente um programa de bilinguismo. Entáo a nogáo de
bilinguismo é uma no9áo epistemológica: é um modo de pensar a
sociedade indígena no sentido de que, provavelmente, em vez de pre-
tender assimilar muito a escola ao modo de ser indlgena, adaptá-la,
inculturá-la, etc... talvez seria melhor ter a consciéncia de que a escola
é uma linguagem paralela, é outra linguagem"l26.
Ao longo do Encontro porém, pudemos conversar e refletir mais
demoradamente sobre a questáo, tendo bem presente a realidade deste
debate, com todos seus complicadores, através dos relatos de diversas
experiéncias, feitos pelos indigenistas que participavam do evento,
envolvidos em diferentes processos de escolarizagáo indlgena.
Monserrat refez entáo sua avaliagáo, classificando a tese de Meliá como
por demais idealista. Chamou ainda a atengáo para o fato de que tal
posigáo pode gerar, de início, numa primeira leitura, um "bem estar",
uma sensagáo de "conforto" para aqueles que a léem, já que náo visu-
aliza a possibilidade da construgáo de escolas realmente indígenas, ao
colocar a escola sempre como elemento "de fora", alheio ás culturas
indígenas. Em suas palavras, "uma ünguagem paraleli't27 .
Segundo Monserratl2S, "desde a Conferéncia da UNESCO de
1951, tornou-se axiomático que a llngua mais adequada para a alfabet-
84 Rosa Helena Dias da Silva

izagáo é a língua materna". Por diversas razóes, porém, os vários pro-


gramas de educagáo em língua materna que proliferaram em todo o
mundo deram origem a "múltiplos modelos de educagáo bilíngue". A
énfase dada á língua original é usada como critério para distinguir os
diferentes métodos: "método direto, os programas bilíngues de tran-
sigáo, os de manutengáo linguística e o bilinguismo institucional (cf.
Gonzáles Lorenzo, 1985)". Ao analisar e classificar como inadequados
os dois primeiros métodos (direto e de transigáo), assume sua posigáo
ao afirmar: "(...) o que interessa ás sociedades indígenas é um processo
escolar de manutengáo linguística, em que o ensino bilíngue aponte
para o fortalecimento, mas, mais ainda, para a possibilidade de desen-
volvimento de suas línguas maternas como instrumento eficiente de
afirmagáo de sua identidade sócio-económico cultural frente á
sociedade majoritária".
Ampliando o debate, Márcio Silva faz uma reflexáo acerca do
uso e entendimento do termo bilíngue. Buscando o exemplo de duas
situagóes bem distintas (regiáo do Alto Rio Negro e Médio Solimóes),
dentro do movimento dos professores indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre, alerta para o equívoco de se considerar bilinguismo
necessariamente como a relagáo e a existéncia de duas línguas. Nesta
interpretagáo, uma escola indígena bilíngue seria aquela onde ocorre
processo de ensino-aprendizagem de uma língua indígena e o por-
tugués. Silva nos mostra o risco de tal concepgáo, ilustrando seu pare-
cer com experiéncias vividas pessoalmente, junto aos povos indígenas
da Amazónia: "fui procurado, em julho de 1990, no último dia do III
Encontro de professores indígenas do Amazonas e Roraima, por duas
delegagóes de professores, uma do Alto Rio Negro e outra do Médio
Solimóes, ambas preocupadas com o sentido do termo bilíngue pre-
sente em diversos documentos sobre educagáo escolar indígena (...).A
delegagáo do Alto Rio Negro ponderava que, por razóes inerentes á
própria estrutura social da regiáo, praticamente toda a populagáo fala-
va mais de uma língua indígena. Estes índios indagavam-me perplexos
qual das línguas tradicionalmente faladas deveria ser eleita a língua
indígena (...). Enquanto isso, a delegagáo do Médio Solimóes manifes-
tava uma preocupagáo oposta, enunciada da seguinte maneira: se as
escolas indígenas devem ser bilíngues, o que fazer com as escolas indí-
genas dos povos que, por razóes históricas, falavam exclusivamente o
portugués?" 129
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 85

Retomando a retrospectiva histórica, ainda durante o II


Encontro/1989, foi realizado um debate entre os professores presentes
e liderangas de organizagóes indlgenas (locais e regionais), sob o tema:
'As organizagóes indígenas e a escola", ficou definido o princípio de
trabalho conjunto, explicitado no pronunciamento de faci de Souza,
tuxaua Macuxi, da aldeia Maturuca, área Raposa Serra do Sol/RR, e
expressiva lideranga do CIR - Conselho Indígena de Roraima, no qual
coloca também sua interpretagáo quanto ao papel da educagáo escolar
e a responsabilidade do professor indígena:

Achamos que é importante hoje duas coisas: a uniño do povo e a


terra. Porque tetn a terra, tem tudo: vai plantar, vai criar. Nño
vatnos pedir dinheiro do outro país nño, só se for para dar um
passo. Porque para settPre é só a terra, Porque vocés professores é
bom ver bem o que vocés ensinondo, para chegar longe... Como
vocés sño professores, é bom refleür bem para o futuro de nossas cri-
anQas.

3.2,2.3. Conclusóes

A partir do final do II Encontro, foi criada a COPIAR -


Comissáo dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima - com a
responsabilidade de pensar o Encontro seguinte, inclusive buscando
financiamento para concretizá-lol30. ¡o¡ comPosta desde seu início
por representantes das regióes que integram o Movimento, os quais
foram escolhidos no próprio evento. Naquela época as regióes eram:
Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Médio Solimóes, Baixo Amazonas e
Roraimal3l. Representou um marco decisivo rumo a maior autono-
mia, já que os dois primeiros encontros foram organizados pelo CIMI.
Produziram documento final, que contempla suas reivindi-
cagóes e propostas paraa nova LDB, na época, em elaboragáo.
Reafirmando os princlpios explicitados no documento do I
Encontroil988, avangaram nas proPostas, mostrando o amadureci-
mento das discussóes. No documento, que foi entregue pessoalmente
aos Deputados em Brasília, por uma comissáo de professores indíge-
nas, representantes do II Encontro, podemos ler:
86 Rosa Helena Dias da Silva

A escola indígena que queremos deve ser vohada d cultura de cada


povo, respeitando os costumes, tradigóes, línguas e crengas dos
povos indígenas.
As organizagóes e liderangas indígenas devem participar das
decis1es sobre a escola.
A escola deve ser citica e transformadora, em defesa dos nossos
direitos. E importante que a escola indígena seja reconhecida a
nível federal.
A escola indígena deve respeitar as características linguísticas de
cada povo, assegurando o uso e o ensino das nossas línguas,
Os professores das escolas indígenas devem ser índios. Todos os pro-
fessores indígenas terño direito ao curso bilíngue. Fica a critério das
comunidades e liderangas a contratagño de professores índios. Os
bilíngues terño preferéncia. A formagño bilíngue deve ser garantida
em cursos de capacitagño.
O material didático deve ser bilíngue, o estado deve garantir o din-
heiro para a elaboragño e pubkcagño desse material.
Os curículos das escolas devem ser elaborados com as comu-
nidades, organizagóes e liderangas indígenas, que poderño contar
com a ajuda de entidade públicas ou nño-governamentais, a
critério dos índios.
O calendório escolar deve respeitar o modo de viver de cada povo
indígena.
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 87

II ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS E RORAIMA

DATA 10 a r4liulho/1989

LOCAL Manaus/AM, "Casa fordáo"

N" PARTICIPANTES 30

N. POVOS T2

LISTAGEM POVOS Baniwa, Desano, Kambeba, Kokama, Makuxi'


Manchiner¡ Mayoruna, Sateré-Mawé,
Tariano, Tikuna, Tukano, Wapixana

REGIÓES 05 - Alto Rio Negro, Alto Solimóes' Baixo


Amazonas, Médio Solimóes e Roraima

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Avaliagáo do que cada grupo está fazendo


para conseguir "a escola que deseja";
Dificuldades deste processo; Troca de experién-
cias e A¡ticulagáo do Movimento

DOCUMENTO PRODUZIDO Reivindicagóes quanto i nova LDB


ORGANIZADOR CIMI

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Francisco Loebens; Felisberto


Damasceno e Terezinha Weber); UNICAMP
(Márcio Silva) e USP (Mariana Ferreira)

DESTAQUES Presenga de lideranps da recém formada


COIAB; Debate "As organizagóes indlgenas e a
educagáo"; Decisáo de ida de representantes i
Brasília para entrega oficial do documento
sobre LDB, no Congresso Nacional; Criagáo da
COPIAR

CONTEXTO POLfTICO Criagáo da COIAB; Elaboragáo da nova LDB


88 Ros¿ Helena Dias da Silva

3.2.3.LIf Encontro - Manaus/1990

3.2.3.1. Síntese

Os trabalhos do III Encontro partiram das questóes: "quais as


contribuigóes que os Encontros anteriores trouxeram?" e "como tem
sido o trabalho dos professores indígenas", o que possibilitou um lev-
antamento da situagáo atual, assim como a análise interna e coletiva do
papel que tem tido o Movimento na resolugáo e encaminhamento dos
desafios enfrentados na prática diária dos professores. A seguir, foram
realizados trabalhos em grupo, para aprofundar as seguintes temáticas:
Currículos; Formagáo dos Professores e Articulagáo do movimento.

3.2.3.2. Descrigáo e aniílise

A partir do III Encontro (1990), delimita-se um novo momenro,


posto que este foi organizado pelos professores indígenas, através de
sua comissáo. Esta reuniu-se por duas vezes anteriormente, para dis-
cuti-lo e planeja-lo, assim como para buscar os recursos necessários.
sua realizagáo significou um importante passo para maior articulagáo
e consolidagáo do Movimento, assim como para o amadurecimento e
avango das discussóes em pauta.
Desde logo se evidencia o caráter processual e o aspecto
pedagógico desta experiéncia, assim como a preocupagáo de seus pro-
tagonistas em garantir sua continuidade, avaliando constantemente as
conquistas conseguidas e os problemas que surgem ou permanecem.
Maria da Glória Gohn trabalha temas pertinentes a essas
questóes, procurando evidenciar o caráter educativo dos movimentos
sociais: "nos movimentos sociais a educagáo é autoconstruída no
Processo e o educativo surge de diferentes f6n1s5"132.
Também Cándido Grzybowski, no Informativo da "Agáo
Educativa", ao trabalhar a dimensáo educativa dos movimentos sociais,
aponta alguns elementos especificamente educativos "no sentido de
socializadores e construtores de visóes de mundo, de diregáo ético-
política" dos movimentos sociais, tendo como pressupostos as suas car-
acterísticas. "Trata-se de um olhar para dentro: o que significam os
movimentos para os seus integrantes". Em sua avaliagáo,"rapidamente,
um grupo social e um problema se transformam em movimento social
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 89

quando: l)d comum situagáo social vivida, se junta uma vontade cole-
tiva de attrar paruenfrentáJa.( ...) 2)aagenda, pauta de reivindicagáo e
luta, cimenta o grupo e lhe dá uma forga, a forga de um movimento
coletivo". No mesmo texto, Grzybowski pontua: "em termos bem sin-
téticos, considero elementos definidores de um movimento social, a
combinatória de quatro aspectos essenciais: identidade; reivindi-
cagáo/proposta/projeto; forma de organizagáo adotada; formas de luta
específicas" 1 33.
E neste contexto de análise que tenho, neste trabalho, consider-
ado o movimento dos professores indígenas, dentro da categoria dos
movimentos sociais.
Retomando a descrigáo do III Encontro/I99O' nos trabalhos de
diagnóstico da situagáo da educagáo escolar indígena e da contribuigáo
dos encontros anteriores (I e II), sobressai o aspecto da forga articu-
latória, da troca de experiéncia e da formulagáo de propostas e princí-
pios comuns.
O grupo do Alto Solimóes assim avaliou:

os encontros anteriores contribuíram com nós em articulagño com


outros povos e trocas de experiéncias e manter as escolas resistentes
contra o regimento dos brancos.

O "Currlculo" foi ponto especlfico da pauta. A complexidade


desse tema surgiu nas discussóes, em suas diversas dimensóes: o cal-
endário, os conteúdos, os métodos, o material didático, a avaliagáo.
Esta questáo dos currículos é temática presente nas discussóes em
todos os Encontros já realizadosl34. po¿.-os verificar a concepgáo de
currlculo que o Movimento vem, aos poucos construindo. Vemos nas
colocagóes efetuadas, que este tem sido entendido, numa visáo ampla'
como o conjunto de atividades relacionadas ao processo de ensino-
aprendizagem, envolvendo náo só a eles próprios' mas aos alunos e
toda comunidade, em suas definigóes, elaboragáo e avaliagáo.

Depois que os professores estiverem organizados, ternos que Pensar


num currlculo para as escolas indígenas. O que vatnos ensinar de
portugués? E a nossa língua? Ciéncias a gente jó pensa na medici-
90 Rosa Helena Dias da Silva

na nativa. Entño temos que planejar como vatnos trabalhar. Será


que vai ser igual a
esse modo do branco? (Professores Macuxi/RR).

Como podemos constatar , destaca-se novamente a concepgáo


de que o primeiro passo, e talvez o mais importante, é organizar-se e
fortalecer- se politicamente.
Ao falar das dificuldades, o grupo de Roraima traz com clareza
esse entendimento, vivido na experiéncia recente.

Depois que viemos aos encontros, voltamos e tivemos uma reunido


cort as liderangas. Reivindicamos um espap no CIR (Conselho
Indígena de Roraima). (...) O problema dos profasores também é
problema da comunidade. Entño os professores que participavam
dos Encontros comegavam avalorizar alíngua e a cultura. Criando
o Setor de educagño dentro do CIR. Ele passou a ser utn elemento
importante dentro da organizagño. Se o professor se coloco contra
alguma coisa e ele está sozinho, ou ele é demitido, ou é transferido.
Unidos tém mais forga. O programa de trabalho é entregue ao
Conselho, que nño pode ser demitido ou transferido. É, assim que o
professor fica seguro, garanüdo. A organizagño é que deve encam-
inhar as reivindicagóes.

Constatou-se ainda que o processo de passagem/transformagáo


de "escolas para índio" em "escolas indígenas", que significa, "escolas
dos índios", tem um longo trajeto a percorrer, enfrentando resisténcias
internas e externas.

O que existe nas óreas indígenas sño escolas, mas nño escolas indí-
genas, Queremos uma escoh realmente indígena. (Jma escola que
nos represente, que responda ds nossas vontades (grupo de
Roraima).
Quanto ás barreiras internas, foi falado sobre a náo aceitagáo da
língua pelos próprios alunos. Se o pai nño fala, porque o
fiIho vai querer
aprender?, perguntou um professor Macuxi.
Com relagáo ás pressóes externas, o desconhecimento, o desre-
speito aos direitos indígenas, o preconceito e a imposigáo de modelos
sáo as maiores causas dos problemas e tensóes. os dois depoimentos a
seguir exemplificam aspectos desta questáo:
A autonomia como valor e a articulagío de possibilídades 9l

A prefeitura affieaga com demissóes se a gente nño trabalhar coftt o


currículo deles, com o material e as formas de avaliagdo da
prefeitura (Grupo do Alto Solimóes).
A gente encontra muita resisténcia por parte dos brancos, dos mis-
sionários, para fazer a escola que a gente quer. Eu participei do
pimeiro encontro, mas nño do segundo, porque a diretora ndo
deixou. A gente vem aqui, discute, e na volta, o gente é visto como
atrevido (Prof. Gersem Luciano, Baniwa, Rio Negro).

3.2.3.3. Conclusóes

Os Encontros tém servido Para aglutinar as forgas e tratar uma


política indígena quanto á questáo da educagáo escolar.
Pronunciamento do grupo do Rio Negro traz com profundidade a
complexidade, contradigóes e conflitos vividos, assim como as esper-
angas visualizadas:

Quando a gente colocava o que devia ser a escola indígena, a gente


via que tinha gente que nño queria mais ser índio. Para eles, a esco- .

la indígena era atrasar, voltar atrás, ficar sem as coisas do branco,


ficar sem sal, sem comida... lJm absurdo. Por outro lado, trouxe
interferéncia, tocott na política indígena. Tempos anteriores, a
nossa política dependia da professora da escola, da diretora da
escola. Quando alguém queria fazer alguma coisa' tinha que pedir
para o irmd, era uma interferéncia enorrne. Tinha obediéncia,
tudo era casügo, pecado. O Encontro interferiu nisso, positiva'
mente. Agora nós sabemos o que é autodeterminagdo, porque o
encontro trouxe uma consciéncia crítica.

Ña, dir..rrsóes sobre currículos das escolas indlgenas ficaram


explicitadas duas posigóes, náo antagÓnicas, mas sim complementares.
Uma dá destaque i construgáo prática das diversas iniciativas e exPer-
iéncias:

muitas vezes nño depende do currículo. Se a gente for esperar que


as autoridades coloquem nosso conhecitnento no currículo, a gente
vai esperar a vida toda. Por isso a gente tem que trabalhar para isso
acontecer (Prof. Euclides Pereira, Macuxi).
92 Rosa Helena Dias da Silva

Além do curículo da SEDUC, temos também o nosso curiculo. As


mínimas partes nós temos. Cartilha bilíngue foi uma novidade
para nós" (Prof. Sebastiáo Duarte, Tükano, Rio Negro).
Tem alguma diversidade. Cada escola procura organizar o seu cal-
endário. (...) As férias grandes sño sempre no período imposto pela
SEDUC; mas quando tem uma cerimínia importante, a escoh
entra em contato com a comunidade e entram num acordo - aulas
sAo suspensos. ]á é um colnego para ter um calendório específico
(Grupo do Rio Negro).
O nosso material didático a Secretaria ndo aceita. Só a comu-
nidade. Na nossa língua, o material é só para ensinar os alunos.
Mas nño é reconhecido. Na avaliagño do desempenho dos alunos
com o nosso material, as notas ficam com o professor, nño vai para
o município (Grupo Tikuna).

Percebe-se a preocupagáo em náo apenas "adaptar" o que existe,


mas realmente criar novas maneiras de fazer escola:

nño basta adaptar currículos, para usar paralelamente, mas é pre-


ciso ter um currículo integral, usado pela comunidade (Grupo de
Roraima).

A outra perspectiva prioriza a necessidade de reconhecimento


oficial:

Depois que a gente tiver uma lei garantindo a educagño indígena,


entño a gente vai usar o nosso currículo, o nosso material e o nosso
calendário (Grupo do Alto Solimóes).
O que é que a gente tem que ter com certeza para a Secretaria, o
Governo aceitar o currículo? A gente tem que lutar para o currícu-
lo ser aceito dentro da lei, para ser garantido (grupo do Médio
Solimóes).

Como preparagáo para o IV Encontrollggl, com objetivo de


ajudar a encaminhar o processo de elaboragáo de currlculos próprios,
decidiu-se pela reüzagáo de uma pesquisa e discussáo, junto is comu-
nidades, durante o ano, com um roteiro de trabalho comum.
A autonomia como valor e a articulaQío de possibilidades 93

III ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS E RORAIMA

DATA 19 a 21liulho/1990

LOCAL Manaus/AM, "Casa Jordáo"

No PARTICIPANTES 45

N. POVOS L3

LISTAGEM POVOS Baniwa, Baré, Kambeba, Kokama, Makuxi,


Marubo, Mayoruna, Pira-Tapuia, Sateré-Mawé,
Tikuna, Tukano, Wapixana, Yanomami

REGIÓES os-Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes e Roraima

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Avaliagáo da contribuigáo dos Encontros anterio-


res; Discussáo especíñca sobre Currículos;
Formagáo de professores; A¡ticulagáo do
movimento

DOCUMENTO PRODUZIDO Nenhum

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Francisco Loebens e Egldio


Schwade); Universidade do Amazonas (Evelyne
M. Mainbourng; Selda Vale da Costa; Marlene
Pardo e Isamilria M. Barreiro); UNICAMP
(Márcio Silva) e Mari-USP (Mariana Ferreira)

DESTAQUES Processo de preparagáo do Encontro (duas


reunióes da COPIAR); Primeiro encontro organi-
zado pelo próprio movimento; Presenga, pela
primeira vez, dos Yanomami; Exposigáo sobre
implicagóes do uso do mercúrio no garimpo (Dr.
Fernando, da FIOCRUZ); Decisño de realizar
pesquisa, com roteiro comum, sobre elaboragáo
de currículos próprios

CONTEXTO POLITICO LDB em tramitacáo


94 Rosa Helena Dias da Silva

3.2.4.1V Encontro - Manaus/1991

3,2.4.1. Síntese

O IV Encontro procurou aprofundar a discussáo e reflexáo sobre


a elaboragáo de currículos, além do estudo da legislagáo relacionada
direta ou indiretamente á questáo da educagáo escolar indígena. Deu
continuidade ao processo de discussáo sobre a articulagáo do movi-
mento dos professores com as diversas organizagóes indígenas (de
caráter mais amplo, como a COIAB; e outros movimentos especlficos,
como o de agentes de saúde indígena e de mulheres, por exemplo).
Realizou-se um trabalho inédito onde, através da metodologia dos
"temas geradores", os professores puderam vivenciar um profundo
exercício de interculturalidade, confrontando os diversos saberes dos
povos indígenas presentes no Encontro. Um dos momentos mais signi-
ficativos foi a discussáo e aprovagáo de uma Declaragáo de princípios
. sobre a Educagáo Escolar Indígena, que tornou-se, desde esta ocasiáo,
o principal documento do movimento, de caráter articulador e reivin-
¿¡.u¡6rio 13s. Professores e liderangas indígenas entregam ofi cialmente
ao Governador Gilberto Mestrinho e ao Secretário de Educagáo do
Estado do Amazonas Prof. Orígenes Martins, a Declaragáo de
Princípios (Manaus, l99l).

3.2.4.2. Descrigáo e an¡ílise

Conforme iá registrado, como preparagáo para o IV


Encontro/I99l, estabeleceu-se uma tarefa, com objetivo de ajudar a
encaminhar a discussáo da elaboragáo de currículos próprios, fazendo
avangar concretamente a questáo: a realizagáo de uma pesquisa e dis-
cussáo, junto
ás comunidades, durante o ano, com um roteiro de tra-
balho comum. Neste, constavam os seguintes itens:

O histórico do Povo (Quem sáo os índios; onde vivem; suas for-


mas de educagáo tradicional; suas experiéncias em educagáo
escolar).
A necessidade da escola (Por que a educagáo escolar é necessária;
para que as comunidades indígenas precisam de escola; o que é
uma escola realmente indígena).
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilídades 95

Quais os conhecimentos que a escola deve transmitir para que


ela seja realmente uma escola indígena, voltada para as necessi-
dades da comunidade.
Como devem ser transmitidos esses conhecimentos.
Formas de avaliagáo (O que devemos fazer para saber se os
alunos estáo aprendendo).
Como deve ser o calendário escolar paraa aldeia indlgena.
Quem deve dirigir, coordenar, a escola indígena.
Como as famílias váo participar na escola indlgena.
Quais as formas de participagáo das Secretarias Estaduais,
Municipais e do Governo Federal nas escolas indígenas.
Qual a ajuda que outras entidades e organizagóes
De que forma os professores indígenas pensam suas relagóes e
articulagóes com: a comunidade, as organizagóes indígenas
locais, as organizagóes dos professores e com u 691¡3136.

Cada grupo hegiáo já tinha os diversos itens respondidos e dis-


cutidos. Fizeram porém uma nova conversa para clarear algumas
questóes, reelaborando entáo suas idéias e posigóes frente ás Perguntas
colocadas pelo roteiro.
Ficou claro para todos que é fundamental que cada grupo indí-
gena assuma suas escolas em termos de diregáo; da definigáo do que (e
como) deve ser ensinado e avaliado.
Segundo os participantes,

as escolas, para serem realmente indígenas, devem ensinar elemen-


tos das próprias culturas mais os conhecimentos da sociedade
envolvente.

A fim de ilustrar a qualidade dos trabalhos realizados, selecionei


um relato dos professores da regiáo do Médio Solimóes, enfocando a
pesquisa histórica, sobre o que chamaram de "origem do atual povo
Knmbebd':

O povo Kambeba vivia aldeado na beira do rio Solimóes (Ilha do


Tocanal), municlpio de Benjamim Constant. Possuíam língua
própria e mantinham suas tradigóes como, músicas, festas, dongas
ao softt de instrumentos feitos de tabóca e caPifn. Dangavam o
96 Rosa Helena Dias da Silva

Tamayati, danga ligeira, danga marinheira, com vários tambores e


duas damas. A caiguma e a títia de milho eram as suas bebidas
tradicionais. Eram trezentos famílias que viviam da caga e da
pesca, trabalhavam em conjunto.
Aproximadamente em 1905, chegaram os portugueseg oferecendo
mercadorias e presentes, e levaram consigo os índios Manuel
Bebiano, Egidio Marinho Araquiri e Assenciona Marinho Araquiri
para trabalhar nos seringais, muito distante da aldeia. lJm ano
depois, o povo que estava agrupado dividiu-se em diversos grupos,
que se espalharam em ilhas distantes (Ilha do Capote,
Arumanduba, Aragatuba, Buiguzinho, Rio AtiparanA, na Ilha do
Aragani).
Trés anos depois, voltou Monuel Bebiano, que fora levado pelos
portugueses e, encontrando a aldeia vazia, dirigiu-se para a llha do
Capote, onde se casou. Comegou uffi novo agrupalnento que deu
origem ao atual povo Kambeba. lsto aconteceu por volta do ano de
1915, e reuniu aproximadamente j00 pessoas.
Seu Valdomiro se cAsou, saiu da Ilha de Capote, e se agrupou com
trinta pessoas, durante 22 anos, no Buiguzinho. Em 1969, foram
para Fonte Boa (para poder estudar). Em 1972, míram de Fonte
Boa e foram para o laquiri. Eram 36 pessoas.
Hoje, o povo Kambeba conta com 74 pessoas, divididos em dois
grupos (por necessidade de terra firme) que residem no laquiri e no
Igarapé Grande. O contato com o branco é intenso (comércio,
saúde, educagño...), Hoje, está havendo uma tentativa de volta ds
origens. Os professores buscam uma forma própria de ensinar a
partir das tradigóes e conhecimentos do passado.

Pode-se perceber neste breve relato histórico que entra em cena,


como um dos motivos da trajetória de migragáo deste povo, a figura da
escola (nas suas palavras: "para poder estudar'). Também sobressai o
entendimento da "educagáo" como um dos pontos destacados na lista
que exemplifica a intensidade do contato com a sociedade envolvente.
Por outro lado, aponta a perspectiva de mudanga, explicitada
como"yolta ao passado" e explicada como a busca, pelos professores, de
"uma forma própria de ensinar'l
Para desenvolver o trabalho com "temas geradores"l3T, num
exercício prático de como incorporar aos trabalhoS escolares o cotidi-
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 97

ano da vida nas aldeias, construindo assim' ProPostas curriculares


indlgenas, numa visáo interdisciplinar e global, os professores
primeiramente se dividiram em grupos mistos (regióes e povos distin-
tos). Tal opgáo possibilitou uma profunda troca de conhecimentos,
num intercámbio entre os diferentes saberes tradicionais indígenas, ali-
ados aos novos conhecimentos, advindos da situagáo de contato com a
sociedade envolvente.
Em seguida, foi realizado novo trabalho sobre a mesma
metodologia, só que agora com gruPos por regióes, com objetivo de
"transpor essa ffietodologia para suas escolas, para continuarem o trabal-
ho de pensar em cutículos alternaüvos e diferenciadol'|3\.
Cada grupo hegiáo escolheu um tema gerador, a partir do qual
pensou as matérias e os conteúdos para as duas primeiras séries do
primeiro grau139.

3.2,4.3. Conclusóes

Durante arealizagáo dos trabalhos com temas geradores, pude


perceber claramente um destaque quanto a importáncia do papel da
instituigáo escolar no processo de formagáo, valorizagáo e afirmagáo
das identidades indígenas.
Trago aqui a elaboragáo do grupo de Roraima, onde esta questáo
ficou explicitada de maneira muito forte.

Foi escolhido o tetna'eli, que é a primeira ligño da cartilha que


estamos elaborando por nós mesmos, para ser usada nas nossas
escolas. A cartilha chama-se'Aprendendo com a naturezo'. Esse
tema, nós escolhemos porque lá em Roraima é muito forte a pressño
para o extermlnio dos índios. A luta lá é brava, todos querem que
terminemos nño sendo índios, Todos os brancos lá querem que per-
camos nosszs terras e nossos costumes. Entño comeqamos ensinan-
do d crianga quem é el*, o 'eu'. Que ela é índia (Macuxi,
Thurepang Wapixana, ou outro grupo); como ela vive; a língua
que fala; nossos costumes e assim por diante. Ensinamos o trabal-
ho comunitário, onde todos participatn. Temos que nos valorizar
como sotnos, embora haja muita diferenga entre os Macuxi,
Wopixana, Yanomami, Waimiri-Atroari e outros grupos. Agora,
sabemos que possuímos algo etn cotnurn, que é que já estóvamos
98 Rosa Helena Dias da Silva

aqui quando os brancos chegaram nesta terra. A partir deste tema


e do estudo das coisaspróprias de cada comunidade, podemos ensi-
nar as diferentes matérias, sempre colocando os conhecimentos dos
brancos para enriquecer os nossos. Mas sabendo que sabemos muito
também!

Foi mais uma vez reforgado o entendimento de que os Encontros


sáo momentos politicamente importantes para fortalecer a luta por
uma educagáo escolar indígena ("dos índios"), articulando as forgas
"para além de cada aldeia", extrapolando fronteiras culturais de cada
povo, como forma de garantir a perspectiva de continuidade das "difer-
en9as.

Todos temos que largar o medo de lado, temos que nos unir, pois só
a organizagño local nño tem forga para enfrentar o estado. Temos
que ter uma organizagño/articulagño maior, para podermos ser
ouvidosDl40.

um processo complexo e dinámico, no qual, a"uniao" da diver-


É
sidade, objetiva conquistar o direito ás especificidades. Vejo nesta
experiéncia dos professores indígenas uma iniciativa concreta de con-
strugáo de um sujeito coletivo ("os índios"), que nAo homogeiniza. Ao
contrário, tem como característica e valor principal a heterogeneidade.
Seria, neste sentido, a afirmagáo de identidades próprias (particulares,
diferentes) mas dentro de uma nogáo de igualdade. Ou seja, o movi-
mento indígena resolvendo, naprática,a polémica relagáo entre o dire-
ito á igualdade e á diferenga. Em outras palavras, vivendo enfim as
diferengas náo como desigualdade5lal.
Thmbém foi reafirmada a necessidade do empenho pessoal de
cada professor, juntamente com suas comunidades e organizagóes, para
que, de fato, a mudanga pretendida acontega. Na parte final do
Relatório deste Encontro, podemos ler que

a responsabilidade é de todos os professores indígenas cotn suas


organizagóes e comunidades, todos tém que assumir juntos esta
luta.
A autonomia como valor e a articulaQho de possibilidades 99

Após trabalhos em grupos e debates a respeito do novo Estatuto


do fndio, momento no qual os professores se concentraram no estudo
das propostas feitas sobre a educagáo escolar indígena, em especial ás
definidas por liderangas indlgenas reunidas em encontro nacional
(Brasília, junho/1991), elaboraram suas posigóes quanto aos princípios
que devem reger as escolas indígenas e de como se deve estruturar ofi-
cialmente esta questáo. Tais idéias, acrescidas das formulagóes já con-
sensuais dos trés Encontros anteriores (1988, 1989 e 1990) serviram de
base para o documento final - a Declaragáo de Princlpios.
100 Rosa Helena Dias da Silva

IV ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS E RORAIMA

DATA 12 a Líljriholl99l
LOCAL Manaus/AM, "Casa fordáo"

NO PARTICIPANTES 43

N. POVOS T7

LISTAGEM POVOS Baniwa, Baré, Kambeba, Kokama, Makuxi,


Marubo, Mayoruna, Miranha, Mura, Pira-
Thpuia, Sateré-Mawé, Tariano, Taurepang,
Tikuna, Tukano, Wapixana, Yanomami

RTGIOES 05 - AIto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes e Roraima

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Estudo dos roteiros para elaboraqáo de


Currículos; Temas geradores; Legislagáo;
Continuidade/Articulaqáo do movimento

DOCUMENTO PRODUZIDO Declaragáo de Princípios

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Egon Heck; Judite Moreira);


UNICAMP (Márcio Silva) e Mari-USP (Marta
Azevedo)

DESTAQUES Elaboragáo Declaragáo de Princípios; Entrega ao


Governador e Secretário Estadual de
Educagáo/AM; Presenga, pela primeira vez, dos
Waimi¡i-Atroari; Exposigáo sobre cólera (Dr.
Ulisses Confaloniere, FIOCRUZ)

CONTEXTO POLITICO Formagáo do NEI/RR; IEWAM apresenta docu-


mento "Diretrizes/AM para Educagáo Indígena";
Secretário Estadual da Educagáo e
delegado/MEC pedem para ser recebidos no
Encontro; Elaboragáo de propostas para o novo
Estatuto do lndio
A autonomia como valor e a articúagAo de possibilidades l0l

3.2.5.V ENCONTRO - BoaVista/1992

3.2,5.1. Síntese

Foi realizado, pela primeira vez fora de Manaus, na cidade de


Boa Vista/RR. Teve como principais temas de discussáo: currículos e
regimento; metodologia do tema gerador no contexto da diversidade
cultural; legislagáo/polltica governamental e propostas de lei para o
novo Estatuto do índio; Comité Assessor do MEC; articulagáo e con-
tinuidade do processo. O estado do Acre Passou a compor também o
movimento. O encontro foi hospedado pela OPIR - Organizagáo dos
Professores Indlgenas de Roraima.

3.2,5.2. Descrigáo e an¿ilise

Assim como a primeira experiéncia realizada no IV


Encontro/1991, um momento muito significativo, dentro da perspecti-
va da diversidade e interculturalidade, foi o trabalho realizado em gru-
pos mistos (professores indígenas de povos distintos) procurando, ao
articular "currículo" e "tema gerador", confrontar as diferengas cultur-
ais, conhecendo-se mutuamente. Diversas foram as temáticas escolhi-
das: bebidas tradicionais; alimentagáo; remédios caseiros; regras de
casamento,
Vejamos como foi a ünámica dos trabalhos, através do exemplo
de um dos grupos - o que trabalhou o tema "bebidas tradicionais".
Estavam presentes neste gruPo professores dos seguintes Povos:
Macuxi, Wapixana, Kambeba, Tucano, Munduruku, Mura, Ticuna e
Yanomami. Cada um falou da bebida mais usada por seu povol42,
explicando (com detalhes) todo o processo de fabricagáo das mesmas,
o que resultou, conforme pode ser veriñcado no Relatório, em uma
interessante listagem de receitas 143.

Numa articulagáo política mais ampla entre COPIAR, COIAB e


CIR, a própria data da realizagáo do V Encontrollgg2 foi agendada de
maneira a garantir que os professores indígenas das diversas regióes
pudessem estar presentes e participar do'Ato Público" em repúdio ás
comemoragóes dos "500 anos do descobrimento da América". Para tal,
os professores prepararam faixas e cartazes e, no rlltimo dia do
Encontro - dia L2 de outubro - somaram-se a outros índios do estado
102 Rosa Helena Dias da Sitva

de Roraima (Macuxi, Wapixana, Yanomami, Ingaricó, Thurepang e


Wai-Wai) numa manifestagáo onde demonstraram seu descontenta-
mento com a situagáo histórica e atual dos povos indígenas no Brasil.

3.2.5,3. Conclusóes

Quanto i concepgáo de Currlculo, fortaleceu-se a idéia de cur-


rículo como instrumental facilitador da aprendizagem, conforme
podemos constatar na definigáo dada pelos professores da regiáo das
Serras/RR:

sño idéias, propostas desenvolvidas dentro da realidade de cada


povo. É um caminho que facilita a aprendizagem da crianga.

Foram elaborados dois documentos finais. O primeiro, a partir


das informagóes sobre a criagáo no MEC de um Comité assessor para
assuntos da educagáo escolar indígena, traz as propostas do movimen-
to para a formagáo desta instáncia e indica nomes de representantes da
regiáo, reivindicando que

1.4 metade dos membros deste Comité deve ser composta de pro-
fessores indígenas, de todas as regióes do país, conforme princípio
firmado eln nossa Declaragño de Manaus, art.4o.
2.Todos os notrres dos professores indígenas indicados para o
Comité podem ser subsütuídos, em fungño das decisóes de cada
regiño.
3.A indicagdo dos professores indígenas para este Comité deve ser
feita pelos próprios professores, organizagóes e comunidades indíge-
nas, e serño nomeados os profissionais com maior experiéncia no
movimento de educagño escolnr.
4.O MEC deverá assegurar os recursos financeiros necessários para
o bom cumprimento da representagño, o que inclui viagens de
acompanhamento ds escolas existentes na áreas representadas por
cada professor.

O segundo diz respeito á discussáo das diversas propostas para a


nova'legislagáo. indigenista (Estatuto das Sociedades Indlgenas) em
tramitagáo, na época, na Cámara dos Deputadosl44.
A autonomia como valor e a articula7óo de possibilidades 103

V ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS, RORAIMA E ACRE

DATA 08 a 11/outubro/1992

LOCAL Boa Vista/RR, "Casa Joáo XXIII"

N" PARTICIPANTES 90

NO POVOS t5

LISTAGEM POVOS Baniwa, Kambeba, Kaxinawa, Kokama, Makuxi,


Marubo, Mayoruna, Munduruku, Mura, Sateré-
Mawé, Taurepang, Tikuna, Tukano, Wapixana,
Yanomami

REGIÓES 07 - Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes, Madeira, Roraima e
Acre (Envira)

TEMAS/EIXOS PRJNCIPAIS Currlculos e Regimentos; Tema Gerador e


Diversidade Cultural; Legislagáo e Política
Governamental; Articulaqáo do movimento

DOCUMENTO PRODUZIDO Posigáo quanto ao novo Estatuto do Indio;


Indicagóes para o Comité do MEC

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Rosa Helena D. Süva e Iara Thtiana


Bonin); UNICAMP (Márcio Silva) e Mari-USP
(Marta Azevedo)

DESTAQUES Recepgáo e hospedagem pela OPIR; Trabalho com


tema gerador e diversidade cultural; Manifestagáo
Pública "500 anos"

CONTEXTO POLITICO 194211992 - "500 anos de Resisténcia Indlgena,


Negra e Popular"; Criagáo do Comité Assessor do
MEC
lO4 Rosa Helena Dias da Silva

3.2.6.VI ENCONTRO - BoaVista/1993

3.2.6.1. Síntese

O VI Encontro foi realizado, pela segundayez,na cidade de Boa


Vista, capital do estado de Roraima. O tema escolhido para o VI
Encontro foi: "Culturas Diversificadas". Vemos que esta tem sido uma
prioridade (feita já no V Encontrollgg2) e demonstra a yontade dos
professores indígenas em aproveitar esses momentos de reuniáo para
valorizar a oportunidade de fazer-se conhecer e de conhecer a história
e cultura dos demais povos indígenas presentes. Sabemos que esse é um
primeiro passo, fundamental, para o respeito mútuo, assim como para
as articulagóes e aliangas , na construgáo da solidariedade interétnica.
A partir do tema central, os trabalhos em grupo foram organizados por
sub-temas (de livre escolha): organizagáo social e política; origens; rit-
uais; trabalho, economia e produgáo; e educagáo tradicional.

3.2.6,2. Descrigáo e anri.lise

Boa Vista é um espago que se caracteriza pelo preconceito local


quanto á questáo indígena e pelas pressóes muito fortes exercidas por
representantes dos interesses dominantes, considerando principal-
mente o garimpo e a agropecuária. Dá-se uma disputa muito acirrada
com as populagóes indígenas, centrada fundamentalmente na questáo
da demarcagáo das terras indígenas. Este é um direito imemorial dess-
es povos, reconhecido na Constituigáo de 1988, mas até hoje uma
polémica sem solugáo. o interesse da sociedade envolvente pelas terras
indígenas é de fundo estritamente económicol4s; transborda porém,
para o campo da violagáo de direitos, e tem repercussóes de caráter
amplo, atingindo também a educagáo.
Todo esse clima desfavorável, que se reflete em questóes concre-
tas, náo tem impedido que esses povos se organizem, para enfrentar
essas forgas contrárias e garantir condigóes mínimas para sua sobre-
vivéncia ffsica e cultural.
A realizagáo de dois Encontros em Roraima foi uma opgáo
política por parte do Movimento, definida com duplo aspecto: um
interno, como forma de possibilitar a participagáo de um número
maior de professores indlgenas deste estado, difundindo assim as dis-
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades lO5

cussóes e aumentando seu alcance; e outro externo, como afirmagáo de


identidade, demonstragáo de forga política e do poder de articulagáo,
assim como a busca de caminhos próprios.
Conseguiram éxito neste duplo objetivo, por vários motivos.
Entre eles, a visibilidade social do Movimento e sua respeitabilidade
tem sido evidenciada, pela grande cobertura de imprensa (mídia em
geral) por ocasiáo dos eventos; através da presenga de autoridades ofi-
ciais, como o Secretário de Educagáo e a representante do MEC; e
mesmo pelo convite para um debate na Universidade de Roraima (com
os cursos de Antropologia e Direito), que se concretizou numa das
VI Encontro.
noites do
Quanto á maior participagáo local, verificamos um aumento
considerável: no V Encontro/l992, esteve presente um total de 90 pro-
fessores (sendo 59 de Roraima) e no VI Encontro/l993, houve o
número de ll5 participantes (sendo 76 professores indígenas de
Roraima).
Também o fato de os V e VI Encontros terem sido recepcionados
por uma organizagáo local de professores indlgenas, a OPIR -
Organizagáo dos Professores Indígenas de Roraima - rePresentou mais
um avango rumo á autonomia e também favoreceu um ambiente
muito próprio aos participantes. A decisáo, no final, em levar novos
Encontros para outras áreas, evidencia também o resultado positivo
dessa op9áor46.
A apresentagAo das discussóes em plenária, com exposigóes
elaboradas dos resultados dos grupos, demonstrou a profundidade
com que foram tratados os temas. Além dos conteúdos teóricos, os
professores trouxeram, também, para apreciagáo de seus colegas, arte-
sanatos, instrumentos musicais, além da apresentagáo de dangas e can-
tos tradicionais.
Sobre o sub-tema "Educagáo Tradicional", escolhido por profes-
sores de Roraima, o professor Edmilson Lima Cavalcante, do povo
Wapixana (que trabalha na Escola de I Grau "Sizenando Diniz", na
maloca Malacacheta), produziu um texto muito significativo e insti-
gante, que expressa a complexidade da realidade vivida Por esses povos
e a sua própria leitura e análise sobre essa situagáo. Vejamos:

A educagño tradicional, embora já quase esquecida na sua totali-


dade, mostra-nos no presente, sua passageffi no passado.
106 Rosa Helena Dias da Silva

Entretanto, vivemos num país em que a sociedade envolvente tenta


a todos os custos descaracterizar a cultura indígena, desprezando
principalmente a educagño propriamente dita. Diante de toda essa
questño, yem-me a idéia de perguntar:
- Por que a educagño tradicional? - a qual sabemos que foi trans-
mitida sem uma formagño escolar, porém merecedora de profundas
reflexóes. Por conseguinte, porque nño o ajuste recíproco entre a
educagño tradicional e a moderna? Até porque nño podemos ques-
tionar sem analisar os dois lados, ou seja, tradicional e moderna
(sendo que a últimafoi imposta sem olhar a educagdo já existente),
Para entño ser modernizada aos poucos, sem que todo um povo
fosse prejudicado. O fato que leva-me a tal reflexao é que, por se
tratar de uma grande influéncia que a sociedade envolvente nos
representa, jamais conciliaremos ambas as questóes ao interesse do
povo, seja ele Macuxi, Wapixana, ou demais ragas indígenas. E
bom lembrar e até alertarmo-nos para o fato de que os nossos
jovens estño vivenciando hoje acontecimentos inéditos na história
de todas as ragas indígenas. Principalmente aqueles que mantém
contatos constantes com a'cidade', que por sua vez distribui gra-
tuitamente má informagño, intimidando e até destribalizando
muitos índios, que passam a envergonhar-se do seu próprio sangue,
tentando esconder-se atrós de uma máscara transparente,
Acreditamos sim na grande inteligéncia dos nossos antepassados,
cujos resultados ainda remo5 pois se hoje estamos firmes nessa
caminhada é porque a educagño herdada só precisa ser considera-
da, ou melhor, respeitadal4T.

O texto acima demonstra com clareza que, no entendimento dos


professores, a escola indígena náo é uma questáo a ser "adaptada", ou
mesmo "conciliada". É, sim, algo novo, que necessita ser re-inventa-
dol48.
Um fato importante neste Encontro foi a presenga da delegagáo
de Yanomami. Estes já vém participando dos Encontros, desde o seu
segundo ano (1989). Desta vez, puderam narrar pessoalmente, para
todos, num momento reservado para isso, os fatos acontecidos no con-
flito com os garimpeiros, em agosto de 1993: o massacre de Haximu.
Sobressaem as consideragóes e atitudes que os demais demon-
stram para com os Yanomami. E, como se esses, pelo pouco contato que
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 107

tem com a sociedade envolventel49, fossem uma espécie de slmbolo da


luta empreendida por todos, representando valores de uma cultura
diferenciada e contemporánea, assim como enfrentando variados
problemas e desafios.
Houve um trabalho inédito no qual dois professores, dos Povos
Macuxi e Wapixana, diretores em escolas indlgenas de suas comu-
nidades (em Roraima), relataram sua experiéncia com currlculos e reg-
imentos. Foi um dos pontos marcantes do evento, momento impor-
tante de socializagáo e troca de conhecimentos, entre os participantes.
Os professores Inácio Brito, da Escola Maturuca e Sebastiáo Cruz, da
Escola Malacacheta, expuseram, com detalhes, o trabalho que vém
desenvolvendo nas referidas escolas. Ambos deram destaque á partici-
pagáo das comunidades e liderangas na escola assim como á partici-
pagáo dos alunos nos trabalhos da aldeia.

3.2.6.3. Conclusóes

O último ponto da pauta do VI Encontro foi "Futuro do


Movimento". Para introduzir a reflexáo, foi feito um histórico, pelo
Prof. Enilton André, membro da COPIAR, rePresentando a regiáo de
Roraima. Neste, foram destacados os avangos, as conquistas e as difi-
culdades. Em seguida, num trabalho de grupo, por regióes, foram
debatidas as seguintes questóes: realizagáo, ou náo, de próximo
Encontro anual; articulagáo com as regióes já contactadas; articulagáo'
com as regióes náo-contactadas; gerenciamento dos recursos; assesso-
rias; relagáo com a COIAB.
A partir dos pontos levantados pelos grupos, os professores indl-
genas analisaram as diferentes posigóes e tomaram algumas decisóes:
continuidade dos Encontros, com periodicidade anual; planejamento
dos próximos trés150; as formas de articulagáo do Movimento nas
áreas contactadas e náo-contactadas deveráo ser definidas pela COPI-
AR, de acordo com as possibilidades, já que esta é que vai executar essa
tarefa; o gerenciamento dos projetos continua sendo feito também pela
Comissáo; as assessorias continuam as mesmas. Quanto á questáo da
relagáo com a COIAB (que é uma organizagáo de caráter mais amplo e
que envolve uma extensáo geográfica maior), foi proposto e efetivado
convite para que o representante do Setor de Educagáo desta, passe a
L08 Rosa Helena Dias da Silva

ser membro integrante da COPIAR. Desta forma estar-se-ia procuran-


do garantir um trabalho conjunto, uma soma de esforgos e uma certa
unidade nos princípios e agóes, quanto á problemática da educagáo
escolar indígena na regiáo, o que, sem dúvida é indispensável para
maiores avangos.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 109

VI ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS, RORAIMA E ACRE

DATA 07 a 10/outubro/1993

LOCAL Boa Vista/RR, "Casa Joáo )O0II"

N" PARTICIPANTES ll5


N. POVOS t7

LISTAGEM POVOS Baniwa, Kambeba, Kampa, Kaxinawa, Kokama,


Makuxi, Mayoruna, Miranha, Mura, Pi¡a-
Tapuia, Sateré-Mawé, Shanenawa, Taurepang,
Tikuna, Tukano, Wapixana, Yanomami

REGIÓES 07 - Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes, Madeira, Roraima e
Acre (Envira)

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Culturas Diversificadas; Currículos e


Regimentos;
Comité Assessor/MECI Continuidade do movi-
mento

DOCUMENTO PRODUZIDO Contra a revisáo constitucional e em protesto


pela náo-demarcagáo das terras indígenas;
Indicagóes para o Comité Assessor/ MEC

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Rosa Helena D. Silva e Iara T.


Bonin); UNICAMP (Márcio Silva) e Mari-USP
(Marta Azevedo)

DESTAQUES Relato de dois diretores indígenas sobre elabo-


ragáo de currlculos e regimentos; Erposigáo de
Artes/Dangas; Presenga de Ivete Campos, da
assessoria do MEC; Relato dos Yanomami sobre
o
massacre de Haximu

CONTEXTO POLfTICO Revisáo Constitucional; Final do prazo constitu-


cional para demarcagáo de todas as terras indlge-
ll0 Rosa Helena Dias da Silva

3.2.7.O VII Encontro - Manaus/1994

3.2.7.1. Síntese

O Encontro teve como tema "Medicina tradicional". A tónica


principal, que permeou todas as atividades e discussóes deste VII
Encontro foi, sem dúvida, o aspecto de valorizagáo e avaliagáo da
história do movimento, já com sete Encontros realizados. A organiza-
9áo dos trabalhos foi dividida em blocos, o que contemplou a üscussáo
e apresentagáo do tema principal, além de garantir que questóes
importantes e cruciais para o movimento fossem também enfocadas.
Desta forma, o primeiro dia todo foi reservado para o tema "Medicina
tradicional"; o segundo para diagnóstico e avaliagáo da situagáo atual
dos Currículos e Regimentos; o terceiro para informes e debates a
respeito da Política educacional oficial (a do governo) e a interna (indi
gena). O último dia destinou-se á avaliagáo do Encontro, propostas,
encaminhamentos e decisóes quanto i continuidade do processo.

3,2.7.2. Descrigáo e análise

A reuniáo em si, como foi um momento muito forte


as demais,
e significativo dentro do processo mais amplo vivido pelos povos indí-
genas na construgáo de seu futuro, busca de autonomia e estabeleci-
mento de novas relagóes com a sociedade envolvente, assim como no
fortalecimento interno da solidariedade interétnica. Novamente o
caráter processual e pedagógico do movimento se destacou como sua
grande forga, assim como seus eixos centrais: tradigáo cultural e orga-
nizagáo. Ficou claro, mais uma vez, o papel decisivo que pode ter a
escola indígena e o compromisso e empenho dos professores indlgenas
nesse "empreendimento coletivo" que é a concretizagáo de escolas real-
mente indígenas.
Duas citagóes, tiradas dos discursos de abertura do Encontro,
ilustram o exposto acima:

Mais uma yez estatnos reunidos para discutir os nossos problemas,


o que yamos querer... Deixnmos a nossas aldeias para participar
deste evento. Mais utnA yez, alguns professores que nño se conheci-
am vño se conhecer e dar mais uma forga para nossa luta, contin-
A autonomia como valor e q. articulagóo de possibilidades lll

uar nosso trabalho, principalmente na educagño, nosso futuro, nos-


sas criangas" (Prof. Alírio Moraes, do povo Ticuna/AM).
"(...) viemos buscar alternativas para nosso trabalho e também
trazer nossas experiéncias" (Prof. Orlando Justino, do povo
Macuxi, de Roraima).
A presenga de dois professores Guarani, do Mato Grosso do Sul,
é uma novidade na história dos Encontros.
"(...) e brilhantemente aqui, pela primeira vez neste Encontro, se
encontram os companheiros Guarani, lá do outro canto de nosso
país, que vieram abrilhantar cotn sua participagño voluntária, e
que será de muita importdncia neste Encontro.

Com essa saudagáo, Prof. Gersem Luciano (membro da COPI-


AR, pela regiáo do Alto Rio Negro), ao apresentar os participantes, na
abertura oficial do VII Encontro, expressa o peso e o valor que deram
a essa participagáo,pelo seu significado de fortalecimento, abrangéncia
e difusáo desta articulagáo. Tal avaliagáo foi também enfatizada por
outros professores da COPIAR, ao fazerem seus discursos, na mesma
o.uri¿6151.
A coordenaqáo do encontro, comPosta por professores indlge-
nas escolhidos pelo grupo na noite de abertura, contou, durante todo
o evento, com a assessoria dos membros da antiga COPIAR ("gestáo"
1994 - que equivale ao perlodo que vai do final do VI Encontro ao inl-
cio do VII), além das assessorias externas. Entendo assessoria externa
aqui, no sentido interpretado por GOHN, como áquele que "pertence
a outra categoria social, mas existe uma base de coesáo ideológica
comum que cria lagos de afinidades e objetivos únicosDls2. No caso em
estudo, acresce-se o fato de nós, assessores, sermos "náo-índios".
O fato do movimento contar com o trabalho de "assessores
internos" demonstra mais uma vez dois aspectos, a meu ver, significa-
tivos e fundamentais. Um primeiro está mais ligado ao caráter
pedagógico do próprio movimento.
Conforme já analisou Maria da Glória Gohn, "nos movimentos
sociais a educagáo é autoconstrulda no processo e o educativo surge de
diferentes fontes, a saber: l)Da aprendizagem gerada com a experién-
cia de contato com as fontes de exercício do poder.2)Da aprendaagem
gerada pelo exercício repetido de agóes rotineiras que a burocracia
estatal impóe. 3)Da aprendizagem das diferengas existentes na reali-
1-l2 Rosa Helena Dias da Silva

dade social a partir da percepgáo das distingóes nos tratamentos que os


diferentes grupos sociais recebem de suas demandas. 4)Da aprendiza-
gem gerada pelo contato com as assessorias contratadas ou que apoiam
o movimento. 5)Da aprendizagem da desmistificagáo da autoridade
como sinónimo de competéncia, a qual seria sinónimo de conheci-
mento. O desconhecimento de grande parte dos'doutores de gabinete'
de questóes elementares do exercício cotidiano do poder revela os fun-
damentos desse poder: a defesa de interesses de grupos .u-u¿ur'153.
Percebe-se o grande aprendizado conjunto que "se constrói no
decorrer do próprio andamento e amadurecimento do processo. Neste
sentido, acrescentaria uma outra "fonte de saber" que nasce da troca de
experiéncia e conhecimentos entre os próprios participantes dos
Encontros (os "novos" e os "veteranos"), que na dinámica entre per-
manéncia-revezamento-renovagáo nas delegagóes, vai mantendo um
certo equilíbrio entre a continuidade e aprofundamento das reflexóes e
a ampliagáo e a entrada de novas questóes, enfoques e posicionamen-
tos.
Um segundo aspecto, aponta para uma discussáo, já iniciada por
várias organizagóes indígenas, que diz respeito á formagáo das próprias
assessorias, enquanto um fator de conquista de autonomia. A vivéncia
desses Encontros, a oportunidade de coordenar, sugerir, propor,
debater e, principalmente, decidir, contribui com muita forga nessa
formagáo.
A temática da Medicina Tradicional foi desenvolvida através de
trabalho de grupos (por regióes), seguida de apresentagáo em plenária.
Foi formulado pela coordenagáo um roteiro para facilitar, tanto o lev-
antamento das principais questóes, como o próprio debate:
l) Qual a importáncia da Medicina tadicional?
2) Quem sáo as pessoas que conhecem a Medicina Tiadicional?
3) Quais os remédios mais importantes?
4) Qual a importáncia da Medicina tadicional dentro da Escola
Indígena?
E interessante reparar que a preocupagáo e atengáo com esse
tema consta já desde os primeiros Encontros, de diversas formas,
sendo, inclusive, parte integrante da Declaragáo de Princípios de l99l
- Pontos 3.9 l5a.
A decisáo de ter esse como principal ponto de pauta, surgiu já no
Encontro anterior - Boa Vista/1993. As regióes se prepararam para essa
A autonomia como valor e a articulaQAo de possibilidades ll'3

discussáo, trazendo exemplares de plantas medicinais e trabalhos real-


izados com os alunos.
Desde o IV Encontro (Manaus, 1991), essa opgáo por temas que
privilegiam essa oportunidade das reunióes para intercambiar conhec-
imentos e informagóes entre os diferentes povos indígenas presentes,
tem sido visível. Tal proceder demonstra a valorizagáo que os profes-
sores indígenas tém dado á diversidade cultural que compóem o movi-
mento e chama a atengáo para o fato de que a interculturalidade - um
dos princípios das escolas indígenas, inclusive já reconhecido nas
Diretrizes do MEC, defendido pelas entidades de apoio e que até
mesmo corre o risco perigoso de virar "chaváo" ou modism6l55 - ¡¿6
é apenas um pressuposto e necessidade nas relagóes entre as sociedades
indlgenas e nós, sociedade majoritária, mas também entre os próprios
povos indígenas.
Nesses momentos de "trocas'1 é impressionante observar o inter-
esse dos demais com o que está sendo exposto pelo colega professor,
pertencente a outro povo. O respeito mútuo - atitude ética indispen-
sável para relagóes igualitárias e solidárias - é exercitado através da
atengáo e mesmo pelas perguntas curiosas, que demonstram o desejo
de saber mais, para poder confrontar/comparar com sua própria cul-
tura.
Diferentemente da idéia que perpassa o senso comum na
sociedade envolvente brasileira, que liga, automaticamente, medicina
com doenga, colocagóes feitas mostraram que a nogáo de medicina
tradicional está, para os povos indlgenas, intrinsecamente ligada á con-
cepgáo de saúde. Esta, por sua vez, remete imediatamente á idéia e con-
ceito de vida.
Thmbém emerge com bastante forga a questáo da medicina
tradicional como valor do grupo, como um bem que deve ser preser-
vado, revitalizado, cultivado, dependendo da situagáo histórica vivida
por cada povo. E a sabedoria como forma de afirmagáo das identi-
dades. Deste ponto de vista, a ponte entre saúde e escola indígena é
dada pela vida.
Segundo os depoimentos dos professores indlgenas, podemos
concluir que o domínio desses e outros conhecimentos especlficos e
especializados náo sáo usados como poder exercido sobre o outro, mas
como servigo á comunidade, transformando-se assim em património
coletivo.
Il4 Rosa Helena Dias da Silva

Sobressai ainda o entendimento de que os saberes tradicionais,


no caso, a medicina, contribuem para que possa se manter uma relati-
va independéncia e autonomia frente a sociedade envolvente.
Poderemos perceber e comprovar tais anáüses em algumas colocagóes
a seguir.

(...) temos tratamentos também preventivos (com plann) e nilo só


curativo. saúde temos vontade de pensar, raciocinar, ficar
Se temos
alegres. E gratuito porque a natureza oferece. para aprofundar
mais, temos os pajés'! (Grupo do Rio Negro/AM)
O povo índio, ele tem a vida. Nós já temos essa tradigño, entño o
que falta pró gente é viver dentro daquilo que é nosso, que é da
nossa tradifio. Entño nós que somos professores, estamos encar-
regados de preservar esse trabalho e ensinar'l (Grupo do Alto
Soümóes)
Nós ndo queremos perder essa cultura valiosa que nós temos. prá
que é que serye esse resgatamento da cultura? prá que? Serve prá
prestar assisténcia ds próprias comunidades, serve para curar.
Muitas vezes nós perdemos isso porque nño conseguimos valorizar.
Entño a primeira coisa é tentar ehborar um currículo apropriado
para cada escola onde os'Programas de Saúde' deveriam levar em
conta essa medicina tradicional. Temos que sistematizar esta
questdo. Também socializar com os conhecimentos dos vários
povos, de vórias etnias que conhecem diversos medicinais (prcf.
Sebastiáo Duarte, do povo Tucano, Alto Rio Negro/AM).

Como pudemos constatar, novamente vem ) tona a discussáo a


respeito das possibilidades da escola indígena e o papel dos professores
indígenas - sua responsabilidade, compromisso social, as novas tarefas
de "sistematizadores e socializadores" dos conhecimentos ("novos e
antigos") e a forga da interculturalidade interna. Nas colocagóes de
alguns grupos, podemos perceber procedimentos e iniciativas no sen-
tido de enfrentar essa tarefa. Uma nova selegáo de citagóes poderáo dar
maior clareza ao afirmado acima.

A utilizagño da medicina na escola depende dos professores bus-


carem os conhecimentos dos remédios tradicionais com os pajés e
ensinar aos alunos qual aimporthncia de cadaplanta, fazendo tra-
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades ll5

balhos teóricos e também próticos, para saber se realmente os


alunos aprenderam'l (Grupo do Rio Madeira/AM)
E importante introduzir a medicina tradicional (na escola) como
uma das disciplinas, elaborando junto com os mais velhos da
comunidade. Assimilar os conhecimentos e fortalecer a própria cul-
tura. Neste sentido, no último Encontro de professores em Roraima,
discutimos este assunto e o cotnprotnisso assumido pelos professores
é de levar a medicina tradicional em consideragño nas escolas, val-
orizando, discuündo com os alunos. A medicina tradicional encer-
ra em si o conhecimento que um povo tem'i (Grupo de Roraima)

Assim como outros temas primordiais para a vida dos povos


indígenas, a questáo se complexifica no contato com a sociedade envol-
vente e no confronto de saberes e,talvez, principalmente, de interesses
e projetos conflitantesls6. ¡rt¿ realidade social e histórica traz
mudangas, e muitas vezes, prejuízos. Os professores do Rio Negro nos
falam sobre isso:

A medicina tradicional existe desde os nossos antepassados. Nossa


geragño é que foi esquecendo, talvez por falta de interesse. Ser pajé,
benzer... para a realidade de hoje parece que nño tem valor. Mas
agora estamos vendo o quanto é importante para nós, e de suma
importáncia para a saúde da populagdo indígena da regiño"
(Professores do Rio Negro/AM).

Thmbém os Ticuna se referem a esta problemática:

Porque muitas vezes, muitas comunidades nño querem preservar


mais a medicina tradicional. Querem usar mais os remédios de
farmácia, quer dizer: estño confiando mais nos doutor, nos hospi-
tais. Enquanto a melhor coisa que nós temos é a medicina tradi-
cional" (Professores do Alto Solimóes/AM).

O segundo bloco deste VII Encontrol1994, com a temática dos


Currículos e Regimentos foi trabalhada novamente em grupos (por
regióes), também com um roteiro norteador, para levantamento das
principais questóes, problematizagáo e debate. Figuraram as seguintes
perguntas:
116 Rosa Helena Dias da Silva

l) Quais sao os problemas que ocorrem na sua escola com a situ-


agáo atual?
2) Como está hoje nas escolas indígenas o currlculo e o regi-
mento?
3) Quem sáo as autoridades nas escolas indígenas?
4) Quais sáo as iniciativas que tém dado certo para fazer o cur-
rículo e o regimento que as comunidades querem?
Nos relatos feitos em plenária, pude constatar que os problemas
elencados sáo de duas ordens distintas - externa e interna.
Quanto aos de caráter externo destacam-se: a falta de materiais
didáticos e merenda escolar; a auséncia de assisténcia e acompan-
hamento técnico educacional por parte dos órgáos governamentais;
falta de apoio das Secretarias Municipais de Educagáo; pressóes e
ameagas; interferéncia político-partidária e de missóes proselitistas.
Vejamos algumas citagóes onde poderemos visualizar essa prob-
lemática:

Na regiño do Acre a educagño estó um pouco falida. O Estado nño


estó tendo esta competéncia de estar nos dando essas possibilidades
para podermos ter nossas escolas'i (Grupo do Acre)
(..,) hd desinteresse dos órgños competentes, corno a própria
Secretaria Municipal de Educagño, em nño dar énfase d cuhura de
determinada regiño indígena". (Grupo do Rio Negro/AM)
O problema é que a Secretaria nño está aceitando o movimento
escolar indígena'l (Grupo do Médio Solimóes/AM)
A escola indígena Tikuna nño tem assisténcia educacional na parte
de órgdos governamentais. Isso que é a realidade". (Grupo do Alto
Solimóes/AM)
(...) os alunos crentes nño quer estudar na escola bilingue. Os pais
mandam estudar na missño. A escola indígena é dirigida pelos
brancos, como extensño das escolas rurais'l (Professores
Guarani/MS)
(... ) tem interferéncia
p olítico -p artidária; transferéncia de profes-
sor de uma escola para outra; pressño do governo; ameaga de
fechamento das escolas por motivo de movimento para demarcagdo
das terras". (Grupo de Roraima)
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades ll7

Em alguns relatos, podemos identificar uma estratégia própria,


usada para enfrentar esse aspecto externo (frente á sociedade
majoritária). Está diretamente ligada á questáo das relagóes, e privile-
gia agóes permeadas pela idéia de que o desconhecimento é uma das
principais causas dos problemas encontrados cotidianamente. Falo do
processo de convencimento (do "fazer-se conhecer"), levado adiante
pelo movimento nas situagóes de confrontors7.
Vejamos o exemplo relatado por professor da regiáo do Médio
Solimóes, ao fazer depoimento sobre pressóes exercidas pela Secretaria
Municipal de Educagáo:

(...) dizem que, se quer educagño diferenciadA, ndo vai ter salário.
Entño eu fico pensando que os povos indígenas estño massacrados,
principalmente no Médio Solimóes. Entño nós já fizemos esse plano
- currículo, levamos na Secretaria de Educagño e ela aceitou uma
parte... a outra nño! Entño eu falei pró ela que nós temos direito de
ser diferenciado...dar auh até a hora que a gente quer. Porque
todos nós temos direito de ter educafro. Ela fala prá nós: Vocés
estdo é perdendo tempo! Eu disse, nño; nós precisamos é ter uma
educagño de nossa cultura. Ela fica pensando... e nós chamamos ela
na nossa comunidade prá discutir esse assunto. Entño aí ela foi
saber, pensar...

Em uma das entrevistas realizadas (anexo 2) já se delineavam


iniciativas neste sentido de conquistar apoio e aliangas (ou, pelo
menos, diminuir as pressóes contrárias). A Profa. Marilene Cordeiro,
do povo Miranha, relatava:

Porque a gente já tomou o conhecimento das culturas e tradigóes e


o que a gente já passou e yamos passar ainda muito mais. No Ato
Público, nas manifestagóes... porque ainda tem município que a
gente ainda ndo fez. Isso aí a gente vai demonstrando, e aí chama
muito a atengAo dos brancos, dos órgños municipais e federais.
Aqueles que querem disuiminar o índio, eles vño ficando mais
acreditados nessa parte al, que existe esse lado: a cultura e as
tradigdes. A gente já foi pro Ato Público, já apresentou aquele
pouquinho que a gente sabe, né. Entño eles ficaram gostando. Tem
municlpio que a gente fez a manifestafio, que pediram novamente,
118 Ros¿ Helena Dias da Silva

A gente falou que nño podia fazer duas vezes num município só
porque ünha vários municípios o qual ficavam criticando a gente,
colocando na parede,,, e a gente queria também demonstrar como
nño é tudo aquilo que eles pensam - que o índio nño é mais índio.
Nunca o índio vai deixar de ser índio mesmo. Entño a gente vai
fazer naqueles aonde ainda ndo fizemos, para que eles ficam acred-
itundorsg.

Sobre os problemas que classifiquei como internos, como se


sabe, sáo, em sua maioria, consequéncia do longo processo vivido pelos
povos indígenas, no contato e confronto desigual com a sociedade
nacional. Vejamos alguns depoimentos:

(...) a própria classe docente (com os mais veteranos), ndo dño uma
contribuigño na formulagdo de projetos ou opinióes ou opgóes coer-
entes para solucionar o quadro dos problemas internos na regiño; a
superagño do antigo sistema - a educagño bancária, mas que ainda
tem a resisténcia de alguns pais que nño aceitam a transformagAo
neste sentido'l (Grupo do Rio Negro/AM)
(...) consumo de bebida alcoólica pelos professores índios; resistén-
cia interna (dos próprios alunos) ao ensino bilingue - aí está
desvalorizando a própria cultura!" (Grupo de Roraima)

Porém, como nos lembra foanna Overing, "os índios náo sáo
vítimas passivas, mas atores ativos do processo e da busca de alternati-
vasD 159.
As constantes agóes relatadas pelos professores indígenas no sen-
tido de buscar superar os impasses, criando possíveis solugóes, confir-
mam a afirmagáo de Overing. Destacamos duas experiéncias que estáo
sendo levadas adiante em regióes de realidades bem distintas, mas com
problemas semelhantes:

O trabalho tó sendo conduzido a nível de Município, de Distrito.


Posteriormente a gente quer até fazer um Encontro cotn os profes-
sores rurais porque achamos que eles sño a base da formagño dessa
mentalidade. Porque com essa juventude que já se formou, que tá
seformando, fica difícil a gente conduzir esse trabalho. Entño nós
queremos transformar a mentalidade do professor e ele, reconduz
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades ll9

essetrabalho Aos seus educandos, fazendo com que esse tipo de tra-
balho possa gerar um resultado satisfatório dentro da educagño
indígena. No nosso caso, somos quase 10 grupos diferentes e man-
temos a nossa llngua diferente. Entño, esse tipo de trabalho. Tem
problemas que sño Permanentes. Por exemplo: o fornecimento da
merenda escolar, a gente nño pode esperar tudo do céu também...
Entño é claro que a gente faz movimento, entño inclusive quando
há falta de merenda escolar, nós convocamos todos os alunos para
procuraretn alguma coisa de comer. Entño fura-se o horário da
escola - e vamos fazer o tabopuri, vamos dangar... Entño os alunos
sño convocados e, no dia seguinte, junta os alunos, os profasores e
a gente ajunta uma série de frutas, vai mantendo nós mesmos!
Porque antes a gente quei*ava da Prefeitura... e é a mesma coisa
que bater numa pedra.* porque ele ndo vai dar'i (Prof. |oáo Bosco
Marinho, do povo Tucano, regiáo do Rio Negro/AM)
Sobre a merenda, nós povos indígenas ternos que usar a nossa
tradigño, a nossa cultura na merenda. Olha: da casca da banana
cumprida amarela, ela dá forofo; a castanha também dá uma
merenda muito gostosa. Olha gente, eu quero deixar um aviso
pequeno prá vocés: vamos trabalhar um pouco com a "cozinha
alternativa" Porque ajuda prá que a gente ndo fique dependendo
tanto do governo e nem dos nosso Prefeitos, só pedindo...pedindo...
E al também eu ouvi dizendo sobre material didático que a gente
pode usar. Na minha sala de aula, os didáticos sdo folhas, sdo talas,
sdo barro (que a gente faz ünta). Também ouuimos falar que o gov-
erno lnata o índio. Seró que o governo vai em cada cabecinha
arrebentar uma bala na cabeqa do índio? Vocés acreditam nisso? E
cotn suas negagóes que vai matando nós aos poucos. Entño também
devemos ter nossa criatividade em si mesmo que vai melhorar as
coisas que faz. (Profa. Marilene Cordeiro, do povo Miranha,
regiáo do Médio Solimóes)

Nas colocagóes e debates sobre currículos, fica evidente que a


concepgáo que o movimento está construindo a esse respeito é a de
currículo como processo, dinárnico e flexível, que deve ser pensado e
concretizado com a participagáo dos professores ,liderangas e comu-
nidade. Tém entendido currlculo numa no9áo ampla, náo só como
conjunto das disciplinas, mas como a própria vida da escola.
l2O Rosa Helena Dias da Silva

Como se sabe, nas escolas de nossa sociedade, os currículos ofi-


ciais nem sempre (e na maioria das vezes) dizem tudo quanto aos obje-
tivos a que se propóem. Ao contrário, como bem nos mostra os estudos
de Applel60, uma das tarefas do currlculo é justamente encobrir aque-
les objetivos que "náo devem ser ditos" - mas sim atingidos. A escola é,
nesta lógica, entre outras instituigóes, instrumental a servigo de um
projeto. Mas, será que fica explicitado qual projeto está em jogo? Náo
seriam projetos? Como a escola poderia entáo se organizar para
responder ás diferentes propostas e perspectivas? Existe essa possibili-
dade?
Quando os professores indígenas falam sobre esse tema, percebe-
se claramente uma diferenga, a meu ver, radical. As propostas de cur-
((66s1¡¿s"161,
rículos, longe de serem sáo, na realidade transparentes, já
que náo tem nada a esconder - sáo partes de um projeto de presente e
futuro de um povo, de sociedades com bases e estruturas igualitárias,
na sua interagáo com a sociedade majoritária (estrutura de classes).
Busquemos enxergar tais questionamentos nas falas de alguns profes-
sores:
Há um processo em andamento com as comunidades e assessorias,
pois um processo burocrático que a comunidaile pode enten-
esse é
der melhor. Nño estamos com currículo pronto, mas em andamen-
to. O povo tem que participar, porque o currículo vai ser de todos,i
(Professores do Acre)
Queremos que a escola ajude a conquistar a autonomia, resgatan-
do os conhecimentos tradicionais do povo. E importante conhecer a
prótica das comunidades e ver o que pode ser trabalhado na escola.
Só entño podemos definir o curcículo, métodos, avaliagño, proces-
sos, organizagño", (Professores do Rio Negro/AM)
O regimento apresentado nño foi aprovado. Existe uma perspectiva
de elaboragdo de currículos próprios, Onde hó escolas de
formagño
(Macuxi e Wapixana) sño usados os curcículos, mesmo sem
aprovagño: ensino bilíngue, música, artesanato, danga, educaqño
artística e estudos sociais do próprio povo. Estudamos também
sobre o clima, vegetafro, área, populagóes e economia da nossa
regido'i (Professores de Roraima)

Em 1995, ao responderem ao questionamento feito por uma das


entidades financiadoras do movimento (CESE - Coordenadoria
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades l.2l

Ecuménica de Servigos)162, coÍl relagáo ao processo em discussáo nos


diversos Encontros, sobre elaboragáo de currículos próprios, a COPI-
AR expressou a seguinte posigáo:

A discussño sobre currículos acontece em todas as regióes, algumas


estño apenas comegando, ou seja, estño no processo de convencer a
comunidade da importáncia de mudar o currículo, e de pensar a
escola de modo diferenciado, outras regióes já aconteceram trabal-
hos de levantamento da situagño das escolas, do históico dos povos
e os professores etn suas comunidades jó iniciaram a rellexño sobre
o tipo de escola que querem, os conteúdos que sño iffiPortantes para
serem colocados no currlculo (tanto de suas próprias culturas e de
suas histórias, quanto de assuntos do mundo dos brancos, impor-
tantes hoje Para os índios). Em nenhuma área os professores ini-
ciaram a elaboragño mais formal de um currículo, Porque acredi-
tam que é preciso conversar mais, e fazer disso um trabalho coleti'
vo e corn a participagño e aceitagño de toda a aldeia,r63.

O debate com referéncia á terceira pergunta ("quem sáo as


autoridades nas escolas indígenas?") remeteu Para uma questáo central
e a meu ver, decisiva, quando se trata da perspectiva da rcalizagáo de
escolas realmente indlgenas: a auto-gestáo dos processos.
Entra em cena a complexa relagáo entre educagáo/escola, pollti-
ca e poder.
"No fundo, esses problemas todos que a gente quer discutir:
escola, cultura, invasáo da cultura, respeito pela cultura, isso é sobretu-
do um problema político e um problema ideológico. Náo existe neu-
tralidade em coisa nenhuma; náo existe neutralidade na ciéncia, na tec-
nologia. A gente precisa estar advertido da natvreza polltica da edu-
cagáo. (...) Náo há uma escola que seja boa ou ruim em si mesma,
enquanto instituigao. Mas, ao mesmo tempo, náo é possível pensar a
escola, pensar a educagáo, fora da relagáo de poder. Quer dizer, náo
posso entender a educagáo fora do problema do poder, que é político.
(...) Na verdade, o educador é um político, é um artista. Ele náo é só um
técnico, que se serve de técnicas, que se serve da ciéncia. E por isso
mesmo ele tem que ter uma opgáo, e essa op9áo é polltica, náo é pura-
mente pedagógica, porque náo existe essa pedagogia pura".
122 Rosa Helena Dias da Silva

Essa análise e posicionamento de Paulo Freirel64, expressa há


quinze anos, é, a meu ver, de uma atualidade marcante. Os professores
indígenas, ao longo da história de seu movimento, tém dado mostras
de que estáo atentos a essa questáo. Añrmagóes do Prof. Gersem
Luciano, por ocasiáo de sua participagáo do II Congresso Ibero
Americano de História da Educagáo Latinoamericana (anexo 3) ilus-
tram com lucidez o que procurei colocar aqui:

Entño, as discussóes ern torno da educafio, eram também redesco-


brir, planejar o que hoje os povos indígenas querem para o seu
futuro. Foi o início de planejar, de construir o futuro, a partir da
realidade em que os diversos grupos étnicos se encontravam. E esse
compromisso foi sendo assumido a partir dos professores, dos edu-
cadores e das organimgóes indígenas, dos liderangas indígenas.
Entño, nessa caminhada, hoje prá nós, na questAo específica da
educagño, existe uma coisa muito clara: nós nño podemos separar a
prótica educacional, ou seja, aquilo que se faz, seja no ensino, na
escola, mas sobretudo que estó na comunidade, nño dá para sepa-
rar da própria caminhada política dos povos indígenasr65.

Em diversos depoimentos, percebe-se que o que é dito, sobre


autoridades na escola, diz respeito muito mais ao que os professores
avaliam como necessário. Por outro lado, emergem constatagóes conc-
retas da situagáo real, que, muitas vezes, está longe dos princípios ide-
aüzados.

A própria comunidade, junto com os professores indígenas sño as


autoridades. Porque a comunidade é que estó acompanhando no
servigo e ela está nos corrigindo. Porisso colocamos que ela é uma
autoridade. (Professores do Acre)
A maioria das grandes escolas salesianas sño dirigidas por padres e
freiras. Nas escolinhas rurais, ds vezes é o próprio capitño da comu-
nidade, ou o próprio professor. Nas áreas ocupadas pelos militares,
é o própio militar. E as Escolas Municipais sdo dirigidas por pes-
soas nomeadas diretamente pelo Prefeito. (Professores do Rio
Negro/AM)
A autonomia como valor e a articulaQóo de possibilidades 123

As autoridades somos nós mesmos Nño existe diretor, supervisor.


Supervisor sño as próprias liderangas que supervisionam a gente
mesmo, e nós mesmos os professores, Porque nós somos autoridade
dentro da escola. (Professores do Rio Madeira/AM)
As comunidades indígenas devem juntamente com os professores e
organizagóes, indicar a diregño e supervisño das escolasL66.

Este princípio, afirmado no IV Encontro (1991) e reafirmado no


VII Encontro (1994), permanece atual enquanto meta e realizagóes.
As duas citagóes a seguir nos permitem entrever conquistas já
obtidas, que significam, sem drlvida, resultados positivos de um longo
caminho percorrido com esforgo e tenacidade dos envolvidos.

Quem mandava nas escolas primeiro era os diretores das escolas


ciülizadas - diretor branco e a Secretaria de Educagño Municipal.
Atualmente, hoje, os professoreg eles escolhem os seus diretores. A
própria comunidade hoje, onde tem trés professores, trés ou cinco,
eles elegem seus diretores. Nño é a Prefeitura que vai nomear, ndo é
a Secretaria do Município que vai dizer quem sño. Mas é a própia
comunidade indicando quem ela quer para trabalhar corn sua co-
munidade (Prof. Alírio Moraes, Ticuna, Alto Solimoes/AM).
As autoridades sdo geralmente os diretores. Mas há dois poderes
responsáveis: os diretores e os tuxawa* Ambos trabalhando em
unido para o desenvolviffiento da comunidade, onde deve haver o
debate para tragar plano da escola e da comunidade. O exemplo da
roga escolar - independéncia do governo: tem que consultar o tux-
awa, que vai nos apoiar. A uniño cada vez mais cresce e o trabalho
é concretizado. (...) temos uma comissño que está apta a discutir
com qualquer autoridade (Professores de Roraima).

Ao relatarem "quais as iniciativas que tém dado certo", mais uma


vez frca explicitada a postura ativa com que enfrentam a realidade -
encaram o futuro com esperanga, arriscando e ousando no presente. fá
no inlcio dos trabalhos do VII Encontro, no discurso de abertura, pude
identificar uma frase que sintetiza o que acabo de expor:
I24 Rosa Helena Dias da Silva

Precisamos construir o presente! Se continuamos pensando nas cri-


angas como futuro, estÁo agora destruindo o nosso presenre (prof.
Gersem Luciano, do povo Baniwa, Rio Negro/AM).

Dentre as iniciativas destacadas por diversos grupos situa-se:


alfabetizagáo na língua materna; aulas bilíngues; pesquisas na área da
medicina tradicional; resgate de aspectos culturais (mitos, dangas,
música, artesanato, culinária); participagáo da comunidade, dos pajés,
dos agentes de saúde, das organizagóes indígenas; ter professores e dire-
tores indígenas; a organizagáo dos próprios professores e sua articu-
la9áo com o movimento indígena mais amplo.
Na seguinte citagáo, referente aos professores indígenas da regiáo
do Rio Madeira, poderemos perceber detalhamento de um processo
local' mas que pode exemplificar outras tantas iniciativas semelhantes:

Existe, por exemplo, os Munduruku - existe um horório que eles


dño aula na língua própria deles mesmos. Entño isso aí já envolve
o currículo. Thmbém no dia de sextafeira (ou quinta) a gente com-
bina com o pessoal da saúde pró eles ter uma palestra com os
alunos sobre o incentivo das doengas que acontece, o reméñio mais
apropriado (porque a gente ndo tem condigóes de comprar na far-
mócia), e também tem que resgatar nossa própia cultura e
tradigño. Existe vórias organizafres no nosso Município: a das
mulheres, a da saúde. Entño, quando temos Encontro, a gente com-
bina de todo mundo se reunir lá prá tratar de algum assunto, por
exemplo, o problema da merenda. Entño a gente combina com a
organizagño das mulheres, nesse sentido de participar, por exemp-
lo, na capina, no plantio do rogado da macacheira, da limpeza da
escola, do trabalho de lazer que a gente tem - o campinho de
fute-
bol. Nós tivemos um Encontro com o pessoal da saúde onde nós cri-
amos as nossas idéias próprias para aproveitar remédio prá verme
(que na nossa regiño ataca muito - acho que isso é geral). Entño nós
usamos muito a semente do mamño: a gente
faz uffias pílulas, e até
no presente mofiiento é uma das coisas que tó dando certo prá
gente, quer dizer, já evitou de tá comprando remédio de farmácia.

No bloco sobre Política Educacional, um momento marcante foi


a exaustiva e profunda avaliagáo que os professores empreenderam
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades l2S

sobre sua participagáo e representagáo no Comité Assessor do MEC.


Desde o V Encontro (Boa Vista, outubrolg2), o movimento oñcial-
mente indicou um representante neste Comité, pela regiáo Norte, o
que foi acatado pelo MEC167.
No VI Encontro/l993, foi escolhido um novo nome, já que o
representante anterior pediu para ser substituídol68. Nesta ocasiáo,
porém, por diversas razóes, náo se efetivou nenhum processo de avali-
agáo desta participagáo.

3.2.7.3. Conclusóes

O processo foi, entáo, amadurecendo, e o VII Encontroll994


tornou-se o momento propício para efetivar-se necessária avaliagáo,
inclusive como prerrogativa para tomada de decisóes quanto á con-
tinuidade. Iniciou-se com colocagóes feita pelo Prof. Euclides Pereira:

Em nossa regiao existem valotes, conhecimentos que precisam ser


respeitados. Temos que lutar para conhecer caminhos novos e Para
saber como participar dos processos de mudangas. Temos que colo-
car nos quadros da Secretaria pessoas que conhegam a nossa reali-
dade.

Prosseguiu-se a avaliagáo com pronunciamento do Prof.


Sebastiáo Duarte (do povo Tucano, Rio Negro), na época, representante
do movimento no Comité169. Este havia preparado um relatório
escrito, que foi entregue aos participantes, onde, além de dar um
retorno ao movimento sobre sua atuagáo, socializar informagóes e algu-
mas reflexóes, indica os principais problemas vivenciados (anexo 4).
Ressaltando algumas das dificuldades práticas que vem
enfrentando em suas viagenslTo, afirmou porém que:

(...) é necessário participar das propostas para a política governa-


mental, ou os índios que participam do Comité continuarño servin-
do ile objetos; pois sño as instituigóes do governo que tem que acatar
a vontade dos povos indígenas, e nño o contrário,

Após essas duas falas introdutórias, a palavra foi aberta para


aqueles que tivessem algo a acrescentar, como argumentos ou dados
L26 Rosa Helena Dias da Silva

que pudessem subsidiar o debate para tomada de decisáo sobre a con-


tinuidade (permanéncia) ou retirada da participagáo de representante
do movimento no Comité.
Diversas foram as colocagóes feitas. Todas elas, com pertinéncia,
demonstraram a importáncia desta participagáo. Deixaram claro
porém, que esta deve ser uma participagáo com qualidade, como várias
vezes foi ali reiterado. Isso significa, do ponto de vista dos professores
indígenas, que se garanta a possibilidade efetiva de contribuir, princi-
palmente insidindo sobre os rumos tomados. Explicitaram sua con-
sciéncia sobre o risco de serem usados como mero objetos, cuja pre-
senga é mais uma questáo de aparéncia do que o estabelecimento, de
fato, de novas relagóes de poder e autoridade.

(...) tenho minhas dúvidas sobre se esse Comité pode levar etn con-
sideragño, pois as condigóes que o MEC üpara as pessoas que estño
participando (ou tem interesse de participar), o apoio bósico, nño
tó sendo atendido. Se nño se tem recursos prá se deslocar desde a
sua comunidade para um Encontro desse, vocé chega lá, no meio
daquele povdo - sozinho, a sua palavra tem tnenos validade, ela
nAo rcm assim um fruto, nAo tum rendimenfo. (professor do Acre)
Seria uma coisa boa se tivesse uma participagño ativa, perto do
Ministério, junto das pessoas, prá ficar torcendo, falando lá. porque
a gente percebe que a maioria das pessoas do Comité sño as de lá
mesmo - brancos por assim dizer. E se ndo tem uma participagño
de pessoas de origem indígena, nós nño conseguiremos. E como está
acontecendo. E só eles falando ló. E nós temos ló, como jó se percebe,
um desconhecimento da questño indígena. E se nño tem ninguém
ló, vai continuar, vño cometer os mesmos enganos que continuam
cometendo. Entño esse Comité é importante pró poder ficar perto,
poder ficar gritando /á. (Professor do Rio Negro/AM)
Porque nño dá mais pró aguentar o que essas pessoas fazem com a
gente. Porque neste Comité, parece que a gente tá sendo usado
assim, como simplesmente objeto - como matéria prima! Entño
chega uma hora que a gente tem que dar um basta. Ou vamos ter
participafro direta ou tirar nossa participagño e sair daqui uma
carta oficialimndo, com esse espírito: ou a gente fica na partici-
pagño direta, ou tiramos nossa participagño. Porque só assim nós
tiramos nossa responsabilidade, de que quem sabe de nossa reali-
A autonomia como valor e a articulaQóo de possibilidades 127

dade somos nós - professores que convivemos no trabalho no inte-


rior. Quem sente a realidade, como nós colocamos ontem: a questño
da merenda, do material diddtico, e outros, sornos nós profusores!
(Professor do Alto Solimóes/AM)

Tal entendimento e exigéncia de participar deste processo com a


autoridade de quem realmente conhece os problemas e necessidades
(já que as vivencia cotidianamente), permeou os debates.

E bem claro que nós indígenas conhecemos a nossa realidade. Por


exemplo: nesse ano nós recebemos parte do material didático do
IERAM (Instituto de Educagño Rural do Amazonas) e foi o maior
problema com As comunidades, porque? Porque só mandarampara
trés comunidades - como se as comunidades indígenas tivesse só
trés.,,Entño, e as outras? Se a gente realmente conhece, tem que
atender todas as comunidades. (Prof. Alírio Moraes, Ticuna)

Após dividirem-se em grupos (por regióes) para discutir e


encaminhar essa questáo, voltaram a expor em reuniáo plenária seus
argumentos a respeito do tema. Optaram pela permanéncia no
Comité, esbogando com clareza as condigóes e pré-requisitos dessa
decisáo. Reafirmaram ainda os nomes dos professores Sebastiáo
Duarte (como titular) e Sebastiáo Cruz (como suplente) como seus
representantes. Os critérios para a continuidade da participagáo foram
devidamente expostos em carta-documento enviada pelo VII Encontro
ao MEC (anexo 5)171.
Internamente, ficou deliberado que cada regiáo se responsabi-
lizaria em recolher periodicamente informagóes sobre a problemática
diária das escolas indígenas e envia¡ através do articulador da COPI-
AR, aos representantes, como subsídios a serem levados ás reunióes do
Comité.
Foram produzidos os seguintes documentos: carta de apoio ao
Regimento das escolas indígenas Guarani do Mato Grosso do Sul, carta
ao Comité de Educagáo Escolar Indígena do MEC (já citada anterior-
mente) e a nova Declaragáo de Princípios (que, de fato, é a reafirmagáo
da Declaragáo de 1991, com alteragóes nos pontos 14 e 15). Após
avaliarem aDeclaragáo, decidiram que ela precisa ser mais divulgada
tanto internamente - nas próprias escolas indígenas, nas comunidades,
128 Rosa Helena Dias da Silva

pelas diversas organizatóes indígenas, assim como externamente - nas


escolas, Secretarias de Educagáo Municipais e Estaduais, pelas enti-
dades de apoio, Universidades, etc. Para isso, estaráo, no primeiro
semestre deste ano, preparando um cartaz contendo os "15 pontos",
para ser amplamente distribuído.
No último dia, as discussóes finais deste evento estiveram ligadas
á questáo das sugestóes e deliberagóes quanto á continuidade do
processo de articulagáo dos professores indlgenas, Elencaram-se temas
para o VIII Encontro; escolheram a nova COPIAR; decidiram sobre a
continuidade do quadro de assessores externos; sugeriram agóes sob
responsabilidade e fungáo da Comissáo e procederam a avaliagáo do
Encontro propriamente dito.
Quanto a essa última atividade, percebemos que afloram, nas
colocagóes, novamente as duas dimensóes deste processo: a externa
traz a realidade com todo sua carga de dificuldades e contradigóes; já a
interna, enquanto realimentadora e aglutinadora de forgas, aponta
para a agáo possível, em busca dos ideais e princípios construídos cole-
tivamente, nos quais se acredita. Vejamos duas falas que trazem os dois
lados desta questáo:

O Encontro foi positivo, mas muitas vezes é difuil levar a


frente as
propostas, porque nño vemos nossas reivindicagóes aprovadas pelo
governo.
Vamos sair com novo ánimo e temos que pensar como levar adiante
as coisas que falamos aqui.
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades 129

VII ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS, RORAIMA E ACRE

DATA 16 a 2O/outubro/1994

I,OCAL Manaus/AM, "Casa Jordáo"

N. PARTICIPANTES 76

No POVOS 2I

LISTAGEM POVOS Apuriná, Baniwa, Baré, Guarani, Jaminawa,


Kampa, Kaxinawa, Kokama, Makuxi, Manchineri,
Mayoruna, Miranha, Munduruku, Mura, Pira-
Tapuia, Sateré-Mawé, Shanenawa, Tariano,
Tikuna, Tukano, Yanomami

REGIOES 07 - AIto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes, Madeira, Roraima e
Acre

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Medicina Tradicional; Currículos e Regimentos;


Polltica Educacional

DOCUMENTO PRODUZIDO Apoio ao regimento das escolas Guarani/MS;


Reafrmagáo da Declaragáo de Princlpios;
Indicagáo e critérios de participagáo no Comité
Assessor/MEC

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Norte I: Rosa Helena D. Silva, Egídio


Schwade e Iara T. Bonin); UNICAMP (Márcio
Silva) e Mari-USP (Marta Azevedo)

DESTAQUES Presenga dos Guarani do MS; Festival cultural;


Relatório de Sebastiáo Duarte sobre sua partici
pagáo em reuniáo do Comité/MEC; Seminário da
Pesquisa

CONTEXTO POLITICO Discussáo sobre biodiversidade e Lei de Patentes


130 Ros¿ Helena Dias da Silva

3.2.8. VIII Encontro - Boa Vista/1995

3.2.8.1. Síntese

A temática principal deste Encontro foi Escolas Indígenas e pro-


jetos de futuro (relagáo escola e economia). Tendo como referencial de
análise os quinze itens da Declaragáo, os professores realizaram um
detalhado diagnóstico da realidade das escolas indígenas na regiáo,
apontando os principais problemas enfrentados. Procuraram ainda
identificar quais dos princípios dependem do poder externo (Uniáo,
Estados e Municípios) para serem alcangados e quais estavam priori-
tariamente nas máos do próprio movimento, dependendo assim da
articulagáo e trabalho interno. Foi retomada uma questáo fundamen-
tal, discutida no I Encontro/I988: "Prá que escola?". Momento mar-
cante foi o langamento do cartaz da Declaragáo de Princípios e a par-
ticipagáo dos alunos da Escola Siminiyo.

3.2,8.2. Descrigáo e an¡ilise

Na abertura do evento, houve a significativa participagáo dos


alunos da Escola Siminyó (da Maloca "Canta Galo", onde trabalham
professores participantes do movimento), que cantaram e dangaram
músicas macL xil72. Canto por canto, foi explicado a todos, pelos pro-
fessores Gerónimo Oliveira e Nazareno Justino, que destacavam seu
sentido e significado para o povo macuxi. Foi mais um forte momento
de vivéncia interna da intercultu.ul¡¿u¿"I 73.
Conforme registrado, no Encontro passado, havia sido delibera-
do que procurar-se-ia meios para garantir a elaboragáo de um cartaz
contendo a Declaragáo de Princípios, para ser amplamente divulgado,
tanto internamente (nas escolas e comunidades indígenas), como tam-
bém externamente, como instrumento de veiculagáo dos ideais e pon-
tos de reivindicagáo do movimento. A COPIAR levou adiante essa idéia
e concretizou entáo essa aspiragáo dos professores, e o cartaz da
Declaragáo foi solenemente langado.

A Declaragño arma dos professores. E documento muito sério. Sdo


é
reivindicagóes que precisam se concretizar, O documento é teste-
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades I3l

ffiunha da discussdo que estó se fazendo, é fruto de um trabalho,


muito discussño, de muito gasto, muito sofrimento.

Com essas palavras, o Prof. Enilton André, Wapixana, sintetizou


o sentimento que perpassava o grupo. E alertou,

nós professores ds vezes ndo levamos a sério a nossa própria cultura,


discriminando, deixando de lado,.. O documento é arma na mdo
pora ir d luta em busca do que querefttos.

Ao contar uma estória sobre um criador de gado que, em tem-


pos de seca, colocava óculos verdes nas vacas, " pArA que elas vissem
tudo verde...", o Prof. Euclides Pereira, Macuxi, chamou atengáo para o
risco das escolas estarem funcionando como uma espécie desses ócu-
los.
Através de um gráfico-estatístico, onde visualizava-se o número
de alunos por série, pode-se ver claramente o problema da evasáo esco-
Iar. Em 1995, no estado de Roraima, matricularam-se na la série do 10
grau,l.720 alunos; jána8^, apenas 97 alunos. No lo ano do 2o grau,,
somente 30 alunos. Aprofundou ainda mais a questáo ao lembrar que

as escolas estño nas aldeias, e do total de 356 professores do estado


de Roraima que trabalham em área indígena, 309 sño professores
indígenas.

Podemos dizer que a situagáo acima descrita representa, Por um


lado, uma conquista do movimento, se compararmos com seu início,
em 1988. No primeiro Encontro, foram constantes as declaragóes sobre
os alunos que precisavam sair das aldeias para estudar, e também os
pronunciamentos a respeito de professores náo-lndios trabalhando em
escolas indígenas.
Levantou-se entáo a seguinte interrogagáo:

O que está acontecendo? Onde estd o problema?

Nas discussóes, surgiram inúmeras dúvidas e conflitos, pois há


diferentes práticas e concepgóes. A escola, enquanto instituigáo, entra
em cena justamente no ponto de tensáo entre as sociedades em conta-
132 Rosa Helena Dias da Silva

to. Ela pode vir a ser instrumental que soma forgas no processo mais
amplo de sobrevivéncia dos povos, enquanto culturas diferenciadas.
Por outro lado, pode também operar contra os interesses reais - históri-
cos e atuais - desses povos.

3.2.8.3. Conclusóes

Com propriedade, falou um professor, da regiáo de Roraima:

A escola é porta onde podem entrar coisas boas e coisas ruins, como
a corrupgdo. O professor vigia esta porta que chama escolapara que
entrem só as coisas boas e nño o que nño presta. O professor é agente
de transformagdo para melhor. Ele tem poder frente o
futuro, pois
ele conhece o passado.

Num profundo questionamento sobre o papel das escolas, o


Prof. Gersem dos Santos Luciano, Baniwa, perguntou:

a escola dos brancos resolye? Olha aí a miséria - tem advogado que


é taxista; professor que é'butequeiro'... Seró que teffios clareza sobre
a questño 'para que escola'? Para que estamos formando nossos
alunos? A escola precisa formar para atender as necessidades das
comunidades.

Na discussáo deste tema central ("para que escola?"), os diversos


lados da problemática foram apontados:

A escola é instrumento. Precisamos ler e escrever para nño sermos


enganados. É também o centro onde a gente vai recomegar a cul-
tura tradicional (Professores do Acre).
Hoje, no Amazonas, o pessoalvai estudar e ndo yolta mais. euanto
mois vai estudando, mais se afasta da comunidade - isto é o fruto
da filosofia de integrar o índio d sociedade (professores do
Amazonas).
Aqui dentro, nos Encontros, animamos e pensamos: 'vamos fazer!'
Quando voltamos para nossa áreas, ficamos presos na sala-de-
aula, obedecendo as leis do Estado e Município (Prof. Sebastiáo
Duarte, Tucano)
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 133

VIII ENCONTRO DOS PROFESSORES INDfGENAS


DO AMAZONAS, RORAIMA E ACRE

DATA 23a27lottubroll995

LOCAL Boa Vista/RR. "Casa Paulo VI"

N" PARTICIPANTES T3O

N"POVOS 25

LISTAGEM POVOS Baniwa, Baré, Desano, Djüói faminawa,


Kaxinawa, Kambeba, Kokama, Makuxi,
Mayoruna, Miranha, Munduruku, Mura, Pira-
Tapuia, Parintintin, Sateré-Mawé, Shanenawa,
Tariano, Taurepang, Tikuna, Tükano, Wai-Wai,
Wanano, Wapixana e Yanomami

REGIóES 08 - Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo


Amazonas, Médio Solimóes, Baixo Madeira,
Médio Madei¡a, Roraima e Acre

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Situagáo atual da escolas; Escolas e Projetos indf


genas de futuro; Movimento de professores e
Organizagóes Indlgenas; Articulagáo do
movimento

DOCUMENTO PRODUZIDO Solicitando ao MEC condigóes de representagáo


no Comité Assessor

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORJAS CIMI (Norte I:Rosa Helena D. Silva e Egldio


Schwade); LINICAMP (Márcio Silva) e Mari-USP
(Marta Azevedo)

DESTAQUES Langamento da cartaz da Declaragáo de


Princípios; Presenga, pela primeira vez, dos
Parintintin; Apresentagáo dos alunos da Escola
Siminiyó

CONTEXTO POLITICO Pressáo externa quanto ao modelo de desenvolvi-


mento dominante/Falta de perspectivas e alterna-
tivas de auto-sustentacáo das comunidades indl-
Senas
134 Rosa Helena Dias da Silva

3.2.9.IX Encontro - Sáo Gabriel da Cachoeirallggí

3.2.9.1. Slntese

O tema central do IX Encontro, que realizou-se, pela primeira


vez, em Sáo Gabriel da Cachoeira/AM, foi "Escolas indígenas e Projetos
de futuro", retomando e aprofundando discussóes levantadas no VIII
Encontro/1995. A temática principal foi debatida durante todos os dias,
partindo da constatagáo de que as escolas podem tanto ajudar a con-
struir o futuro, como destrui-lo. Também a problemática da saída dos
jovens, por falta de alternativas internas, foi debatida pelos professores.
A sede da FOIRN (Federagáo das Organizagóes Indígenas do Rio
Negro), com sua grande maloca Tuyuka, foi o local de hospedagem e
alimentagáo das delegagóes.

3.2.9.2. Descrigáo e an¡ilise

Após trés dias e meio de viagem pelo Rio Negro, percorrendo o


longo trecho de Manaus até o local do evento, em embarcagáo espe-
cialmente fretado pela COPIAR, os participantes, vindos das diversas
regióes que compóem o movimento, desembarcaram em Sáo Gabriel,
somando-se aos demais professores indígenas da regiáo do Rio Negro.
Aproveitaram o extenso período navegado para viver uma espécie de
"pré-encontro", pois tinham como tarefa: pensar a própria progra-
magáo e metodologia do IX Encontro. Para isso, iniciaram também os
informes sobre a realidade da educagáo escolar indígena em cada
regiáo, assim como trocaram idéias e análises a respeito desta situagáo
e dos rumos do movimento: avaliagáo e perspectivas de continuidade.

Gostaríamos de recebé-los com carinho, amizade e compromisso


com a educogño escohr indígena.

Com essas palavras, Bráz de Oliveira Franga, deu as boas-vindas


aos professores, em nome da FOIRN.
A questáo da relagáo e o papel da escolarizagáo frente ao futuro
dos povos indígenas foi debatida durante todos os dias, partindo da
constatagáo de que as escolas podem tanto ajudar a construir o futuro,
como destrui-lo.
A autonomia como valor e a articulagúo de possibilidades 135

A escola pode fazer coffi que continuemos, ffias coffio pescadores,


favelados, etc... mas ndo como índiostva

Essa afirmagáo de alerta, feita por Gersem, mostra a complexi-


dade que permeia a questáo de pensar as escolas indígenas articuladas
com os diferentes projetos de futuro dos povos indígenas:

Precisamos pensar como a escola pode contribuir para assegurar o


futuro das comunidades como povos indígenas, com identidade
própria. Esta é a questño central.

A problemática da saída dos jovens, por falta de alternativas


internas, foi lembrada pelo Prof. Sebastiáo Duarte, do povo Tucano,
representante do movimento no Comité de Educagáo Escolar Indígena
do MEC, que levantou também uma profunda preocupagáo:

Em consequéncia das escolas atuais, há muito éxodo, pois nño dá


caminho que atenda d necessidade da comunidade. O pessoal vive
pela peffiria das cidades, pois nño tem alternatiras nas árms. As
escolas tem introduzido o ensino bilíngue, mas ainda nño é escola
indígena, pois falta currículo, regimento e calendório diferenciado.
As escolas sño reconhecidas, mas nño como escolas indígenas!
Ainda ndo temos uma escola indígena. Falta cumprir com a tarefa
de levar para frente - na prática - nossas idéias e ideais.

Partindo desta avaliagáo, os grupos refletiram sobre duas


questóes: l)Tendo em vista a Declaragáo de Princípios (documento
mais expressivo do movimento, que contém em 15 pontos, as princi-
pais reinvindicagóes, assim como seus ideais e concepgóes, construídas
coletivamente, ao longo dos diversos Encontros), quais os passos
necessários parafazermos escolas indígenas? 2)Como o movimento de
professores e as organizagóes indlgenas podem se responsabilizar na
construgáo das escolas indígenas?l7s

3.2.9.3. Conclusóes

Mais uma vez foi confirmada a perspectiva da autoria e auto-


gestáo indígena nos processos de educagáo escolar, como forma de
136 Rosa Helena Dias da Silva

garantir a efetivagáo de escolas realmente indlgenas, no sentido de


estarem a servigo de projetos próprios de futuro, ou, como disse o Prof.
Enilton André, do povo Wapixana, de Roraima:"Escolas indígenas, com
cara e corpo indígena!"
Um momento significativo deste evento foi a realizagáo de um
Painel sobre a História do Movimento, com a participagáo dos profes-
sores mais antigos nesta articulagáo (o que quer dizer, as pessoas que
participaram de mais Encontros), sendo eles: Prof. Sebastiáo Duarte,
Tucano, do Alto Rio Negro; Tomé Fernades Cruz, Kambeba, do Médio
Solimóes; Alírio Mendes Moraes, Tikuna, do Alto Solimóes; Enilton
André, Wapixana, de Roraima.
Selecionei alguns trechos dos depoimentos, que, a meu ver,
expressam o momento atual do movimento: a construgáo cotidiana das
"escolas realmente indígenas"; a discussáo entre os ideais e as possibil-
idades; entre aquilo que se sonha e o que já se conseguiu avangar; os
problemas surgidos neste processo.

Se nós professores nño dominamos essa política educacional, nño


sabemos o que se passa a nível nacional sobre educagño (e como as
populagóes indígenas estño enfrentando essa dificuldade), se A
gentu nAo dominar essa problemótica, eu acho que nós ndo yarnos
conseguir a escola reolmente indígena que tanto a gente almeja. A
nossa responsabilidade coffio educador, como pessoas que trabal-
ham dentro das nossas comunidades é mostrar para nossos povos,
nossos alunos, a real situagño dos povos indígenas hoje, Creio que
nós professores tanto ensinamos como aprendemos, a cada dia. Eu
acho que esse assunto - educagño - é um assunto de prioridade nas
nossas organizagóes e, junto com as nossas liderangas, tanto profes-
sores como agentes de saúde, representantes das nagóes, grupo de
mulheres organizado, tem esse objetivo, esse ideal de conquistar esse
espago para uma educagño realmente indígena. E ressabo mais
uma coisa importante: quando vocé, professor cotnega a participar
de um encontro, de um movimento desses, vocé tem que dar con-
tinuidade a sua aPresentugía Porque, se vocé deixn de participar
de um encontro tdo importante como esse, vocé nño vai ter a possi-
bilidade de ter condigóes de repassar para a base de trabalho. Se
nño tiver a oportunidade de discutir aqui, vocé nño vai ter
A autonomía como valor e a articulaeúo de possibilidades L37

condigíes de dar continuidade a esse processo educativo (Sebastiáo


Duarte).
Colegas professores, eu também venho participando, completando,
esse ano, nove anos de caminhada junto ao movimento de profes-
sores. Os colegas acabaram de falar sobre os primeiros passos do
movimento, que nós chegamos a discutir, e até hoje está em
momento de discussdo, apesar de algumas regióes, como é o caso de
Roraima, já ter uma coisa mais concreta. Mas o que eu quero dizer
é que quando se trata, quando nós falamos de currículo, estamos
envolvendo a nossa vida, a vida do povo, a vida das nossas cotnu-
nidades. É, ali que nós vamos pegar seriamente, e praticar o que nós
discutimos aqui, o que sai no Relatório. Entño, eu tenho essa visño,
de que a partir do momento que a gente trata de currículo, muitos
professores acham que o curñculo é um documento, é um papel que
vai dirigir as expressóes, os resultados de trabalho dos povos, Mas
eu vejo que o cutículo é uma coisa prática, ele só vai ter validade
quando nós tivermos os nossos professores e demais liderangas con-
scientes, e quando nós tivermos aplicando na sala de aula ou fora
da sala de aula,ligado d convivéncia (Tomé Cruz).
Somos vórios poyos; nós tratamos da cultura, costumes, plantas,
que já haviam perdido, pensando numa escola realmente indígena,
voltada para sua realidade, cultura de cada povo. Poder resgatar,
sendo nós jamais íamos trabalhar numa escola indígena. E nossas
criangas, que sño o futuro, nós lamos perder - mais um índio sem
identidade. Perder seus costumes, dangas, suas crengas. Entño, o
trabalho da COPIAR até hoje, o que ela trouxe prá gente foi mais
como um incentivo prás organizagóes de base, donde surgiu a
necessidade de intercámbio de conhecimento de um povo com
outro. Acho que foi muito importante, porque nós nño sabíamos
como se tratar, como que era a educagño aqui no alto Rio Negro, e
cotno que era a educagdo ló no Alto SolimAes, lá em Roraima, no
Baixo Amazonas. Entño agora, nós estamos concretimndo como
que é a educagño, que um povo trabalha diferente. O que deve ficar
bem claro pró gente é que esse processo nño surgiu agora, e nem foi
ontem (Allrio Moraes).
Fazendo esse pequeno histórico, como seffipre nós fizemos, atedito
que os companheiros tomem base e conhecimento de como foram
os Processos concluídos pelo moyimento. De repente o pessoal olha
138 Rosa Helena Dias da Silva

aqui - IX Encontro, e ainda está se discuündo essa questdo de cur-


rículo? Entño tem uma caminhada, é um processo. Em 89, comegou
a implantagño - se criou a comissño - e nós comegamos a partici-
Par, representando os professores indígenas de Roraima. Logo nos
anos seguintes, fomos discutindo'que escola temos?';'pra que serve
a escola?' Depois de todas as discussóes, omadurecimento das
idéias, comegamos a refletir e surgiu essa proposta da Declaragño de
Princípios, a qual nós consideratnos utn instrumento de luta, de
desafio pra todo movimento indígena. Encaminhamos as reivindi-
cagóes ao Amazonas, ao Governador, ao Secretário de Educagño,
pra reconhecer o nosso movimento; encaminhamos um represen-
tante ao Congresso Nacional pra levar essa nossa reivindicagño pra
nafio - a educagño escolar indígena na noya LDB. Entño foi um
processo, e a questfuo do currículo sempre estava no meio da nossa
discussño, fizemos experiéncias da proposta de tema gerador, de
pesquisa do trabalho, de como elaborar um currículo escolar. Hoje
esse tema - escolas indígenas e projeto de futuro, nño foi um tema
que surgiu - caiu de cima - mas é de acordo com a necessidade,
tendo em vista que muitas escolas jó estño trabalhando a valoriza-
gño da língua, da cultura, das tradigóes, algumas nño; algumas
escolas que estdo formando pessoal de quinta a oitava, que ndo
véem perspectiva nenhuma de como é que esse aluno pode contin-
uar ou que projeto tem pra esse aluno, pra esse estudante continuar
na comunidade. Entñ0, surge a necessidade de encontrarmos cam-
inhos alternativos, pra resolver esse problema (Enilton André).
A autonomia como valor e a articula7úo de possibilidndes 139

IX ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS, RORAIMA E ACRE

DATA 18 a 21ljulho/1996

LOCAL Sáo Gabriel da Cachoeira/AM, Maloca da


FOIRN e Ginásio de Esportes

N" PARTICIPANTES 100

N" POVOS 23

LISTAGEM POVOS Arapago, Baniwa, Baré, Desano, Kambeba, Koka-


ma, Makuxi, Mayoruna, Miranha, Munduruku,
Mura, Parintintin, Pira-Thpuia, Sateré-Mawé,
Tariano, Taurepang, Tikuna, Tenharim, Torá,
Thkano, Wapixana, Wanano, Yanomami

REGIÓES 08 - Alto Rio Negro, Alto Solimóes, Baixo Ama-


zonas, Médio Solimóes, Alto Madeira, Médio
Madeira, Baixo Madeira e Roraima

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS Escolas Indígenas e Projetos de futuro; A-lternati-


vas Económicas e Escolas; Avaliaqáo do movi-
mento e Articulagáo regional

DOCUMENTO PRODUZIDO Posigóes sobre o papel das organizagóes indíge-


nas frente Is escolas e reafirmagáo de princlpios
internos; Carta ao MEC, sobre Encontro Nacio-
nal de Professores Indígenas

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Nortel: Rosa Helena D. Silva); UNICAMP


(Márcio Silva); Mari-USP (Marta Azevedo);
OPAN (Ednelson Pereira e Angela Kurovisk);
Universidade do Amazonas (Ana Costa)

DESTAQUES Viagem em barco; Processo de elaboragáo do


projeto trienal; Painel histórico

CONTEXTO POLITICO Campanhai eleigáo de Prefeitos/Vereadores (obs:


movimento indígena local - Rio Negro - apoia
candidato do PT para prefeito, sendo o vice um
professor indígena)
I40 Rosa Helena Dias da Silva

3.2.10. X Encontro - Manaus/1997

3.2.10.1. Síntese

O evento foi realizado em clima de festa e comemoragáo por


estar completando o décimo Encontro. Num grande esforgo coletivo, o
grupo de participantes efetivou profunda avaliagáo diagnóstica dos
avangos alcangados e dos problemas e dificuldades que permanecem,
quanto á situagáo das escolas indígenas nas regióes englobadas pelo
movimento. O lema do eventolT6 foi",ivaliando o passado é que se con-
strói o futuro". Além do eixo avaliativolTT, o encontro foi organizado de
forma a contemplar um segundo momento fundamental: a con-
tinuidade do movimento, com a temática "pensando as perspectivas
futuras".

3.2.10.2. Descrigáo e análise

O Encontro comemorou com muito ánimo nova ampliagáo de


sua área de articulagáo, recebendo pela primeira vez um professorindí-
gena do estado do Amapá (do povo Karipuna). Também alegrou-se
com a vinda, pela segunda vez, dos professores Waimiri-Atroari e de
dois professores da regiáo de Eirunepé/AM (povos Kanamari e Kulina).
O professor Argemiro, do povo Guarani, regiáo de Angra dos Reis/RJ,
um dos representantes indígenas no Comité do MEC compareceu
como convidado especial.
Iniciou-se com um grande "Painel Avaliativo", com a partici-
pagáo dos membros da COPIAR (um de cada uma das nove regióes).
Esta atividade foi programada na reuniáo preparatória do X Encontro
(abril de 1997). Assim, cada regiao pode preparar-se, sendo que vários
grupos trouxeram inclusive cartazes e "quadros seriados" com a dis-
cussáo já sistematizadalTS. Apresentaram um resumo dos trabalhos
realizados, procurando rever seus momentos mais fortes e principais
temáticas. O objetivo foifazer um balango do que mudou na realidade
da educagáo escolar indígena na regiáo, a partir da exist6encia do
movimento, assim como explicitar as questóes e problemas a serem
enfrentados
Desde logo houve o consenso de que as" conquistas superaram as
dificuldadel' (Prof. Fausto Manduláo, Macuxi), e de que a grande forga
A autonomia como valor e a artículaQáo de possibilidades I4l

do movimento é seu caráter de formagáo político-pedagógica. Nas


palavras do Prof. Enilton André, " a COPIAR179 ¿ u o escola de for-
magdo política do movimenfo". Esta foi também a constatagáo do Prof.
Raposo, Macuxi, " a COPIAR é uma coluna que está nos ajudando a
aguentar o peso",
Destacaram-se entre os avangos :
o intercámbio das diversas experiéncias/a quebra do "isolamen-
tott;
o conhecimento mtltuo das diferentes culturas (interculturali-
dade interna e construgáo da solidariedade interétnica);
a criagáo da COPIAR ("Ter autonomia para preparar, coordenar
e administrar os Encontrol');
a ampla discussáo sobre currículos e regimentos próprios e as
iniciativas concretas nas práticas diárias das escolas (a con-
cepgáo de currículo como "a vida da escold');
a valorizaqáo das culturas ("resgate" I afirmagáo lreconstrugáo);
o trabalho com a metodologia dos temas geradores articulado
com as culturas diversificadas;
a criagáo de organizagóes locais de professores;
a relagáo de proximidade com o movimento indlgena mais
amplo;
o trabalho articulado e a participagáo das escolas nas outras
lutas, como terra e saúde;
os documentos elaborados ao longo dos anos, posicionando-se.
acerca das questóes atuais (como o caso da elaboragáo da nova
LDB);
Princípios/I99l ("8 uma arma na
a elaboragáo da Declaragáo de
mño do movimento, fruto de muita discussño, luta e sacrificio");
o langamento do cartaz da Declaragáo (1995);
a visibilidade externa do movimento: a conquista de reconheci-
mento e respeitabilidade (presenga de representantes do MEC
em alguns Encontros; convites para debates em Universidades;
participagáo em eventos científico-académicos; os enfrentamen-
tos com as Secretarias de Educagáo; o interesse da imprensa na
cobertura dos Encontros;
o crescimento quantitativo (aumento no número de partici-
pantes e na abrangéncia do rnovimento) e qualitativo ("quali-
dade para pensar o futuro");
142 Rosa Helena Dias da Silva

a criagáo do NEI, e posteriormente o DEI (Departamento de


Educagáo Indígena) em Roraima, sob coordenagáo de um pro-
fessor indígena indicado pelo movimento indlgena local;
iniciativas concretas quanto á necessidade de formagáo específi-
ca (como, por exemplo, o Magistério Indígena, em Roraima);
a grande maioria dos professores nas escolas indígenas sáo
índios, e as escolas localizam-se nas aldeias;
gerenciamento das escolas: diretores indígenas, indicados pelas
próprias comunidades;
representante do movimento no Comité do MEC (escolhido e
avaliado nos Encontros anuais);
a reflexáo sobre escolas indígenas e projetos/planos de futuro dos
povos.

Quanto aos problemas, foram elencados:


ensino da língua ainda de forma "clandestina" (náo reconhecida
oficialmente);
resisténcia dos alunos e de algumas comunidades, com relagáo
ao ensino das línguas indígenas;
professores náo-falantes das línguas indígenas;
invasáo e náo-demarcagáo das terras;
perseguigáo política aos professores;
influéncia político-partidária;
saída dos jovens para a periferia das cidades ("para continuar os
estudos e/ou procurar emprego")
falta de currículo e regimentos reconhecidos e aprovados oficial-
mente;
burocracia no repasse das verbas públicas para as escolas;
falta de recursos para articular o movimento.

Colocagóes de professores ajudam a visualizar a complexidade


das questóes tratadas, com seus conflitos de caráter interno e externo:

Para nós o currículo é um trabalho que precisa ser primeiro aplica-


do na prática, prd depois colocar no papel. E preciso que os municí-
pios apoiem os professoresl (Prof. Mariano Cruz, Kambeba,
Médio Solimóes).
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 143

Tem falta de compromisso de alguns professores. As vezes nos com-


prometeffios com novas fttetas e quando voltamos para nossas esco-
las, nos acomodamos cotn o cutículo da SEDUC (Prof. Sebastiáo
Duarte, Tucano, Rio Negro).
Se somos professores indlgenas, vamos pratica¡ fazer festa,
dangar... Nño só os alunos, tnas as liderangas, os velhos.,. Quem
nasce na sua terra indígena e sabe viver como índios, sabe fazer as
coisas! (Professor Ticuna, Alto Solimoes).

O segundo momento do Encontro centrou-se na questáo da


continuidade do movimento. O Prof. Enilton André, Wapixana, apre-
sentou a proposta de trabalhos em grupos, motivando os professores a
pensar o futuro das comunidades e o papel das escolas frente ás neces-
sidades, com a seguinte reflexáo:

Nossas escolas estño esperando novidades, algo que ajude a melho-


rar este Processo de busca de uma escola realmente indígena' que
valorize as culturas, resgate aslínguos, os artesanatos, as cerilmicas,
que ensine as danSns. Enfim, um currfculo que contetnPle todos
essas idüas e riquezas das comunidades. Participando desta luta,
estamos em busca desta escola, estatnos compromissados com esse
trabalho. Este investimento da COPIAR deve ser multiplicado. Ver
esse esPago da reunido enfeitado com artesanato. Mostrar que
tomatnos a decisño de chamar a comunidade para este trabalho,
Está aqui o desafio! Que alternativas, que tipo de atividades esta-
mos desenvolvendo para ajudar esse aluno que termina a quarta
série, ou a oitava série, a ficar na comunidade? Precisamos desco-
brir caminho s alternativo s.

De grande significado foi a presenga do Prof. Gersem Luciano,


Baniwa, do alto Rio Negro, atualmente no cargo de Secretário de
Educagáo do Municlpio de Sáo Gabriel da Cachoeiru¡¡¡4l80' O movi-
mento aponta esse exemplo, concreto e atual como uma vitória de
'
todos, já que Gersem é uma expressiva lideranga da COPIAR (partici-
pa desta articulagáo desde o I Encontro/1988), e por Sáo Gabriel ser
um município indígena (90o/o dapopulagáo é indígena, segundo Censo
autónomo da FOIRN).
144 Rosa Helena Dias da Silva

A delegagáo de Roraima, num total de 26 pessoas, contou com a


participagáo ativa do coordenador geral do CIR (ferónimo, Macuxi) e
de representante do DEI (Departamento de Educagáo Indígena do
estado de Roraima), Rubineide, Wapixana. Também a presenga dos
Yanomami é sempre acolhida e valorizada por todos.

3.2,10.3. Conclusóes

As noites foram ocupadas com importantes debates sobre legis-


la9áo quanto á educagáo escolar indígena; MEC e Comité Assessor.
Quanto is leis, após informes das assessorias sobre a nova LDB, foi
avaliado que

temos espago suficiente. F, preciso conhecer para poder exigir e


fazer
acontecer - acontecer a democracia; acontecer a prática das leis!
(Prof". Zineide, Wapixana, coordenadora da OpIR).

Sobre a proposta do MEC, da elaboragáo de Referenciais


Curriculares Indígenas (RCIs¡tst, apresentada á plenária pela proF
Ivete Campos (da Coordenagáo da Educagáo Escolar Indígena/MEC) e
Prof. Nietta Monte (representante das ONGs, no Comité
Assessor/MEC, o movimento decidiu pelo seguinte encaminhamen-
tol82: participar, porém questionando o método proposto - os ques-
tionários individuais. Reivindicam condigóes para poder continuar
esse trabalho, juntamente com suas liderangas, comunidades e organi-
zagóes. Para tanto, estaráo enviando um projeto de financiamento de
encontros locais e sub-regionais, para que os resultados possam ser
fruto de uma ampla participagáo.
O Prof, Enilton André, resumiu o sentimento do grupo:

Nós do movimento dos professores indígenas do Amazonos,


Roraima e Acre, veteranos nestes dez anos de caminhada, estamos
vendo a preocupagño do MEC. Nas nossas bases, estamos em fase
de discussño de como conseguir uma escola com carl, corpo e alma
indígena - com todas as características. Uma escola que tenha reg-
imento e currículo com qualidade adequada. O MEC precisa dar
apoio e condigóes, necessárias para essa articulagdo na base,
Garantir uma consulta partindo das raízes do nosso povo.
A autonomia como valor e a articulaQdo de possibilidades L45

Na terceira noite, aproveitando a oportunidade da Presenga de


trés representantes do Comité103, foi realtzada uma mesa-redonda
sobre os limites e possibilidades desta instáncia - o Comité Assessor do
MEC para assuntos da educagáo escolar indígena. A conversa foi
encaminhada através de depoimentos da experiéncia pessoal de cada
um, além de um resgate da própria história da criagáo do Comité. Foi
consenso o entendimento de que a existéncia deste espago é um
avango, e atendeu, de certa forma, antigas reivindicagóes do movimen-
to indígena e indigenista. Porém, avaliou-se que é preciso melhorar sua
articulagáo e o repasse de informagóes. Foi também constatagáo geral
que um dos fatores limitantes é seu caráter - aPenas consultivo.
Conforme analisou Gohn, "o saber popular politizado, conden-
sado em práticas pollticas participativas, torna-se uma ameafa ás class-
es dominantes á medida que ele reivindica espagos nos aparelhos
estatais, através de conselhos, etc, com caráter deliberativo. Isto porque
o saber popular estaria invadindo o camPo de construgáo da teia de
dominaqáo das redes de relagóes sociais e da vida social. Nestes casos
observa-se a tentativa frequente de delimitar aquele poder ao aspecto
consultivo porque, desta forma, legitimam-se os Processos de domi-
nagáo, sem colocar em risco sua estrutura e organizagáo. Sendo apenas
consultivos, os conselhos continuaráo com seus problemas estruturais
de base (instabilidade e isolamento) em contraposigáo á dinámica da
máquina estatal (lentidáo, rigidez, burocratizagáo)"18a.
Os professores indígenas reafirmaram seu propósito de estar
presente no Comité, mas deixaram claro, mais uma vez, que querem ter
voz efetiva. Buscando melhorar as condigóes de participagáo indígena
nas reunióes, reivindicaram que o nrlmero de representantes indígenas
seja ampliado - dentro do critério e princípio da paridade - e que estes
possam se reunir pelo menos um dia antes da reuniáo do Comité, para
trocarem informagóes sobre as diferentes realidades e tragar estratégias
e posigóes conjuntaslSs.
146 Rosa Helena Dias da Silva

X ENCONTRO DOS PROFESSORES INDÍGENAS


DO AMAZONAS, RORAIMA E ACRE

DATA 28 a 3Lljtlhol1997

LOCAL Manaus/AM, "Maromba"

N" PARTICIPANTES l0s

N. POVOS 32

LISTAGEM POVOS Arapago, Baniwa, Baré, Djahói, Guarani ]aminawa,


Kanamari, Kambeba, Karipuna, Kaxinawa, Kokama
Kulina, Makuxi, Manchineri, Marubo, Mayoruna,
Miranha, Munduruku, Mura, Parintintin, Pira-
Tapuia, Sateré-Mawé, Shanenawa, Taurepang, Ten-
harim, Tikuna, Torá, Tukano, Waimiri-Atroari,
Wanano, Wapixana e Yanomami

REGIÓES 09 - Alto fuo Negro, Alto Solimóes, Baixo Amazo-


nas, Médio Solimóes, Alto Madeira, Médio Madei-
ra, Baixo Madeira, Roraima e Acre

TEMAS/EIXOS PRINCIPAIS 'Avaliando o passado é que se constrói o futuro":


avaliagáo dos l0 anos de moümento (avangos, con-
quistas, dificuldades e problemas que permane-
cem); perspectivas de futuro do movimento

DOCUMENTO PRODUZIDO Carta ao MEC, sobre a elaboragáo dos RCIs e a par-


ticipagáo do moümento; Carta ao Comité, reivin-
dicando participagáo paritária/indicando mais re-
presentantes da regiao Norte; Documento de apoio
á criagáo do curso de licenciatura em Educagáo In-
dlgena/UNICAMP; Documento de repúdio ao liv-
ro A farsa Yanomami

ORGANIZADOR COPIAR

ASSESSORIAS CIMI (Norte I:Rosa Helena D. Silva); Mari-USP


(Marta Azevedo) e OPAN (Ednelson Pereira)
A autonomia como valor e a articulaEáo de possibilidades 147

DESTAQUES Painel avaüativo; Presenga, pela primeira vez, de


professor Karipuna, Oiapoque/AP e de professores
da regiáo de Eirunepé/AM, um Kulina e um Kana-
mari; Presenga do Prof. Gersem dos Santos Lucia-
no, como Secretário de Educagáo do Município de
Sáo Gabriel da Cacheira/AM; presenta de quatro
membros do Comité/MEC: Sebastiáo Duarte (re-
presentagáo indlgena/regiáo Norte), Argemiro
Guarani (representagáo indígena/regiáo Leste),
Luís Donisete Grupioni (ABA) e Nietta Monte
(ONGs); Presenga de lvete Campos, Coordenagáo
de Apoio is escolas Indígenas/MEC

CONTEXTO POLÍTICO Novos Parámetros Curriculares Nacionais; Elabo-


raqáo dos Referenciais Curriculares Indígenas; No-
va LDB; Comemoragáo l0 anos de movimento

Apresento a seguir quadro-síntese dos 10 Encontros Anuais


( 1988- r9e7)
l4E Rosa Helena Dias da Silva

Ég¡¡ÉÉÉÉÉááÉ
¿ 2 *s *rZ **2 qa qa rq aa ,.2 -
fi ¡i ;i3! ¡;E ;33
=íE =íEi
¡i3¡5;Í¡
Q -¿ -13-t3¿"Á3á"t3 "gB "33 "g3o "i3oÉ":o
=33 =3E¡

EA ¡E $ ,F
ca í€,
É! YE

É iÉ gÉ gE s iii
EE

;:É'l
si oÉ*

EHEE*E?E gá
É E6 Fg-=u
E {ÉiE Eis e:¡g ¡€C i
:96 5-o

aE5 Á[g EEÉf

z- - Ég-,gt:;eÉE:? € g",l{s €-

3*' rÉsÉgffifu ÉgEiE3ÉfuÉígg#ÉssÉ iÉgÉ$Éff ís


8l : I e : e > ñ R R s
e *A *g *e ** sÉ" ss"SÉtiH€¡
É ii ii ii ii i¡i ¡;.*¡;":
áiÉ i¡: q¡;¡ ¡s¡s qE;E
É
" €f;
gɡ
áÉ¡ áÉ¡ áÉE i*ir sÉtu sÉi gÉ€€i áÉ€$ #€É
€É; :5; €;; *f3; !f¡É :;s áEIBE iEEr iE¡¡
EF í
.Q
R $ s e i e i g g

t>
?< l>
e< 2eZu1.r i; ¡ ÉÉ,
f
s>

z2
<:
z
6
6 seR
OF

d85 N

nÉ E¿ F X
zts
=Fx
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 149

Fonte:Relatórios dos Encontros Anuais-COPIAR e anotatóes de pesquisa.


Sistematizagáo: Rosa Helena Dias da Silva.

3.3. Caracterizagáo e mapeamento do movimento

3.3.1 Levantamento - 1993

Durante a realizagáo do VI Encontro, surgiu a proposta, feita


pelos próprios professores, de aproveitar o momento para atualizar um
levantamento de dados gerais sobre o Movimento, que Permitisse
comparagáo com o realizado no IV Encontro (1991), sistematizado e
analisado pelo Prof. Dr. Márcio Silva, da LTNICAMR também assessor
do Movimento. Seria um indicativo que possibilitaria uma visáo pre-
liminar do crescimento, em termos de participagáo nos Encontros e
abrangéncia. Avaliada a importáncia de tal trabalho, fiquei responsáv-
el por realiza-lol86. A coleta de dados foi feita durante as sessóes de tra-
balho em grupo, por regióes. O resultado, sistematizado e transforma-
do em um cartaz, foi afixado na sala dos plenários para que todos
tivessem acesso a ele.
Pude sentir os resultados positivos concretos de tal trabalho,
destacando dois aspectos: O motivador e animador, de caráter mais
interno, posto que tornaram-se vislveis os lndices de ampliagáo e
crescimento do movimento; e o aspecto de forga política, que fortalece
a correlagáo externa, pelo fato de terem o domínio de seus próprios
dados. Em vários momentos, usou-se citagóes de números do quadro,
quer para reforgar colocagóes avaliativas da realidade vivida, quer Para
precisar melhor, quantitativamente, suas demandas. Os dados gerais
foram também utilizados nas entrevistas i imprensa, subsidiando
assim informagóes relevantes quanto á divulgagáo e articulagáo desta
experiéncia.

A seguir, quadro do Levantamento Geral 1993:


150 Rosa Helena Dias da Silva

n2
Efs
lsu
xZx
$
qgpq3*$
RRh$:R$

$ cr
J .,.
<A

Éor
É
2* 3" aF g
€ E,3
ZF¿
É ;g
é
ñzo Y
óOddl E
EÉHÉ
q-A
Ñ N;6
s@ Y
o
gx
rF
e
ú
9iá á 3i
3 {i
J

5
P* g ri 3
d
a 3ñ É" 3; E
<úi iN N
N d d d N

Eiɀ
Él <* - i

ñEA

F
z E 5E €
E
E¡ €É :
fr
z
t
z
; { si ni
El

ñHBRAFE
e+so-.j;ooi
5 EiÉ!r;
i i :g g€
ti
tr¡
z
$ f iE?s;
q
¡*i f{[ÉÉ
s , a 9*
l9x I89,5=-
e t É

:r<
iz g,E; ! € 6 €;
H rn
HX
O;
^k
i,¡
o
U
*
I N a iEÉ ¡ $ásg
4o
EP
nó É€€gEsig
z

OO ;;i¡!ÉÉÉá:
<d
AJ R a E <)
eA

ñ3
ñ Y
z A =
o
e áó :I $iu
z<=

EX-i 3
I
É35€ l:!iáÉi
ó¿
¿<
n O X
É
;lls¡ k o fúp,
<a Xr¡
< i-i
ilEE l¡gsÉ¡E
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades l5l

Podemos afirmar que, segundo este levantamento, em 1993, era


estimado o número de 920 professores indígenas atuando na regiáo
englobada pelo Movimento. Estas eram, naquela época:
no Estado do Amazonas: Alto Rio Negro, Alto Solimóes,
Médio Solimóes, Madeira e Baixo Amazonas;
todo o Estado de Roraima;
no Estado do Acre, a regiáo do Rio Envira.
Totalizavam entáo, 07 regióes, em trés Estados.
Do total de professores indígenas, até o ano de 1993, 194 partic-
iparam dos Encontros anuais. Isto representa que 2lo/o do total dos
professores indlgenas dessas regióes era integrante direto deste proces-
sol87.
Quanto i dinámica de participagáo nos Encontros, podemos
verificar que, cada regiáo tem seus critérios próprios de escolha, garan-
tindo todos, porém, um tipo de equilíbrio entre rotatividade e con-
tinuidade/permanéncia nas delegagóes. Registre-se também que a
definigáo das vagas (por regiáo), incluindo a decisáo das pessoas que
participaráo dos Encontros' Passa pela articulagáo de cada local. Sofre
assim as influéncias da problemática interna (e externa) de cada área' .

com as posslveis tensóes e conflitos existentes, já que envolve diversos


povos, variadas situagóes e diferentes concepgóes presentes. Sabemos
que há, por exemplo, heterogeneidade e pluralidade de idéias e mesmo
de visóes acerca do movimento, como é o caso, por exemplo, do Rio
Negro. Vejamos o relato detalhado, através de trechos da entrevista do
Prof. Sebastiáo Duarte, VI Encontroi93.

Bom, desde o I Encontro dos professores, teve uma distorgño, teve


uma briga, uma divisdo de idéias, certo? No I Encontro a gente nño
conseguiu nada. Também a gente falamos, muitas pessoas enten-
deram, mas entenderam mal. No II Encontro a gente veio de novo,
prá mais experiéncia, né? E aí sentimos forgas de outros parentes
que impulsionarum a gente, voltamos novamente com essa forga.
Dessa vez eu trouxe mais um companheiro que ajudou bastante'
Bom, até o momentq a gente vimos que a gente estava no camin-
ho errado, em terrnos de educagño, certo? Nós conseguimos, pelo
rnenos (porque a escola é conveniada com o estado, né, conveniada
pelos padres, a diocese, etc... é deles lá!) conseguimos fazer uma
escola de intercámbio, quer diz,er, utna troca... a escola com o povo,
I52 Rosa Helena Dias da Silva

com a comunidade, né? Levou para entender que a necessidade da


comunidade dentro de uma escola é muito importante. Onde o pai,
o aluno, enfim, a comunidade educativa participa do desenvolvi-
mento cultural da crianga.

Também existe diversidade (e até divergéncias) de linhas de tra-


balhos das entidades (governamentais ou náo), como ocorre atual-
mente na regieo do Baixo Amazonas. FUNAI e IEWAM (Instituto de
Educagáo Rural do Amazonas) tém levado adiante um projeto de for-
ma9áo para professores índios. Ao que tudo indica, tal encamin-
hamento prejudicou a participagáo das delegagóes do povo Sateré-
Maué no V VI e VII Encontro (ver Quadro de participantes nos
Encontros/por regiáo, adiante), sendo que, no VII Encontro
(Manaus/1994) houve o rompimento do movimento com o represen-
tante da regiáo "Baixo Amazonas" (área dos Sateré-Maues)18s. Soma-se
a isso as distintas orientagóes das missóes religiosas presentes entre os
Sateré-Maué, gerando uma divisáo entre "catóücos e crentes'1
No ano de 1995, numa articulagáo com a COIAB, houve a pro-
posta, acatada pela COPIAR, da participagáo no VIII Encontro de uma
delegagáo Sateré, composta prioritariamente por liderangas, para dis-
cutir com o movimento a retomada da presenga deste povo. fá no IX
Encontro, os Sateré participaram, enquanto delegagáo de profes-
soresl89.
Anote-se ainda os problemas ligados á disputa de poder interno,
também ligadas aos apoios e parcerias de entidades indigenistas, como
os vividos pelos Ticuna, no Alto Solimóes, na questáo da coordenagáo
da OGPTB - Organizagáo Geral dos Professores Ticuna Bilíngues, sua
relaqáo com o CGTT - Conselho Geral da Tribo Ticuna e a adminis-
tragáo do Museu Maguta.
Resumindo, poderíamos dizer que a decisáo sobre a ocupagáo
das vagas passa entáo pelo crivo dos próprios índios, o que é um dado
fundamental. Por outro lado, náo podemos ignorar que, dependendo
da situagáo de cada regieo, a divisáo/selegáo pode sofrer uma espécie de
"filtragem" dos problemas locais. Seguindo essa análise e raciocínio, as
delegagóes chegariam aos Encontros com uma certa homogeneidade,
nem sempre representativa da realidade das áreas, ficando talvez para
traz alguns conflitos a serem retomados. Um outro fator altamente rel-
evante, já que limita concretamente uma maior participagáo, é a
A autonomia como valor e a articulaEdo de possibilidades 153

questáo das condigóes objetivas: a restrigáo imposta pelo orgamento


do projeto de financiamento.
A cada ano, antigas e novas pessoas se renovam e se revezam na
participagáo nos Encontros. Tál proceder tem permitido que, ao
mesmo tempo que o Movimento se amplia, atingindo cada vez um
maior número de professores (direta e indiretamente), as discussóes
náo sofram total descontinuidade. Constata-se que, apesar das difer-
engas internas (entre os diversos povos e também dentro de um
mesmo povo), constroi-se uma certa unidade no movimento, para se
contrapor ás forgas externas contrárias. Da mesma forma, Dominique
Gallois, em seu estudo sobre o povo Waiápi, já anüsou essa questáo:
"quando se opóem aos brancos, a unidade surge como uma construgáo
lógica, inversa á utilizada para embasar as difereng¿s i¡1s¡¡¿s"190.
Por outro lado, alguns tém se destacado como expressivas lider-
angas, exercendo com muita competéncia um papel decisivo de asses-
soria interna, ora motivando as discussóes e incentivando os novos
(que véem pela primeiravez); ora sugerindo dinámicas para o encam-
inhamento dos trabalhos durante os Encontros e, sempre que
necessário, trazendo a memória histórica do movimento.
Segundo dados do questionário aplicado durante o VI Encontro,
o Médio e Alto Solimóes sáo as duas regióes de maior média de partic-
ipagáo: dos diversos professores, todos já participaram de pelo menos
03 Encontros.
O Acre inicia sua participagáo em 1992, com 03 professores. fá
em 1993, se faz presente, como integrante do Movimento, com uma
delegagáo de l0 pessoas, sendo que 09 participaram pela primeira vez.
Ainda quanto á rotatividade versus permanéncia, vejamos
alguns exemplos:
Médio Solimóes: O Prof. Mariano Cruz, do Povo Kambeba,
acompanha os diferentes grupos, desde o 1" Encontro (1988), sendo
desta forma, um elo de ligagáo entre o movimento local e o movimen-
to mais amplo. A delegagáo é composta em média por 06 professores.
No VI Encontro, estavam em 07, sendo que, além do Prof. Mariano,
que, conforme já foi dito, participou de todos os demais Encontros, um
participou de 04 Encontros, dois participaram de 03, um de 02, e dois
professores era a 1'vez que vinham.
Alto Solimóes: Nesta regiáo é o Prof. Alírio Moraes, do Povo
Ticuna, que aparece como o membro constante sempre nas delegagóes.
154 Rosa Helena Dias da Silva

A média de participantes nos Encontros é de 09 professores. Os 08 pre-


sentes ao VI Encontro responderam os questionários. Destes, excluin-
do o Prof. Alírio, dois participaram 05 vezes, um de 04 Encontros, um
de 03, um participou de 02, e dois participavam pela lu vez.
Alto Rio Negro: Percebe-se que privilegiam a vinda de novos
participantes. Dos 06 presentes que responderam ao questionário (a
delegagáo ao VI Encontro era composta de 09 professores), quatro era
a lt vez que participavam. Thmbém aqui destaca-se um professor (prof.
Sebastiáo Duarte, do povo Tucano) que sempre acompanha o
grupolel. A média de membros nas delegagóes anuais é de 0Tpessoas.
Roraima: Dos 76 participantes ao VI Encontro, 44 responderam
ao questionário. Destes, doze jáparticiparam 03 ou 04 vezes, vinte e um
participaram em 02 Encontros, dezoito era a la vez. O prof. Enilton
André, Wapixana, acompanha os grupos. Lembre-se que a alta taxa de
participantes da regiáo de Roraima explica-se pelo fato de trés dos
encontros (V1I992, WlI993 e VIII/1995) terem sido realizados na
cidade de Boa Vista/RR.

QUADRO DE PARTICIPANTES NOS ENCONTROS/POR RXGIÓES


ANO 1986 1989 1990 1991 1992 1993 r9g4 1995 t996 t997

ENC. x

REGIÓES NÍIMERO DE PROFESSORES

A. Rio Negro 09 05 05 06 09 09 16 l0 50 16
A Solimóes lt l0 t0 0ó 06 08 13 10 07 t2
M, Solimoes 03 02 06 l0 l0 08 07 05 t2 t5
B. Am¿on6 09 04 t4 l2 03 -- 02 08 05 0E
B. Am¿on6 09 04 l4 t2 03 -- 02 08 05 08
Roraiña 09 09 IO 09 s9 76 16 75 08 26
Acre 03 l0 t0 04 -- 04

TOTAL 45 90 ll5 76 130 100 105

FONTE: Relatórios dos Encontros uuis e motaÉes de pesquisa


Obsl: A regiáo do Madeir4 partir de 1995 subdivide-se em Altq Médio e Baixo Madeira
a
Obs2: O V VI e VIII Enontro foram realizados na cidade de Boa Vista./RR, dal decorre o maior número de
desta regiáo nos referidos encontros
Obs3: O IX Encont¡o foi realizado na cidade de Sáo Gabriel da Cachoeira, daf deorre o maior n" de pro-
fessores da regiáo do Rio Negro
Obs4: No X Encontro, jmtamente com os professores de Roraima, conta-se 04 Waimiri-Atroari. Na regiáo
Médio Solimóes inclue-se 01 Kambeba do Rio Negro; 01 Kmmari e OlKulina da regiáo de Eiruepe
A autonomia como valor e a articulagío de possibilidades I55

A média geral de participantes aos Encontros, durante a história


do Movimento (10 Encontros) é de78 professores indígenas.
fá participaram dos Encontros os seguintes povos indlgenas, por
ordem alfabética, totalizando 37 povos:

Apuriná, Arapago, Baniwa, Baré, Desano, Diahói, Guarani,


laminawa, Kambeba, Kampa, Kanamari, Karipuna, Kaxinawá,
Kichwa, Kokama, Kulina, Macuxi, Manchineri Marubo, Mayoruna,
Miranha, Munduruku, Mura, Parintintim, Piratapuia, Sateré-Maué,
Shanenawa, Tariano, Thurepang, Tenharim, Tikuna, Torá, Tükano,
Waimiri-Atroari, Wanano, Wapixana e Yanomami.

Sempre houve a participagáo de mais de 12 povos, em cada


evento, sendo que oX Encontro (Manaus,1997) obteve o número
recorde de 32 povos indígenas.
A VI Encontro
tabulagáo dos questionários realizados no
mostrou que os 78 professores (os quais responderam o questionário),
trabalham em 50 escolas indígenas distintas.
No Levantamento Geral - I993,podemos visualizar que a média
de alunos por professor era de 22, Como sabemos que 194 professores
indígenas estáo diretamente ligados ao Movimento (através das partic-
ipagóes nos Encontros), podemos estimar que 4.268 alunos indígenas
sáo atingidos indiretamente, através da atuagáo diária desses profes-
sores.
Olhando o número estimado de total de alunos indígenas nas
regióes -
19.481 - vemos que os 4.268 acima citados, representarn22o/o
desse total, o que é, sem dúvida, um dado realmente significativo, por
sua abrangéncia e alcance.
Das 50 escolas indlgenas tabuladas, 24 tem na sua diregáo, pro-
fessores indlgenas, sendo que se destaca o Estado de Roraima: das 23
escolas, l8 tem diretores índios.
Podemos computar esse dado como resultado concreto do
Movimento, já que registra ayangos posteriores ao seu início. Vemos
que, aos poucos, estáo conseguindo concretizar aquilo que expres-
saram no ponto 2 da Declaragáo de Princípios (fV Encontro ll99I):

As comunidades indígenas devem, juntatnente com os professores e


organizagóes, indicar a diregño e supervisño das escolas.
156 Rosa Helena Dias da Silva

Foi também consenso geral, nas discussóes realizadas ao longo


dos Encontros e especificamente nos trabalhos realizados no IV (com
o Roteiro para pensar a elaboragáo de currículos específicos), que as
escolas devem ser assumidas e dirigidas pelos próprios índios.
Quanto á formagáo escolar dos professores, verifica-se que as
regióes onde há maior índice de escolarizagáo é o Rio Negro, no
Amazonas; e Roraima. Há, inclusive, diversos professores destes locais,
cursando o 3" grau.
No Acre (regiáo do Envira) e no Alto Solimóes é onde aparece a
maior deficiéncia quanto i escolarizagáo formal: vários professores
indígenas náo concluíram nem o 1" grau.
Já sobre a formagáo específica (político-pedagógica), elencaram
vários momentos onde isso se dá, preenchendo, de certa forma, as lacu-
nas da escolarizagáo oficial. Podemos perceber que a grande maioria
(62 dos 78 que preencheram os questionários) citaram sua participagáo
em outros espagos e momentos formativos como, cursos, encontros,
reciclagens, reunióes, assembléias, onde a questáo da educagáo escolar
indígena é tratada, seja nos seus aspectos filosóficos, teórico-
metodológicos ou práticos (técnicos).
Quanto ás contratagóes, vemos também que foi um dado que
cresceu positivamente, desde o I Encontro. Nos primeiros Relatórios
dos Encontros, vé-se claramente que essa era uma problemática que se
repetia - o do trabalho "voluntário".
fá no VI Encontro/I993, por ocasiáo da apücagáo dos ques-
tionários, podemos verificar que apenas 16, dos 78 professores, náo
possuem algum tipo de contrato.
Dos 62 contratados, 34 estáo vinculados aos Estados (através das
Secretarias de Educagáo, ou do IER/AM); 24 sáo a nlvel federal (pela
FUNAI) e apenas 04 estáo ligados á Prefeituras locais.
Quanto aos Currículos e Regimentos, somente 09 escolas foram
declaradas como possuidoras de currlculos e regimentos próprios e
específicos.
As respostas dadas, porém, mostram que há diferentes con-
cepgóes e interpretagóes a esse respeito. Alguns, ao responder, olharam
a"práticd', o dia-a-dia das escolas e o espago de trabalho do professor;
outros enxergaram pelo viés oficial ("legal").
Em uma mesma escola, na regiáo do Envira (Acre), há elabo-
ragáo de respostas que aparentemente, se contradizem: um professor
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 157

respondeu que 'b currículo é feito pelo inspetor do Estado"; o outro disse
que 'b currículo é feito pela comunidade", detalhando inclusive que '3ño
quatro dias por semana para aula e dois para outros trabalhos ou reuniño
corn a comunidade".
O professor Ticuna, da escola "Novo Porto Lima", diz que "nño
temos ainda o currículo, mas trabalhamos com próprios materiais da
nossa cultura'i
Na regiáo de Roraima, apareceram as seguintes respostas:
"Nño, o que temos é adaptado d nossa realidade".
"Nño, nño tem (oficialmente)'i
"Nño temos por escrito, mas a escola, ou seja, sua direfio tem o
currículo de acordo com a comunidade'l
"Ndo, m*s o grupo de professores ehboraram um, de acordo com a
realidade".

A seguir tabulagáo dos dados dos questionários:


1.58 Ros¿ Helena Dias da Sitva

€ H8- Hr- H83 H33 H.r H*t


3B
A44Pepe 5 5 5 E E

-é=é "éeÉ -3áE "é38 "sáE "éeE


É,-^ri^l^l^t{^l

838 88 i36 6868 38 RR6

NE
<
=ts
9E 06.
ñ
-
eEñ
.r Y.!
ü.8 ü.É ü

aO
p<
<.
z2
o¡E E oñÉ E>
Ee
^o
eE 3a2 5E 5E5 ^E
Ea:
^oñ
3n E= 3A= ñ3 fr=É 3fr*
oññ

o>
qi;
32 ñe
.EsFs
2 e2 2
ÁsÉ¿ e2 F¡É:
ñe .E¿ñe e2
oó iE !
qc I XE X XX XE e
ó .i
92
.Esñs
2
ñs
2 2 ñ¿ F¡És
És ñe 2 e2 5

F<v ix x63 E x x xE
i5 sag s8 6s6 =sB
<9
6
g

4 3
.!P

ák

f ñ
9A
ol
U

¿ R EF
ñt
;8
É¡* €;€H Éü
EE EEEá 5Et * .5€
;'¡s
:6
59sü 5É¡i >3 H.6.E
>*E no
áÉ

aZ eÉ r¡
eE .H
^6q
q
'5 3F,
f¡¡
I L¿
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 159

3.3.2. Levantamento - 1994192

Assim como no ano anterior, os dados sistematizados


foram transformados em um grande cartaz que, após ser oficialmente
apresentado pela coordenagáo do Encontro á plenária, ficou afixado
em lugar de destaque, no saláo de reunióes. Os números apontaram
novo crescimento do movimento, constatagáo esta que foi recebida
com muito entusiasmo por todos. Pude observar que ele foi constante-
mente consultado, individualmente e por pequenos grupos que, além
de anotar os dados, faziam comentários e avaliagóes. Foi, inclusive,
divulgado pela imprensa local.
Como disse acima, o movimento registrou novamente
um significativo crescimento quantitativo. Além das regióes que já par-
ticipavam tradicionalmente, o Acre, que só se fazia representar por
professores indígenas da regiáo do Rio Envira, trouxe, no ano de 1994,
pessoas de outras regióes também (Boca do Acre, Thrauacá e Assis
Brasil). Na delegagáo do Rio Negro/AM vieram professores de um
município que nunca havia participado anteriormente - Santa Izabel
do Rio Negro.
Segundo o Levantamento Geral/1994 (com dados aproxi-
mados, segundo informagóes dos próprios participantes) existiam, em
1994 um total de 1.067 professores indígenas na regiáo abrangida pelo
movimento.
O total de alunos é 25.258 - tal cifra aproxima-se de 8%
da populagáo indígena do Brasill93, o que é, sem dúvida um dado alta-
mente significativo.
16O Rosa Helena Dias da Silva

9Xa
3AZ
<",f
eX=
agQ
t*F
ñ x 6ñ üv ov h:
u ¿5 s3 3h

ÉrÍ
vx* c

sa- :8
ñ
8pP
EiZÉBe!ss 7E
€o
cO
^=z
É,uq Eñ á
.9F
t>
?
Y¿
^ E"
aü d ¿
?3 ñ o ,xE
<F 'ó9
6Y €€ I
d-g

H
"9
a, EÉg
:X
-5
E
9
3
úi
q s ;j R
úi
És
rs dz
E3S
o!é
d32
k< gt
o6
z i;€
E S.!
ü2 ; !,8
9qz
--á * .=:
üEÉ
^:i
A2
qERFRS
á.¿
=E& ú
E.a E
>n
-= fr€ !ioE
+Ei
:r;¡s
ü'
cÁó
ssi; dog
Ze
? li üi?a
2.t
A €EÉ

?cs
ai; .!
'sgeE v
2 s.:É
N
PaE
H9= 2
H z
ei:
oo.:
ef"Xt
o sd3*l:
z<J<
üi
79
()
z
{J
22,F
o
E¡ EEES:É <F
SF
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 16l

3.3.3. Levantamento 1996

Como foi relatado no item "3.2.Os Encontros Anuais", o IX


Encontro/1996 foi realizado em Sáo Gabriel da Cachoeira/AM, sendo
que os participantes de fora da regiáo viajaram conjuntamente, em
barco especialmente fretado.
Na volta á Manaus, após o Encontro, professores e assessoriasl94
continuaram o trabalho de elaboragáo do novo Projeto Trienal (para
financiamento dos Encontros Anuais de 1997 a 1999). Para ilustrar a
abrangéncia do movimento, mostrando o seu alcance direto e indireto
(através da atuagáo junto aos alunos), atualizaram os dados do rlltimo
levantamento realizado (1994).

Regióes Número de Número de alunos


professores

Roraima 306 6.332


Baixo Madeira 26 521
Médio Madeira 2T 452
'275
Alto Madeira l5
Rio Negro 450 10.350
Médio Solimóes 25 470
Alto Solimoes 230 )./ z)
Baixo Amazonas 66 1.239
Acre 58 L.044

TOTAL tt97 26.408

Os números sobre as regióes Rio Negro e Acre sáo relativos i outubro/1994.


Isto se justifica porque náo estavam no barco os professores da regiáo do Rio
Negro; quanto ao Acre, náo houve participagáo no IX Encontro.
162 Rosa Helena Dias da Silva

3.3.4. Levantamento 1997

Durante a realizagáo do X EncontrollggT, os próprios profes-


sores tomaram a iniciativa de atuabzar os dados do levantamento de
1994. O papel da assessoria foi apenas sistematizar os dados e colocá-
los em forma de quadro. E interessante registrar que várias regióes já
trouxeram seus dados organizados, o que mostra que tal questao tem
sido incorporada á prática política do movimento. Perceberam o valor
de terem os seus próprios números, inclusive para poder confrontar
com as estatísticas oficiais.

Regióes Número de Número de alunos


professores

Alto Solimóes 116 4.593


Médio Solimóes 60 1.200
Baixo Amazonas 68 1.229
Alto Madeira l3 190
Médio Madeira 24 600
Baixo Madeira 23 527
Rio Negro 389 9.000
Acre 84 T.713
Roraima 402 6.8s0

TOTAL 1.156 25.902

Na regiáo de Roraima, estáo incluídos, neste ano, os dados sobre o povo


Waimiri-Atroari. Sáo 30 professores, que trabalham em 15 escolas. Como a
média de alunos por escola é de 20, calculou-se o total de 300 alunos.
A autonontia como valor e a articulagáo de possibilidades 163

Observa-se que, a cada ano, os dados váo sendo levantados com


mais precisáo. Isto é, cada vez mais, o movimento se torna "dono de
seus números" e os constrói com muita seriedade. Comparando o lev-
antamento da COPIAR/L997 - dados do Amazonas (que inclui as
regióes Alto Solimóes; Médio Solimóes; Baixo Amazonas; Alto
Madeira; Médio Madeira; Baixo Madeira e Rio Negro) - com o efetua-
do pelo IER/AM no mesmo período, podemos constatar que estes se
aproximam bastante. Segundo o IER./AM, há um total de 707 profes-
sores e 16.815 alunos indígenas no estado do Amazonas. A COPIAR
contabiliza 693 professores e 17.333 alunos.

3.4.Qaráner educativo do movimento: educagáo e organizagáo

Fica evidenciado, durante a análise dos Encontros, o caráter


processual e coletivo desta experiéncia, e seu significado na história da
educagáo escolar indígena na Amazónia.

"Houye boa participagño nos debates e nos grupos, de todos os pro-


fessores, Deu para sentir que é um Encontro de todos. O Encontro
foi mais utn passo de organizagño dos professores. Discutiu-se
assuntos interessantes que serño levados para as aldeias como
novas idéias'l (Relatório do VI Encontro)

A forte énfase na aprendizagem conjunta, na valorizagáo da


experiéncia do outro, e no compromisso social e político da prática
pedagógica sáo também características que afloram nos depoimentos:

Esse Encontro só vai ser importante se üver reflexo na área. O


Encontro é importante porque possibilita aos professores indígenas
discutir com outros professores as suas experiéncias. Nesses
Encontros dó pró discutir junto e despertar nos outros experiéncios.
Mas o Encontro tem que ter reflexo na área. (Prof. Euclides,
Macuxi/RR)
Todos nós professores, nós temos que obseryar o conhecido dos out-
ros: nós temos que observar o conteúdo dos outros professores para
que a gente consiga trabalhar mais. (Professores do Baixo
Amazonas).
164 Rosa Helena Dias da Silva

Quando a gente vé um material já feito, a gente tem o conheci-


mento de uma experiéncia prótica. A gente tem que transmitir os
conhecimentos que a gente adquire aqui. Tem que aplicar os con-
hecimentos. Aqui a gente aprende muito com os outros. As reali-
dades sño diferentes, os povos sño diferentes. Mas a gente aprende.
(Prof. Mariano, Kambeba/AM)

Pudemos observar que o Movimento dos Professores Indlgenas


do Amazonas, Roraima e Acre, a partir da aniiüse e crítica da história
da educagáo escolar indlgena na regiáo, vivenciada por eles num passa-
do muito próximo, articula o sonho (dos ideais), com a realidade pos-
sível, mostrando que olha o futuro a partir de uma perspectiva viável,
assumindo uma postura ativa, no presente.
Desta forma, o ideal, como meta ou mesmo utopia, e o real,
como desafio, se contrapóem, na dinámica de comparagáo e confronto
constante entre a teoria pensada e elaborada, e a prática vivida.

3.5. A forga das idéias e dos ideais: a Declaragáo de Princlpios

Com o objetivo de explicitar a concepgáo a respeito da educagáo


escolar indígena, vamos procurar analisar ponto por ponto, os 15 itens
da Declaragáo de Princípios firmada pelos professores no IV Encontro,
em Manaus/1991, reafirmada no VII Encontro, novamente em
Manaus/1994, e que é, até o presente, o documento de maior releván-
cia por eles prodizido e que traz em profundidade os anseios, reivindi-
ca9óes e propostas do movimento.

1 - As escolas indlgenas deverño ter curlcalos e regimentos


especlfrcos, elaborailos pelos profasores indlgenns, juntamente
com suas comunidades, liderangas, otganizagóes e assessorias.

A discussáo sobre a necessidade de currículos especíñcos tem


sido uma constante, a partir mesmo do I Encontro/I988, quando o
grupo de professores Macuxi, em sua resposta á questáo "Quais os Pas-
sos que precisamos dar para conseguir a escola que queremos?", colo-
cou, por exemplo, o seguinte:
A autonomia como valor e a articula7áo de possibilidades 165

(...) 2" ptrsso - Elnborar um currículo. Depois que os professores


estiverem organizados, temos que pensar num currículo para as
escolas indígenas. O que varnos ensinar de portugués? E na nossa
língua? Ciéncias a gente já pensa na medicina nativa. Entño temos
que planejar como yamos trabalhar. Seró que vai ser igual a esse
modo do branco? Ex: Estudos Sociais - é isso que queremos dar, ou
é outra coisa?

No IIEncontro/l989, no documento final encaminhado aos


deputados e senadores, com propostas para a nova Lei de Diretrizes e
Bases, lé-se o seguinte:

Os curículos das escolas devem ser elaborados com As comu-


nidades, organizagdes e liderangas indígenas que poderdo contar
com ajuda de entidades públicas ou nño-governamentais, a critério
dos índios.

Como vimos anteriormente, já no III Encontro 1L990, a questáo


do currículo foi ponto de pauta. A complexidade desse tema surgiu nas
discussóes em suas diversas dimensóes: o calendário, os conteúdos, os
métodos, o material didático, a avaliagáo. Nas palavras de Alírio
Moraes, professor Tikuna:

Na nossa comunidade, no currículo que a gente faz, a gente coloca


aqueles conhecimentos que a gente precisa, Na matemática, por
exemplo, a gente coloca aquilo que é importante para nós, porque
tem coisa que nño é importante, ndo serve. Os livros da SEDUC, a
gente seleciona aquilo que é importante. Muita coisa ndo é impor-
tante, os alunos vño aprender d toa.

Quanto á forma de avaliagáo, Darcy Duarte, professor Marubo


nos diz:

Uma coisa que nño estou de acordo é com a reprovagño que o


Estado impóe aos alunos, Eu nño estou de acordo em reprovar,
depois de oito meses, o meu aluno. Porque teffi gente que aprende
mais rópido e outros mais devagar. Porque um professor indígena
nño pode reprovar Assim, usando as formas de avaliagdo da
166 Rosa Helena Dias da Silva

Secretaria. Isso nño pode existir nas escolas indfgenas, Mas o


rnunicípio nño aceitou minhaforma de avaliagño. E dificil. E tam-
bém o que tem nos livros leva d reprovagño porque o aluno ndo sabe
o que é magñ, que vem do Sño Paulo, nño dá. Eu tentei fugir do cal-
endário mas a Secretaria nño aceitou,

Também os professores do Rio Negro e Alto Solimóes elabo-


raram sua conceptáo sobre avaliagáo, na qual demonstram dar um
peso grande para a vivéncia do aprendizado - o conhecimento posto
em'prática no cotidiano. Fica explicitado também o caráter náo indi-
vidualizante do processo avaliativo. Ao mesmo tempo, criticam formas
de avaliagáo que considerem apenas aspectos quantitativos. Ao respon-
derem a questáo "O que devemos fazer paru saber se os alunos estáo
aprendendo?" (como parte do trabalho com roteiro de pesquisa para
elaboragáo de currículos) afirmam:

Observar o aluno tecendo, ouvir o aluno falando a língua ensina-


da. Permitir que eles contam a história contada pelo professor. O
professor deve mostrar para o aluno que a prática é mais impor-
tante que a nota. (Professores do Alto Solimóes/AM)
Devemos avaliar principalmente na prática, pelo aperfeigoatnento
do seu trabalho específico, pelo seu acompanhamento nas festas da
comunidade, nos trabalhos coletivos, manifestagóes públicas e nño
na teoria. (Professores do Rio Negro/AM).

Conforme já registrado, como preparagáo para o IV


Encontro/I991, estabeleceu-se uma tarefa com o objetivo de ampliar a
visáo de currículo e ajudar a encaminhar a discussáo com vistas ) elab-
oragáo dos currículos próprios. Os professores trabalharam, junto ás
suas comunidades, roteiro que ajudava a pensar e discutir essa prob-
lemática.
E evidente que a concepgáo que está se formando engloba todas
as atividades relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem, envol-
vendo professores, alunos e toda a comunidade. E uma construgáo
coletiva e tem como princípios básicos
A autonomia co¡no valor e a articulagáo de possibilidades16T

a énfase do processo educativo está na aprendizagem;


a aprendizagem é um processo de construgáo coletiva de con-
hecimentos;
o currículo náo é um programa estabelecido a priori, mas con-
struído durante todo o processo;
as atividades devem respeitar e levar em conta os conhecimen-
tos que sáo trazidos pelos alunos á escola e os aspectos cogni-
tivos de cada comunidade;
o currículo deve ser constituído pelos conhecimentos tradi-
cionais das comunidades indígenas e conhecimentos relevantes
de outras culturas / deve atender aos interesses concretos e ime-
diatos da comunidade;
os conhecimentos devem ser trabalhados de forma global e
integrada;
todos os elementos da realidade sócio-cultural devem ser usados
como recursos educativos;
na selegáo e utilizagáo de materiais didáticos-pedagógicos,
devem ser priorizados elementos da realidade locall95.

2 - As comunidades indlgenas devem juntatnente com os profes-


sores e organizagóes, indicar a diregño e supemisño das escolas,

Os professores indlgenas tém tido muita clareza quanto a


importáncia de ter o poder na escola. Esse poder é entendido enquan-
to servigo, algo que se coloca a favor dos próprios interesses da comu-
nidade. Aprenderam na vivéncia de sua prática diária que é funda-
mental poderem decidir e acompanhar esse processo que está intima-
mente ligado ao património cultural dos povos indígenas. Precisam
fazer valer esse direito de propor e interferir positivamente em sua real-
idade, aqui, especificamente, a realidade da educagáo escolar, pois sen-
tem o dever dessa responsabiüdade. E uma atitude de compromisso
com seu povo, que se traduz no seu trabalho pedagógico, enquanto
professores.
No IV Encontro/I99l, ao debaterem as respostas ao roteiro
sobre elaboragáo de currículos, no item que.dizia "Quem deve dirigir e
coordenar a escola indígena?", todos enfatizaram que as escolas devem
ser assumidas e dirigidas pelos próprios índios.
168 Rosa Helena Dias da Silva

3 - As escolas indígenas deverño valorimr as culturas,llnguas e


tradigóes de seus povos.

Esse é um ponto chave na questáo da educagáo escolar indígena


e tem surgido em todos os Encontros. Tem sido reivindicagáo presente
em todos os documentos produzidos pelo movimento até aqui.
Destacamos o do I Encontro/l988:

Chegamos a conclusño de que a escola deve ser voltada d cultura de


cada povo, ligada ds tradigóes, e o ensino deve ser bilíngüe (na lln-
gua indígena e na língua nacional).

No II Encontro/1989 se repete:

A I
escola que queremos deve ser voltada cultura de cada povo,
respeitando os costumes, tradigóa,llnguas e crenga*

4 - É garantida aos professores, comunidades e organimgúes indl-


genas a participagño paritária em todas as instáncias - consulti-
vas e deliberativas - de órgños públicos governamentais respon-
sáveis pela educagño escolar indígena.

Fica explicitado que os professores indígenas querem que sejam


os próprios lndios os responsáveis pela gestáo de seus Processos esco-
lares. Gersem dos Santos Luciano, professor Baniwa, resume essa pre-
ocupagáo:

Nós queremos ser ouvidos e falar sem intermediários.

Estáo cientes de que precisam estar presentes, com voz e voto, em


todos os lugares onde temas que lhes dizem respeito seráo tratados,
pois as decisóes tomadas, afetaráo diretamente as comunidades. E bom
que se dé a devida atengáo ao termo paritária. O que pode passar des-
percebido, como um detalhe, é algo que poderá garantir que os inter-
esses dos povos indígenas sejam levados em conta. Mais do que uma
estratégia de fundo político, a paridade é uma questáo de princípio. E
colocar "em pé de igualdade" as diferengas; é contemplar o diálogo
equilibrado, prevendo, desde o início, que "a balanga náo esteja pen-
A autonomia como valor e a articulagúo de possibilidades 169

dendo para um dos lados"- quase sempre o contrário aos interesses


indígenas. E dar qualidade ás discussóes, posto que, a participagáo
indígena náo pode ser simples figuragáo, mas sim aquela que traz pro-
fundo conhecimento de causa.
No documento do V Encontro 11992 onde se posicionam sobre a
criagáo do Comité Assessor do MEC, os professores reivindicam que

a metade dos membros deste Comité deve ser composta de profes-


sores indígenas de todas regióes do país. A indicagño dos professores
indígenas deve ser feita pelos próprios professores, organizagóes e
comunidades, e serño nomeados os com maior experiéncia no
movimento de educagño escolar.

Também no mesmo Encontro, ao produzirem um documento a


respeito da nova legislagáo indigenista, no que tange á educagáo esco-
lar indígena, entre outras coisas, afirmam que

Deve ser garantida aos professores, comunidades e organizagóes


indígenas a participafio paritória - 50o/o de seus membros consti-
tuídos por representantes indígenas, em todas instáncias respon-
sáveis pela educagdo escolar indígena.

5 - E garantida aos professores indígenas umn formagño específi-


ca" atividades de recichgem e capacitagño periódica para o seu
aprímorament o profi s sio naL

A questáo da formagáo dos professores indígenas é um desafio


crucial e que demanda urgéncia no sentido de pensar e concretizar
propostas. Algumas iniciativas já foram efetivadas no intuito de capac-
itar melhor os professores, particularmente no aspecto da formagáo
específica, como o exemplo contido no relato dos professores Ticuna:

Estamos caminhando devagar para alcangar esta escola que esta-


mos querendo. Estamos nos capacitando, Já fizemos trés cursos
bilíngüe e estamos querendo fazer a gramática com a assessoria que
precisamos.
l7O Rosa Helena Dias da Silva

Os professores sentem a responsabilidade de sua tarefa enquan-


to um dos principais envólvidos no processo de educagáo formal de
suas comunidades. Essa necessidade e busca por uma formagáo ade-
quada, que responda aos desafios, aparece desde o I Encontro. Nos pas-
sos indicados como necessários para chegar á escola que desejam,
novamente os professores Ticuna dáo destaque á questáo da formagáo:

A capacitagño dos professores bilíngüe - setn essa capacitagño nño


podemos fazer nada para nossa comunidade, para os alunos.
Precisamos de uma orientagño mais avangada para alcangar aqui-
lo que queremo*

Durante o II Encontro/l989, a temática surgiu novamente e ao


final, como um dos pontos importantes consta "a formagño dos profes-
sores em nível da regiao". No documento encaminhado ao Congresso
Nacional aparece

Todos os professores indígenas terño direito ao anrso billngüe. Afor-


magño bilíngüe deve ser garantida com cursos de capacitagío.

No III Encontro/I99O a questáo da formagáo foi ponto de pauta


e ocupou as discussóes em plenário durante uma tarde.
No documento produzido no V EncontrolIgg2, incluem esta
questáo:

Sdo atribuigóes dos Distritos de educagño escolar indlgena (...)


elaborar e manter programas de formagño e reciclagem para pro-
fessores destinados d educagño escolar indlgena, garantindo aos
índios o acesso preferencial a estes Programas.

O próprio texto da Portaria Interministerial 559 de 1610419l,


assinada pelos Ministros da |ustiga e da Educagáo, que incorpora' de
certa forma, as reflexóes, conclusóes e sugestóes formuladas nestes últi-
mos anos pelo movimento indígena e indigenista, tem artigo que trata
especificamente deste tema. Poucas sáo porém as iniciativas reais e
concretas que respondam a essa urgente e indispensável demandal96
A autonomia como valor e a articulaQóo de possibilidades l7l

6 - E garantida a isonomia salarial entre professores índios e


nño-índios.

A preocupagáo básica que perpassa esse ponto é a do reconhec-


imento da figura do professor indlgena, enquanto profissional da edu-
cagáo. Durante muito tempo eles foram considerados monitores,
termo que abriga preconceito frente a possibilidade dos próprios pro-
fessores indígenas assumirem por inteiro sua tarefa, reservando-lhes
um lugar secundário, desrespeitando sua capacidadeLgT.
A realidade tem mostrado ainda a necessidade de remuneragáo
dos servigos. Reflete uma nova situagáo: um novo papel social - o dos
profissionais da educagáo escolar. Nessa nova posigáo eles dedicam seu
tempo ás atividades ligadas á escola, ficando impossibilitados de levar
adiante trabalhos que garantiam o seu sustento. Os professores Macuxi
colocam esta problemática durante as discussóes no I Encontro:

Os professores nño tem tempo para a roga, pesca e caga. Algumas


comunidades aiudam os professores. Mas muitos nño tem isso.
Entño precinmos de um auxílio financeiro.

Leite (1994) reflete sobre essa nova problemática, que coloca aos
professores indígenas uma espégie de "tripla jornada de trabalho", ao
lembrar que "o cotidiano do professor Ticuna nas aldeias é um tanto
exigente, pois as tarefas escolares que ele assume significam comu-
mente um acréscimo ás atividades de sustento de sua família, na roga,
na pesca, no comércio. Para amenizar a dificuldade de sobrevivéncia do
professor, que enfrenta dois ou trés turnos de trabalho - manhA/esco-
la, tarde/roga, noite/pesca - em algumas comunidades as famflias que
tinham filhos nas escolas procuravam ajudar no suprimento alimentar
dos professores, enviando-lhes algum peixe ou um pouco de farinha,
como tive oportunidade de observar. Thmbém em fungáo disto coloca-
va-se a luta dos professores por alguma remuneragáo da parte dos
órgáos governamentais, sendo que vários deles tinham sido contrata-
dos pela FUNAI ou pelas prefeituras 1o.u¡r"198.
No documento do II Encontro ll999, a questáo da remuneragáo
aparece em conjunto com a questáo geral do financiamento da edu-
cagáo, demonstrando a maturidade e o compromisso dos professores
com a totalidade do processo.
172 Rosa Helena Dias da Silva

E obrigagño do Estado dar dinheiro para criagño e manutengdo das


nossas escolos, para contratar e pagar os professores, os supefvi-
sores, os coordenadores e outros funcionórios ligados d escola. Alem
disso o Estado deve dar dinheiro para pesquisas de apoio d edu-
cagño indígena.

Nos trabalhos realizados durante o IV Encontrcllggl (dentro do


roteiro para elaboragáo de currículos) os professores do Rio Negro, ao
responderem a questáo sobre o papel do Estado frente ás escolas indí-
genas, formularam, de maneira direta e precisa (demonstrando que
situam a luta por seus direitos - enquanto segmentos sociais diferenci-
ados - dentro da questáo mais ampla da cidadania) a seguinte resPos-
ta:

Dando o apoio através de convénio e assisténcia e atendendo as


necessidades da escoln indígena em termos de alguns materiais
diüticos Por outro lado, estes Órgdos governamentais tem todo o
direito de respeitar, pagando o salório dos professores indígenas.
Porque estes Órgños estao a benefício de todas as populagóes que
habitam num País, no Estado e no Município, portanto o dinheiro
do nosso País é nosso, aliós, é do povo brasileirol9'

7 - E garantida a continuidade escolnr em todos os nfveis aos


alunos das escolas indígenas.

O que sereivindica aqui é algo fundamental: o reconhecimento


oficial e equivaléncia das escolas indígenas. Ao longo dos ultimos anos
eles tém lutado por esse reconhecimento e equivaléncia.
Outra questáo de fundo é a opgáo pela continuidade dos estudos
fora das aldeias. E um tema complexo que se localiza no ponto de ten-
sáo das duas sociedades em contato: a indlgena e a envolvente. Por um
lado, já é consenso a necessidade dos Povos indlgenas terem seus
próprios profissionais: advogados, médicos, professores'.'

O índio se forma na advocacia é para defender o índio e ndo o


branco. Para ahangar a autodeterminagño nós temos que assumir
os cargos também na escoln. Se o aluno chega a se formar em
A autonomia como valor e a articulaQdo de possibilidades L73

economia, tem que ajudar a economia de seu povo. (Grupo de pro-


fessores do Rio Negro).

Por outro, também é opiniáo geral, construída na experiéncia de


situagóes vividas e avaliadas, que a saída dos jovens para estudar fora é
uma situagáo que impóe riscos e preocupagóes2OO. Selecionamos algu-
mas falas que trazem esse duplo aspecto da questáo.

Se eu vou para urlta escola eu tenho que pensar em voltar para


minha terra e trabalhar na comunidade. Saí para estudar e voltei
para a comunidade e conünuo com o meu povo, Acho que o estu-
do deve ser aproveitado para ajudar as tadigóes. Através do estu-
do eu posso aperfeigoar a cultura. (professor Dessano)
Na minha comunidade deVila Betánia saiu um jovem para a esco-
la agrícola de Manaus e ficou fora 3 ou 4 anos. Quando voltou
tinha perdido a língua e nño quer mais aprender. O índio pode
querer sair para aprender fora, mas nño pode perder sua identi-
dade, sua cultura. (professor Tikuna)
O aluno pode sair, mas deve voltar para a comunidade. A escola
precisa ser reconhecida, ser um conhecimento que ajude a cottu-
nidade. Ensino dentro das tradigóes com objetivo de voltar para as
malocas e ajudar o povo, voltar para apoiar os costumes. (professor
Wapixana)
A escola profissionalizante nño vai ensinar fazer arco e flecha, mais
outras coisas. (Alírio, professor Tikuna)
Estudamos e depois voltamos para a comunidade e nño nos adap-
tamos e acabamos voltando para o branco. É, o que tem acontecido
conosco. Muitos tém voltado para a comunidade e como nño con-
seguiram ganhar dinheiro, foram embora. (professor Dessano)

8 - As escolas indlgenas deverño integrar a saúde em seus cur-


rículos, promovendo a pesquisa da medicina indígena e o uso
correto dos medicamentos alopóticos.

Os professores do Rio Negro, durante o I Encontro, ao debater e


responder a questáo "Como deve ser a escola que queremos?" já levan-
tavam essa preocupagáo com as duas faces da realidade atual da saúde
indígena:
174 Rosa Helena Dias da Silva

Saúde: é muito importante para nós. Temos as rezas, as plantas


medicinais. Isso nño pode ser perdido e a escola tem que valorimr.
Mas também precisamos saber o modo do branco tratar. Tem cer-
tas doengas no Brasil ou na regiño que neln injegño ou comprimi-
do dá jeito de curar. Entño as rezas ou as curas dos Pajés, as plon-
tas medicinais dao um jeito de curar e devem ser preservadas nas
escolas.

Ao estudar e analisar a questáo dos currículos, quando se fala da


disciplina Ciéncia, sempre aparece a preocupagáo com o estudo da
medicina indígena. Ciéncia é voltada para recuperar a medicina indíge-
na; Ciéncias a gente já pensa nA medicina naüva.
A saúde é vista náo como assunto isolado mas como parte inte-
grante do cotidiano. Em dois Encontros houve palestra e debate sobre
temas que afetam a integridade da vida dos povos indlgenas: no III,
enfocou-se a problemática da contaminagáo das águas dos rios pelo
mercúrio, usado nas atividades de garimpo. No IV houve exposigáo
sobre o cólera, ameaga grave e constante em toda a regiáo. Nas duas
ocasióes, foram distribuldas cartilhas para serem estudadas e divul-
gadas nas escolas, tendo assim os professores a responsabilidade de
repassar as informagóes recebidas.

9 - O Estado deverá equipa¡ as escolas com labo¡atórios onde os


alunos possam ser treinados para desempenhar papel esclarece-
dor junto ñs comunidades no sentido de prevenir e cuidar da
saúde.

Trés aspectos estáo implícitos neste ponto: um primeiro diz


respeito a como os professores estáo vendo o papel e responsabiüdade
do Estado, mais especificamente, quanto ao financiamento das escolas.
O outro aponta paruaclarezaquanto á necessidade de novos conheci-
mentos, necessários á situagáo atual dos povos. Aparece ainda o pres-
suposto de que reivindicam uma escola de boa qualidade. Um rlltimo
está ligado ao compromisso dos alunos frente ás suas comunidades,
enquanto repassadores dos novos conhecimentos.
A autonomia como valor e a articubQAo de possibilidades 175

10 - As escolas indígenas serAo criativas, promovendo fortaleci-


mento das artes coffio formas de expressño de seus povos,

Destacamos algumas falas do Relatório do IV Encontro onde


esta questáo é explicitada:

Devemos trabalhar na aula cerámica, artesanato. Vem alguém da


comunidade que sabe mexer com isso e ensina. Aí o professor
aprende junto com os alunos.
O artesanato que a gente faz ndo é dentro da eScola, mas um tra-
balho extra-curricular que é feito fora da escola e é educafio tam-
bém. É um intercámbio: a escola dá conhecimentos para a cofttu-
nidade e a comunidade para a escola.
Estes desenhos sdo desenhos de Animá, de balaio. Desenharam no
papel como pesquisa, depois vamos fazer na prática.
Achamos que devemos conserynr, valorizar, aperfeigoar e defender
nosso idioma, tradigóes, costumes, mitos, dangas e cantos.
As criangas herdam dos pais as tradigóes, usos e costumes. Faz
parte do aproveitamento da tianga: a menina - fia¡ fazer caxiri,
farinha, aluá..,;o menino - flecha, cagar, pescar, brocar a roga,
queima e plantio, artesanato, A escola estó voltada pa.ra ensinar os
costurnes e resgatar o que estava se perdendo.

A criatividade notável e a riqueza que se expressa nos desenhos


é uma característica de muitos povos indígenas, sendo dessa forma o
desenho um recurso pedagógico muito usado e incentivado. Conforme
Meliá (1979), "algumas sociedades indígenas seriam náo somente
espertas nas suas expressóes gráficas tradicionais, mas assimilariam
rapidamente novas técnicas de expressáo artística, como a técnica de
gravura ou uso do lápis-cera"201.

11 - É, garantido o uso das línguas indígenas e dos processos


próprios de aprendizagem nas escolas indígenas.

E, consenso no movimento de professores indlgenas do


Amazonas, Roraima e Acre a importáncia fundamental das línguas
indígenas. A língua nño é apenas um atnontoado de palavras, ela é o meio
pelo qual expressamos nossos pensamentos, nossos conceitos, nossa visño
176 Rosa Helena Dias da Silva

de mundo. Estáo também cientes da complexidade que envolve esse


tema posto que há uma diversidade imensa de situagóes. Como já cita-
mos, vemos regióes como o Rio Negro onde sáo faladas muitas llnguas
distintas; em contrapartida, povos de regióes como Teft onde náo se
fala mais as línguas originárias, passando desta forma o portugués a ser
a atual llngua indígena falada. Mais uma vez veremos o que dizem a
respeito os próprios professores.

A língua Macuxi é nossa identificagño.(Grupo de Roraima)


' Se o grupo nño fala mais a língua, vatnos procurar um velho ou
uma velha que ainda saiba falar a língua. (Grupo do Médio
Solimdes)
Nño adianta o professor que nño é billngüe, ndo lé a llngua, nño
sabe as tradigdes. (Grupo do Alto Solimóes)

Quanto á questáo dos processos próprios de aprendizagem,


vemos também um esforgo muito grande por parte dos professores
para trabalharem segundo seus métodos, de acordo com seu povo.

Tem professor que está preocupado só com o dinheiro. O professor


vem só escrever, escrever, escrever e os alunos só copiar. E aí faz a
prova só das coisas escritas. Isso eu acho que nño serve para o aluno
indígena. O profasor deve estar voltado para a prótica. Se ndo sabe
a prática, chama quem sabe. Por ex: na aula de ciéncias ndo é só o
professor que lé nos livros, deve chamar alguém da comunidade
para estudar as plantas medicinais na prática. O professor deve
pedir ajuda da comunidade nas aulns (Darcy Duarte, professor
Marubo).
Que metodologia estamos usando? Seró que ficamos só sentados,
igual ao branco? Ou fica brincondo? (Fausto Mandulño, professor
Macuxi)
Se dá uma pequena aula e depois vamos para a ffiata que fica longe
dois dias, para buscar o material para fazer peneira e tipiü. Entño,
fazendo esse trabalho os raPazes contam histórias em Macuxi.
(professor Macuxi)
Estamos fazendo pesquisa sobre nossa cultura entre as comu-
nidades onde tem riquíssimas fontes históricas. (Sebastido Duarte,
professor Tukano)
A autonomia como valor e e articulagao de possibilidades 177

Mayoruna aprende a viver dentro da vida coüdiana. A maneira de


viver se aprende na própria vida.(professor Mayoruna)

12 - As escolas indígenas deverño atuar junto ds comunidades nta


dtf"to, conservagño, preservafio e protefio de seus tenitórios

Náo seria redundante afirmar que para os povos indígenas a


terra é questáo primordial. E um património, o "cháo cultural" onde a
possibilidade e esperanga de vida se perpetuam. A luta pela demar-
cagáo e garantia de suas terras tem um caráter de "pano de fundo" para
todas as outras conquistas. Os professores tém consciéncia do papel
político da educagáo:

Seaprende a viver desde a infhncia com os pais e a comunidade. Se


aprende a conhecer e respeitar A natureza, preservar os lagos, o
meio ambiente. Quando chega na escola jó yem com essa conscién-
cia para defender os seus direitos. (Grupo Tikuna)
A crianga vai conhecendo o sofrimento do pai, andando na mata"
na roga. Assim tém condigóes de se tornar grandes cagadores,
pescadores, agricultores, etc. Tem uma coisa que temos que pensar,
temos que ensinar a segurar nossas áreas. (professor Marubo)
Morávamos na beira do Solimóes e nós plantávamos na praia. O
principal ponto era nño deixar faltar alimentagño. Nas praias se
phntova junto e tinha muita brincaileira, alegria. O Solimóes foi o
primeiro lugar que o branco entrou. Hoje, quando quereffios plan-
tar na praia logo aparece alguém prá falar que é dono da praia e
nós nño podemos plantar. (Grupo Tikuna)
Se aprende a viver defendendo a terra que é fundamental para a
vida. (professor Kichwa)
Estamos muito preocupados com a estrada que estAo querendo
abrir na nossa área. (Grupo Sateré-Maué)
Antes a gente vivia de caga e pesca, mas agora a gente nño tem mais
caga, estamos ilhados, cercados. As vezes nenhum rio passa dentro
da área. (professor Macuxi)
Se nño conscientizamos o aluno de que ele é filho da terra, ele
nunca vai saber defender sua terra. (Grupo R. Negro)
178 Rosa Helena Dias da Silva

Temos que entrar na política para chegar a auto-determinagño. Se


tem um prefeito indígena, um vereador indlgena, temos mais forga
para defender nossa terra. (Grupo do Rio Negro)
Nño aceitamos pecuária porque derruba grandes pedagos de mata,
igual fazenda. Grandes projetos nao aceitamos. Achamos que é esse
caminho que o governo quer fazer integragño do povo Tikuna. Se
aceitamos os grandes projetos depois ndo podemos fazer nada
porque sotnos dominados por eles. Defesa de nossos direitos, orga-
nizagño de professores, é por al, Temos que ir neste caminho. (pro-
fessor Ticuna)

13 - Nas escolas dos nño-índios será cofietameflte tratada e veic-


ulada a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim
de acabar com os preconceitos e o racismo.

Os professores demonstram com sabedoria sua percepgáo de


que para acabar com a visáo preconceituosa e as posturas e atitudes
racistas é preciso conhecer o "outro'1 E necessário construir uma
relagáo igualitária, de respeito entre as diferentes culturas.
Gostaria de destacar que, nesta busca de superagáo dos precon-
ceitos e estabelecimento de novas relagóes, faz-se necessário e urgente
a proposigáo de iniciativas concretas, que subsidiem e motivem tal
processo. Neste sentido, destacamos o exemplo signiñcativo do lanqa-
mento do livro A temótica indígena na Escola. Logo na introdugáo
podemos ler: "o tema de fundo deste volume (...) é o convíüo na üfer-
enga: a afirmagáo da possibiüdade e a análise das condigóes necessárias
para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da popu-
lagáo brasileira, visto como processo marcado pelo conhecimento
mútuo pela aceitagáo das diferengas, pelo diálogo. Nestes tempos de
violéncia generalizada no país, a reflexáo sobre os povos indlgenas e
sobre as ügóes que sua história e suas concepgóes de mundo e de vida
social podem nos trazer, aliada ao exame dos modos de relacionamen-
to que a sociedade e o Estado nacionais oferecem ás sociedades indíge-
nas constituem um campo fértil para pensarmos o pals e o futuro que
queremos"2o2 (grifos meus).
Quanto á história que é oficialmente ensinada nas nossas esco-
las, destacamos o seguinte questionamento feito por um professor
Macuxi:
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades L79

A gente vé no livro do branco - Pedro Alvares Cabral descobriu o


Brasil - e aí refletimos: nós já estávamos aqui!

14 - Todos os municípios e Estados onde houver escolas e profes-


sores indígenas devem dar npoio e material aos encontros e
reunióes ilos professores indfgenas, quando forem realizados em
áreas indlgenas e propiciar toda a infra-estrutura necessária,
inclusive cedendo locais, quando forem realimdos nas cidades.

Novamente um princípio reivindicatório que toca na questáo do


financiamento da educagáo. Assim como no ponto 6 eg,aparece a con-
sciéncia dos professores quanto ao papel e deveres do poder público,
seja em qual instáncia for.

15 - O sistema de ensino das escolas indfgenas deveró ser o feder-


al.

Desde o I Encontro/l988, em seu documento final, os profes-


sores se manifestaram quanto á importáncia deste tópico: Que a escola
indígena seja regulamentada em nível da lei federaL A experiéncia tem
mostrado, e os povos indígenas tém sabiamente aprendido que quanto
mais perto (poder municipal, poder estadual) mais os interesses anti-
indígenas sáo fortes e tém, através dos grupos dominantes locais, mais
chances de prevalecer,
Como nos lembra Joáo Pacheco de Oliveira, "(...) as populagóes
rurais que convivem com os índios frequentemente estáo dominadas
política e ideologicamente por uma elite municipal, a qual tem fortes
interesses económicos que colidem com os índios, pretendendo apos-
sar-se de suas terras e recursos ambientais (madeira, minério, peixes,
ca9a, etc...), alimentando assim uma postura racista. Estereótipos como
o de 'preguigosos','ladróes' e 'traigoeiros', correspondem a acusagóes
náo comprovadas, mas que, de tanto repetidas, parecem juízos natu-
rais. E, pior ainda, sáo usados como evidéncias que permitem justificar
as medidas contra os índios e até mesmo agóes genocidasD2o3.
Em diversos depoimentos, nos sucessivos Encontros, professores
tém denunciado situagóes onde a prefeitura ou os estados prejudicam
o processo de avango das escolas indlgenas:
180 Ros¿ Helena Dias da Silva

Há muita pressño do Governo Estadual em cima de nossos profes-


sores. O nño reconhecimento das escolas indlgenas é uma das difi-
culdades mais graves. Os trabalhos estño clandestinos. Estamos
lutando para que as escolas sejam reconhecidas a nlvel da lei feder-
al. (Grupo de Roraima)
A prefeitura fala que nño estava adiantando, que nós estávamos
.atrasados, Mas nño é atraso nño. Estamos desenvolvendo mais
outro livro agora, a ciéncia. Na própria língua também. Dos ani-
mais, dos peixes, o que já desapareceu. Como é que os Ticuna viam
os animais antigamente. Queremos elaborar tamhém de história,
cotn a própria história, costumes. Acho que todo povo fazendo
assim vamos conseguir que o Governo respeite, deixar dentro da lei
federal para ser reconhecida a nossa escola. (Grupo Ticuna)
Temos influéncia político-partidórialá, que é uma das dificuldades
que abrange toda Amazónia. De todo canto entra político fazendo
a cabega, tentando desmanchar o nosso trabalho. (Grupo do Rio
Negro)
A prefeitura lá ndo queria reconhecer nossa escola, o prefeito ndo
queria contratar nenhum professor bilíngüe. Mas conseguimos
brigando, uma vitória, conseguindo algumas contratagóes. A
FUNAI, se quisesse ajudaria nós. El.a só contrata se o professor tra-
balha do jeito que ela que quiser, senño, nÁo contrata. (Pedro
Mendes, professor Ticuna)
Há preconceito na Secretaria Municipal. Se a gente quer formar
uma cartilha e nfuo tumos papéis, eles nño vdo ceder papel para nós.
Ndo é só na Secretaria que tem preconceito nño, tém outros órgdos
municipais. (Grupo do Médio Solimóes)

Nas propostas feitas á nova legislagáo indigenista, firmadas no


IV Encontro, e reafirmadas no V também é contemplada essa Preocu-
pagáo:

A educagdo escolar indígena deve ser compeftncia do Sistema de


Ensino da (Jniño, através de uma coordenagño nacional' Deverño
ser criados Distritos de Educagdo Escolar Indfgena como instáncias
administrativas e técnicas no Sistema de Ensino da Uniño cujas
áreas de'atuagdo sejam definidas,levando-se etn conta as especifi-
cidades étnicas dos povos indígenas. Os professores indígenas con-
A autonomia como valor e a articulaEóo de possibilidades l8l

tratados por Estados e Municípios, coffi a promulgagño da nova lei


indigenista devem ser absorvidos peln Uniño Federal.

Conforme dito anteriormente, durante o MI Encontroll994, ao


avaliarem a "Declaragáo de Princípios'l os professores decidiram por
reafirmá-la, alterando seus dois últimos pontos, que estáo agora for-
mulados da seguinte forma:

14 - Os municípios, os Estados e a Uniño devem garantit a edu-


cafio escolar especlfica ds comunidades indlgenas, reconhecendo
oficialmente suas escolas indlgenas de acordo com a Constituigao
Federal,
15 - Garantir uma Coordenagño Nacional de educagño escolat
indlgena" interinstitucional, com a participagño paritória de
representantes dos professores indígenas.

Atualmente, há uma polémica entre federalizagáo, estadualiza-


gáo ou municipalizagáo da educagáo escolar indígena.
Considerando que esta questáo encontra-se "em aberto", depen-
dendo inclusive do que vai ser definido na nova lei do Estatuto das
Sociedades Indígenas, avalio que, mais que tomar uma posigáo, é hora
de problema tizá-Ia, olhando atentamente todos os aspectos envolvidos
e os argumentos das diferentes tendéncias, ampliando assim o debate.
Nesse sentido, passo entáo a elencar algumas das diferentes pos-
sibilidades, resgatando e analisando o que está escrito nas principais
leis e documentos de referéncia á questáo indígena.
O que diz a Constituigáo Federal
Conforme a Constituigáo de 1988, cabe á Uniáo a incumbéncia
das obrigagóes e responsabilidades para com os índios (art.22,XIV). E
dever da Uniáo proteger todos os bens indígenas (art.231,VIII). Cabe
lembrar que estes sáo de natureza material e imaterial. Assim, dentro
do contexto legal, poderíamos afirmar sobre a necessária federalizagáo
da educagáo escolar indígena. Porém, náo quer dizer que Estados e
Municlpios ficam isentos desta responsabilidade. Ao contrário, a
própria Constituigáo legisla sobre a colaboragáo e complemen-
tariedade dos trés sistemas (da Uniao, dos Estados e dos Municípios).
O que fica claro é que a coordenagáo do processo seria a Uniáo.
O que diz a nova LDB (Lei 9.394196)
182 Rosa Helena Dias da Silva

De acordo com a LDB em vigo¡ a coordenagáo e responsabili-


dade maior fica com a Uniáo, segundo arts. 78 e 79 jáL transcritos no
capltulo 2.
O que diz o texto em tramitagáo do Estatuto das Sociedades
Indlgenas
Pelo texto em votagáo no Congresso Nacional (substitutivo
Luciano Pizatto), fica estabelecida a "trlplice competéncia", ou seja,
Uniáo, Estados e Municípios podem atuar na educagáo escolar indíge-
na: conforme art. 136 ("O sistema de ensino da Uniáo, dos Estados e
dos Municlpios, com a colaboragáo do órgáo indigenista federal e das
agéncias federais de fomento á cultura, desenvolverá programas...") e
art. 137 ("Os sistemas de ensino da Uniáo, dos Estados e dos
Municlpios articular-se-áo para assegurar que as escolas situadas em
áreas indígenas ou em suas proximidades, vinculadas a qualquer dos
sistemas, observem as características").
Porém, o mesmo texto prevé instáncias federais de coordenagáo
do processo:
l) a criagáo de uma Comissáo Nacional de Educagáo Escolar
Indígena, com a incumbéncia de propor diretrizes; criar mecanismos
de apoio; propor e incentivar criagáo de NEIs - Núcleos de Educagáo
Indígena; analisar material didático; propor, acompanhar e avaliar pro-
gramas, projetos e agóes;
2) e a proposta dos Distritos de Educagáo Escolar Indígena,
enquanto instáncias administrativas e técnicas do Sistema de Ensino da
Uniáo, com a competéncia de definir e executar as diretrizes e políticas
locais e nacionais; coordenar, acompanhar e avaliar as a9óes pedagógi-
cas; elaborar e manter programas de formagáo para professores.
Oque dizodecreto26
Segundo o decreto 26, de 04102191, fica atribuída ao Ministério
da Educagáo a competéncia para coordenar as agóes referentes á edu-
cagáo Indlgena, em todos os nlveis e modalidades de ensino, ouvida a
FUNAI (art. l). lá o art. 2 diz que as agóes previstas no art. I seráo
desenvolvidas pelas Secretarias de Educagáo dos Estados e Municlpios,
em consonáncia com as Secretarias Nacionais de Educagáo do
Ministério da Educagáo.
Fica assim, mais uma vez, explicitado o caráter dafederclizagáo
(quanto á coordenagáo de todo processo) e, ao mesmo tempo, garanti-
do o princlpio constitucional da colaboragáo dos trés sistemas.
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 183

O que diz a Portaria 559


A Portaria Interministerial 559 (16104191.) cria no MEC a
Coordenagáo Nacional de Educagáo Escolar Indígena.
As Portarias 60192 e 490193 instituíram no MEC o Comité de
Educagáo Escolar Indígena, de caráter assessor/consultivo, com a final-
idade de subsidiar as agóes e proporcionar apoio técnico-científico is
decisóes que envolvem a adogáo de normas e procedimentos rela-
cionados com o Programa de educagáo escolar indígena.
O que dizem as Diretrizes do MEC
No tópico 1- Introdugáo, das Diretrizes, podemos ler: a edu-
cagáo escolar indígena é responsabilidade do Estado. Prevé também a
descentralizagáo da execugáo dos projetos, através dos Estados e
municípios, com supervisáo e apoio do MEC, da FUNAI e das
Universidades (...).
O que dizem os índios (em especial, conforme documentos dos
Encontros de Professores Indígenas)
No documento do I Encontro dos Professores Indígenas do
Amazonas e Roraima (Manaus, 1988): podemos ler: "(...) 7.Que a
escola indlgena seja regulamentada a nível federal".
|á o documento do V Encontro dos Professores Indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre (Boa Vista, 1992) diz que: "(...) 2.A edu-
cagáo escolar indígena deve ser de competéncia do Sistema de Ensino
da Uniáo, através de uma Coordenagáo Nacional. 3.Deveráo ser cria-
dos Distritos de Educagáo Escolar Indígena como instáncias adminis-
trativas e técnicas do Sistema de ensino da Uniáo (...)".
Como acabamos de verificar acima, na Declaragáo de
Princípios há dois pontos sobre esta questáo.

3.6. Eixos articulatórios: o político, o cultural e o pedagógico

Destacam-se como forgas articulatórias do Movimento a uniáo


e a troca de experiéncia. Seus momentos principais, os Encontros, tém
servido para realimentar o ánimo dos professores indígenas, fortale-
cendo as esperangas comuns. Estes tém sido encarados como oportu-
nidades de grande significado, vividos como uma espécie de solenidade
ou rito, onde se celebra ideais comuns, como um despertar de possi-
bilidades, visualizadas conjuntamente, através da crítica á realidade e o
exemplo concreto das experiéncias em curso.
184 Rosa Helena Dias da Silva

Entendemos que os rituais "educam sobretudo pela agáo comu-


nitária, que fazem viver, e pela comunháo de gestos, de que todos par-
ticipam"2O4 e é neste sentido que usamos a comparagáo acima. Os
próprios professores propóem essa questáo ao dizer:

Os Encontros sño marcados pelo entusiasmo e alegria caracterísü-


cos dos momentos de festas e pela busca de noyas idéias, a partir da
troca de experiéncias, dos relatos e discussóes etr torno da vida
cotidiana dos diferentes povos e de como a escola se insere neste
contexto2Q5.

Thmbém Leite (1994) avaliou esse caráter de valorizagáo dos


momentos de Encontro, na experiéncia dos professores Ticuna. "8,
notável a énfase dada a esta dimensáo do encontro com os colegas de
tantos lugares diferentes, da possibilidade de se conhecerem melhor, de
poderem partilhar experiéncias e dificuldades. Ou seja, para além dos
novos conteúdos apreendidos, da elaboragáo de novos conhecimentos,
pelos quais manifestavam aprego, os professores destacaram a releván-
cia da própria experiéncia do coletivo que permeou aqueles dias de tra-
balho, vivida e construída no cotidiano do curso, no decorrer dos estu-
dos realizados, nos momentos delazer partilhado, nas horas de refeigáo
comum, na convivéncia com as outras pessoas da comunidade de
Canimaru. Experiéncia fundante, em que os professores se descobriam
como conjunto forte, capaz de criar coisas novas, decidir os rumos de
seu trabalho, definir o planejamento das escolas, estabelecer relagóes
segundo seus interesses, organizar-se politicamente. Experiéncia de si
como parte solidária de um povo, do qual sáo expressáo significativa:
em torno deles estavam seus alunos, os pais de seus alunos, os capitáes
de suas aldeias, o povo Ticuna2o6.
O processo organizatório náo tem fim em si mesmo. A organi-
zagáo é vista como instrumento catalizador e impulsionador das forgas
envolvidas; como a formagáo de um grupo solidário, que se auto-iden-
tifica, que se apoia, que se reforga, enfim que se "acolhe" mutuamente,
conforme expressáo do Prof. Sebastiáo Duarte, em entrevista concedi-
da a essa pesquisa.
Uma das tónicas principais do movimento, exemplificada pelo
conteúdo das entrevistas, assim como de grande parte dos relatos nos
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades t85

Encontros, tem sido a afirmagáo, e mesmo a retomada e a reelaboragáo


das identidades étnicas.
Cabe dizer aqui que entendemos grupos étnicos dentro dos
critérios hoje vigentes na antropologia social, segundo definigáo de
F.Barth, antropólogo noruegués, que diz: "grupos étnicos sáo formas
de organizagáo social em populagóes cujos membros se identificam e
sáo identificados como tais pelos outros' constituindo uma categoria
distinta de outras categorias da mesma ordem"207.
Referindo-nos ainda ao pensamento de Barth (1976), expresso
em texto de Joáo Pacheco de Oliveira, vemos que, grupo étnico se
define entáo náo por seu estofo cultural, "mas através de critérios pelos
quais ele mesmo estabelece as suas fronteiras (critérios de pertenci-
mento e exclusáo) e pela tentativa de normatizagáo da interagáo entre
os membros do grupo e as pessoas de fora"208.
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1972 e 1976), gruPos
étnicos se definem a partir da situagáo de contato, envolvendo relagóes
sociais que geram mútua dependéncia' mas se caracterizam igualmente
por profundas divergéncias e conflitos. Tais relagóes Provocam reorga-
nizagóes e redefinigóes dos grupos em contato, de modo a se situarem
consistente e diferenciadamente um frente ao outro. Esta é a nogáo de
"identidade contrastiva", a qual "parece se constituir na esséncia da
identidade étnica, isto é, i base da qual se define. Implica a afirmagáo
do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou gruPo se afirmam
como tais, o fazem por meio de diferenciagáo em relagáo a alguma pes-
soa ou grupo com que se defrontam. E uma identidade que surge por
oposigáo. Ela náo se afirma isoladamente. No caso da identidade étni-
ca, ela se afirma'negando' a outra identidade,'etnocentricamente' ior
ela visualizadd'209.
Aracy Lopes da Silva, em seu livro fndios, chama atengáo para
esseconceito de etnocentrismo, enquanto "tendéncia a tomar a própria
cultura (significados, valores e regras), como padráo Para julgar todas
¿g 6tt1¡¿5"210.
Nas palavras de Carneiro da Cunha "as 'culturas' constituem
para a humanidade um património de diversidade, no sentido de apre-
sentarem solugóes de organizagáo do pensamento e de exploragáo de
um meio que é ao mesmo tempo social e natural. (...) As culturas sáo
entidades vivas, em flt xo"21l.
lE6 Rosa Helena Dias da Silva

Neste enfoque, a cultura é entendida como processo essencial-


mente dinámico, sendo permanentemente reelaborada pelo grupo,
enquanto sujeito coletivo. E, neste sentido, resultado (produto) e cri-
agáo.
A escola indígena, enquanto espago aberto, com possível conteú-
do novo, tem sido vista pelos professores como instrumento que pode
colaborar na superagáo de preconceitos. A idéia do que é ser "índio",
historicamente estigmatizada, pode ser revista e alterada, passando
entáo a representar um valor.
Vemos que um estigma, enquanto atributo depreciativo, mani-
festa-se na situagáo com que entramos em contato e relagáo com o
outro. As pessoas tem expectativas quanto aos papéis socialmente esta-
belecidos, o que passa a influenciar profundamente a maneira com que
se vai ao encontro do outro. Nesta dinámica, valoriza-se mais a imagem
que se tem deste, elaborando-se, na maioria das vezes, estereótipos. A
identidade, enquanto forga interna, vé-se entáo fragilizada.
O preconceito da populagáo local a respeito das culturas indíge-
nas permeia as relagóes que esta estabelece com os povos inügenas.
Estas sáo interpretadas como sinal de atraso, e os valores indlgenas sáo
vistos como coisa do passado. E como se fossem "restos" de uma "etapa
da evolugáo da humanidade" que já passou. Esta visáo evolucionista,
infelizmente, ainda perdura em diversos setores de nossa sociedade,
apesar de ter sido já teoricamente superada.
Ainda nesse sentido, detecta-se que, em muitas comunidades, a
auto-estima está afetada, devido á história de contato que sofreram.
Fala-se mesmo de "tradigóes que se perderam" ao longo do processo de
ocidentalizagáo, o que resultou em desgaste e descaracterizagáo cultur-
al. Percebe-se que quanto maior a proximidade e o contato com a
sociedade envolvente, maiores sáo os conflitos quanto a questáo das
identidades étnicas. Isso se reflete nas próprias comunidades e pode
explicar o fato de haver resisténcias internas, ou seja, professores, pais e
alunos que náo aceitam a proposta de uma escola indígena, por enten-
derem equivocadamente que a perspectiva adotada significa "a volta ás
origens', ou um retrocesso á época anterior ao contato.
Sintetizando, segundo Cunha (1994),"há dois modos básicos de
se entender a nogáo de cultura e de identidade. O primeiro, a que
poderíamos chamar, por simples conveniéncia, de'platónico', percebe a
identidade e a cultura como'coisas'. A identidade consistiria em, pelo
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 187

menos como um horizonte almejado, ser'idéntico'a um modelo, e


supóe assim uma esséncia, enquanto a cultura seria um conjunto de
itens, regras, valores, posigóes, etc. previamente dados. Como alterna-
tiva a essa perspectiva, pode-se entender a identidade como sendo sim-
plesmente a percepgáo de uma continuidade, de um Processo' de um
fluxo, em suma, uma memória". Neste sentido, conforme reflexáo da
autora, a cultura náo seria um conjunto de tragos dados "e sim a pos-
sibilidade de gerá-los em sistemas PerPetuamente cambiantes"'
Dentro desta concepgáo, "a etnicidade é portanto uma lin-
guagem que usa signos culturais para falat de segmentos sociais'1
Lembra-nos ainda que, numa perspectiva legal, os embates geralmente
sáo travados em torno da identidade indígena. Nestes casos' o modelo
"platónico" da identidade é invocado por ambos os lados - tanto das
forgas contrárias (os inimigos), como "por parte dos próprios índios,
forgados a corresponderem aos esteriótiPos que se tém deles". Outro
expediente utilizado contra os povos indígenas é a negagáo de suas
identidades. Nesta ótica, "se náo há índios, tamPouco h{ di¡gi165"212.

3.7. Síntese do percurso do movimento

O I Encontro de professores indlgenas do Amazonas e Roraima,


realizado em Manaus, no ano de 1988, foi promovido pelo CIMI Norte
I, a pedido dos professores Ticuna. Neste primeiro momento entáo, o
CIMI cuidou de toda organizagáo do evento, inclusive de seu financia-
mento. O mesmo ocorrendo com o II Encontro 11989. Já no final deste,
os professores indígenas, incentivados pelo próprio CIMI e demais
assessorias, sentiram a necessidade de tomarem a frente do seu proces-
so organizativo, escolhendo uma comissáo - COPIAR (Comissáo dos
Professores Indlgenas do Amazonas e Roraima) que, conforme já
relatado, ficou responsável por pensar e planejar o III Encontro, assim
como, com ajuda das assessorias buscar financiamento Para sua efeti-
vagáo. A partir de entáo, no final de cada Encontro, os participantes
escolhem uma nova COPIAR, que tem mandato semPre anual, fican-
do responsável pela articulagáo do movimento naquele período, e tam-
bém por organizar todos os preparativos Para o evento seguinte.
Ilustram este crescente processo de autonomia do movimento os
discursos de abertura dos trés primeiros encontros. No I e II Encontro,
podemos ler nos dois Relatórios: "o coordenador do CIMI-Norte I deu
188 Rosa Helena Dias da Silva

no III Encontro (e, a partir dal,


as boas vindas aos participantes...." Já
em todos os outros) quem assume esse papel sáo os próprios profes-
sores, através da COPIAR. Vejamos o que está escrito no relatório do III
Encontro: "Enilton (COPIAR/RR) dá as boas vindas aos participantes".
A partir de entáo o CIMI passa a ser convidado, enquanto uma das
assessorias.
Se no momento de sua criagáo a Comissáo teve apenas a tarefa
de preparar o próximo Encontro, a partir de cada ano as demandas
foram crescendo, aumentando assim as frentes de trabalho desta. A
decisáo por levar as discussóes realizadas para lugares que náo partici-
param dos Encontros; a articulagáo permanente do Movimento,
através de visitas ás áreas e participagáo da COPIAR em encontros
locais; a divulgagáo das reivindicagóes e princípios junto ) sociedade
envolvente, seja encaminhando documentos ás autoridades compe-
tentes, seja atendendo á convites para debates em Universidades; o
acompanhamento aos projetos enviados, fazem parte do rol de ativi-
dades e demonstram o crescimento, qualitativo e quantitativo deste
processo.
Os demais Encontros (III a IX) foram financiados pela
DREIKONIGAKTION, entidade ligada á Igreja Catóüca na Austria,
através de projetos elaborados e administrados pelo movimento, junta-
mente com suas assessorias213.
'.A irradiagáo das reflexóes e discussóes sobre educagáo escolar
indígena fez surgir organizagóes locais de professores como a OPIR -
Organizagáo de Professores Indígenas de Roraima, a OPISM -
Organizagáo de Professores Indígenas Sateré-Maué, a Comissáo dos
Professores Indígenas do Alto Rio Negro e a Associagáo de Professores
Indlgenas no Médio Ssli¡n5,s5"214.

Em 1989, ao avaliar o movimento no seu primeiro ano de atu-


agáo e articulagáo, os professores conclulram que já haviam ocorrido
avangos e estes eram resultados coletivos, dos passos dados em conjun-
to, de forma diferenciada em cada regiáo, com dificuldades especlficas
e comuns, mas com um só objetivo: a conquista de uma educagáo esco-
lar adequada aos interesses indlgenas.
Em 1992, o V Encontro, realizado pela primeira vez em Boa
Vista/RR, representou um crescimento substancial, pois possibilitou a
participagáo de mais de 100 professores, representantes de inúmeros
A autonomia como valor e a articulaEdo de possibilidades 189

povos do Amazonas, Roraima e Acre. A partir de entáo, o Acre Passou


a fazer parte do movimento, ampliando assim sua abrangéncia. O
referido Encontro foi hospedado pela OPlR-Organizagáo dos
Professores Indígenas de Roraima, á qual coube a responsabüdade de
providenciar todas as questóes ligadas á hospedagem, alimentagáo,
assessoria e secretaria. O éxito deste evento se deve especialmente ao
esforgo e seriedade dos membros da COPIAR e das liderangas da
OPIR.
Entre l99l e L992, fazendo parte da preparagáo do V Encontro,
representantes da COPIAR participaram de encontros locais e micro-
regionais, "levando ao conhecimento de muitos outros que náo havi-
am tido a possibilidade de participar de encontros anteriores, as
reflexóes, discussóes sobre educagáo escolar indígena e os passos dados
pelo movims¡¡6"215. Desempenharam ainda a importante tarefa de
divulgar os princípios do movimento nas áreas ainda náo articuladas e
convidar professores para participar dos encontros futuros'
O VI Encontrollgg3,novamente em BoaVista/RR, teve a média
diária de participagáo de 100 professores indígenas. Conforme reg-
istrado anteriormente, pela primeira vez, os temas Currículos e
Regimentos foram apresentados em forma de experiéncias concretas,
levadas a frente pelos próprios professores. Os Professores Macuxi e
Wapixana (RR) Inácio Brito e Sebastiáo Cruz, que ocuPam o cargo de
diretor de suas escolas, fizeram um relato sobre o que estáo conseguin-
do avangar quanto a esses temas. Falaram da participagáo da comu-
nidade e das liderangas na escola, e da participagáo dos alunos nos tra-
balhos da aldeia. E importante destacar que em Roraima, das 23 esco-
las que estiveram representadas no VI Encontro, 18 tém em sua diregáo
um professor indígena. Teve ainda como momento altamente signi-
ficativo, a tarde de exposigóes de artesanatos produzidos nas diversas
escolas e apresentagáo de dangas e cantos por professores e gruPos de
alunos das Escolas Indígenas Maturuca, Cantagalo e Malacacheta (que
vieram especialmente para este momento). O grupo Yanomami, assim
como dos professores Tucano e Ticuna, também mostraram suas
dangas.
Quanto aos desdobramentos externos, percebe-se que "os pro-
fessores iniciaram também sua luta para conquistar espagos politica-
mente importantes e tornar seu movimento conhecido, levando a
público seus posicionamentos"2l6. Elaboraram, em quase todos os
190 Rosa Helena Dias da Silva

Encontros, documentos onde se manifestam sobre as questóes rele-


vantes de cada momento2lT. Após o II Encontro/l989, escolheram uma
comissáo, que foi a Brasília entregar pessoalmente a deputados e
senadores suas reivindicagóes para a LDB, em tramitagáo na época.
Conforme Silva (1991), "todos os documentos produzidos nos
sucessivos Encontros sáo hoje referéncia obrigatória sobre a questáo da
educagáo escolar indígena no Brasil".
Exemplo paradigmático do reconhecimento e respeitabilidade
do movimento, suas discussóes e formulagóes quanto á temática da
educagáo escolar indígena, pode ser constatado no material de
preparagáo dos Referenciais Curriculares Indlgenas, organizado pelo
Comité/MEC. A grande maioria das citagóes de professores indígenas
presentes neste material tem como fonte os relatórios dos Encontros da
COPIAR e o Subsldio sobre Educagáo-FOIRNl2l8.
Também "o grande espago na mídia conquistado pelo IV
Encontro constitui uma evidéncia inequlvoca da visibilidade social
deste movimento" (SILVA, 1991). No V e VI Encontro isso se repete.
Em 1993, durante o VI Encontro, a COPIAR foi convidada para
uma noite de debate sobre o Movimento, com os alunos dos cursos de
antropologia e direito, na Universidade de Roraima.
Autoridades estaduais e do Governo Federal como o Secretário
de Educagáo e Delegado do Ministério de Educagáo no Amazonas,
procuraram pessoalmente os professores durante o IV Encontro/I991
para conhecer suas reivindicagóes. Após este Encontro a COPIAR foi
recebida pelo Governador do Amazonas em solenidade organizada por
este em sua casa. Nesta ocasiáo entregaram a todas as autoridades pre-
sentes, a "Declaragáo de Princlpios" aprovada no Encontro citado. O
evento foi registrado por repórteres de todos os jornais e redes de TV
locais. No VI Encontro/l993 esteve presente a representante do MEC,
Prof" Ivete Campos. Na ocasiáo, foi argüida pelo plenário, que questio-
nou e buscou entender diversas questóes ligadas ao Comité Assessor
para assuntos ligados á Educagáo Escolar Indígena.
Percebemos que, "as transformagóes em curso no cenário da
educagáo escolar indígena na regiáo náo vem se dando de forma linear
e simples. O processo em cada micro-regiáo tem se caracterizado por
particularidades, dilemas, obstáculos e conquistas os mais diversos.
Mas em toda parte, a mudanga nos rumos destes projetos escolares
A autonomia como valor e a articulaQío de possibilidades l9l

dependeu da tenacidade, paciéncia e do esforgo du, diu..ru, comu-


nidades por eles atingidos" (SILVA,199l).

O pessoal está se reunindo para mudar essa escola. Estamos nos


reunindo para ver como seria a escola ideal para nós.

Nesse pronunciamento de um professor indígena podemos ver


que o movimento nasceu de uma necessidade objetiva, de um descon-
tentamento com a situagáo real da educagáo escolar indlgena e é movi-
do pelos ideais de uma escola verdadeiramente dos índios. Alimenta-se
da esperanga em ver se concretizar esses ideais através da atuagáo de
cada um e do grupo, na construgáo dessas escolas. Poderíamos dizer
que a forga maior que impulsiona esse movimento é visualizar e proje-
tar essa possibilidade.
Conforme Mazzúli (1992), "projeto é meta, mas torna-se con-
creto e gerador de movimento quando transposto para a compreensáo
das pessoas e por elas assumido. A construgáo de projetos educacionais
referenciados nesta perspectiva pode vir a responder, de forma signi-
ficativa, ás expectativas de'melhoria' da escola"2l9.
Michele Bertrand, em seu texto "O homem clivado - a crenqa e
o imaginário'22o afirma que "a forga de atragáo dos ideais é muito fre-
quentemente superior a dos interesses, já que suscitam o desejo incon-
sciente de total auto-realizagáo".
Ao olharmos cuidadosamente o exemplo dos professores indíge-
nas do Amazonas e Roraima podemos confirmar tais pareceres.
Concordamos também com Maria da Glória Gohn quando, em seu
artigo sobre os Movimentos e organizagóes populares nos anos 90,
añrma que "a esperanga está sempre embutida nesses processos como
uma chama alimentadora das agóes para se atingir os ideais".
Detectamos ao longo deste estudo duas forgas principais que se
destacam: a tradigáo e a organizagáo. Ambas igualmente decisivas, dis-
tintas, mas complementares. A primeira traz os valores da heranga cul-
tural, da história dos povos; a segunda abre novos caminhos, aPonta
novos rumos, possibilita a continuidade. Unidas, representam forgas
poderosas nas máos do movimento.
Vejamos o que dizem sobre elas os próprios professores:
192 Rosa Helena Dias da Silva

A tradigño dos antepassados aprendemos pelo exemplo dos pais.


Nós professores nño devemos esquecer a nossa cuhura, porque se
deixa embaixo da mesa" o branco vai lá e pisa em cima. (professor
Kokama)
Se a gente deixar de lado as nossas tradigóes, a gente acaba como
povo. (professor Tucano)
Em primeiro lugar vou defender as tradigdes porque é o que nos
defende. (professor Dessano)
Entño comegou a aparecer as organizagóes. Aí nós vimos que a esco-
la estava pisando naquilo que é bonito, nas nossas tradigóes.
Se os professores estño organizados, o comando já está mais perto de
nós. (professor Macuxi)
Eles já fizeram a lei, se esperar por eles nunca será aplicada. Porisso
temos que nos organizar. Acho que é por aí que teffi que ser.
Continuar a nossa luta. Se todas as organizagóes trabalham juntas,
uma dá forga para as outras (professor Tikuna)
Se o professor se coloca contra alguma coisa e ele está sozinho, ou
ele é demitido ou é transferido. Unidos tem mais forga. O progra-
ma de trabalho é entregue ao CIR (Conselho Indígena de Roraima)
que representa os povos indígenas e nño pode ser demiüdo ou trans-
ferido. E assim o professor fica seguro, garantido. A organizagño é
que deve encaminhar as reivindicagóes. (profasor de Roraima)

Outra idéia forte que se sobressai é a da responsabilidade e com-


promisso social dos professores. Vejamos:

Porque vocés professores é bom ver bem o que vocés estño ensinan-
do para chegar longe... como vocés sño professores, é bom refletir
bem para o futuro de nossas criangas. Quero dizer que vocés se
cotnprometem a defender as criangas, eluca¡ isso é um compro-
misso. (Jaci, coordenador do ClR, falando d plenória do II
Encontro)
Entdo n6s estamos tomando essa responsabilidade em nossas mños,
porque senño nño dá. (professorTicuna)
Para que exista conscienüzagño dos professores nós vamos levar
para outros o que estaffios aprendendo e para que eles se animem e
participem de outros encontros. (professor do Médio Solimóes)
A autonomia como valor e a articulaQao de possibilidades 193

O que nós queremos? O que a Amazónia quer de nós? Precisamos


mostrar o que foi enterrado e que tem fruto que quer nascer' (pro-
fessor de Roraima)
Viemos discutir a educagño que queremos. A bandeira é nossa;
quem vai lucrar com isso é os nossos alunos que estño nos esperan-
do. (professor Wapixana)

As atuais regióes do movimento sáo: Alto Rio Negro; Alto


Solimóes; Médio Solimóes; Baixo Amazonas; Alto Madeira; Médio
Madeira e Baixo Madeira (todas no estado do amazonas; Roraima e
Ac¡e)22L.

Segue mapa da "geopolltica" atual.

MAPA - REGIÓES DO MOVIMENTO

l
I
:l :l
i:::::::::::::::::::::::::::: :::::::: :.:

.-t:-i,¿

:::::,:l i
.t.,.,,5 lr:l:::l',i
,::::::::: ri:til

,,,it,',:, ti
..
.) ,i
'\ .::. ,,r
194 Rosa Helena Dias da Silva

REGIÓES

I. ALTO RIO NEGRO


2. ALTO SOLIMÓES
3. MEDIO SOLIMÓES
4. BAIXO MADEIRA
5. MEDIO MADEIRA
6. ALTO MADEIRA
7. BAIXO AMAZONAS
8. RORAIMA
9. ACRE
A autonomia como valor e a articulagAo de possibilidades 195

NOTAS
88 SILVA,Aracy Lopes da. "Balango crltico da situagño atual da educagáo escolar
indlgena no Brasil" in Boletim da ABA, abriV93, no 16, p.5
89 -
CASTORIADIS,Cornelius.O mundo fragmentado as encruzílhadas do
Labirinto/3, Sáo Paulo, Paz e Terra, L992, p.I48
90 Para um contato com a slntese das dissertagóes e teses sobre o assunto, ler,
CAPACLA,MaTta Valéria.O debate sobre a educafio indlgena no Brasil (1975-
1 995 ), Br así\alSáo Paulo, MEC/Mari-USR 1995

9l SILVA,Márcio."Breve notícia sobre o Movimento dos Professores Indígenas do


Amazonas e Roraima", 1991
92 Esse pedido foi encaminhado pessoalmente pela Equipe Indigenista da Prelazia
do Alto Solimóes, composta' naquela época pelo casal Nadir e Arlindo Leite
(membros do CIMI e OPAN), que assessoravam os professores Ticuna, por
CIMI Norte I ( 1988).
ocasiáo da Assembléia anual do
93 "Os objetivos da nova entidade foram expücitados no Regimento Interno,
aprovado na assembléia seguinte, realizada em janeiro de 1988: "1) melhorar o
funcionamento da educagáo indígena; 2) incentivar a participagáo dos profes-
sores no processo educacional, preparando materiais didáticos adaptados d sua
cultura e aos seus interesses atuais, inclusive com o uso e valorizagáo da llngua
Ticuna; 3) aumentar a responsabilidade dos lndios Ticuna quanto ¿ sua
própria educagáo, regularizando os seus direitos e deveres, bem como as
fungóes e obrigagóes dos órgáos priblicos e privados que atuam na regiáo"
(CEDI 1991:253 apud Leite).
94 SILVA,Márcio e AZEVEDO,Marta. "Pensando as escolas dos povos indígenas
no Brasil: o Movimento dos professores indlgenas do Amazonas, Roraima e
Acre" in SILVA,Aracy Lopes da e GRUPIONI,Luís Donisete. A temática indlge-
na na acola - novos subsldios para professores de 1o e 20 graus, Brasília,
MEC/MARI/UNESCO, 1995, p.157

95 LEITE,Arlindo Gilberto de Oüveira .Educagdo IndígenaTicuna: livro didóüa e


Mentidade étnica, díssertagáo de mestrado, Universidade Federal do Mato
Grosso, Cuiabá, 1994
96 Relatório II Encontro/1989
97 LEITE, op. cit.,p. 137
98 AZEVEDO,MaTIa e ORTOLAM,MaTia Helena."Organizagóes Indlgenas no
Brasil" in Porantim, Brasília, CIMI, no 153,p.7
gg CASTRO,Eduardo Viveiros de. "Autodeterminagáo indígena como valor" in
Anuário Antropológicol8l, Fortaleza/Rio de Janeiro, Edigóes.Universidade
Federal do Ceará e Tempo Brasileiro, L983,p.238. Este texto traz uma discussáo
fundamental para meu trabalho: a questáo da representagáo indígena. Neste
sentido, estarei retomando-o mais adiante, ao tratar da temática da autonomia.
100 O X Encontro/l997, contou com o maior número de povos: 32
l0l MELIA,Bartomeu. op. cit. p.l2
102 Idem, ibidem
196 Rosa Helena Dias da Silva

103 ldem. ibidem.


104 LAGARIO,Eduardo. 10O Kixti (estórias) Tukano, Brasília, FIINAI, 1983
105 LISBOA,Thomaz.Entre os fndios Munku, Edigóes Loyola,1979
106 ZWETCH,Roberto.Madíha - O cheiro da tera, Sáo Paulo, Edigóes Paulinas,
t992
IO7 CHAIEAU,Jean.O jogo e a crianga, Sáo Paulo, Summus editorial, 1987
108 MELIÁ, Bartomeu, op. cit.
109 Idem. ibidem.
ll0 GRAY,Andrew.O impacto da conservagáo da biodiversidade sobre os povos
indlgenas"" in SILVA,Aracy Lopes da e GRUPIONI,Luis Donizete Benzi
(org.).,4. temáüca indfgena na escoIa,MEC/Mari/UNESCO, Brasília, 1995, p.l l5
111 CASTROEduardo Viveiros de."Sociedades indígenas e natureza na Amazónia'l
in SILVA e GRUPIONI, op, cit.
ll2 CARMRA,Eduardo."O preconceito tecnológico e o conhecimento indlgena da
natureza" in Reyista Trwessia, no 18, Sáo Paulo, p.28.

l13 EMIRI e MONSERRAI op. cit.


ll4 Idem ibidem.
115 OLIVEIRA,Roberto Cardoso de. "Etnia e estrutura de classes: a propósito da
identidade e etnicidade no México", tn Anuário Antropológico, no 79, Tempo
Brasileiro, p.77
116 CARRARA,op.cit.
ll7 GMY, op. cit., p.l14
118 CASTRO, op. cit., p. l17 (grifos meus)
l19 CARRAM, op. cit., p.29
l2O Para alcangar essas metas, colocam, como pressuposto, que os professores este-
jam organizados
l2l Sáo considerados trabalhos'tlandestinos" aqueles que sáo realizados sem o
reconhecimento oficial.
L22 Conforme reflexáo de SIIVA e AZEVEDO, em seu texto "Pensando as escolas
dos povos indígenas do Brasil: o moümento dos professores indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre" in SILVA e GRUPIONI op. cit., p. 153 - 'hfinal, lln-
gua indígena é a llngua falada por um povo indígena e náo üce-versa. E por-
tanto, o portugués pode ser uma língua indlgena, como é, por exemplo, o caso
de alguns povos do Médio Solimóes".
123 CUNHA,Manuela Carneiro da. "Parecer sobre os critérios de identidade étni-
ca" in CPI.O lndio e a cidadania, Sáo Paulo, Brasiliense, 1983, p.98
L24 Além de trabalhos escritos de cada autor, realizei alguns contatos diretos com
cada um deles. Meliá concede entrevista a essa pesquisa, em julho/1994. Mais
tarde, conforme foi relatado no início deste Relatório, pude encontrar-me pes-
soalmente com ele por duas proveitosas ocasióes, nas quais pudemos trocar
idéias sobre esse tema. Encontrei-me com Monserrat, em dezembro/1994. Na
ocasiáo, dialoguei com ela acerca de seu posicionamento sobre o debate em
questáo. Com Márcio Silva, tenho tido o privilégio de conviver e trabalhar já há
alguns anos, principalmente por ocasiáo da realízagáo dos Encontros anuais do
A autonomia como valor e a articuheío de possibilidades 197

movimento dos professores indígenas do AM, RR e AC, já que ele é um dos


assessores que tem acompanhado essa articulagáo.
125 MELIA,Bartomeu."El modelo ARAKUARENDA, o el bilinguismo radical"'
agosto/93, texto datil. (citagóes: tradugáo minha). Posteriormente o texto foi
publicado in Elogio a língua Guarani do mesmo autor, Assunción' CEPAG'
1995
126 Conforme entrevista de Meüá, concedida a essa pesquisa.
127 Mais adiante, no capltulo V deste Relatório, retomarei essa discussáo da possi-
bilidade (ou náo) do que chamarei de um processo de "indianizagáo" da insti-
tuigáo escolar. Ou seja, da possibilidade de um elemento cultura alheio vir a se
tornar um elemento cultural próprio (segundo BATALHA,Guilhermo BonñI.
"La teoría del control cultural en estudio de processos étnicos" in Arinsana,
Caracas, v. 10, julho/89
128 As citagóes de Monserrat sobre bilinguismo constam de texto de sua autoria "O
que é ensino bilíngue - a metodologia da gramática contrastiva" in Em aberto,
no 63, Brasília, MEC, 1994
l2g As citacóes de Márcio Silva constam de texto de sua autoria "A conquista da
escola: educagáo escolar e movimento de professores indígenas no Brasil" in
Em aberto, Brasília, MEC, 1994
130 Os dois primeiros Encontros foram financiados pelo CIMI-Norte I, com verba
i
de seu projeto global junto ¡ CEBEMO (entidade ligada Igreja Católica na
Holanda). O CIMI, coerentemente com seus princípios e prioridade de apoio
ao movimento indígena rumo a sua autonomia, apoiou e incentivou desde o
início a criagño de uma instáncia própria dos professores indígenas, que se
responsabilizasse pela continuidade deste processo. E o que podemos compro-
va¡ segundo registro na p.23 do Relatório do II Encontro: "Na segunda parte
da manha, Egon (representante do CIMI) se reuniu com o plenário e foi dis-
cutida a importáncia dos lndios mesmo assumirem a otganizagáo dos profes-
sores, futuros Encontros, etc".
l3l A "geopolltica" inicial do movimento esteve fundamentalmente ligada ao
desenho de regióes onde oCIMI-Norte I (AM e RR) mantinha algum tipo de
atuateo, já que o convite aos professores que üeram participar do I'e II
Encontro foram feitos por essa entidade, na ocasiáo, Promotora dos eventos' a
partir de suas equipes de base.
132 GOHN,Maria da Glória.Movimentos Sociais e Educagño, Sáo Paulo, Cortez,
1992,p.5O
I33 Agáo Educativa é uma organizagáo náo-governamental nascida do antigo
CEDI (Centro Ecuménico de Documentagáo e Informagáo). O Informativo é
diário, e emitido via internet. As citagóes de GRZYBOWSKI, encontram-se
dentro do sub-tltulo "Movimentos Sociais e Educaqáo", no dia 26.09.96
134 Neste sentido, ao longo do trabalho, em especial, na continuagño da descrigáo
e análise dos Encontros anuais, essa temática estará constantemente retornan-
do.
135 Os quinze pontos da Declaragáo de Princípios teráo um lugar reservado mais
adiante, dentro deste mesmo IV Capítulo
198 Rosa Helena Dias da Silva

136 Esse rotei¡o foi retomado no V Encontro, sendo, até hoje, utilizado pelos pro-
fessores, em diversas regióes, como instrumental de trabalho e suporte inicial
para a discussáo da elaboragáo de currlculos próprios.
137 Os temas escolhidos, após um passeio pelo terreno do local do encontro,
foram: terra; saúva (formiga); árvores frutlferas; invasáo de território; água
poluída.
138 Relatório do IV Encontro/I99l, pag.lO
139 Os temas escolhidos neste segundo momento foram: "canoa" (Alto Rio Negro);
"terra" (Alto Solimóes); "guaraná" (Baixo Amazonas); "história do povo"
(Médio SolimOes); "eu" (Roraima).
140 Relatório do IV Encontroll99I, pag. 05
l4t Em outro momento deste trabalho, estarei retomando esta discussáo, ao tentar
compreender o surgimento de um outro conceito de "cidadania" - a "cidadania
indígena" - que, longe de ser individual, tem o caráter de ser uma'tidadania
coletiva'l
t42 As seguintes Bebidas foram tema do trabalho: "pajuaru" (povos TiKuna,
Kambeba, Macuxi e Wapixana); 'taxiri" (povo Tüano); "tarubá" (povos
Munduruku e Mura); "atroco" (povo Yanomami).
t43 Da mesma forma, o grupo que escolheu o tema "Remédios caseiros" trouxe
para os participantes um detalhado repertório de plantas medicinais, social-
izando conhecimentos profundos quanto ao preparo e uso de rernédios natu-
rais. Foram registradas no Relatório l5 fórmulas de remédios diferentes.
r44 Este documento, assim como todos os outros elaborados ao longo dos encon-
tros, encontra-se em anexo,
t45 Manuela Carnei¡o da Cunha, em seu texto "O futuro da questáo indlgena" in
SILVA e GRUPIONI op. cit., p. 137, ao rcferir-se i problemática das terras, afu-
ma que "o grande pomo de discórdia, afastados os falsos pretextos (...), é o tema
da exploragáo dos recursos minefais e dos recursos hldricos em áreas indíge-
nas".
146 Posteriormente, esta decisáo foi reavaliada, pela questáo concreta do aumento
nos custos (previsáo orgamentária dos encontros). Ao elaborar o novo Projeto
trienal (1997-1999), o movimento optou por realizar os trés Encontros (X, Xl
e )ül) em Manaus.
t47 Edmilson Lima Cavalcante, do povo Wapixana, Escola de I Grau "Sizenando
Diniz'l maloca Malacacheta/RR.
148 Concordo com essa percepgáor e, mais a frente, estarei trabalhando essa temáti-
ca da re-invengáo da escola (que vou chamar de "indianizagáo" da instituigáo
escolar.
t49 O contato da sociedade envolvente com os Yanomami tem representado um
impacto negativo e destrutivo para este povo. Nos últimos dez anos, milhares
de lndios morreram devido, principalmente, ls doengas trazidas pela presenga
de atividades garimpeiras em sua área. Segundo CUNHA (1994), entre 1988 e
L99O, l5o/o da populagáo Yanomami foi dizimada.
r50 Sendo definidos:VII Encontro em Manaus (1994); VIII Encontro em Boa Vista
(1995) e IX Encontro em Sáo Gabriel da Cachoeira (1996)
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 199

l5l "Queremos agradecer nossos colegas vindos do sul - os Guarani. Acho que
nossa organizagño tá sendo uma coisa muito importante, que o pessoal tá
dando valor, que até o pessoal do sul tá participando' Porque primeiro
comegamos com um grupo Pequeno, e foi expandindo a nível do Brasil. Nós
comegamos com vinte professores. Hoje somos mais de oitenta, e assim por
diante. Desse mesmo jeito, que nossos colegas lutem prá alcangar uma alterna-
tiva". (Prof. Alírio Moraes, Ticuna, membro da COPIAR pela regiño do Alto
Solimóes)
152 GOHN, op. cit., p.50
153 GOHN, op. cit., p.50/51
154 "As escolas indígenas deveráo integrar a saúde em seus currlculos, promoven-
do a pesquisa da medicina indígena e o uso correto dos medicamentos alopáti
cos". "O estado deverá equipar as escolas com laboratórios onde os alunos pos-
sam ser treinados para desempenhar papel esclarecedor junto is comunidades
no sentido de previnir e cuidar da saúde. (Pontos 8 e 9 da Declaragáo de
Princípios)
155 O alerta aqui é no sentido de, na minha avaliagáo, haver o risco da palawa, ape-
sar de comegar a ser muito usada, estando Presente nos mais variados discur-
sos e espagos (até mesmo antagónicos), estar sendo esvaziada de seu real sig-
e caracterlstica amplamente defendi-
nificado e usada apenas por ser atributo
da, presumindo-se que haja consenso no entendimento sobre seu sentido.
156 "O problema indígena náo pode ser compreendido fora dos quadros da
sociedade brasileira, mesmo Porque só existe onde e quando lndio e náo-índio
entram em contato. É' pois um problema de interagáo entre etnias tribais e a
sociedade nacional" (RIBEIRO, Darcy apud OLIVEIRA'Joao Facheco. "Muita
terra para pouco índio3 Uma introdugáo (crítica) do indigenismo e a atuaüza-
9áo de um preconceito'i in SILVA e GRUPIoNI, oP. cit.' P.64
157 Nas palavras do Prof. Gersem Luciano, Baniwa, " (..') a ignorLncia acarreta ati-
tudes polltkas incorretas" (anotatóes do diá¡io de campo, feitas durante a real-
ízagio do Seminário de Pesquisa,VII Encontro/1994).
158 Conforme entrevista realizada com a ProF Marilene Cordei¡o, Miranha'
159 Conferéncia intitulada'A pesquisa atual na Amazónia: uma visáo comparativa
Brasil e Inglaterra" realízada no II Encontro de Etnologia - Amazónia, UNI-
CAMR 03 | 08 I 9 4 (anotagóes pessoais).
160 APPLE,M.Educagño e Poder, Sáo Paulo, Ed. Artes Médicas, 1989
161 APPLE, op.cit., em especial, cap.III "O outro lado do curúculo oculto: a cul-
tura como experiéncia vivida"
L62 Esta entidade financiou duas das reunióes da COPIAR (preparatórias dos
Encontros) e, aProvou um Pequeno pedido de complementagáo orgamentária
para realizagáo do X Encontro (1997)'
163 Carta-resposta da COPIAR e CESE, margo/95 (arquivo COPIAR)
164 Esta citagño foi tirada do texto "Um diálogo com Paulo Freire sobre educagáo
indígena". É, a transcrigao da gravagáo feita durante a 8" Assembléia do CIMI'
regional Mato Grosso, realizada em junho/1982, em Cuiabá, da qual o Prof.
Paulo Freire participou como assessor.
200 Rosa Helena Dias da Silva

r65 Fala de Gersem dos Santos Luciano, professor indígena, do povo Baniwa, regiáo
do AIto Rio Negro, na mesa redonda indlgenas e a educagáo na
América Latina", como parte do II Congresso Ibero Americano de História da
Educagáo Latino-Americana, UNICAMR set/94. Gravagáo e transcrigáo feitas
por mim
166 Este é o ponto no9 da Declaragáo de Princlpios firmada pelos professores
durante seu IV Encontro, Manaus/1991
167 O nome escolhido na ocasiáo foi do Prof. Eucüdes Pereira, Macuxi, de
Roraima; como suplente, o Prof. Sebastiáo Duarte, Tucano, do Alto Rio
Negro/AM
168 O Prof. Sebastiáo Duarte, antigo suplente, foi indicado como titular, sendo
escolhido como suplente o nome do Prof. Sebastiáo Cruz, Wapixana, de
Roraima. Atualmente (a partir de novembro/ 1997), o representante do movi-
mento no Comité é o Prof.Jadir Neves da Silva, do povo Macuxi, de Roraima.
t69 Conforme dito anteriormente, o Prof. Sebastiáo Duarte era o representante do
moümento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (até out-
ubro/1997), sendo que esta representagáo é escolhida nos Encontros anuais.
Porém, oficialmente, no Comité, torna-se "representante indlgena da regiáo
norte". Esse é um dado que, a meu ver, merece reflexáo, pois, se, conforme
experiéncia dos dois professores que já foram do Comité, é diflcil "representar"
a problemática ampla e diversa que existe dentro da área articulada pelo movi
mento, quanto mais "falar em nome" dos povos indlgenas dos outros estados
da regiAo norte (e que estáo, inclusive, ausentes nesta organizagáo).
t70 Estas estáo ligadas, em sua maioria, i questáo das grandes distáncias que tem
que percorrer (e os meios de transporte disponíveis: barco, e os inconstantes
vóos da TABA-Tiansportes Aéreos da Bacia Amazónica) para se deslocar de sua
aldeia (Taracuá) até Manaus, para entáo seguir regularmente para Brasília.
L7l No anexo 5 estáo contidos todos os documentos produzidos ao longo dos
Encontros.
172 Apresentaram também um cartaz com o histórico do nome da escola - Tuxaua
Siminiyó: "O índio Siminiyó nasceu na regiáo da serra, é da tribo Macuxi. Foi
um lndio que lutou contra o extermínio de sua tribo, tradigóes, cultura e lln-
gua. O mesmo foi o primeiro tuxaua daquela regiáo, que se localizava numa
comunidade e dali se comunicava com todas as aldeias próximas e distantes de
sua comunidade. Naquela época era o único tuxaua que chamava atengáo de
muitos indlgenas. Era autor de histórias, artista de cangóes tradicionais, fazia
convite a todas as regióes para grande festa dangante, que durava trés a quatro
dias, nesse decorrer do dia formava vários tipos de brincadeiras como: corrida,
queda de corpo e outras competigóes. Segundo os velhos Macuxi que conhece-
ram o índio Siminiyó, o seu nome tem o seguinte significado: Simi ou Ximi,
significa'donzela/princesa da regiáo'; Niyó, quer dizer'esposo/marido'.
173 No final das dangas foi servido a todos os participantes o "pajuarú" - bebida
tradicional dos lndios da regiáo.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 201

174 Esta, assim como todas as demais citagóes sobre o IX Encontro, sáo anotagóes
de meu "diário-de-campo" e transcrigáo de gravagóes efetuadas por mim no
referido Encontro.
175 As discussóes reaüzadas foram organizadas em um documento final, que sin-
tetiza os debates e conclusóes.
176 Esse lema foi criado e sugerido pelo Prof. Enilton André, WaPixana, de
Roraima, na reuniáo preparatória, rcaluada em abriU97.
177 A frase motivadora deste primeiro eixo do X Encontro foi retomada do II
Encontro/I989:"Estamos nos reunindo para mudar esse escol*- Estamos nos
reunindo para ler corno seria a escola ideal para nós".
178 Na maioria das regióes foram realizados encontros locais para efetuar a avali-
aqáo da história do movimento.
l7g Conforme já anotado anteriormente, a sigla COPIAR, originalmente era uti-
lizada para referir-se apenas d Comissáo dos Professores' Aos poucos, o nome
foi sendo usado, interna e externamente, para significar o movimento como
um todo.
180 "O Gersem nño abandonou a luta, mas abragou outro espago. Ele foi aluno da
escolada COPIAR'I Com essas palavras, foi saudado pelos demais professores,
representados na pessoa do Prof. Enilton André (grifos meus).
l8l Segundo o MEC, a elaboragáo destes referenciais (nacionais) seria um desdo-
bramento do trabalho que resultou nos novos PCN (Parámetros Curriculares
Nacionais).
182 Tal resolugáo foi comunicada ao MEC, em forma de carta-documento, assina-
da pela COPIAR.
183 Sáo eles: ProF Nietta Monte (ONGs); Prof. Luis Donizete Grupioni (ABA) e
Prof. Sebastiáo Duarte (COPIAXJregiáo Norte). O representante indlgena
Guarani, da regiáo leste, já havia ido embora'
184 Gohn, op. cit., p.5l/52
185 Essas reivindicagóes foram formuladas em carta-documento do X Encontro,
assinada pela COPIAR e enviada ao MEC.
lg6 o trabalho foi realizado em parceria com a Profa. Iara Thtiana Bonin (GIMI-
Norte I)
187 Comparando com os dados de 1991, sistematizados pelo Prof. Márcio Silva'
vemos já um crescimento significativo no número de participantes: "Os
Encontros de professores realizados até 1991, articulam uma rede de 97 pro-
fessores, responsáveis por 2.161 alunos".
188 Refiro-me ao Prof. Lúcio Menezes, Sateré-Maue, que foi membro da COPIAR,
pela regiáo do Baixo Amazonas durante quatro anos.
189 Permanece porém o problema, dificultado pelas questÓes pontuadas (e agrava-
do pelas grandes distáncias e auséncia de recursos financeiros para articulagóes
Iocais): há duas regióes principalmente habitadas pelo povo Sateré - a do Rio
Marau (principal município: Parintins); e do Rio Andirá (principal municlpio:
Barreirinha). Os professores que tem voltado a participar dos encontros sáo
mais da regiáo do Andirá (local do atual rePresentante da COPIAR' Prof.
Leonardo Michiües). Na última reuniáo da Comissáo (abril97) ele relatou que
202 Rosa Helena Dias da Silva

manda informes para a regieo do Marau, via rádio-fonia. Vemos assim o


esforgo concreto para garantir a participagáo de todos. No X
Encontro/julho,l997, vieram 04 professores da regiáo do Marau e 04 da regiáo
do Andirá.
190 GALLOIS,DomTníque.Mairi revisitada, NHII/USP/FAPESR Sáo Paulo, 1993,
p.64
l9l Atualmente, o Prof. Sebastiáo Duarte é única pessoa que já participou de todos
os Encontros realizados (I ao X Encontro).
192 O levantamento geralll994 foi realizado em conjunto pelas assessorias (Marta
Azevedo, Márcio Silva, Iara Bonin e Rosa Helena Dias da Silva)
193 Quanto d estimativa a respeito da real populagáo indlgena no Brasil, os índices
que mais tem sido usados variam entre 270.000 e 330.000 (tais cifras sáo indi-
cadas pelo ISA - Instituto Sócio Ambiental e pelo CIMI, respectivamente). O
governo tem falado no total de 330.000, segundo informagáo do atual
Presidente da FUNAI, em recente visita i Manaus (fornal'A Crltica",22lo9l97).
194 Viajaram junto is delegagóes de professores indlgenas, na volta a Manaus, as
seguintes assessorias: Prof. Márcio Silva (UNICAMP); Ednelson Pereira e
Angela.Kurowisk (OPAN) e ProF Ana Costa (Universidade do Amazonas).
195 Conforme Documento final do Seminário "Currlculos e Escolas Indígenas",
Mari, grupo de estudo de educagáo indlgena do Departamento de
Antropologia da USR 1990.
196 Registre-se que há uma série de cursos, de diferentes concepgóes e orientagóes,
financiados por diversas fontes (em especial , verbas do próprio MEC), acon-
tecendo mais recentemente, e que merecem um estudo especlfico, para que se
possa avaliar profundamente as diferentes propostas, verificando se estas tém
respondido is aspiragóes, necessidades, anseios e princlpios colocados pelo
movimento.
197 A figura do monitor indígenabilíngue caracterizava-se por ser um papel inter-
mediário entre os índios e as agéncias externas. Usava-se uma pessoa do
próprio grupo para ser o interlocutor e repassador dos conterldos. Neste senti-
do, o que vale ressaltar é que as propostas e projetos eram elaborados de fora,
sendo que, ad monitor restava adaptar-se, e para isso era treinado. Para Márcio
Silva e Marta Azevedo, "monitor billngue" é um personagem "essencialmente
problemático e ambíguo", Explicam, "náo é outra coisa senáo um professor
indlgena domesticado e subalterno. (...) E muito menos alguém que monitora
do que alguém que é monitorado por outro". E complementam sua análise
dizendo que, desta forma, "(...) estao sempre prontos a servir a seus superiores
civilizados" (SILVA E AZEVEDO. op. cit., p.151-152)
198 LEITE, op. cít.,p.234
199 A questáo que se colocava era a seguinte: "Quais sáo as formas de participagáo
das Secretarias Estaduais, Municipais e do Governo Federal nas Escolas
Indlgenas?"
200 Mais adiante na história do movimento, no seu IX Encontro/1996 (que será
posteriormente relatado), esse ponto é recolocado com toda forga, dentro da
discussáo do tema central do evento "Escolas indígenas e Projetos de futuro dos
A autonomia como valor e a articula7áo de possibilidades 203

povos". No documento final do referido Encontro poa.-o, ler: "(...) é

necessário formarvalorimr profissionais para a própria comunidade, visando a


e
nossa autonomía e para que as escolas sirvam como instrumento para a per-
manCncia dos jovens em nossas aldeias, e nao como portas de mída'i
201 MELIA, op.cít.,p.22
202 SILVA e GRUPIONI op. cit.
203 OLIVEIM, op. cit., p.63
204 MELIA, op.cit.,p.22
205 Texto do "Projeto para os Encontros de Professores Indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre no triénio 1994- 1996" elaborado pela COPIAR' texto datil, p.l
206 LEITE, op. cit. p.199 (grifos do autor)
207 BARTH,Frederrk.Los grupos étnicos y sus fronteíras - la organimción social de las
diferencias culturales, México, Fondo de Cultura EconÓmica, 1976
208 OLIVEIRA,Joáo Pacheco de."A viagem da volta - reelaboragáo cultural e hori-
zonte político dos povos indígenas do Nordeste" in Atlas das terras indlgenas do
NordestqRio de Janeiro, PETI, Museu Nacional, 1993
209 OLIVEIM,Roberto Cardoso.Identidade, etnia e atrutura social" Sáo Paulo,
Pioneiras, 1976,p.5-6
210 SILVA,Aracy Lopes da. lndiossáo Paulo, Editora Atica, 1988, P.8
2ll CUNHA, op.cit., p.140
2t2 CUNHA, op. cit., p.r29-L3Ur34
213 A dinámica de arrecadagáo de fundos desta entidade é particüarmente exPres-
siva: no Dia de Reis (a tradu(áo do nome da entidade é'A9áo dos Tiés Reis
Magos"), criangas católicas de todo o país saem de casa em casa' vestidas á
caráter, cantam cangóes tradicionais relativas a essa data, e angariam verbas
para os projetos. O critério de decisáo quanto aos ñnanciamentos é de apoio
prioritário a projetos ligados i infáncia e juventude. E, desta forma, uma soü-
dariedade internacional "de crianga para crianta" - já que o trabalho da maio-
ria dos professores se dá diretamente com as criangas indígenas.
214 Texto do "Projeto para realizaglo do VI Encontro dos professores indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre" (arquivo COPIAR)
215 Texto do "Projeto para realizagáo do VI Encontro" (arquivo COPIAR)

216 Idemibidem
217 Olhando os documentos a partir da ótica da produgáo e análise do discurso,
poderíamos localizá-los como "discurso para branco" ou "discurso agád' (con-
forme GALLOIS,Dominique .Maíri Revisitada, Sáo Paulo, NHII/USP/FAPESR
1993). Sao discursos pollticos que denotam sempre uma posigáo de confron-
to. Neles, os argumentos sáo construídos para orientar, controlar ou modificar
o rumo das relagóes interétnicas.
2L8 Elaborado em dezembro/96, surgiu da necessidade do próprio movimento
indígena divulgar ua experiéncia prática e de reflexáo sobre a temática da edu-
cagáo escolar em suas aldeias. A iniciativa Partiu de Gersem dos Santos
Luciano, ex-membro da COPIAR e, na época, coordenador geral da COIAB e
foi concretizada na forma de um "Informativo", para o que, solicitou minha
204 Rosa Helena Dias da Silva

contribuigáo. O Informativo foi uma publicagáo realizada sob responsabili-


dade de trés organizagóes indígenas: FOIRN, COIAB e COPIAR; com parceria
e apoio do CIMI. Minha contribuigáo deu-se no sentido de sistematizar alguns
trechos do meu Relatório para Exame de Qualificagáo (mestrado), dentro de
uma proposta de tópicos que pudesse dar uma visáo geral da problemática e
situar a experiéncia dos professores indígenas. Tal proposta, apresentada por
mim e discutida e trabalhada posteriormente em conjunto com Prof. Gersem,
ficou assim definida: Editorial; Breve histórico da educagáo escolar indígena; o
movimento dos professores: histórico, encontros anuais, Declaragáo de
Princípios, principais temáticas; IX Encontro/96; algumas experiéncias que
tem dado certo; a reüdade do Rio Negro: povos indlgenas e escolarizagáo -
desafios e perspectivas; escolas indígenas e projetos de futuro
219 MAZZlLLl,S,leli.A pedagogia além do discurso, Piracicaba, Editora UNIMEP,
1992,p.76
220 BERTRAND,Michele."O homem clivado - a crenta e o imaginário" in SIL-
VEIRA,Paulo e DORAY,Bernardo (org.). Elementos para uma teoria marxísta
da subjetividade, Sáo Paulo, Vértice, 1989
221 A própria sigla da Comissao já foi objeto de discussáo do movimento que, com
a entrada do Acre (em 1992), decidiu manter "COPIAR", sendo que, a partir de
entáo significa "Comissáo dos Professores Indlgenas do Amazonas, Roraima e
Acre. Atualmente, o nome COPIAR tem sido usado (tanto interna como exter-
namente) para referir-se ao próprio movimento, de forma ampla.
4. PROFESSORES INDÍGENAS:
PAPEL E PERSPECTIVAS

4.1. De monitor a professor: Professores e projetos indígenas de esco-


la

O conceito de professor indígena está ligado, como parte inte-


grante, á uma definigáo mais ampla: a proposta de uma escola indlge-
na . Significa que seu trabalho só pode realizar-se eficazmente, segun-
do os ideais afirmados, num modelo realmente indígena de escola e
que esse só pode ser construído com a participagáo efetiva de todos:
professores, liderangas, alunos e comunidade indígena.
Conforme Ruth Monserrat, "professor indígena é categoria em
estruturagáo na sociedade atual, a partir de variadas experiéncias, ne-
cessidades e expectativas tanto das sociedades indlgenas em contato
permanente (ou frequente) com a sociedade majoritária, como dos
grupos e entidades de apoio envolvidos em agóes de educagáo escola-
úzada (para) indlgen{' 222 .
Acrescentaria que, além de categoria teórica, a qual figura já ofi-
cialmente em recentes documentos, com énfase ao "Diretrizes para a
Política Nacional de Educagáo Escolar Indígena", do MEC223; "profes-
sor indígena" é categoria prática e organizativa em plena construgáo
pelos próprios povos indlgenas.
Na opiniáo de Márcio Silva e Marta Azevedo, "a expressáo'pro-
fessor indígena', no contexto atual da discussáo sobre educagáo escolar
indígena, tem um único sentido: náo pretende catacterizat uma classe
particular de professores. Sáo, ao contrário, professores no sentido ple-
no, que sáo, ao mesmo tempo baniwa' tikuna, guarani, etc., e que por-
tanto se preocupam, enquanto professores, com todas as dirnensóes da
educagáo escolar, e ainda, enquanto membros de totalidades sociológi-
cas diferentes da nossa, com a situagáo atual, os projetos e o destino de
seus povos: totalidades e náo partes que se relacionam com a socieda-
de brasileira de forma bastante complext'224.
Há uma énfase e uma concordáncia grande quanto á questáo da
necessidade da participagáo da comunidade no processo da educaqáo
206 Rosa Helena Dias da Silva

escolar indígena, sendo qu€ a construgáo da escola indígena é entendi-


da como um empreendimento coletivo.

Professores, liderangas e coffiunidade precisam andar juntos, dar


apoio. Sño as autoridades da escola, como um conselho que dirige a
e scoln (P rofessores Guarani).

Uma primeira questáo que se sobressai é avalorizagáo do aspec-


to educativo de todo cotidiano vivido junto á família e a comunidade,
assim como o intercámbio entre os saberes tradicionais e os novos con-
hecimentos.
Os conteúdos das quatro entrevistas realizadas nesta pesquisa re-
forgaram o princípio - afirmado e defendido ao longo da história do
movimento - de que, nas escolas indígenas, os professores devem ser
indlgenas e o entendimento de que essa escola é parte de um projeto
maior de futuro, cuja criagáo e definigáo deve ser dos próprios índios.
Esteban Emilio Mosonyi, em seu texto "Familia indlgena y Edu-
cacion Intercultural Bilingue", fala com clareza sobre esse aspecto fun-
damental desta discussáo: "nem a Educagáo Intercultural Billngue, nem
outros mecanismos de vitalizagáo das caracterlsticas profundas da
identidade poderáo prosperar por tempo indefinido, senáo pela via de
um ataque i problemática de conjunto que, em dada conjuntura, atra-
vessa uma comunidade ou etnia. E imperativo emoldurar qualquer es-
forgo em um projeto comunal ou regional de alcance integral, que leve
em conta parámetros como as terras ancestrais e recém adquiridas,
uma economia que conjugue a autosubsisténcia com o mercado de al-
guns produtos, uma organizagáo participativa no nlveis de decisáo,
principalmente a resolugáo dos problemas angustiantes da saride, ser-
vigos e direitos humanos elementares. Se, de alguma maneira, náo se
contemplam todas essas vertentes, qualquer programagáo isolada está
destinada ao fracasso'225.
Silvio Coelho dos Santos, em seu livro Educagdo e SociedadesTri-
bais,pubhcagáo primeira na temática especificamente vinculada á edu-
cagáo escolar indígena no Brasil, já em 1975, com objetivo de avaliar a
possibilidade da educagáo formal (escolarizagáo) com ensino billngue,
implantado em alguns postos da FUNAI no sul do país, aponta que um
dos limites deste processo foi justamente a concepgáo de que a educa-
gáo escolar por si só, introduziria mudangas substanciais na vida indi
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades 207

gena. Concluiu na época, entáo, que os programas de escolarizagáo de-


veriam fazer parte de um projeto mais amplo, valorizando os índios e
sua cultura. Na análise deste autor, a problemática indígena tem causa
num quadro sócio-político, cultural e ideológico, e é neste ámbito de
complexidade que deverá ser equacionada. Considero que tal concep-
gáo abre caminho para a reflexáo atual, na perspectiva desta pesquisa,
onde as escolas indígenas sáo concebidas como parte de um projeto
mais amplo de futuro dos povos a quem elas servem'

4.2. Prátticapolítico-pedagógica: concepgóes, estratégias e iniciativas

Uma das forgas deste Movimento é a avaliagáo que fazem, de


que, mesmo frente a uma situagáo náo ideal, repleta de problemas e
contradigóes, é possível agir, nem que seja como dizem, realizando tra-
balhos "paralelos" ou mesmo "clandestinos". O termo paralelo é usado
no sentido de que, mesmo náo abandonando totalmente o modelo de
escola de nossa sociedade, introduzem práticas e conteúdos próprios
de suas culturas. Sáo considerados trabalhos clandestinos aqueles que
sáo realizados sem o reconhecimento oficial'
Outros aspectos que se destacam sáo: a criatividade e as iniciati-
vas concretas; a crítica e contestagáo ás antigas práticas, como no caso
citado pelo Prof. Sebastiáo Duarte em sua entrevista, sobre as come-
moragóes do "sete de setembro"; a náo dependéncia de material didá-
tico de fora, através da elaboragáo de cartilhas na língua e confecaáo de
tinta caseira, presente na experiéncia do Médio Solimóes, relatada na
entrevista da Profa. Marilene Cordeiro, por exemplo; a humildade pa-
ra assumir a pouca experiéncia e a vontade de exercitá-la, confoime
análise da Profa. Pedrina dos Santos, diretora de Escola em Sáo Gabriel
da Cachoeira/AM, em sua entrevista.
Como estratégias escolhidas pelos professores indígenas obser-
vamos a busca por se fazerern conhecer, procurando respaldo nas re-
gióes através do reconhecimento local e oficial, que resulta em con-
quista de respeitabilidade interna e frente á sociedade envolvente.
Na anáüse do movimento, os professores indígenas tém tido um
papel ativo, demonstrando atitudes de náo-passividade frente ás situa-
qóes. Os desafios sáo como alavancas motivadoras para o prossegui-
mento do processo, náo gerando imobilismo. Percebe-se o gosto pelo
trabalho rcalizado, a criatividade e grande capacidade de proposigáo'
208 Rosa Helena Dias da Silva

O saber é entendido como processo contínuo, que náo se esgota,


mas se constrói e reconstrói sempre. Visualiza-se uma certa ordem nes-
se processo cognitivo, que vai das questóes locais para as mais amplas.
Valoriza-se assim o que é próprio de cada povo, o que contribui no
processo da auto-estima e afirmagáo de identidade, partindo dos etno-
conhecimentos para entáo, acrescentar novas nogóes e conceitos. O
conhecimento é visto entáo como forma de ampliagáo do mundo, rea-
firmando primeiramente a própria cultura, sem se fechar em sua expe-
riéncia.
O professor indígena é visto náo como o único portador do sa-
ber, valorizando-se muito o aspecto do aprendizado mútuo, presente
na relagáo professor-aluno-comunidade. Sua tarefa é ser multiplicador,
repassador dos novos conhecimentos, sendo que, desta forma, o saber
é partilhado e náo apenas apropriado individualmente. Sua responsa-
bilidade é ser aquele que "transita" nos dois mundos: o indlgena e o do
"branco", segundo suas próprias palavras. O desafio é conseguir man-
ter um certo equilíbrio nesse complexo processo de inter-relagáo entre
as diferentes culturas.
Ao responder a pergunta Como devem ser ensinados os conheci-
mentos, item presente no roteiro para elaboragáo de currlculos, trabal-
hado no IV Encontro ll99l, o grupo de professores do Rio Negro afir-
mou:
Tais conhecimentos devem ser ensinados por meio de pesquisas rea-
lizadasjunto as Pessoas sóbids, procurando formular os livros didá-
ticos ou as apostilas que servirño de materiais diüticos dentro de
uma escola indígena. Para isso deveria formar utna equipe de pes-
quisa, disposta a deslocar nas outras comunidades distantes resga-
tando as origens pessoais, o coletivo, as histórias, os acidentes geo-
gráficos, os rios, a fauna e a flora. Antes de tudo a comunidade in-
dígena deve ser conscienüzada, para melhor funcionamento do tra-
balho".

A participagáo dos professores nos Encontros também se dá de


uma forma dinámica. Durante as discussóes, contrapóem os aspectos
debatidos com a prática vivenciada. Mesmo ainda reunidos, já estáo
imaginando e planejando como váo "aplicar" os ensinamentos apren-
didos, ou seja, como levar a discussáo feita em caráter mais global, já
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 209

que confronta várias experiéncias, de povos indígenas diferentes, vi-


vendo processos distintos , para o seu trabalho local.
Quando falam do seu contato pedagógico diário com seus alu-
nos, percebe-se um profundo respeito pela crianga, e uma sensibilida-
de ás suas motivagóes, levando-se sempire em conta a sua curiosidade.
A paciéncia é citada como um dos valores pedagógicos importantes na
relagáo professor-aluno.

Porque ela, a coordenadora, me deu uma apostila só pro primeiro


ano. Só é desenho e pintura e as criangas num gostaram... Aí eles
pediram que era melhor a gente trabalhar com a natureza, Porque
cotn A natureza, a gente ia pro campo, aí eles pegava folhas, eles de-
senhavam... Se fosse matemática, eles contavam as folhas, Aí,
quando a gente voltava prá sala de aula, eles traziam a quantia de
folhas que eles ünham contado. Aí eu pedia prá eles assim: quem
tem cinco folhas na mño? O aluno dizia: eu! Qu,er escrever o núme'
ro cinco? Vai lá... Aí ele ia, escrevia e ficava todo contente. Entdo
nessa parte aí eu acho que ajuda tanto prá mim como para o alu-
no. Porque a folha ele conhece prá contar e outas coisas al eles nño
sabiam desenhar e netn contar quantos tinha" (Profa. Marilene
Cordeiro, do povo Miranha, em entrevista dada a esta pesquisa).
Nosso jeito de ensinar é com muita paciéncia sempre usando a pró-
pria palavra. Ndo forgar muito a crianga na hora de dar aula.
Contando história da comunidade. Conünuando participar dos
trabalhos da comunidade e das liderangas. Respeitando as regras
de acordo com a cotnunidade. Nosso jeito de avalior é manter a pa-
ciéncia, usar característica de nño deixar o aluno fazer sozinho ou
mesmo sair fora do objetivo. Professor pode repetir várias vezes
cotrt o aluno, conversar bastante durante a aula, voltar sempre,
lembrar o que foi dado ontem. Também a comunidade parücipa
da avaliagdo (Professores Guarani, Relatório do WI Encon-
tro/1994).

Por ser uma idéia muito usada e formulada constantemente pe-


lo movimento indígena nas suas representagóes e reivindicagóes, pro-
curei estudar alguns teóricos que tivessem trabalhado essa nogáo de co-
munidade.
210 Rosa Helena Dias da Silva

Darcy Ribeiro expóe, de forma acesslvel e contundente, sua con-


cepgáo quanto ao tema: "a unidade essencial do fenómeno humano é a
comunidade étnica. A comunidade étnica é aquele lugar em que o ho-
mem se produz. Náo há homem sem comunidades étnica. A comuni-
dade, na suas formas mais elementares, é singular, um grupo que guar-
da sua própria cultura, tem o seu próprio modo de ser e tem uma di-
mensáo lyni¡alzi'226.
Ao esbogar sua análise de que uma comunidade étnica, com seus
saberes e valores próprios, é extremamente resistente, apesar dos vio-
lentos processos historicamente vividos, indaga a respeito do que é ne-
cessário para que esta permanega viva. E conclui: "a única condigáo, o
único requisito para que a comunidade persista é que os pais possam
criar seus filhos dentro da comunidade".
Bernardo Bernardi enfatiza o caráter social e dinámico deste
conceito ao acrescentar que "comunidade náo é um conjunto de indi-
víduos justapostos casualmente, mas um complexo coordenado e orde-
nado para obtengáo de fins específicos"227. Prossegue sua reflexáo lem-
brando que "o vocábulo grego ethnos significa povo e é precisamente
pela sua relagáo coletiva com a cultura que foi adotado como étimo pa-
ra indicar o estudo sistemático da cultura na palavra etnologia. O pro-
cesso constituinte da comunidade é essencialmente dinámico; nunca
cgssa".

4.3. A forga pedagógica da oralidade

Percebe-se como dado positivo, nas experiéncias relatadas nos


Encontros, a permanéncia de práticas educacionais tradicionais de ca-
da grupo. Isto é, a escolarizagáo náo substitui as formas próprias de
educagáo, representando sim um outro momento educativo, com no-
vos conteúdos e formas228, partindo porém da base cultural de cada
povo. Nesse sentido, vemos, por exemplo, a conservagáo do valor da
oralidade como meio principal de comunicagáo e expressáo, seja na vi-
véncia diária, seja na sala de aula.
Como se sabe, uma das características da educagáo indlgena é a
oralidade, já que é parte integrante de sociedades de tradigáo oral. Ao
longo deste estudo, pude registrar observagóes que me levaram a cons-
tatar que, dentro dos princípios pensados e praticados pelos professo-
res, no processo de concretizagáo de escolas realmente indlgenas, a ora-
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 2ll

üdade tem sido mantida como uma das principais formas de comuni-
cagáo e como instrumental didático-pedagógico.
Duas citagóes do historiador José R. Bessa Freire mostram o va-
lor desta tradigáo oral, e como historicamente ela foi negada ou rejei-
tada, por ser entendida como símbolo de atraso em relagáo ao modelo
eleito como único verdadeiro : "a historiografia ocidental, da qual a
brasileira faz parte, desdenhou desde o seu inlcio qualquer documen-
tagáo verbal que náo fosse escrita, padronizando este trato e universa-
lizando o seu modelo de confiabilidade nos documentos escritos, fa-
zendo extensiva esta qualidade ao resto do mundo que foi encontrado
no processo colonizador".
"Reflexóes teóricas sobre a natureza da oralidade e seus mecanis-
mos de transmissáo e sobre o próprio conceito de tradigáo oral, acom-
panhadas de pesquisas realizadas junto is sociedades ágrafas, vém de-
monstrando a fragilidade, náo da tradigáo oral, mas da argumentagáo
utilizada para descartá-la como f6¡fis"229.
Este mesmo autor nos traz diferentes definigóes de tradigáo oral.
Para Franz Boas é a "autobiografia da tribo"; Henri Moniot a denomi-
na como "tudo aquilo que é transmitido pela boca e pela memória". |á
para fan Vansina é "um testemunho transmitido oralmente de uma ge-
ragáo aoutra". Jean Molino diferencia duas acepgóes: "no sentido estri-
to, a tradigáo oral designa as artes da palavra numa sociedade (...), e en-
globa a poesia, os provérbios, os mitos, os contos e toda a literatura
oral". Já no seu sentido amplo, "náo se resume á transmissáo de narra-
tivas ou de determinados conhecimentos, mas é geradora e formadora
de um tipo particular de homem e sociedade". Neste contexto, "o con-
ceito acaba englobando os ritos, as práticas religiosas, o sistema de
crenga, os hábitos e costumes, enfim, toda a produgáo simbólica de
uma comun idade ágr aft'.
Enfocando as línguas indígenas como patrimÓnio cultural dos
povos, com toda validade e teor de conhecimento científico, Freire cha-
ma a atengáo para a questáo de que se considere os saberes indígenas
como ciéncia, com suas lógicas e racionalidades próprias e específicas:
"efetivamente, as llnguas dos povos da floresta amazdnica e as formas
como domesticaram a mandioca e processaram a extragáo de seus de-
rivados, mediante uma tecnologia sofisticada milenar que tem que li-
dar com um veneno poderosíssimo, constituem evidéncias de que es-
tas sociedades orais tém uma prática de produgáo de conhecimento,
212 Rosa Helena Dias da Silva

testam hipóteses através de experimentos genéticos, plantam e selecio-


nam sementes, realizam observagóes rigorosas e classificam o mundo
natural de uma maneira táo complexa como a taxonomia de um biólo-
go universitário, conforme demonstram recentes estudos na área de et-
nobiologia"230.
Paulo Freire nos fala também sobre o valor pedagógico da orali-
dade: "sem palavra escrita a intimidade do movimento pedagógico é
superior á base. Sáo mais dialéticos, tem a compreensáo da totalidade
permanente. (...) A énfase na oralidade náo pode parar em nome da
grafia: a leitura do mundo precede a leitura da palavra e a leitura da pa-
lavra exige a continuidade da leitura do mundoD23l.

4.4. A escrita na construgáo de uma outra cidadania: escola e cidada-


nia indígena

Quanto aos materiais didáticos, os professores indígenas, parti-


cipantes do movimento aqui estudado, entendem-nos náo como um
dado isolado, nem como simples mecanismo de apoio ao processo de
ensino-aprendizagem, mas sim como parte fundamental,ligada a toda
proposta pedagógica, com seus fundamentos e objetivos. Estáo cons-
cientes de que os livros tratam, através de seus conteúdos e a forma de
abordá-los, da questáo do que é valor para a determinada sociedade
que o produziu, ou seja, o caráter polltico-ideológico das mensagens e
ilustragóes. Verifica-se, por isso, irisisténcia constante tanto nas entre-
vistas dos professores indígenas, quanto nos relatórios dos Encontros,
em afirmarem a necessidade de produzir seus próprios materiais e lite-
ratura.
Demonstram ainda, os professores do movimento, o entendi-
mento de que eles, os povos indígenas, sáo representantes da diversida-
de étnica, com suas especificidades, mas que se encontram inseridos
dentro de um contexto maior, no caso, a sociedade brasileira. Neste
sentido, suas lutas reivindicatórias sáo por direitos, tanto gerais quanto
especlficos, assim como se percebem com deveres e responsabilidades
para com o conjunto maior, do qual sáo partes.
Cunha (L994) nos fála sobre essa complexa delimitagáo helagáo
entre partes/totalidades: "(...) as culturas sáo sistemas cujas partes in-
dependentes sáo determinadas pelo todo que as organiza. Se elas pas-
sam a ser usadas, por sua vez, como signos em um sistema muitiétnico,
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 213

elas, além de serem totalidades, se tornam também partes de um novo,


de um meta-sistema, que passa a organizá-las e a conferir-lhes portan-
to suas posigóes e signiñcados. (...) A posigáo das populagóes indlgenas
dependerá de suas próprias escolhas, de políticas gerais do Brasil e até
da comunidade internacional"232.
Tál constatagáo remete-nos a outra discussáo de caráter funda-
mental: a cidadania indígena. Fago uso aqui da expressáo "cidadania
indígena" menos preocupada em enxergá-la e defini-la enquanto ques-
táo teórica, e mais interessada em buscar uma "compreensáo e leitura
crítica da atuagáo dos povos inügenas no ámbito da sociedade civil e
na sua relagáo com o [s¡¿d6"233.
Procurando levantar algumas questóes neste intrincado debate,
atenho-me ao caso dos Macuxi e Wapixana, em Roraima' Estes povos
estáo reconquistando seu território tradicional, exigindo a demarcagáo
de terra contínua daárealndígena Raposa-Serra do Sol. Contra as vio-
léncias contínuas, os índios tem respondido com inúmeras tentativas
de exigir, do Poder Executivo, o cumprimento da Constituigáo; e do
Poder Judiciário, justiga. Diante da imobilidade, omissáo ou parciali-
dade de um e outro, os índios vém buscando afirmar seus direitos,
mesmo através de atitudes mais radicais, como, por exemplo, as a9óes
já realizadas de derrubada de rede de energia elétrica e interdigáo de
pontes.
Através de suas organizagóes locais, regionais e estaduais - den-
tre eles o ClR-Conselho Indígena de Roraima, tém se manifestado se-
guidamente, denunciando as violéncias, exigindo providéncias e coor-
denando esforgos paraa resolugáo dos problemas, como a proposta, já
realizada,do encontro entre políticos locais, e liderangas indlgenas em
Normandia (município criado em terras indígenas). Assim, entendem
que sua cidadania passa, fundamentalmente, pela garantia de seus te-
rritórios e o respeito ao seu modo diferenciado de viver e se organizar
(conforme garante o artigo 23 1 da Constituigá o, iá citado)234.
Guerrero problematiza o debate, ao destacar um outro asPecto
presente na polémica em questáo: "a heterogeneidade cultural é condi-
gáo para o desenvolvimento da humanidade, e para o exerclcio dos di-
reitos dos povos e das minorias em manter suas próprias culturas. Po-
rém a defesa intransigente da diversidade pode certamente resultar em
instrumento de dominagáo dentro e fora dos grupos ou culturas. A de-
fesa da diversidade ou a preservagáo das identidades diferenciadas é va-
214 Rosa Helena Dias da Silva

lida quando se trata de recuperar a dignidade de um povo, porém náo


para excluir do direito a gozar de todos os avangos que pertencem ao
património cultural da humanidade, e o direito de contribuir ao acer-
vo da cultura universal com o que lhes é própris"235.
Os Encontros tém possibilitado aos professores indlgenas a aqui-
sigáo de instrumental de discussáo que lhes permite um nlvel de diálo-
go e relacionamento mais equilibrado frente aos demais setores da so-
ciedade civil e do Estado.
Podemos verificar um exemplo concreto deste aprendizado po-
lltico-pedagógico no relatório apresentado pelo Prof. Sebastiáo Duarte
ao VII Encontro, sobre sua participagáo no Comité Assessor do MEC:

Foi pela primeira vez que parücipei deste tipo de encontro tño de-
licado, onde se trata a questño da política da Educagdo Escolar In-
dígena a nlvel Nacional. (...) Nao foi estranho, porque já estive
participando dos seis Encontros da COPIAR, nos quais discutimos
bastante demonstrando os nossos pareceres para as escolas indíge-
nas Inclusive fui eu e o losé Franga Makuxi de Roraima" que em
1988, levamos para o Congresso Nacional, as propostas para LDB
dos professores do Amazonas e Roraima.

Em recente ocasiáo, durante arcalizagáo da reuniáo da COPIAR


- preparatória do X Encontro, O Prof. Enilton André, Wapixana, repre-
sentante da regiáo de Roraima avaliou esse aspecto pedagógico e ino-
vador do próprio movimento:

Nosso movimento cresce a cada ano, trazendo novidades. Estamos


tomando base para assumir o espago pelo qual estamos brigando.
Por exemplo, o Gersem, que é uma lideranga do moyimento dos
professoreq foi muitos anos da COPIAR e agora assume a Secreta-
ria de Educagao de Sño Gabriel; o Orlando, também um professor
indígena do movimento que é eleito vice-prefeito de um município
em Roraima; e assim outros companheiros... A COPIAR ganha
muito com isso, e ficamos muito contentes quando se assume a fa-
zer um trabalho diferente do dos brancos. A preocupagño nossa é de
ser utn conselho de compromisso; Ievar um trabalho responsável.
Isso dá base para os companheiros novatos que vño entrando na lu-
ta. Estamos criando novidades para o movimento. O movimento -
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 215

e encontros - é urna escola onde Professores


seus e alunos sño a. mes-
ma pessoo236 (grifo meu).

Verifica-se a apreensáo e a apropriagáo de conceitos formulados


"de fora'1 por exemplo, os da antropologia, como cultura e etnia, pas-
sando a incorporá-los em sua linguagem, e usando-os a seu favor.
Vejamos o exemplo da categoria "índio". Sabemos que essa é
uma criagáo de nossa sociedade e que o "ser índio" significa reconhe-
cer sua diferenga em relagáo ao náo-lndio. Porém possui também o sig-
nificado da descoberta da semelhanga que une cada grupo a todos os
demais grupos indígenas, e que consiste na distáncia que os separa da
sociedade majoritária.
"Na medida em que os grupos indígenas se apropriam da cate-
goria'índio'nesses dois sentidos, estáo no caminho de construir uma
nova identidade coletiva e constituir-se efetivamente como minoria ét-
nica (...) emergindo como ator político gels¡iv6"237.
Neste texto, sugestivamente entitulado "O lugar do índio", Dur-
ham faz uma aniílise muito oportuna sobre essas questóes. Apesar das
mudangas ocorridas nesses ultimos dez anos - e nelas destacamos o
tratamento e definigóes dadas á questáo indígena no novo texto Cons-
titucional de 1988, o que significou um avango considerável, como já
foi mencionado, continua atual ao momento histórico que estamos vi-
vendo hoje. Escolhemos um trecho no qual a autora sintetiza a com-
plexidade deste debate: "a verdade é que náo se pode Propor, de fato,
uma solugáo satisfatória do problema indlgena sem colocar imediata-
mente em questáo a necessidade de alterar estruturas de dominagáo
profundamente enraizadas na sociedade brasileira, e isso náo apenas
no plano polltico, jurídico e económico mas, inclusive, no nível social
e cultural o mais abrangente"238.
Quanto á prática pedagógica e autonomia, neste estudo, se so-
bressai o papel central dos professores indígenas, enquanto sendo dos
principais envolvidos nos diversos processos de construgáo das escolas
indígenas.
Observando os relatos que estes fazem de sua prática pedagógi-
ca diária, podemos perceber que estáo buscando resolver e encaminhar
satisfatoriamente as questóes mais amplas e complexas, trazidas em
grande parte pela burocratizagáo, no sentido weberiano, embutida no
processo da escola, enquanto espago institucional. Destacam-se aí pro-
216 Rosa Helena Dias da Silva

blemas como, oficializagáo das escolas, remuneragáo dos professores,


currículos e regimentos, infra-estrutura.
Como lembra Mosonyi (L996), "ainda segue predominando
uma concepgáo institucional e formalizada da Educagáo Intercultural
Büngue: fundar escolas, formar ou reciclar professores, fazer progra-
mas, publicar textos pedagógicos, desenhar metodologias, e inclusive
ganhar batalhas frente ás autoridades nacionais, para essa iniciativa.
Tudo isso é de suma importáncia, e estamos longe de haver cumprido
sequer todos esses passos, nem mesmo nos lugares mais favoráveis. Po-
rém, há outra série de problemas que precisam ser enfrentados, senáo,
é imposslvel avangar (...). Thata-se da relagáo entre este tipo de educa-
9áo e a vida familiar cotidiana, dentro da comunidade, já que a infán-
cia escolarizada, pertence, em primeiro lugar ) suas famflias de ori-
$ern"239.
Por outro lado, o espago imediato de possível autonomia - a sa-
la de aula - é utilizado com muita iniciativa e criatividade. Poderia elen-
car uma série de citagóes dos Relatórios dos encontros, onde enxerga-
mos claramente o exposto acima. Escolho, porém, um dirálogo ocorri-
do entre o Prof. Márcio Silva, e o Prof. Sebastiáo Duarte, que leciona a
disciplina "Estudos Sociais" na "Escola Indlgena Sagrado Coragáo de
fesus", em Taracuá, Alto Rio Negro/AM24o: "perguntei ao Prof. Sebas-
tiáo Duarte, como ele podia trabalhar com livros táo inadequados, que
ensinavam, por exemplo, QU€ o Brasil foi descoberto em 1500, por Pe-
dro Alvares Cabral? A resposta foi imediata como um sopro de paricáz
'Eu digo que o livro está errado, e conto a história certa pros meus alu-
nos"'.
Quanto ás questóes que chamei burocráticas, principalmente as
ligadas ao reconhecimento oficial das escolas indígenas, muitas sáo as
tentativas e os esforgos, mas imensas também as dificuldades e dúvidas.
Remetamo-nos a um exemplo acontecido em Roraima. Após anos de
servigo para elaboragáo de currículo específico, ao encaminhar a pro-
posta á Secretaria Estadual de Educagáo, esta foi rejeitada. Posterior-
mente, quando foram reanalisá-lo, os professores indlgenas percebe-
ram criticamente que, segundo suas palavras "estrvt muito mais para o
branco do que para os índios".
Poderlamosr por urn lado, dizer que o fato da proposta curricu-
lar ter sido rejeitada, ajudou, já que propiciou a percepgáo de suas fal-
has e fragilidades. Esse fato, porém, evidencia a dificuldade do poder
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 217

público, em aceitar proposigóes dos próprios lndios, as quais conten-


ham, mesmo que, de forma incompleta, como neste caso, um modelo
de escola autenticamente indígena.
Outro exemplo concreto desta dificuldade em lidar com a diver-
sidade, a diferenga - enfim, com a alteridade - é o formulário do MEC
para cadastramento das Escolas Indígenas. Na maioria dos itens elen-
cados para serem preenchidos ("níveis de ensino ministrados";'tur-
nos"; "séries"; se há quadra de esportes; se há biblioteca; qual a"gra'
duagáo dos professores") vem já implícito um "modelo" dominante de
escola: a escola ocidentalizada que, conforme vimos no capltulo 2
(2.2.Histórico da Educagáo Escolar Indígena no Brasil), foi a que pre-
dominou na inspiragáo dos projetos de escolarizagáo Para os índios. O
formulário limita a possibiüdade de explicitar-se outros referenciais de
escola indígena, que tém sido praticados em diversas regióes, dentro
dos processos atuais de concretizagáo de escolas dos lndios. Além dis-
so, náo contempla espago para o registro de informagóes, a meu ver' re-
levantes paraa questáo do direito a uma "escola diferenciada", táo pro-
clamada, inclusive em documentos oficiais, como as próprias Diretri-
zes Nacionais para Política da Educagáo Escolar Indígena, do MEC, co-
mo, participagáo da comunidade.
218 Rosa Helena Dias da Silva

NOTAS

222 MONSERRAT,Ruth. "Professores indígenas versus lndios professores" ín Bole-


tim da ABA, abriV93, no 16, p.9
223 MEC.Diretrizes para a Polltica de Educagño Escolar Indfgena"Série Institucional,
Yol.2, 2"ed, Brasília, 1994
224 SILVA e AZEVEDO, op. cit., p.158
225 . MOSONYI,Estaban Emilio."Familia indígena y Educacion Intercultural Bün-

gue", palestra proferida no II Congresso Latinoamericano de Educacion Inter-


cultural Bilingue, Santa Cruz, Boüvia, 11.11.96
226 RIBEIRO,Darcy. "Direitos Indlgenas" in Educagño d distáncia, Brasllia, INED-
/CEAD vol.3, no4 e 5, dezl93 a abrü94
227 BERNARDo,Bernardi.Introdugño aos estudos etno-antropológicos, Colegáo
Perspectivas do Homem, p.62 e 63
228 Neste sentido, ao falar do ensino da matemática em escolas indígenas, D'Am-
brosio defende que este se dé de forma contextualizada'tomo um recurso pa-
ra solucionar problemas novos que, tendo se originado da outra cultura, che-
gam exigindo os instrumentos intelectuais dessa nova cultura". E problematiza
ainda mais essa complexa discussáo ao colocar que "a etnomatemática do fn-
dio serve, é eficiente, é adequada para algumas coisas - muito importantes - e
náo há porque substituí-la. A etnomatemática do branco serve para outras coi-
sas igualmente muito importantes, e náo há porque ignoráJa. Saber se uma va-
le mais, é uma questáo falsa e falsificadora, muitas vezes até trabalhada, inge-
nuamente, por responsáveis pela educagáo indígena" (FERREIM,Mariana K.
Leal.Com quantos paus se faz uma canoa!,Brasllia, MEC, 1994 - Prefácio)
229 As citagóes de José Ribamar Bessa Freire constam do texto de sua autoria "His-
tória e Escola Indígena" apresentado no Seminário "O Plano Decenal e a Edu-
cagáo Indígena", SEF/Departamento de Polltica Educacional - DPE, Brasí-
Iia/DF, agosto/94
230 Neste sentido, trabalho minucioso foi desenvolvido por Darrel A. Posey sobre
a ciéncia do povo Kayapó A ciéncia dos Mebengókre: alternativas contra a des-
truifio, Belém, Museu Paraense Emilio Goeldi, 1987
231 A citagáo de Paulo Freire consta do texto "Um diálogo com Paulo Frei¡e sobre
educagáo indlgena'i CIMI, Cuiabá, 1982
232 CUNHA,Manoela Carneiro da. op. cit. p. l3lll32
233 Conforme Egon Heck."Cidadania Indfgena", UNICAMR 1994
234 Tive a oportunidade de participa¡ no início deste ano, da 25" Assembléia do
CIR (Maloca do Bismark, área indlgena Raposa/Serra do Sol, 14 a 17 de feve-
reiro de 1997). Na ocasiáo, pude verificar a participagáo e contribuigáo dos
professores indígenas nesta instáncia mais ampla de articulagáo e organlzagio
política. Estiveram presentes, como delegados l Assembléia,35 professores (do
total de quase 300 liderangas). A temática da educagáo escolar era um dos pon-
tos de paqta, e foi discutida numa perspectiva abrangente, no contexto da rea-
lidade atual do contato, dentro da problemática maior da demarcagáo e garan-
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 219

tia das terras e projetos de futuro dos povos. Fazia parte do mesmo bloco de
discussáo, "auto-sustentagao, educagáo e saúde". No documento final, enviado
ao Presidente da República, podemos ler "Um dos assuntos mais séríos discuti-
dos pelos tuxauas, além da auto-sustentagAo, educagdo e saúde índlgenas, foi a de-
marcagño de nossas terras'i
235 GUERRERO,AIicia Castellano s.El debate de la Nacion: Cuestion Nacional e Au-
tonomia. Claves Latinoamericanas, Mexico, 1992, p.46
236 Relatório da Reuniáo da COPIAR, Manaus, abril/1997. O Prof. Enilton referiu-
se e Gersem dos Santos Luciano, Baniwa, da regiáo do Rio Negro e que, a Par-
tir de janeiro/O7 é o Secretário Municipal de Educagáo de Sáo Gabriel da Ca-
choeira. Lembro que, também no mesmo município (cuja populagáo é 90o/o
indígena, conforme censo autónomo/FOIRN), o vice-prefeito eleito é um pro-
fessor indlgena. O outro professor citado por Enilton é Orlando Justino, Ma-
cuxi, atual vice-prefeito do município de Normandia/RR.
237 DURHAM,Eunice Ribei¡o. "O lugar do lndio" in CPI. O lndio e a cidadania,Sio
Paulo, Brasiüense, 1983, p.15 (grifo da própria autora)
238 Idem, ibidem, p.18
239 MOSONYI, op. cit.
240 Esse diálogo encontra-se registrado em correspondéncia pessoal, recebida do
prof. Márcio Silva, em 3IlO7l9L
IDENTIDADE, IDENTIDADES:
5.
ESCOLAS INDÍGENAS, MOVIMENTO
INDÍGENA E AUTONOMIA

5.1. Movimento indígena2 avez e ar:oz dos professores

A aniálise proposta neste trabalho envolve o entendimento das li-


gagóes e influéncias entre o movimento indígena mais amplo e o mo-
vimento de professores indígenas. Vemos que é a partir da década de
80, com a emergéncia do movimento indígena, que o panorama come-
ga a mudar, mesmo que em pontos isolados. Na Amazónia, surgiram
em algumas áreas escolas organizadas e geridas pelas próprias comuni-
dades, como por exemplo, entre os Sateré-Maué (Baixo Amazonas).
Em outras, escolas do estado ou de missóes religiosas foram incorpo-
radas como instituigóes indígenas, como por exemplo, entre os Macu-
xi (Roraima) e entre os Baniwa (Alto Rio Negro - AM).Algumas des-
tas populagóes passaram a reivindicar o direito de eleger, entre seus
próprios membros, os professores de sua confianga" (Silva,l991).
Marta Azevedo e Maria Helena Ortolam lembram-nos que "o
movimento indígena, entendido como agóes organizadas para a reso-
lugáo dos problemas causados pelo contato com a sociedade náo-índia,
sempre existiu, embora sob diferentes formas. A partir dos anos 80, no-
vos processos e formas organizativas surgiram para fazer frente aos
problemas concretos das comunidades e povos indígenas. (...) A forma
de estruturar o movimento indígena em organizagóes é um dado novo
no processo de luta e resisténcia dos povos indlgenas contra a coloni-
zagáo, que se processa desde o século XVI até hoje. Esta forma tem si-
do resultado das relagóes interétnicas entre os povos indlgenas e os di-
versos segmentos da sociedade náo-índia, no contexto do estado Bra-
sileiro"241.
Na aniílise de Iara Bonin, "o movimento indlgena nasce como
espago de rearticulagáo da resisténcia para fortalecer o poder de rea-
gáo". Lembrando a realizagáo das primeiras Assembléias Indígenas, na
década de70, afirma que "esse processo permite o reencontro entre ln-
222 Rosa Helena Dias da Silva

dios de um mesmo povo fragmentado em aldeias distantes, o reencon-


tro de povos tradicionalmente aliados, e o encontro em um mesmo es-
pago de povos tradicionalmente inimigos"242.
Conforme observa Cunha (1994) "desde os anos 80, a previsáo
do desaparecimento dos povos indígenas cedeu lugar ) constatagáo de
uma retomada demográfica geral. Ou seja, os lndios estáo no Brasil pa-
ra ficar"243.
Fato importante neste processo, como já enfatizamos várias ve-
zes, foi o texto constitucional de 1988, conquistado com apoio de enti-
dades da sociedade civil, pelo movimento indígena do Brasil. Nele está
assegurado o Direito á Alteridade. Ou seja, a possibilidade dos lndios se
manterem como povos etnicamente diferenciados entre si e da socieda-
de nacional (Capítulo VIII-Dos lndios, Tltulo VIII-Da Ordem Social,
artigos 231 e 232). Como vimos anteriormente, quanto aos direitos
culturais, foram reconhecidos aos índios seus costumes, línguas, cren-
gas e tradigóes (artigo 231, caput) e, no que se refere ao ensino funda-
mental, ressalvou-se ás comunidades indlgenas o direito de utilizarem
suas línguas e os processos próprios de aprendizagem (artigo 2lO,pa-
rágrafo 2.). A realidade, porém, tem mostrado que existe ainda enorme
distáncia entre o texto assegurado e o cumprimento efetivo das leis. Le-
vantamentos e denúncias feitas por ONGs e pelos próprios lndios nos
mostram que a situagáo dos povos indígenas pouco se alterou, haven-
do mesmo casos nos quais se acirraram os conflitos e violagóes de di
reitos.
Fazendo frente a essa realidade e buscando criar novas respostas
aos desafios atuais, crescem a cada dia as articulagóes entre os diversos
povos indígenas. O movimento indígena no Brasil vai conquistando,
através da construgáo da solidariedade interétnica, um espago político
cada vez maior no cenário brasileiro. Sáo exemplo dessa afirmagáo as
variadas formas de organizagáo que surgem de norte a sul do país, to-
talizando hoje, segundo levantamento preliminar do Setor de Docu-
mentagáo do Secretariado Nacional do CIMI, a cifra de cem organiza-
góes244.
No correr deste processo vemos surgir algo inédito e promissor,
que constitui, precisamente, o tema do presente trabalho: a organiza-
9áo dos professores indlgenas.
A autonomia como valor e a articubgAo de possibilidades 223

5.2. Interculturalidade e solidariedade interénica: p¡ra além das pró-


prias fronteiras

Dentre as tendéncias que polarizam o pensamento educacional


na América Latina e Caribe, Octavio luttt¡245 destaca trés orientagóes
principais,ligadas á nogáo de modernizagáo, emancipagáo e identida-
de. Segundo ele, "distinguem-se pela maneira de diagnosticar os pro-
blemas sociais, compreendendo os económicos, políticos e culturais,
assim como pelas diretrizes que formulam. Combinam o diagnóstico
crítico da realidade social com o prognóstico acerca de solugóes possí-
veis ou ideais".
Vejamos com mais profundidade o que Ianni diz sobre a tese da
identidade, já que a problemática alvo desta investigagáo pode ser um
exemplo paradigmático desta formulagáo teórica.
'A tese da identidade está presente e ativa principalmente nas
formulagóes teóricas e ideológicas dos movimentos sociais indoameri-
cano e afroamericanos. E claro que a problemática da identidade en-
volve também a da emancipagáo: uma implica na outra. Os movimen-
tos sociais indoamericanos e afroamericanos organizam-se e desenvol-
vem-se tendo como objetivos a reconquista ou recriagáo das suas iden-
tidades reais ou imaginárias, como indivíduos, famílias, grupos, coleti-
vidades ou nagóes. Mas essas identidades, em suas dimensóes sociais,
culturais, políticas e económicas, envolvem necessariamente a emanci-
pagáo. Há um mínimo de emancipagáo sem o que náo se constitui a
identidade possível ou sonhada. (...) Toda forma de sociabilidade hu-
mana, no ámbito da sociedade mundial em formagáo no fim do sécu-
lo XX, está sempre comprometida com outras formas de sociabilidade
humanas. Nesse mundo, o contato, o intercámbio, os ganhos e perdas,
estáo sempre em jogo, envolvendo padróes, valores e instituigóes, mo-
dos de vida e trabalho, formas de ser, agir, pensar e imaginar".
A identidade do movimento e da escola indígena é, assim, uma
"identidade emergente" conforme Fischmann, "é a construgáo criativa
no cotidiano e que se relaciona com as condigóes históricas; envolve
buscas e tentativas, oportunidades e possibilidades"246. Vai sendo
construída pelo grupo, sendo neste sentido coletiva e dinámica; algo
que náo está pronto e acabado, mas sim em constante elaboragáo e
aperfeigoamento, em confronto com a realidade vivida. Representa
uma forga motriz que impulsiona as agóes, pois envolve a todos, en-
24 Rosa Helena Dias da Silva

quanto suieitos responsáveis e comprometidos em tragarem pontos


norteadores para o surgimento de uma escola verdadeiramente indíge-
na, levando-se em conta as especificidades de cada povo.
Outro ponto de destaque é o desafio da interculturalidade. En-
volve pelo menos duas situagóes extremamente complexas. Uma, na
maioria das vezes é de caráter conflitivo e está ligada á questáo do con-
tato, envolvendo as relagóes entre sociedades indlgenas e sociedade en-
volvente; entram em cena questóes como: de que forma se articulam a
questáo do saber tradicional de cada grupo e os novos saberes e neces-
sidades? A outra situagáo diz respeito )s relagóes internas do movimen-
to, ou seja, da diversidade de povos e culturas indlgenas presentes.
Aqui, os desafios estáo ligados ) questáo da busca de conhecimento re-
cíproco e da construgáo da solidariedade interétnica.
Como bem analisou Bonin, "o fato de um determinado povo
passar a partlclpar
participar oe
de uma ofgan]za9ao
organizagáo responde A
e suas necessrdades
necessidades
mais específicas: demarcar a sua área, resolver problemas de saúde em
sua aldeia, conseguir escola para sua comunidade, expulsar invasores
de seu território. No entanto, a participagáo parece tecer os fios que dáo
sentido ás lutas mais amplas. Gesta-se um processo de re-conhecimen-
to (conhecer em outros termos) das relagóes estabelecidas pela socieda-
de envolvente e pelo Estado com estas populagóes. Esse processo torna
evidente para os lndios que náo é somente o seu próprio povo ou a sua
aldeia que é desrespeitada, vítima de omissáo e/ou atuagáo inadequada
do estado, mas todos os povos indígenas, e justamente porque, paru a
cultura dominante, náo há lugar para a diferenga. Parece surgi6 assim,
um sentido coletivo mais abrangente, uma identidade no'ser lnüo',
mas que envolve um sentido sócio-cultural no plural"247.
Há uma tradigáo consolidada, a qual tem considerado as llnguas
e as culturas indígenas como obstáculos e náo como base para a agáo
pedagógica. E para fazer frente a este tipo de conceito que os professo-
res indlgenas tém se organizado, buscando fazer com que seja a partir
das próprias culturas que se possa acrescentar conhecimentos e valores
de outras. Que essa educagáo, segundo os interesses dos povos indíge-
nas, possa situá-los dentro de um contexto nacional e até mesmo inter-
nacional, "permitindo-lhes a aniilise crltica de sua situagáo e a possibi-
Iidade de buscar alternativas frente a ela" (Trapnell, 1984). Em suma,
seria instrumento que somasse forgas no processo de autodetermina-
A autonomia como valor e a articulaQdo de possibilidades 225

9áo desses povos, no sentido de poder decidir sobre seu próprio desti-
no.
Pensando o lugar social da escola indígena, poderlamos dizer
que "(...) é o espago privilegiado de afirmagáo e revitalizagáo da cultu-
ra, de desenvolvimento da consciéncia crítica e de análise do contexto
político global"2¿8.
Como já foi destacado, uma complexa questáo se coloca ao mo-
vimento: a construgáo da solidariedade interétnica. Em todo o Brasil,
assim como especificamente na regiáo Norte, há uma diversidade cul-
tural muito grande. Basta olhar para os próprios Encontros: há sempre
mais de 12 povos distintos participando, sendo que no X Encontro, em
1997, como registrado anteriormente, reuniram-se 33 povos.
Como pudemos ver, no V Encontro, em 1992, realizou-se um
trabalho inédito a partir de temas geradores, confrontando as diferen-
gas culturais de cada povo ali presente. Representou um avango no sen-
tido do "conhecer o outro", intercambiando conhecimentos, construin-
do uma relagáo de respeito mútuo. O VI Encontro, em 1993' teve co-
mo ponto de pauta: "Culturas üversificadas, com objetivo de aprofun-
dar a reflexáo a respeito das diferengas entre os povos da mesma regiáo
e de regióes diferentes; conhecer melhor a vida, costumes, tradigóes e
forma de conceber o mundo dos povos que integram o Movimento de
Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Ac¡¿"249.

5.3. Cultura: a aproximagáo de um conceito

Como sabemos, o conceito de cultura é algo muito amplo e que


até mesmo implica em controvérsias. O termo, segundo Laraia come-
ga a ser utilizado no final do século XIX, em substituigáo i folclore. Foi
definido pela primeiravezpor Edward Taylor (1832-1917) no vocábu-
lo inglés culture que "tomado em seu amplo sentido etnográfico é este
todo complexo que inclue conhecimentos, crentas, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo
homem como membro de uma sociedade"2so. Vemos desde logo que
há um forte caráter de aprendizado na cultura que se opóe a idéia de
aquisigáo inata, seja por determinismo biológico ou mesmo geográfi-
co.
Entende-se cultura, aqui, como as solugóes que geragóes de ho-
mens tém dado aos problemas que tém enfrentado no curso de sua his-
226 Rosa Helena Dias da Silva

tória. Inclue um coniunto de conhecimentos, valores, técnicas, com-


portamentos e atitudes, pensamentos e regras compartilhadas. E, a ma-
neira de um grupo se relacionar entre si, com os outros e com o meio
ambiente. Compóe-se de cultura material e simbólica; manifesta-se nos
produtos do homem: artesanatos, construgóes, comportamentos indi-
viduais ou grupais, sendo um de seus elementos mais importantes a
língua. A cultura é aprendida, recriada, transformada, transmitida. Re-
presenta um valor maior - um património de dados compartilhados
por todos os seres humanos de um grupo. Náo é estática, mas sim fle-
lvel, podendo-se desta forma adaptar-se ou mudar.
Em síntese, cultura é uma maneira particular de ver as coisas,
sendo os homens depositários e artesóes de sua própria cultura. Nas
palavras de DaMatta, "cultura é uma tradigáo viva, um estilo de vi-
dl,2sr.
Segundo Deborah Cruz Hernandez, "náo podemos falar da cul-
tura, se náo falamos da terra; a cultura náo pode existir por si só. A te-
rra é o apoio, o que dá forga á cultura. A cultura, entre nós, é o direito
a conceber, de uma maneira integral, nossa relagáo como seres huma-
nos, entre os povos e entre estes e a máe terra; que nos permite ser di-
ferentes, já que cada povo tem características especlficas e também nos
faz ser iguais, já que todos temos capacidade dle cria-lt'zs2.
O estudo do movimento de professores indlgenas do Amazonas,
Roraima e Acre nos mostra que os professores indlgenas tém conscién-
cia do poder e da forga que a escola tem e o que ela pode realizar quan-
to á valorizagáo das culturas. O desejo de romper com os objetivos ofi-
ciais da educagáo escolar que lhes era oferecida e cujo fim último era a
integragáo á sociedade envolvente, ou, o "deixar de ser índio" ,faz da
educagáo escolar indígena algo muito significativo no processo que
possibilita sua continuidade enquanto povos etnicamente diferencia-
dos.
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 227

5.4. O Direito i diferenga

O desafio que se nos coloca, entño, é o de pensar a


diferenga. Difnenga entre povos, culturas, tipos fí-
sicos, classes sociais: estará fadada a ser etern*tnen-
te compreendida e vivida como desiguatitadePs3

O pressuposto básico deste trabalho - o direito á diferenga - é te-


ma que tem merecido constantes reflexóes de nossa parte, seja por sua
própria complexidade, seja pelo elenco de tantas outras discussóes que
a ele se somam254. Uma primeira, diz respeito a forma de como nossa
sociedade olha para os índios, incluindo a questáo de qual o lugar que
reserva para eles.
Joáo Pacheco de Oliveira nos fala sobre isso, ao identificar que
"há um uso muito difuso e generalizado do termo índio, materializ¿dg
nas definigóes do dicionário, expresso na fala cotidiana, no imaginário
popular, na literatura e nas falas eruditas, enraizando-se inclusive no
pensamento científico. Nesses domínios, lndio corresponde semPre a
alguém com características radicalmente distintas daquelas com que o
brasileiro costuma se fazer rePresentar.(...) Os elementos fixos que
compóem tal representagáo propiciam tanto a articulagáo de um dis-
curso romántico, onde a natureza humana aflora com mais proprieda-
de no homem prilnitivo, euonto na visáo do selvagem, cruel e repulsi-
voD255.
Continuando sua aniílise, assinala-nos outra PersPectiva de rela-
góes, ao colocar que "melhor seria pensá-los como Povos indígenas, co-
mo objetos de direitos e como sujeitos políticos coletivos, distancian-
do-se do mito da primitividade e das improcedentes cobrangas que o
senso comum instiga a cada ¡¡sms¡¡s"256.
Manuela Carneiro nos mostra como, historicamente, a nogáo de
direito á igualdade foi utilizada para justificar a homogeneizagáoldo-
minagáo cultural. Vejamos: "os novos instrumentos internacionais, co-
mo a Convengáo 169 da OIT (de 1989), a Declaragáo dos Direitos dos
Povos Indlgenas (na sua versáo atual) baseiam-se numa revisáo, opera-
da nos anos 70 e sobretudo 80, das nogóes de progresso, desenvolvi-
mento, integragáo e discriminagáo ou racismo. Em poucas palavras, as
versóes pós-guerra dos instrumentos de direitos humanos baseavam-se
essencialmente no'direito á igualdade'. Mas esse direito, que brotava de
228 Rosa Helena Dias da Silva

uma ideologia liberal, e respondia a situagóes do tipo'apartheid', foi


largamente entendido como um dever; e a igualdade, que era de essén-
cia política, foi entendida como homogeneidade cultural. O direito á
igualdade redundava pois em um dever de assimilagáo. (...) O anti-ra-
cismo liberal, como táo bem analisou Sartre (na sua reflexáo sobre a
questáo judia), só é generoso com o indivlduo, nunca com o grupo. (...)
Por supor uma igualdade básica, exige uma assimilagáo geral"257.
Roberto Cardoso de Oliveira jáfalavanessa necessidade, ao iden-
tificar nas relagóes entre Estado e povos indígenas um "colonialismo
interno" que, a seu ver, deveria ser substituldo por uma "diplomacia in-
ternaD25g.
Para David Price, "quem estranhar a palavra'diplomática' terá
que admitir o seu próprio preconceito: que o lndios é táo inferior que
relagóes com ele náo merecem o rótulo de'diplomáticas'. Costumamos
manter relagóes diplomáticas com estados. Precisamos nos dar conta
que o estado é só uma entre as várias formas de organizagáo social, e fi-
ca claro que sociedades em contato devem manter relagóes diplomáti-
cas, quaisquer que sejam suas formas de organizagáo. O bom diploma-
ta tem que saber alguma coisa sobre o país onde trabalha. Deve enten-
der a política interna, os interesses económicos, a etiqueta. Infeüzmen-
te, no indigenismo, a tendéncia é de se elaborar uma'política externa'
sem saber nada das sociedades com que se trata. Nem se diferencia en-
tre as várias sociedades; a mesma política indigenista aplica-se aos Ka-
diwéu, aos Marubo e aos Fulnió. E como se aplicasse a mesma política
externa i China, á Guatemala e á Africa do Sul. (...) Nós indigenistas te-
remos que ser embaixadores em culturas estrangeiras, e náo represen-
tantes de um exército u¡¡otioro"259.

5.5. Da apropriagáo á inovagáo: a "indianizagáo" da instituigáo escolar

A partir das reflexóes e discussóes de cada Encontro, o movi-


mento dos professores indígenas vai se fortalecendo, envolvendo mais
comunidades, tomando novos rumos. A concepgáo da escola indígena
vai se tornando cada vez mais clara, mais objetiva e os professores pro-
póem modificagóes nos currículos e regimentos e delineiam as formas
de participagáo de todas as comunidades nesse processo.
Como já foi dito anteriormente, constatamos que essa escola que
está sendo forjada,náo entra em competigáo, nem substitui a educagáo
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 229

tradicional de cada grupo. Ela tem, sim, um espago e um tempo de


atuagáo bem definido, que vem responder ás novas necessidades, ¿ rea-
lidade das situagóes históricas vividas.
"O movimento de professores indígenas do Amazonas e Rorai-
ma, como observamos, é, a cada ano que passa, mais forte e expressivo.
Apesar disso, as escolas indígenas estáo ainda longe dos ideais firmados
por cada um dos povos da regiáo" (Silva, l99l).
Nas palavras de Sebastiáo Duarte,

prá mim, essa escola indígena seria muito boa, muito importante,
realmente do agrado do próprio índio. Porque até agora a escola...
nño sabe o que está estudando... porque está se formando. Entño, a
partir da escola indígena, já saberia porque estó estudando, pró
qué... no futuro, certo? Seria uma escola muito ideal para os povos
indígenas, mas dependendo de determinado lugar, ndo imposta,
como os padres jó vinham fazendo... imposigño direto! Entño, seria
de suma importáncia a escola indígena. Mas só que infelizmente a
gente ainda nño temos. Só sei que somos professores indígenas, mAs
nño temos uma escola indígena. Está sendo introduzida a língua
indígena... mas nño é uma escola indígena260.

Durante arcalizagáo do IX Encontro houve um momento de de-


bate entre o Prof. Sebastiáo Duarte e o Prof. Enilton André. E interes-
sante perceber como o próprio movimento vai construindo suas ava-
liagóes sobre os limites e as possibilidades visualizadas. Enilton ques-
tiona Sebastiáo, no sentido de que ele esclarega para o grupo o que quis
dizer com sua afirmagáo - "nño temos ainda uma escola indígena":

O Sabó trouxe uma preocupagño em relagño d escola indígena, fa-


lando que ndo temos escola indígena, puramente indígena. Entdo
nós, que há anos trabalhamos, falando em nome da escola indíge-
na, inclusive em Roraima - e nós estamos aqui num número con-
siderdvel de professores - e a gente ficou pensando e refletindo e gos-
taria de fazer essa pergunta, se ele pudesse esclarecer pra nós, dis-
sesse do ponto de vista dele, como que I essa escola puramente in-
dígena, pra gente poder analisar, trabalhar com algumas perguntas
que vocés sugeriram depois, pra fazer uma anólise da dedaragdo de
princípios. A gente defendeu sempre essa tese da escola indígena e
230 Rosa Helena Dias da Silva

tal - tnesmo que tá conseguindo ou nño - fttas a gente tó tentando;


entño o gente gostaria que o prof. Sebastiño, que fosse bem chro, fa-
Insse pra gente sobre essa escola verdadeiramente indlgena.

Respondendo ao questionamento, Prof. Sebastiáo afirmou:

' Bom, essa pergunta que foi langada especificamente pra esclarecer
o ponto do que a gente pensa que seja a escola indlgena: essa dis-
cussdo vem sendo feita há anos atrás, sobre educagño escolar indl'
gena, é bastante extenso e complicado de entender o que é realmen-
te a escola indígena. Eu queria dizer que nós ndo temos escola in-
dígena porque nós, aqui do Alto Rio Negro, somos a maioria da po-
pulagño indígena, só que nas nossas acolas nño funcionam com o
antiga maneira da educagño indígena, ou seja, a escola com o pen-
satnento lndio, voltado pra suas tradigóes, cultura, etc. No meu
ponto de vista, a escoln indígena deveria ter seu currículo adequa-
do, regimento próprio e qualidade própria, conforme a necessidade
de cada povo, de cada regiño. Para isso, nós teríamos que ter cons-
ciéncia de todos os professores do Alto Rio Negro, de trabalhar em
cima disto, para podermos ter o objetivo de ter uma escola indlge-
na propriamente dita. A lei do Brasil - a lei federal assegura esse ti-
po de educagño - compete agora nós trabalharmos dentro destas
questóes E esse o teffia que eu estou querendo defender. Entño seria
isso, a minha preocupafio de colocax que nós nño temos ainda
nenhuma escola que seja reconhecida, cadastrada, que tenha currl-
culo próprio, regimento próprio. Nño temos. E, por isso que eu falei
aquilo.

Problemas de diversos tipos e dimensóes se colocam no dia-a-


dia dos professores, exigindo que estejam sempre atentos e mobilizados
para enfrentá-los.
Pudemos constatar que' apesar de todo contexto de violéncia e
invasáo cultural ao qual foram expostos os povos indlgenas, um pro-
cesso de resisténcia e oposigáo sempre foi desenvolvido por estes. Ao
longo desta história, escolas e programas oficiais de "educagáo Para o
índio" estiveram desempenhando papéis que tenderam a somar forgas
ao projeto intégracionista, reforgando a tradigáo assimilacionista do-
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 231

minante na relagáo do Estado Nacional com os povos indígenas. Basta


lembrarmos o que propóe o artigo 50 do Estatuto do lndio de 1973:
"A educagáo do índio será orientada para a integragáo na co-
munháo nacional mediante processo de gradativa compreensáo dos
problemas gerais e valores da sociedade nacional bem como do apro-
veitamento de suas aptidóes individuais'261.
Vemos que algo está mudando e sáo os próprios índios e suas or-
ganizagóes que procurírm influir e tomar em suas máos os processo de
educagáo escolar, inclusive criando novas alternativas. De fundamental
importáncia também é uma mudanga de mentalidade e posigáo da
nossa sociedade frente á questáo da alteridade. Aracy L. da Silva alerta-
nos para essa questáo: "(...) o respeito aos direitos, identidades e espe-
cificidades étnicas e culturais dos povos indígenas ficará comprometi-
do se uma agáo de fólego náo for empreendida junto i populagáo náo-
índia para combater a desinformagáo, o preconceito e a discriminagáo
com relagáo aos povos indígenas no país"262.
Por entender escola indígena como uma intermediagáo, um ins-
trumental que se coloca entre as diferentes culturas, náo sendo assim
um mecanismo apenas interno, mas sim uma necessidade criada "pós-
contato" com a sociedade envolvente, busquei conhecer melhor alguns
conceitos chaves para entender como se dá a dinámica das relagóes in-
terétnicas.
Guilhermo Bonfil 3u¡¿6u263 é um dos autores que se preocu-
pou com essa questáo, trazendo análises pertinentes e elucidativas á
problemática em estudo. Após discorrer sobre o que chamou de "os
quatro ámbitos da cultura em fungáo do controle 6uhlr¡a1D264, enuncia
alguns processos que, segundo o autor, permitem compreender a diná-
mica das relagóes interétnicas. Trés deles se originam no interior do
(ou dos) grupo étnico que se toma como foco de análise. Sáo eles:
Resisténcia - "O grupo dominado ou subalterno atua no senti-
do de preservar os conteúdos concretos do ámbito de sua cultura au-
tónoma. A resisténcia pode ser explícita ou implícita (consciente ou in-
consciente). A defesa legal ou armada do território ameagado é explí-
cita e consciente; a manutengáo do costume, qualquer que seja este, po-
de ser uma forma de resisténcia implícita e inconsciente. Em todo ca-
so, o exercício de agóes culturais autónomas, em forma aberta ou clan-
destina, é objetivamente uma prática de resisténcia cultural, assim co-
mo sua contraparte: a recusa de elementos e iniciativas alheios (o cha-
232 Rosa Helena Dias da Silva

mado conservadorismo de muitas comunidades: sua atitude refratária


ás inovagóes alheias)".
Apropriagáo - "É o processo mediante o qual o grupo adquire
capacidade de decisáo sobre elementos culturais alheios. Quando o
grupo náo só pode decidir sobre o uso de tais elementos, senáo tam-
bém que é capaz de produzi-los, o processo de apropriagáo culmina, e
os elementos passam a ser elementos próprios".
Inovagáo - "Através da inovagáo, um grupo étnico cria novos ele-
mentos culturais próprios, que em primeira instáncia passam a formar
parte de sua cultura autónoma".
Na experiéncia em estudo - o movimento de professores indlge-
nas do Amazonas, Roraima e Acre -, pude constatar a pertinéncia des-
ses conceitos e idéias elaboradas por Batalha, principalmente quanto I
questáo da inovagáo e criatividade.
'A criatividade que se expressa nos processos de inovagáo náo se
dáo no vazio, mas sim no contexto da cultura própria e, mais particu-
larmente, da cultura autónoma. Este é o marco que possibilita e ao
mesmo tempo póe limites )s capacidades de inovagáo: seus componen-
tes específicos sáo o plano e a matéria para a criagáo cultural".
No que tenho podido compreender, a perspectiva de escolas que
os povos indígenas tém acreditado e se empenhado em conquistar, é
um exemplo concreto, real e atual de inovagáo. Representam pequenas
grandes mudangas construídas cotidianamente. E preciso estar atento e
sensível para erxergá-las e interpretá-las com toda sua forga e signifi-
cagáo.
E como nos diz esse autor: "as inovagóes culturais sáo, por uma
parte, mais frequentes do que comumente se pensa: há muito novo em
baixo do sol. Sobretudo, se náo se pensa somente nas grandes invengóes
capazes de marcar por si mesmas um momento da história, se náo se
repara também, e sobretudo, nas mudangas cotidianas aparentemente
insignificantes".
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 233

NOTAS

241 AZEVEDO e OMOLAN. "Já existem 100 organizagóes" in Porantim, CIMI,


Brasllia, dezl92, p.7
242 BONIN,Iara. "Refletindo sobre Movimentos sociais e Movimento Indígena no
Brasil", trabalho final da disciplina "Estado, Sociedade e Educagáo"- programa
de Pós-Graduagño da Faculdade de Educagáo UNB, 1997
243 CUNHA,Manuela Carneiro da. op.cit., p.131
244 Registradas em cartório, segundo levantamento do ISA, sáo 7l organizagáo in-
dígenas.
245 IANNl,Otavio."Educagáo e Sociedade na América Latina'l Conferéncia inau-
gural do II Congresso Ibero-Americano de História da Educagáo na América
Latina, UNICAMP, set/1994
246 Anotagóes de aula da disciplina "Identidade, identidades: Organizagáo, Escola
e Educagño" ministrada no lo semestrel93,pela Profa. Dra. Roseli Fischmann,
Programa de Pós-Graduageo FEUSP
247 BONIN, op. cit, p.18
248 Segundo ANE/CIMI.ConcepgAo e prática da educagao escolar indlgeng Cader-
nos do CIMI 2, Brasíüa, 1993, p.8
249 ProjetoTrienal/COPIAR (1994-1996)
250 LARAlA,Roque de Barros.Cultura: um conceíto antropohgico, Rio de Janeiro,
lorge Zahat Editor, 1992
251 DAMATA,Roberto.Relativisando - Uma introdugño d Antropologia Soclal, Rio
de Janeiro, ROCCO, 1991
252 Hernandez,Deborah Cruz. "Reflexiones Generales sobre el tema educacion" in
Documentos de Tiabalho, Simposio Indolatinoamericano, Segunda Sesión, De-
recho Indígena y Autonomia,23 a 27loutl1995, faltepec de Candayoc Mixe
(tradugáo minha)
6. CONSIDERAqÓES FINAIS:
A CUIsA DE CONCLUSÁO

Como consta do resumo inicial, a presente pesquisa procurou


verificar, a partir do estudo do movimento dos professores indlgenas
do Amazonas, Roraima e Acre, o papel cultural-político-pedagógico
desta articulagáo/organizagáo indígena na construgáo de Escolas Indí-
genas, tendo como eixo de análise referencial seus Encontros anuais e
as próprias experiéncias dos professores indlgenas participantes deste
movimento, na prática cotidiana em suas regióes . Tiabalhei com a
concepgáo de "escola indígena" que se define como nova instituigáo
educacional, a servigo de cada povo, sendo instrumento de afirmagáo
e reelaboragáo cultural. Ao mesmo tempo, como elemento que contri-
bua na conquista de espago político pelos povos indígenas, dentro do
Estado Brasileiro, na busca de novas relagóes interculturais, no marco
do reconhecimento do Brasil enquanto país pluricultural e da supera-
gáo da perspectiva integracionista. Contrapóe-se, assim, á idéia e reali-
dade das "escolas para os índios".
Ao mesmo tempo, o trabalho pretendeu analisar os limites e
possibilidades das escolas indígenas enquanto recurso político-cultural
de afirmagáo das identidades no confronto e/ou enfrentamento da rea-
lidade atual referente ao contato interétnico, identificando os avangos,
contradigóes e tensóes deste processo.
Dentre as diversas questóes ligadas intrinsecamente com o tema,
destaco duas, a meu ver fundamentais, dentro da perspectiva desta pes-
quisa: as pedagogias indlgenas e a relagáo escolas/projetos de futuro e
autonomia.
Na temática das pedagogias indígenas, uma discussáo importan-
te está ligada á tensáo entre as diferentes formas de linguagens: a tradi-
9áo cultural, onde a grande forga é a oralidade; versus a nova forma de
expressáo e registro - a escrita (trabalhada, agora, principalmente na
escola), fazendo parte do rol de novos conhecimentos. Como lembra
Meliá265, sáo conhecidas, no percurso do contato das sociedades indí-
i
genas com as sociedades nacionais, diferentes reagóes frente escrita:
do temor i curiosidade; do fascínio ao desencanto. Uma constataqáo
236 Rosa Helena Dias da Silva

decorrente é que "a escrita tem sido para os povos indígenas uma aven-
tura que náo se corre sem riscos'266.
Devido aos contextos políticos e económicos nos quais a escrita
surge, uliliza-se e desenvolve-se uma distingáo entre povos ágrafos e
povos sem escrita. Essa distingáo vai além de uma simples diferenga
tecnológica. Em uma mesma sociedade, cria-se também a incómoda
diferenga entre "letrados" e analfabetos.
Os povos da América tiveram, frente aos "estranhos" que chega-
vam em suas terras, um "temor reverencial" já que, na sua visáo, os
"chegantes" eram pessoas que "faziam falar o papel".
Muito se fala acerca da violéncia flsica cometida sobre os povos
amerlndios. Pouco porém se tem analisado a violéncia da palavra escri-
ta. "Quase táo temível e táo terrlvel como as armas de fogo que feriam
a matavam á distáncia, foi visto, náo sem razáo, o papel escrito, que le-
vava e langava palavras de vida e morte i maiores distáncias. O papel
escrito era instrumento de grandes poderes, que vinham de muito lon-
ge, através de vozes nunca escutadas, mas que erÍrm enxergados no de-
senho do papel"267.
Os Yanomami significam a letra com a palavra "Kanasf', q'úe
quer dizer: "vestígio, cadáver, resto, sinal e indício". De fato, a escrita po-
de ser tudo isso: o cadáver de uma palavra morta; os restos e desperdí-
cios de vocábulos vazios; mas também podem ser o vestígio da memó-
ria; o indício da vida futura; um sinal de luta.
Neste sentido, um desafio é a introdugáo da escrita, enquanto
nova forma de expressáo, porém sem substituir a tradigáo oral, a forga
da palavra viva, da memória.'A tradigáo oral é a rinica linguagem que
náo se pode saquea¡ roubar, repetir' plagiar, copiar"268.
Quanto ás pedagogias indlgenas, ao ser introduzida a escolariza-
gáo, entram em cena conceitos-chave como interculturalidade' biliguis-
mo e multilinguismo, no contexto do debate acerca de seus limites e
possibilidades. Procuraremos enfocar esta discussáo, na perspectiva do
diálogo26s. Podemos falar dos povos indígenas enquanto Povos da re-
sisténcia. Essa mesma resisténcia que tem permitido a esses Povos so-
breviver aos processos históricos que tem vivido e enfrentado, pode ser
vista também como direito de entrar em diálogo: um diálogo como
conquista, enquanto mecanismo e símbolo de um povo que reconquis-
tou sua palavra. Assim, os Povos indígenas estariam nos falando: "nós
temos a nossa palavra; temos algo a dizer"27o.
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 237

Quando colocamos a possibilidade do dirálogo entre os diferen-


tes povos e culturas como horizonte a ser alcangado, precisamos logo
esclarecer que ele pressupóe que os povos estejam fortalecidos e segu-
ros, seja quanto á questáo de suas terras, quanto á sua identidade étni-
ca e na suas relagóes com "os outros'1A dialogicidade náo se constrói
enquanto posigáo de adesáo, "entreguismo" ou retirada, nem é estabe-
lecida entre "vencidos e vencedores'1 Ao contrário, é uma posigáo de
confianga. Reforga a necessidade, amplamente afirmada neste trabalho,
de novas relagóes entre aqueles que se encontram, que entram em con-
tato, como condigáo de um novo diálogo, que reclama, que eúge, que
está carregado de conflitos.
Perguntamo-nos: pode a escola contribuir neste processo? Que
escola? Qual seria o papel dos professores indígenas?
Procurando enxergar alguns rumos para ajudar a pensar essas
questóes, vejamos alguns pressupostos básicos, ligados a um conceito
fundamental: comunidade educativa indlgena. Nela, segundo Meliá, há
trés atores principais da educagáo, a saber, a economia, a casa e a reli-
giáo. Olhar a economia como elemento pedagógico, significa enxergar
como circulam os bens, como sáo os modos de produgáo, os modos de
troca. Neste sentido, a reciprocidade é um valor sumamente educativo.
A casa - espago educativo doméstico - com todas suas características
próprias: o pai, a máe, a complexidade do parentesco, com todas suas
redes de relagóes, com regras e normas, é um elemento da educaqáo. A
religiáo, enquanto concentragáo simbólica de todo sistema: mitos, ri-
tuais, momentos críticos - nascimento - vida - morte.
Efetivamente, o processo histórico colonial teve uma forte ten-
déncia a separar essa unidade. A consequéncia é que as pessoas passa-
ram a ter centros educativos diferentes e isolados. Quebra-se o que era
antes uma totalidade.
A partir do contato, o sistema de educagáo da comunidade na-
cional é introduzido como uma espécie de "nuvem" que pousa sobre
esta realidade. Na reivindicagáo do Estado nacional, ele passa a ser o
dono dos símbolos. Essa, como se sabe, é uma pretensáo de vários sé-
culos: a educagáo única, universalizante.
Na comunidade educativa indígena, há um domínio completo,
por parte de todos, da língua, enquanto língua comunitária. A econo-
mia é participativa e recíproca. Porém, cada vez mais, o Estado nacio-
nal quer invadir esses espagos educativos próprios. Na comunidade
238 Rosa Helena Dias da Silva

educativa nacional, saber deixa de significar prestígio, e torna-se poder,


numa estrutura hierarquizada, numa sociedade dividida, com interes-
ses conflitan¡¿s27l. Há "Iínguas especializadas"; o portugués do Brasil
tem um mlnimo que é comum a todos. Há uma fragmentagáo da lín-
gua.A economia é a de mercado; a casa é o lugar dos progenitores e a
religiáo, hierárquica e institucion alizada.
Como temos afirmado, a escola fazparte de um programa mais
amplo que poderíamos chamar aqui de bilinguismo. A nogáo de bilin-
guismo é uma nogáo epistemológica; é um modo de pensar as socieda-
des indígenas e sua relagáo com a sociedade nacional. Assim, nessa teo-
ria, a escola assume o papel de uma nova linguagem - um novo espago
e tempo educativo - uma nova pedagogia, necessária ao atual momen-
to da comunidade, uma nova comunicagáo.
Retomando, o bilinguismo nunca deve ser pensado como Passa-
gem, como transigáo, mas como diálogo. A escola é entáo uma nova
linguagem, {ue poderá (ou náo) permitir esse diiílogo muito impor-
tante.
Lamentavelmente, a história registra resultados desastrosos, oca-
sionados por distintos projetos de educagáo escolar "para índios". A es-
cola foi (e é) uma grande ruptura no espago e tempo das próprias pe-
dagogias indígenas. Podemos porém olhar esse rompimento enquanto
processo dinámico, ao qual os povos reagem e interagem, cujos conteú-
dos sáo ora assumidos, ora rejeitados; ás vezes apropriados, e mesmo
recriados e reinventados.
As comunidades educativas tradicionais se confrontam com si-
tuagóes de contato. Isso configurou novas comunidades educativas his-
tóricas. Tiadigáo e história criam uma grande diversidade de tipos e si-
tuagóes. Vemos povos indígenas onde a comunidade educativa é "pre-
sente e atual"; outras onde ela é "memória viva e desejada"; outras, po-
rém, jásáo imaginadas como uma espécie de "paralso perdido" e mes-
<'ifgg6g"272.
mo como
Segundo Florestan Fernandes, "numa sociedade tradicionalista,
sagrada e fechada, o foco da educagáo deriva, material, estrutural e di-
namicamente, das tendéncias de perpetuagáo daordem social estabele-
cida". O mesmo autor já analisava que "inovagáo e tradigáo se interpe-
netram de tal modo que uma conduz á outra' podendo-se afirmar:
l)que toda inovagáo, por mais radical que seja,langa ralzes no passado
e se alimenta de potencialidades dinámicas contidas nas tradigóes;
A autonomia como valor e a articullgdo de possibilidades 239

2)que a inovagáo já nasce, culturalmente, como tradigáo, como exPe-


riéncia sagrada de um saber que transcende ao indivíduo e ao imedia-
tismo do momento'273.
Atualmente, nas diferentes realidades, há um novo ator que sur-
ge: o professor indígena. O desafio que se coloca para esse novo ator é
imenso, já que inúmeras tensóes podem surgir: conflito e "choque de
liderangas"; substituigáo do saber tradicional; a escrita no lugar da ora-
lidade; o prestlgio transformando-se em poder.
É fundamental que o professor indlgena possa reencontrar-se
com sua própria comunidade educativa, já que, na maioria dos casos,
ele foi formado fora desta. Tornando-se parte da comunidade educati-
va, poderá contribuir na busca de novas respostas, colocando a escrita
a servigo de uma nova expressáo; procurando inspiragáo nos sábios da
comunidade; colocando-se como ouvinte - aquele que domina novas
técnicas modernas, mas coloca-as em continuidade do saber indlgena,
como forma de ampliagáo do mundo, como expansáo cultural, nunca
como substituigáo.
Nesta ótica, o professor pode ser participante de um projeto que
vai além da própria educagáo. Para isso, irá, necessariamente, envolver-
se com questóes fundamentais como a defesa e garantia das terras in-
dígenas; construgáo de alternativas de subsisténcia (auto-sustentagáo).
Nesse sentido, conforme analisou Mosonyi274, as comunidades educa-
tivas indígenas hoje precisam pensar em pelo menos dois tipos de pro-
gramas, que precisam andar juntos: linguístico-cultural e económico-
político.
Sintetizando, poderíamos levantar como elementos centrais da
análise que se faz nesta tese:

o professor indígena, como um novo ator;


a escola, como novo elemento cultural;
a escrita, como novo recurso de comunicagáo e registro;
novas solugóes, para novos problemas.

Dessa síntese, poderíamos indagar se tudo isso conseguirá ca-


minhar para uma nova perspectiva de futuro, com a conquista de no-
vas relagóes e o convlvio igualitário nas diferengas, deixando estas fi-
nalmente de significar desigualdades.
240 Rosa Helena Dias da Silva

Esta (e muitas outras) sáo questóes "em aberto" que continuaráo


a exigir respostas que ainda estáo por ser construldas.
Finalizando, gostaria de destacar dois atores envolvidos neste
processo: o próprio movimento dos professores indígenas e suas asses-
sorias, procurando analisar seus diferentes papéis e as relagóes que se
estabelecem entre ambos. Deixei para tocar nessa comPlexa discussáo
no capltulo final, já que faz parte de minha própria experiéncia, tendo
permeado todo o processo.
Para refletir sobre essa polémica questáo, recorro a quatro auto-
res275 que, abordando aspectos distintos, Pensaram sobre essa temáti-
ca: os movimentos sociais e as entidades de mediagáo - o papel da as-
sessoria276.
Primeiramente, gostaria de lembrar que o papel da assessoria
junto aos movimentos sociais, aPesar de sua importáncia, é um tema
muito pouco discutido. Sabemos que os trabalhos de assessorias sáo
bastante diferentes entre si e dependem em muito das condigóes espe-
cíficas tanto dos movimentos, quanto do preparo e visáo do próprio as-
sessor.
Discutir papel é debater sobre a relagáo que se estabelece en-
esse
tre assessor e assessorados; é dizer sobre nossa concepgáo de saber e a
questáo do poder..,4,s palavras-chave, al, seriam: conhecimento, verda-
de, poder, autonomia, intervengáo polltico- ped agógica, relagóes de do -
minagáo e reciprocidade.
Como se sabe, as assessorias sáo parte integrantes dos movimen-
tos sociais. E importante ressaltar que, longe de serem neutras' elas tra-
zem consigo projetos, modelos, padróes de referéncia que influenciam
e sáo influenciados pelo movimento, seus rumos' decisóes e proPos-
¡as277.
Em geral, quando se fala de assessor, este é entendido como
"aquele que sabe". Por outro lado, embutida nesta lógica, está a visáo
dos assessorados como "aqueles que náo sabem". Essa idéia infelizmen-
te ainda predomina e está intrinsecamente ligada, como bem mostra
Ferreira278, á "questáo da autoridade do conhecimento e do que essa
autoridade permite na relagáo com os sujeitos". Como esta autoridade
se expressa? Conforme essa autora, "até mesmo na diversidade de lin-
guagem utilizada, que cria obstáculos á comunicagáo".
Martins279, ao retomar a raiz clássica da teoria dos movimentos
sociais, lembra que "podemos constatar que ela diz respeito ás inquie-
A autonomia como valor e a articubgúo de possibilidades 241

tagóes sociais, ou seia, nada mais é que a teoria da sociedade que, fora
qualquer quadro institucional, reage a uma situagáo adversa e cria pro-
postas".
O mesmo autor alerta que a burocratizaqáo acarreta um siste-
mático empobrecimento das manifestagóes de vitalidade social dos
movimentos. Dirige critica ás organizagóes de assessoria, colocando
que "ao invés de se afirmarem como grupos de servigo, contribuindo
para desvendar suas limitagóes e possibilidades, essas organizagóes pu-
seram-se na posigáo de vanguardas, tentando direcioná-los". Defende a
idéia de que o papel dos assessores é o de produgáo teórica. "O que os
acontecimentos sugerem - enquanto as oligarquias se renovam e os se-
tores progressistas se acanham - é a importáncia do trabalho intelec-
tual, até aqui táo deficiente. Ao se antepor as organizagóes aos movi-
mentos sociais e o senso comum ao trabalho teórico, o resultado é o
desastre de uma militáncia que se explica por si mesma". Continua sua
análise afirmando que "a história recente dos movimentos sociais e das
organizagóes e grupos de mediagáo, portanto, náo é, senáo a de um de-
sencontro. (...) o encontro só poderia se dar na meüda em que os gru-
pos de apoio se colocassem a servigo dos movimentos, ao invés de ser-
virem a si próprios, ou ao Estado".
Gohn, elabora sua análise sobre movimentos sociais mostrando
que "podemos ter lutas específicas, mas para se transformar em movi-
mento social há uma série de requisitos. Náo basta ter a demanda, a rei-
vindicagáo. E necessário um relativo grau de organizagáo, de perma-
néncia, uma rede de articulagóes, tanto interna como externa". Enten-
do que as assessorias fazem parte desta "rede externa". A mesma auto-
ra explicita ainda a tese de que entende "o movimento popular en-
quanto forga dinámica, atuante, importante e transformadora na so-
ciedade, contestando as abordagens que véem os movimentos como
meros agentes manipulados, ou como meros reflexos das políticas es-
1¿61s"280.
No caso em estudo, o movimento foi estabelecendo com suas as-
sessorias, e vice-versa, uma troca de conhecimentos, no sentido de:
"nós sabemos algo, e vocés sabem algo". Com isso, constrói-se uma re-
lagáo de assessoria mútua, numa estrada de duas vias, onde a recipro-
cidade é aregra fundamental2sl.
Vejo que uma das questóes que tem contribuído para que as re-
lagóes de assessoria ao movimento sejam na perspectiva da mudanga
242 Rosa Helena Dias da Silva

nas relagóes de poder é o fato de, desde seu inlcio, o movimento contar
com assessorias diversas, ligadas á diferentes entidades (vide quadros
sinóticos dos encontros anuais no capltulo 3), porém com uma identi-
dade ideológica muito apurada, o que náo quer dizer que há uma uni-
formidade em todas as posigóes. Há divergéncias, porém, todos que
cooperam tém a marca do compromisso com a questáo indígena; co-
mo metodologia, o diálogo e o aprendizado conjunto, e como princí-
pio, a autonomia dos povos indlgenas e do movimento. Essa oportuni-
dade de um quadro de assessoria múltipla e diversificada - composta
por entidades indigenistas e universidades - tem permitido ao movi-
mento ter acesso á diversos enfoques de análise, á informagóes varia-
das, enfim, a uma ampliagáo da"palavra da assessoria", o que é, sem dú-
vida, mais enriquecedor.
Retomando o texto de Rosa Maria Fischer Ferreira, vemos que as
assessorias tém, conforme palavras desta autora, "dupla insergáo de po-
der". Vejamos como utilizar sua análise na relagáo do movimento dos
professores indlgenas e suas assessorias. Os assessores sáo membros da
sociedade envolvente ou, mais especificamente, sáo "náo-índios", e de-
tentores de um determinado conhecimento que o grupo náo possui.
Neste sentido, tém que romper com uma certa superioridade estabele-
cida pelo processo histórico e pela hierarquia social vigente, onde,
quem estudou mais, "sabe mais", e assim, está mais "autorizado" a falar.
Um outro aspecto que tem colaborado nesta mudanga de postu-
ra, é o fato de que o movimento é composto por professores. Assim, so-
mos todos - assessores e assessorados - trabalhadores da educagáo es-
colar. Essa é a nossa grande identificagáo: lidamos, ambos, com o Pro-
cesso da construgáo do conhecimento, na relagáo pedagógica de ensi-
no-aprendizagem.
Há ainda um outro dado definidor da qualidade desta relagáo: a
confianga estabelecida; a legitimagáo e a comPeténcia.
Gersem dos Santos Luciano pensou sobre essas questóes e' com
imensa clarcza e profundidade, elaborou suas idéias num texto que foi
parcialmente publicado no trabalho já citado, de Mariana ¡'ru1282.pu-
qo uso novamente de alguns trechos do texto de Gersem pois, a meu
ver, expressam a ótica indlgena, numa avaliagáo de alguém que viveu a
experiéncia de "ser assessorado", vindo de encontro aos questionamen-
tos e pontos levantados acima.
A autonomia como valor e a articulagío de possibilidades 243

É, importante considerar que nAo existe ossessoria passiva.


Ou é favorável ou é desfavorável ds sociedades indígenas. O curio-
so, ainda, é que, na prática da luta indígena, o assessor (qualquer
que seja) ganha mais poder de argumentagño dentro das comuni-
dades indígenas do que o próprio líder tradicional (talvez pelo sen-
timento de inferioridade... ).
A importdncia e o popel de uma assessoria, acho que pode-
ria ser definida como utna fplg a mais no processo de luta. Forga
essa que deve ser entendida nño somente como simples apoio, mas
como importante servigo, essa relagño formaliza-se numa alianga
mútua: instáncia mais elevada e possível nesse processo de relagóes
cooperativas sociais. Para tanto, é imprescindível adquirir signifi-
cativo grau de confianga, através do primeiro ffiomento, o da supe-
ragdo do sentimento de inferioridade ou superioridade que diverge
entre ambos, consequéncia de uma dominagño e discriminagño de
uma sociedade. Creio que essa seja a tarefa primeira do assessor e
a mais difícil talvez, porque requer a aceitagdo da relagño de igual-
dade e reciprocidade, difícil num mundo egocéntrico.
E importante, também, a aceitagdo plausível dos limites de
conhecimento de cada um, de maneira solidária e consciente. O as-
sessor ndo é para ditar ensinamentos ou impor como única salva-
gño seus conhecimentos - que sño muito importantes, sem dúvida,
antes para possibilitar uma partilha eficaz dos diferentes conheci-
ffientos, enriquecendo-os e aperfeigoando-os. Fora disso, acontece-
rá que um lado seja engolido pelo outro.
Por outro lado, a tarefa do ossessor é quño bonito e grandio-
so que vai desde o servigo e o papel de clarear idéias, conceitos, so-
mar forgas, possibilitar e criar questionamentos e análises profun-
das, ampliar conhecimentos... até mostrando e demonstrando es-
tratégias e viabilidades do processo frente a umA determinada si-
tuagño ou problema. Contudo, a decisño da escolha deve ser unica-
mente da comunidade interessadúg3.

Pelo que tenho podido aprender desta experiéncia de pesquisa e


assessoria ao movimento dos professores inilígenas do Amazonas, Ro-
raima e Acre, elencaria como questóes relevantes nesta discussáo do
24 Rosa Helena Dias da Silva

papel das assessorias e na concretizagáo de novas relagóes, os seguintes


pontos:

l) a assessoria deve ser facilitadora dos Processos; deve introdu-


zir novos temas, trazer informagóes novas, fazer análises, langar pro-
postas, sugerir metodologias; porém, a palavra final, as decisóes, devem
ser sempre do próprio movimento.

2) a assessoria deve estar aberta' acesslvel ás novas demandas e


necessidades do movimento; precisa saber que náo sabe tudo e ter sen-
sibilidade para ajudar na análise da conjuntura, pesquisando elementos
necessários a determinadas agóes.

3) a assessoria precisa ter afinidade política e identificagáo com


o movimento e estar disposta a aprender conjuntamente, colocar-se a
servigo do movimento, aceitar ser dirigido (no sentido de que quem
define os rumos é o movimento).

4) o assessor trabalha com os conhecimentos, assim, seu papel é


o de mediador entre os saberes indígenas e o saber técnico-científico,
ajudando mesmo a desmistificar algumas "verdades" estabelecidas.
5) a relagáo que se estabelece é a de reciprocidade.

Antes de "colocar um ponto final", gostaria de registrar que du-


rante todo trabalho de estudo, pesquisa e investigagáo, procurei me
contrapor a pelo menos duas visóes de escola indígena que avalio insu-
ficientes para explicitar a realidade atual e os anseios colocados pelo
movimento dos professores indlgenas do Amazonas, Roraima e Acre,
com o qual tenho convivido (e aprendido) mais de perto. Uma primei-
ra seria aquela que concebe a instituigáo escolar como parte da cultura
da sociedade envolvente; assim sendo, sempre vai ser "paralela" ou "de
fora", em resumo, "escolas para índios". A segunda concepgáo parte do
princípio que os índios, como todos cidadáos brasileiros, "tém direito
ár','u boa escola"284, nos moldes que nós projetamos para nossa socie-
dade. Aí, como é fácil observar, permanece a PersPectiva das "escolas
para índios".
Pressupondo a possibilidade de escolas indígenas como criagáo
dos próprios povos indlgenas, segundo seus interesses, dentro de um
projeto mais amplo de futuro, uma inquietante pergunta tem me Per-
seguido atualmente: seria coerente e real pensar em escolas próprias,
A autonomia como valor e a articulagío de possibilidades 245

que passassem a fazer parte das culturas; díto de outra forma, a escola
como um dos elementos da cultura dos povos indlgenas?28s
Procurei ainda mostrar o dinamismo dialético da questáo: a es-
cola "pode vir a ser" algo que contribua na vida dos povos indlgenas,
operando náo sem riscos e contradigóes, apesar de sua história e obje-
tivos integracionistas oficiais.
Nesta perspectiva, escolas indígenas seriam, de fato, projetos in-
dígenas de escolas, deixando de ser propostas de fora, "ofertas" a partir
de quem quer que seja: governo, ONGs, Igrejas, Universidades, e esta-
riam passando a ser parte de um processo mais amplo que, necessaria-
mente, deve estar nas máos dos principais interessados: os povos indí-
genas.
Vale lembrar a frase de Márcio Silva, impulsionadora inicial des-
te trabalho, e que acompanhou de certo modo toda minha reflexáo: "a
escola indígena para ser boa precisa primeiro ser dos índios, para en-
táo ser boa".
Sinto que aqui reside a grande dificuldade (náo só para os ín-
dios, mas muito mais para nós): pensar as escolas indígenas é pensar
novas relagóes entre os povos indígenas, o Estado e a sociedade civil. E
pensar nosso futuro comum, realmente assumindo a pluralidade cons-
tituinte de nosso país. E permitir-se o diffcil exercício da diversidade,
reconhecendo as diferengas e olhando-as náo como problema, mas, ao
contrário, como valor. Realmente projetar um amanhá onde as dife-
rengas e singularidades - as diferentes lógicas e racionalidades, as diver-
sas maneiras de ver o mundo - possam compor um cenário complexo
e rico (ético e esteticamente belo), contribuindo para a superagáo do
ideal de homogeneidade, ou seja, de uma certa uniformizagáo de
idéias, valores e projetos que historicamente predominaram. Utopia?
Prefiro chamar de esperanga, conforme Paulo Freire (no seu pequeno
livro Pedagogia da autonomia), ao vislumbrar a história enquanto
"tempo de possibilidadesD2S6.
Neste contexto, qual será o papel das escolas indígenas na reali-
dade do contato interétnico: confronto? Conflito? Diálogo?
Tendo como premissa a possibilidade da existéncia de escolas
que, em processo de construgáo permanente, possam ser chamadas
com propriedade de escolas indígenas, procurei explicitar quais sáo as
características e pressupostos que qualificam essas escolas. Em outras
palavras, o que garante a possibilidade da concretizagáo de propostas
246 Rosa Helena Dias da Silva

indígenas de escola, conforme os rumos da investigagáo desenvolvida


até aqui.
Uma primeira constatagáo fundamental é que as escolas seiam
entendidas como parte integrante de um projeto mais amplo vivido pe-
los povos indígenas na busca de garantirem o seu presente e futuro, en-
quanto sociedades e culturas autónomas.
Nas palavras de Márcio Silva287, "sabemos, como educadores,
que onde quer que haja escola, ela sempre é parte de um projeto que a
transcende. Pensar a escola indlgena sem a consideragáo da relagáo en-
tre esta instituigáo e a divisáo do trabalho tal como se define na socie-
dade em que está inserida (o seu projeto social) é algo que me parece
de uma ingenuidade comprometedora. O que importa primeiramente
ao movimento de professores indlgenas do amazonas' Roraima e Acre
hoje é precisamente a luta pelo direito dos povos indlgenas terem em
suas máos o poder sobre os programas de educagáo escolar que se de-
senvolvem em suas áreas, uma vez que constituem instrumentos im-
prescindíveis na construgáo de seus destinos".
Como se sabe, ao longo da história, temos exemplos que eviden-
ciam os resultados desastrosos que distintos Programas de "educagáo
para índios" acarretaram para as poPulagóes indlgenas.
Ainda recentemente, tivemos o desprazer de novamente nos de-
pararmos com a defesa da tese da integragáo dos lndios via escolariza-
gáo28s. Hélio |aguaribe propóe o "fim dos lndios até o ano 2000", apon-
tando como caminho pata tal, a criagáo de escolas em áreas indígenas
para que "os lndios tenham direito de se tornar cidadáos brasilei-
ros,289.
Constata-se em sua afirmagáo uma esPantosa crenqa na eficácia
deste instrumental - a escola - que realizaria (em seis anos) o que cin-
co séculos de violéncia náo conseguiram: quebrar a resisténcia desses
povos, arremessando-os para um espago e tempo totalmente diversos e
adversos, em termos tecnológicos, lógicos, cientlficos e humanos.
E claro que náo é dessa escola que o movimento dos professores
indígenas está falando. O Prof. Euclides Pereira, Macuxi, de Roraima,
náo deixa dúvidas ao afirmar que:

(...) estamos hoie, de certa forma, obrigados a assumir para


nós aquilo que nño é nosso, que núo faz parte da nossa cultura. Sño
costumes desta sociedade que invade as nossas malocas, e a gente,
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 247

seffi perceber, vai absorvendo essa situagío e prejudica nossa cultu-

ra. Essa situagAo, de certa


forma triste, em que se busca, através da
educagñ0, uma possível saída para os problemas. (...) As vezes eu
vejo que a escola pode ser o caminho prá chegar a mudar essa men-
talidade. A partir do momento que se trabalha com as criangas.
Porque se separamos a educagño, se dissociarmos da vida do ín-
dio... Eu acredito que a nossa forma de viver, a nossa forma de ver
o mundo tem que ser preservada, porque essa vida dessa socidade
nño é mais admitida por ela mesma. Porque vocé jápensou? Crian-
gas abandonadas; mulheres prostituídas,.. Eu acredito que nós ndo
sotnos abrigados a entrar nesse sistema para matar nossa culturo,
nossa danga, nosso canto, o respeito que nós temos pelas pessoas,
Para onde nosso povo vai caminhar? Aonde nós queremos che-
gar?2N

"O que importa principalmente ao movimento de professores


indígenas do Amazonas e Roraima hoje é precisamente a luta pelo di-
reito dos povos indígenas terem em suas máos o poder sobre os pro-
gramas de educagáo escolar que se desenvolvem em suas áreas, uma vez
que constituem instrumentos imprescindlveis na construgáo de seus
dss¡in65"291.
Penso que é preciso ir além do "respeito ao outro'1 O respeito en-
tre culturas, o "dar lugar e espago ás diferengas", é um passo - deci-
as
sivo - mas que náo esgota o delicado processo de construgáo de uma
sociedade plural.
"Temos que nos despojar dos rangos da tutela, rangos de quem,
no fundo, náo tem confianga na forga dos povos indígenas, na forga de
suas instituigóes. Nesse sentido, creio ser muito claro que a autonomia
se baseia na necessidade de ser uma solugáo integral, uma solugáo eco-
nómica, social e polític{'292.
É, importante destacar que, se a autonomia é uma das bandeiras
mais importantes dos povos indígenas (e seus aliados) em todo o mun-
do, ela tem conteúdos e práticas diferenciadas, a partir da diversidade
das realidades dos povos indígenas, no marco dos respectivos Estados
Nacionais. Sáo portanto processos dinámicos, em construgáo e defini-
gáo, a partir da situagáo sócio-política e cultural dos povos indlgenas e
dos países em que estáo inseridos.
248 Rosa Helena Dias da Silva

Uma importante reflexáo sobre o tema foi elaborada Pelo antro-


pólogo Eduardo Viveiros de Castro2e3. Após alertar para a ambiguida-
de e os vários sentidos da palavra autodeterminagáo, afirma que "esta
nogáo possui um sentido imediatamente político, o que nos remete ao
Estado. Por isso geralmente significa: autodeterminagáo face ao estado
brasileiro. Estado este que tem tratado o índio como objeto de sua po-
lítica integracionista e protecionista". Viveiros ressalta que "a autodeter-
minagáo, como idéia, sublinha, ao contrário, o caráter de Sujeito dos
povos indígenas; sublinha sua diferenga ativa; sua capacidade virtual de
definir os rumos da própria história. A autodeterminagáo implica um
direito essencial: o direito á diferenga, direito diflcil de conceber e con-
ceder; de resto, üreito que náo se concede e sim se reconhece".
A discussáo sobre autonomia foi retomada na década de 90, es-
pecialmente pelo avango e pressáo dos próprios movimentos organiza-
tivos dos povos indígenas, e pela recolocagáo da questáo étnica, em ní-
vel mundial, em fungáo da reorganizagáo polltica, após a extingáo da
Uniáo Soviética.
E importante ressaltar que temos entendido o conceito de auto-
nomia náo como uma volta ao passado. Ao contrário, a autonomia é
uma resposta contemPoránea aos problemas atuais e historicamente
acumulados pelos Povos indlgenas. Náo implica assim em separatismo,
independéncia, nem desmembramento da unidade nacional: é uma
forma do exercício da livre determinagáo num marco nacional.
Encerro com trecho de um irronunciamento de Rigoberta Men-
chú, pois, a meu ver, sintetiza algumas das principais preocupagóes le-
vantadas nesta tese, com destaqueparaa temática da autonomia e pro-
tagonismo indígena:

Me tocou nascer no siléncio e mais tarde gritar eftr carnpo interna'


cional. Os povos indígenas sño considerados sem capacidade de au-
tonomia (...). Agora, abre-se a Década dos Povos lndígenas. Du-
rante essa década, importa urgentemente que se estabelegam pla-
nos de agño concretos, eficientes. Que as entidades se coloquem ao
lado das organizagdes indígenas. Elas sño capazes! O desafio é
acompanhal e ap'iaf os indígenas, deixando de ser pater-nalistas.
E priciso atribuir ao indígena o protagonismo intelectual da luta!
(Jma luta que se trava sob todos os asPectos: na saúde, no campo
da ética e áa ecologia, e na educagño muito prioritariament/9a'
A autonomia como valor e a articubgAo de possibilidades 249

"Se é verdade que o que nos importa, no final das contas,


é,por assim dizer, a construgáo do prédio (falando metaforica-
mente), o que cabe, de fato, a cada um de nós é simplesmente
colocar um tijolo, se eu tiver me compenetrado da intencionali-
dade do projeto do prédio, desse projeto coletivo que dirige a
construgáo do ediftcio do saber" (SEVERINO,Antonio |oaquim.
"Problemas e dificuldades da condugáo da pesquisa no Curso de
Pós-Graduagáo" in FAZENDA,Ivani (org). Noyos Enfoques da
Pesquisa Educacional, Cortez,Sáo Paulo, L992).

"...a esperanga náo é mais do que mentira se náo for o es-


forgo cotidiano por um outro amanhá" (Lluis Llach, poeta cata-
lao).

Pretendo, com esse trabalho, ter colocado um pequeno


"tijolo" nesta construgáo, cimentando-o com muita esperanta.
250 Rosa Helena Dias da Silva

NOTAS

253 SILVA e GRUPIONI, op. cit., p.l7


254 Esclarego que entendo o "direito á diferenga" - "acoplado a uma igualdade de
direitos e de dignidade", conforme CUNHA, 1994, op. cit. p.135
255 OLIVEIM,Joáo Pacheco. op. cit., p.5
256 ldem, ibidem.
257 CUNHA,MAnoela Carneiro da. op. cit., p.135
258 OLIVEIM,Roberto Cardoso de.A crise do indigenismo, Campinas, Ed. UNI-
CAMR 1988, p.l0
259. PRICE,David. In Informativo FUNAI no l4lseVl975 (apud HECK, p.26)
260 Conforme entrevista dada a essa pesquisa.
261 O projeto de lei do novo Estatuto, que leva o título de "Estatuto das Sociedades
Indígenas", que deverá adequar-se á nova perspectiva constitucional, cujos
princípios, como já vimos, sáo o respeito i diversidade cultural e autonomia
dos povos indígenas (superando os antigos objetivos integracionistas) encon-
tra-se retido no frngresso Nacional, por orientagáo do próprio Governo.
262 SILVA,Aracy Lopes da. op.cit
263 BATAIHA,Guilhermo Bonfil. "La teoria del control cultural en estudio de pro-
cessos étnicos" ín Arinsana, no 10, Caracas, 1989, p.2 I e 22 (trad:ugáo minha)
264 BAIALHA, op. cit., fala em quatro categorias distintas: "cultura autónoma; cul-
tura imposta; cultura apropriada; cultura alienada".
265 As principais idéias a segui¡ assim como as citagóes, sáo de Bartomeu MeIiá,
conforme seu texto "Oralidad y escritura en Sociedades Indlgenas", aPresenta-
do no Seminário Internacional "El aprendizaje de lenguas en poblaciones indi-
genas: el caso de los idiomas indigenas" - PROIEB/ANDES, Iquique, Chile,
nov/96 (tradugáo minha). Tive contato com esse material através do próprio
Meliá, em estudo realizado pela ANE/CIMI. Posteriormente, o texto "Biünguls-
mo e escrita", do mesmo autor, publicado in D'ANGELIS e VEIGA (org) Leitu'
ra e escrita em escolas indlgenas, Campinas, Mercado de Letras/ALB, 1997, re-
forga as mesmas idéias.
266 ldem, ibidem
267 ldem, ibidem
268 ldem, ibidem
269 Novamente, elaboro essas idéias,a partir de um estudo com Meliá (ANE/CIMI'

dezl96),no qual foram trabalhados nogóes e conceitos relevantes para este es-
tudo, em especial a concepgáo dos povos indígenas enquanto "comunidades
educativas".
270 Essa interpretagáo fundamenta-se na teoria do "Biünguismo radical" exPressa
por Meliá em texto de sua autoria, intitulado "El modelo ARAKUARENDA, o
el bilinguismo radical" in MELIA,B.Elogio de lalengua guaranf, Assunción, Pa-
raguai, CEPAG' 1995
271 'A sociedade capitalista, enquanto modo de produgáo, gera a desigualdade so-
cial na medida em que privatiza os meios de produgáo, pois onde há proprie-
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 251

dade privada dos meios de produgáo, existe também a transformagáo do tra-


balho em mercadoria, e, portanto, eúste uma relagáo entre trabalho e capital,
que gera conflitos, tensóes e toda a dinámica da sociedade de classes". (confor-
me FERNANDES,Florestan.Movimento socialista e partidos pollticos, Sáo Pau-
lo, Hucitec, 1980, p.19
272 Essa tipologia foi trabalhada por Meliá, em estudo já citado (ANE/CIMI,
dezl96).
273 FERNANDEs,Florestan./¡¡vestigajño etnológíca no Brasil e outros ensaios,Petró-
polis, 1975, p.36 apud Meliá (1979).
274 MOSONYI, op. cit.
275 Refuo-me aos seguintes textos: "O papel dos movimentos sociais para o avan-
9o teórico da questáo urbana", de Maria da Glória Gohn; "Cidadania, Movi
mentos sociais e entidades de mediagáo", de José de Souza Martins; "A relagáo
de dominagáo na pesquisa social", de Rosa Maria Fischer Ferreira e "Assessoria
qualificada e desinteressada", de Gersem dos Santos Luciano.
276 Como já foi explicitado, no presente trabalho, o papel de assessora e pesquisa-
dora estivera¡n intimamente ligados. Há questóes, dúvidas, inquietagóes e an-
gústias recorrentes. E neste sentido que opto por pensar conjuntamente esse
papel, recorrendo ora a textos que falam prioritariamente do papel de assesso-
ria, ora a textos que enfocam mais de perto o papel do pesquisador.
277 Como já foi citado, conforme GONH, assessoria externa é aquela que "perten-
ce a outra categoria social, mas existe uma base de coesáo ideológica comum
que cria lagos de afinidades e objetivos únicos"
278 FERREIRA,Rosa Maria Fischer.'A relagáo de dominagáo na Pesquisa social" in
Revista de Cultura e Polltíca
279 MARTINS,fosé de Souza. "Cidadania, Movimentos sociais e entidades de me-
diagño" ín Discutindo a assessoria popular - II, AIIJP/FASE, Rio de faneiro, ou-
tubro-1992
280 GOHN,Maria da Glória. "O papel dos movimentos sociais para o avango teó-
rico da questáo urbana e regional" in PAVIANI,AIdo (coord).,A questño epíste-
mológica da Pesquisa Urbana e Regional, Brasflia, UNB, Núcleo de Estudos ur-
banos e Regionais - NEUR, ano 2, no 1,L993,p,49
281 Esta foi também a avaliagáo feita em um dos pareceres de acompanhamento ¡
pesquisa, na época em que fui bolsista-FAPESP: "a assessoria combinada I pes-
quisa dá á bolsista a oportunidade de ser assessorada também: uma pesquisa-
a9áo baseada numa interlocugáo clara e simétrica, com ganhos, trocas e desco-
bertas nas duas diregóes, o que é extremamente positivo como metodologia de
pesquisa e como atuagáo indigenista" (Trecho de Parecer ao 3" Relatório de
Pesquisa enviado á FAPESP).
282 Da origem dos homens d conquista da escrita: um estudo sobre povos indlgenas e
educagño escolar no Brasil, Dissertagáo de mestrado, Departamento de Antro-
pologia, USP, Programa de Pós-Graduagáo em Antropologia Social, Sáo paulo,
1992
283 LUCIANO,Gersen dos Santos. "Assessoria eualiEcada e Desinteressada",
261 dezembrol 1991 (grifos do autor)
252 Rosa Helena Dias da Silva

284 Concordo com esse entendimento de que todos tem direito a uma educagáo de
qualidade. Porém, como se sabe, o próprio conceito de qualidade náo é único,
e vem carregado dos interesses hegemónicos de dada sociedade. Com respeito
i nossa, está intrinsecamente ligado á nogáo de desenvolvimento ("progres-
so"). Seria o caso de nos perguntar: que modelo de desenvolvimento? Que qua-
lidade? A servigo e a favor de quem? Por outro lado, há que se considerar que
fazparte do processo histórico e atual viüdo pela grande maioria dos povos in-
dígenas, a percepgáo da apropriagño do saber escolar como um valor. Em ou-
tras palavras, o desejo de concretizar o ideal da escolarizagáo integra hoje as as-
piragóes de grande parte dos povos indígenas (principalmente os de maior
tempo de contato). É, o que os lndios do Rio Negro tem chamado de"febre da
escola", quc faz com que comunidades quase inteiras se desloquem de suas áreas
para os municlpios mais próximos, na intengáo de dar continuidade aos estu-
dos.
Pretendo continuar acompanhando as experiéncias de construgáo das escolas
indlgenas, em especial as ligadas ao movimento dos professores aqui estudado.
Ao mesmo tempo, darei continuidade aos estudos teóricos, procurando clarear
"respostas" frente a esta indagagáo (ou mesmo aprofundando dúüdas e ques-
tionamentos).
286 "A esperanga é um condimento indispensável I experiéncia histórica. Sem ela,
náo haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há tempo
problematizado e náo pré-dado". FRElRE,Paulo.Pedagogia da Autonomia' Sáo
Paulo, Paz e Terra, 3a ed.,1997
287 SILVA,Márcio. "A conquista da escola: educagáo escolar e movimento de pro-
fessores indlgenas no Brasil", in Em aberto, no63, Brasllia, MEC' 1994
288 Tal posigáo, defendida pelo cientista político Hélio faguaribe, foi claramente
exposta no Seminário "Política Educacional para o Exército: ano 2000".
289 Conforme jornal Folha de Sdo Paulo, dia 30/08/94' p.l-4
290 Depoimento de Euclides, durante o VIII Encontro/l995. AnotagÓes pessoais da
pesquisa.
291 SILVA,Márcio. Op. cit., Pag.ll
2g2 Entrevista com Gilberto Lopez e Rivas in Porantim, ano XVII, nol69, Brasllia,
CIMI, ouV94, p.07
2g3 cASTRO,Eduardo Viveiros de.'A autodeterminagáo indlgena como valor" in
Anuório Antropológico 81, Fortaleza/Rio, Ed.Tempo Brasileiro' 1983
2g4 AMARANTE,EIisabeth. "o exemplo das mulheres" in Porantim, ano xvII, no
169, Brasllia, CIMI, out/94, p. ll, grifos meus.
BIBLIOGRAFIA
Livros e Artigos

AMADIO,Massimo
1987 "La cultura como recurso polltico" in Extracta no6, Lima, di-
ciembre.
AMODIO,Emanuele.
1988 Cultura - Materiales de apoyo para la formacion docente en
Educacion Billngue intercultural - Chile, UNESCO, Educacion.

I 986 Escuelas y culturas indigenas de América Latina, Quito,Ediciones


Abya-Yala.
ANDRE,Marli Eliza
1995 Entnografia da prática escolar, Campinas, Papirus.
APPLE, Michael.
1989 Educagño e Poder, Sáo Paulo, Ed. Artes Médicas.
ARANTES,Antonio e outros.
1992 Desenvolvimento e Direitos Humanos - a responsabilidade do an-
t r op ólogo, Campinas, UNICAMP.

MEVEDO,Marta e ORTOLAM,MaTia Helena.


1992 "Movimento indígena - Já existem 100 organizagóes" in Poran-
tim, Br asilia, CIMI, dez. p.7
BARBIER,René.
1985 A Pesquisa-Agño na instituigño educativa, Rio de faneiro, |orge
Zahar Editor.
BARTH,Frederik.
1976 Los grupos étnicos y sus fronteiras - La organización social de las
diferencias culturales, México, Fondo de Cultura Económica.
BATALHA,Guilhermo B.
l99l "América Latina debe girar em torno de la cultura indígena" in
Revista del Sur, Montev.

"El pensamiento político de los índios em América Latina" in


Anuário Antropológico 79, T.Brasileiro

t989 "La teoria del control cultural en estudio de processos étnicos"


in Arinsana, nol0, Caracas. -
254 Rosa Helena Dias da Silva

BERTRAND,Michele.
1989 "O homem clivado - a crenga e o imaginário" in SILVEIRA,Pau-
lo e ORAY,Bernard(Org.). Elemmtos para uffia teoria marxista
da subjetividade, Sñ'o Paulo, Vértice.
BONDE,Grupo Tiabalho Mecanismos e A9áo Coordenada.
1989 "Da educagáo indlgena'l Brasflia, jan.
BRANDAO,Carlos R.
1986 ldentidade e Etnia - Construgdo da pessoa e resisténcia cultural,
S.Paulo, Brasiliense.
BRITO,Maria Edna de.
1995 Etno-alfabetizagño Yanomama - da comunicagío oral d escrita,
Brasllia, Fundo Canadá/Embaixada do Canadá/CIMI.
CABRAT/Ana; MONSERRAT,RuIh e MONTE,Nieta.
1987 Por uma educagño indígena diferenciada Brasllia, Fundagáo Pró-
Memória.
CAPACLA,MaTta Valéria.
1995 O debate sobre a educagño indlgena no Brasil (1975-1995), Brasl-
lia/Sáo Paulo, MEC/Mari-USP.
CARNOY,Martin.
1990 Educagdo, Economia e Estado - base e supuestrutura/relag1es e

mediagóes. Sáo Paulo, Cortez.


CASTORIADIS,Cornelius.
1992 O mundo fragmentado - as encruzilhadas do labirinto/3,Sáo Pau-
lo,Paz e Terra.
CASTRO,Eduardo Viveiros de.
1983 "Autodeterminagáo indígena como valor" in Anuário Antropoló-
gicolSl, Fortaleza/Rio de faneiro, Edigóes Universidade Federal
do Ceará e temPo Braasileiro.
CIMI,Cadernos do.
1993 Concepgdo e Prótica da Educagño Escolar Indlgma,no2, Brasllia.
1992 Com próprias mños - Profusores Indfgenas construindo a auto-
as
nomia de suas escolas. Coletánea de relatórios de encontros de
professores indígenas no Brasil, Setor de Documentagáo do CI-
MI, Brasília.
COMISSÁO PRÓ-INDIO.
l98l A questdo daEducagño Indlgena" Sáo Paulo, Brasiliense.

1983 O lndio e a Cidadania,Sáo Paulo, Brasiliense.


A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 255

CORRY, Stephen.
1994 "Guardianes de Ia tierra sagrada" (prólogo) in Guardianes de la
tierra sagrada in Survival Internacional. Londres.
DAMASCENO, Felisberto.
1994 "O debate sobre os distritos" in Porantim, Brasília, CIMI, nov.
DAMATA,Roberto.
1991 Relativizando - Uma introdugño d Antropologia Social, Rio de |a-
neiro, ROCCO.
D'ANGELIS,WILMAR e VEIGA,JURACILDA (orgs.).
1997 Leitura e escrita em escolas indígenas, Campinas, AlB/Mercado
de Letras.
EMIRI,Loreta e MONSERRAT,RuIh.
1989 A conquista da escrita - Encontros de Educagño Indlgena. Sáo
Paulo, Editora Iluminuras.
ERIKSON,ETik.
1972 Identidade, juventude e crisqüo de |aneiro, Zahar.
EZPELETA,JUsIa e ROCKWELL,EIsie.
1989 Pesquisa Participante, Sáo Paulo, Cortez Editores e Autores As-
sociados.
FERNANDES,Florestan.
1980 Movimento socialista e partidos pollticos, Sáo Paulo, Hucitec.
FERREIRA,Mariana K. Leal.
1992 Da origem dos homens d conquista da escrita: um estudo sobre po-
ws indígenas e educagño escolar no Brasil. Dissertagáo de Mes-
trado, Depto Antropologia, USP.

1994 Com quantos paus se faz uma canoa! A matemática na vida coti-
diana e na experiéncia escolar indlgena, Brasflia, MEC.
FERRREIRA,Rosa Maria Fischer.
l98l 'A relagáo de dominagáo na pesquisa social" inRevista ile Cul-
tura e Política, n"3, nov/jan-1981, Sáo Paulo, CEDECIPaz eTe-
rra.
FISCHMANN,RoseIi (coord).
1987 Escola Brasileira: Temas e Estudos, Sáo Paulo, Atlas.
FISCHMANN,Roseli.
1990 Vida e identidade da Escola Pública, tese de doutorado, FEUSP.
FREIRE,Paulo.
1996 Pedagogia da Autonomia, Sáo Paulo, Paz e Terra.
256 Rosa Helena Dias da Silva

FREITAS,Luis Carlos.
1987 "Projeto histórico, ciéncias pedagógicas e didática", in Educagño
e Sociedade, Sáo Paulo, n"27.
GAIGER,Iúlio.
1989 Direitos Indígenas na Constituigño de 1988, Brasllia, CIMI.
GALLOIS,Dominique Tilkin.
1994 Mairi revisitada - a reintegragño da Fortalcza de Macapá na tra-
digño oral ilosWaiápi, Sáo Paulo, NHII-USP/FAPESP.
GOFFMAN,E.
1988 Estigma: notas introdutórias sobre a manipulagño da identidade
deteriorada, Rio de faneiro, Guanabara.
GOHN,Maria da Glória.
1992 Movimentos Sociais, Cidadania e Educaqño. Sáo Paulo, Cortez.
1993 "O papel dos movimentos sociais para o avango teórico da ques-
táo urbana e regional" in PAVIANI,AIdo (coord.). A questño
Epistemológica da Pesquisa Urbana e Regional, Brasllia, Ed. Uni-
versidade de Brasllia/CEAM/NEUR.

1997 Movimento Sem Terra, ONGs e Cidadania"Sáo Paulo, Cottez.


GRUPIONI,Luis Donizeti Benzi.
1991 "A nova LDB e os lndios: a rendigáo dos caras-pálidas" in Cader-
nos de Campo, ano l, nol, Antropologia, USP.

JLNQUEIM,Carmem.
l99l Antropologialndlgena,SáoPaulo,Educ.
LARAIA,Roque de Barros.
1986 Cultura - um conceito antropológico, Rio de faneiro, lotgeZahar
Editor.
MAHER,Tereza Machado.
lgg4 "O ensino de llngua portuguesa nas escolas indígenas" in Em
Aberto - MEC, n"63, Brasllia'
MAZZILLI,Sueli.
1992 A pedagogia além do discurso, Piracicaba, Ed. UNIMEP.
MARTINS,José de Souza.
lgg2 "Cidadania, Movimentos Sociais e Entidades de Mediagáo" in
Discutindo a Assessoria Popular - II, Rio de Janeiro, AJUP/FA-
SE, out.
MEC. EmAberto
1994 Órgáo de divulgafo do Ministério da Educagáo e do Desporto,
Tema: "Educagáo escolar IndlSena"' n"63, Brasllia.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 257

MELIA,Bartomeu.
1979 Educagño Indígena e Alfabetizagño. Sáo Paulo, Loyola.

L995 "El modelo ARAKUARENDA, o el bilinguismo radical", in Elo-


gio de la lingua Guaranj. Assunción, CEPAG.

1996 "Oralidad y escritura en Sociedades Indigenas", texto apresen-


tado no Seminário Internacional "El aprendizaje de lenguas in-
digenas: el caso de los idiomas indigenas", PROEIB/ANDES,
Iquique, Chile, nov.
MISSÓES SALESIANAS DO AMAZONAS.
1965 DeTupñ aCristo,lubileu de Ouro (1915-1965), Rio de Janeiro.
MONSERRAT,Ruth.
1994 "O que é o ensino bilingue: a metodologia da gramática con-
trastiva" in Em Aberto, n"63, Brasllia, MEC.
MONTE,Nietta.
1993 "Linguagem no contexto escolar indígena: o caso do Acre" in
Cadernos ESE, Rio, Faculdade de Educagáo, Universidade Fede-
ral Fluminense, nol, novembro.
MOREIRA,Antonio Flávio e SILVA,Tomaz Tadeu da (org).
1995 Currículo, Cultura e Sociedadq Sáo Paulo, Cortez.
MOSONm,Esteban e RENGIFO,Francisco.
1986 "Fundamentos teóricos e programáticos de la educacion inter-
cultural bilingue" in Arinsana, n"2, Cuzco, julio.
MOSOI\m,Esteban Emilio.
1996 "Familia indigena y educacion intercultural bilingue", texto
apresentado no II Congresso Latino americano de Educacion
Intercultural Bilingue, Santa Cruz, Bolivia, nov.
NAVARRO,Azpilcueta e outros.
1988 Cartqs Avulsas - Cartas jesuíticas 2,SáoPaulo, Editora da Univer-
sidade de Sáo Paulo.
NETO,Maria Inácia D'Ávila (org.).
1995 Desenvolvimento Social - Desafios e Estratégias,yol II, Rio de Ja-
neiro, Cátedra UNESCO de Desenvolvimento durável, UFR-
J/EICOS.
OLIVEIRA,foáo Pacheco de.
1993 "A viagem da volta-reelaboragáo cultural e horizonte políticos
dos povos indlgenas no nordeste'l in Atlas das terras indígenas
no Nordeste, Rio de Janeiro, PETI/Museu Nacional.
258 Rosa Helena Dias da Silva

OLIVEIRA,Roberto Cardoso de.


1972 O fndio e o Mundo dos Brancos: uma interpretagño sociológica da
situagño dos Tukúna,2a edigáo, Sáo Paulo, Pioneira.

1976 ldentidade, etnia e estrutura social,Sáo Paulo, Pioneira.

l98E A crise do indigenismo, Campinas, Ed.UNICAMP.

"Etnia e estrutura de classes: a propósito da identidade e etnici-


dade no México" in Anuário Antropológico 79, Tempo Brasileiro
PIERUCCI,Antonio Flávio.
1990 "Ciladas da diferenga" ín Tempo Soci¿l, Reüsta de Sociologia da
USB Sáo Paulo.
POLANCO,Héctor Diaz.
1985 A questño Etnico-Nacional,Méxtco, Editora Linea.
QUEIROZ,MaTia Isaura Pereira.
1989 "Identidade cultural, identidade nacional no Brasil" in Tempo
Social, Revista de Sociologia da USR Sáo Paulo.
RAMOS,Alcida Rita.
1986 Sociedades Indígmas, Sáo Paulo, Editora Atica.
RIBEIRO,Darcy.
1994 "Direitos Indígenas" in Educagño d Distáncia' Brasllia, INED-
/CEAD, Yol.3, no 4 e 5dezl93 a abril.
SAHLINS,Marshall.
1990 llhas de História, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
SANTOS,Silvio Coelho dos.
1975 Educagño e Sociedades Tribais. Porto Alegre, Editora Movimen-
to.
SILVA,Aracy Lopes da.
1988 fndios, Sáo Paulo, Editora Atica.
SILVA,ATaT Lopes da e GRUPIONI,Luís Donisete.
1995 Atemáticaindígenanaescola - novos subsldiosparaprofessores de
7o e 2o graus,Brasília, MEC/MARI/UNESCO.
SILVA,Márcio.
1994 "A conquista da escola: educagáo escolar e movimento de pro-
fessores indígenas no Brasil" in Em Aberto - MEC, n"63, Brasl-
lia.
SMITH,Charlotte.
lg87 'Saber e poder: educacion tradicional y educacion bilingue" in
E*tracta n"6, Lima.
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 259

SNYDERS,Georges.
1981 Escola, classe e luta de classes, Lisboa, Moraes.
SPOSITO,MaTília.
1993 A ilusño fecunda: a luta por educagño nos movimentos populares,
Sáo Paulo, Hucitec.
TRAPNELL,Lucy.
1984 "Mucho miís que una educación billngue, In SHUPIIIUI, Peru,
Revista latino americana de actualidade y aniílisis,Vol. IX, abril-
iunho.
260 Rosa Helena Dias da Silva

FONTES
(organizadas por ordem cronológica)

1975 Curso - Seminário de Antropologia, Indigenismo e Desenvolvi-


. mento (Conclusóes), Ilha do Bananal, FUNAI/Instituto Indige-
nista Interamericano/OEA.
CIMI.
1982 'Um diiílogo com Paulo Freire sobre educagáo indlgena", Cuia-
bá, 8" Assembléia do CIMVMT, texto datil.

1983 Diário do Congresso Nacional."Redafo final do Projeto de lei


n"1258-C, de 1988'que ñxa diretrizes e bases da educagáo na-
cional"', Brasllia.
HADDAD;Sérgio.
1986 "Informe sobre reconhecimento das escolas indlgenas", Sáo
Paulo, CEDI, fev.
AZEVEDO,Marta.
1987 "Educagáo escolar indígena: algumas questóes para a Consti-
tuinteo, texto datil., Sáo Paulo.

1988 Constituigáo da República Federativa do Brasil promulgada em


05/10.

1989 Convengáo (169) sobre povos indígenas e tribais em palses in-


dependentes e Resolugáo sobre a a9áo da OIT concernente aos
povos indlgenas e tribais. Organizagáo Internacional do Tiabal-
ho, Brasília, dezembro.
Revista Tempo e Presenga.
1990 'Saber Cientlfico e Movimentos Populares", Sáo Paulo, CEDI,
n" 250, arro 12, margo/abril.

1990 Documento final do Seminário "Currlculos e Escolas Indíge-


nas", Mari, grupo de estudo de educagáo indígena do Departa-
mento de Antropologia da USP.
19991 Decreto Presidencial n" 26 de 04102.
l99l Portaria Interministerial 559 de 16104.
"E agora?"
1991 Experiéncias, opinióes e proPostas de participagáo popular. Pu-
blicagáo da FASE-SR CPV SOF e PÓLIS, Sáo Paulo, no 6, no-
vembro.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 261

SILVA, Márcio.
l99t Dados iniciais do Movimento dos Professores Indígenas do AM
e RR.

l99I Breve notícia sobre o Movimento dos Professores Indígenas do


Amazonas e Roraima.
1992 "Programa para as escolas indígenas", MEC, maio.
DAMASCENO, Felisberto.
1992 "Informe sobre a tramitagáo da LDB no Congresso Nacional",
CIMI, Brasllia iulho.

1993 Documento final do Simpósio: "Situagáo da educagáo escolar


indígena no pals", ABA e Mari, USB 09/03.
1993 "Plano Decenal de Educagáo para todos", MEC, Brasília, junho.
1993 Primera fornada de Investigación y Educación Indígena en Ve-
nezuela (Recomendaciones), Mac¿íro.
1994 "Diretrizes para a política nacional de educa$o escolar indíge-
na", MEC, Brasília.
DAMASCENO, Felisberto.
1994 "A proposta do distrito escolar indígena polemiza", Informe da
Assessoria Parlamentar do CIMI'I Brasília.
DAGNINO,Evelina.
1994 "Cidadania e participagáo popular no Brasil", UNfCAMP, texto
datil.
FREIRE,Iosé Ribamar Bessa.
1994 "História e escola Indígena". Brasília, Seminário "O plano dece-
nal e a educagáo Indígena", SEF/DPE.
IANNI,Octavio.
1994 "Educagáo e Sociedade na América Latina", Conferéncia de
abertura do II Congresso Ibero Americano de História da Edu-
cagáo Latino-americana, Campinas, UNICAMP.
LACERDA, Rosane.
1994 "O municlpio de Pesqueira e as escolas na iírea indígena Xucu-
ru - Aspectos jurídicoJegais referentes á operacionaliza$o en-
quanto sistema especlfico e diferenciada", Recife, Assessoria fu-
rldica - CIMI.
PAULA,Eunice Dias de.
1994 'O CIMI e a proposta dos Distritos de Educagáo escolar Indí-
gena", Informe da ANE/CIMI, Brasília.
262 Rosa Helena Dias da Silva

1996 Ministério da Educagáo e do Desporto/Secretaria de Educagáo


Fundamental. Parámetros Curriculares Nacionais - Convlvio
social e Etica - Pluralidade Cultural, Equipe Central: Ana Amé-
lia Inoue, Ana Rosa Abreu e Neide Rodrigues Nogueira; Asses-
sora: Roseli Fischmann; Consultora: Marta Rosa Amoroso, Ver-
sáo preliminar, julho.
GUIMARAES,PauIo Machado.
1996 "A polémica do fim da tutela aos índios", Brasllia, 3llout. texto
datil.
Nova LDB
L996 Lei9.394, de 20 de dezembro, estabelece as diretrizes e bases da
educafo nacional
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 263

Material do Arquivo do Movimento dos Professores lndígenas do


Amazonas, Roraima e Acre:

I Relatório do I Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas


e Roraima, Manaus, 15 a 18/10/1988

2 Relatório do II Encontro dos Professores Indígenas do Amazo-


nas e Roraima, Manaus, lO al4l}7lL989
3 Relatório doIII Encontro dos Professores Indígenas do Amazo-
nas e Roraima, Manaus, 19 a2210711990

4 Relatório do IV Encontro dos Professores Indígenas do Amazo-


nas e Roraima, Manaus, 12 a 16107lI99l

5 Relatório do V Encontro dos Professores Indígenas do Amazo-


nas, Roraima e Acre, Boa Vista, O8 a l2llO/1992
6 Relatório do VI Encontro dos Professores Indígenas do Amazo-
nas, Roraima e Acre, Boa Vista, 07 a I0 lrclJ9g3
7 Relatório do VII Encontro dos Professores Indlgenas do Amazo-
nas, Roraima e Acre, Manaus, 16 a20lL0lI994
8 Relatório do V.III Encontro dos Professores Indígenas do Ama-
zonas, Roraima e Acre, Boa Vista, 16 a20ll0ll995

9 Projeto pararealizagáo doW Encontro dos Professores Indíge-


nas do Amazonas, Roraima e Acre, COPIAR, 1993

l0 Projeto pararealizagáo dos Encontros dos Professores Indígenas


do Amazonas, Roraima e Acre no Tiiénio 1994-L996,COPIAR,
t993
ll Projeto pararealizagáo dos Encontros dos professores Indígenas
do Amazonas, Roraima e Acre no Triénio L99Z-I999,COPIAR,
1996
ANEXOS

ANEXO I

Tianscrigáo da entrevista com Bartomeu Meliá


Sáo Paulo, 19 dejunho de1994

Pergunta: A partir de sua experiéncia no trabalho junto com os


povos indígerlas, quais sáo as expectativas de futuro que vocé enxerga
quanto á questáo da educagáo escolar indígena e também quais sáo os
maiores desafios nesse trabalho?

MELIA: "Atualmente, como já foi visto através do Educagño In-


dígena e Alfabetimfio, a educagáo escolar se tornou um desejo, eu náo
sei se propriamente uma necessidade, mas pelo menos um desejo das
comunidades indígenas. A resposta tradicional foi aquela escola "para
indígenas" e depois até uma escola que náo fosse uma escola que pode-
ríamos chamar de "transigáo para outro tipo de sociedade", mas uma
escola que pudesse servir de reforgo para a própria identidade, defesa
das terras, etc...etc... tudo isso que se fala. Essa escola entáo, mesmo es-
sa escola que chamaríamos "aberta" e "a favor do povo", náo deixava de
ser uma escola "para indígena", desde fora... com a boa intengáo. Nesse
sentido tem algumas experiéncias, a gente pode colocar: aquela do Luis
e Eunice, nos Tapirapé, entáo é uma escola realmente, mais ou menos,
orientada pelo menos, por pessoal de fora, que está bem encaminhada,
com resultados excelentes. Aquela cartilha é uma verdadeira obra de
arte e também de pedagogia. E também eles já incorporaram professo-
res indlgenas (monitores, ás vezes chamados) - professores indígenas
na escola formal. E quando se fala escola formal, entáo é toda uma bu-
rocracia, uma institucionalizagáo dessa pedagogia, desse ensino, o qual
supóe enormes problemas porque: tem que construir escola, no fim
tem que pensar em pagar os professores, etc, etc... de tal modo que, se-
ja professor branco, chamemos um professor branco "consciente", i fa-
vor do lndio (sem segundas intengóes); seja professor indígena, no fim,
266 Rosa Helena Dias da Silva

tem uma série de problemas porque ele está instaurando uma institui-
9áo nova. Agora, como corrigir esses defeitos? Entáo aí houve vários
modos de corrigir esses defeitos, ou esses problemas, melhor. Foi adap-
tando currlculos, usando a língua inügena como língua da alfabetiza-
9áo, incorporando até, ás vezes, práticas como artesanato, coisas da
própria comunidade. E as vezes coisas que náo é muito recomendável:
os velhos indo contar histórias para os meninos lá na escola, etc, etc...
Bom, continuando ainda com essa parte das dificuldades, um dos gra-
ves problemas é que o professor indígena se constitui num poder para-
lelo dentro da comunidade. Isso aconteceu em alguns lugares. Entáo
eles, tendo uma ferramenta e recursos supostamente modernos, e até
mais ricos, no fim eles assumem fungóes de lideranga e precisamente
porque sabem mais (sabem, entre aspas). Entáo eles tém assumido po-
sigóes de liderangas e ás vezes se constituindo em opositores ao gover-
no, á organizagáo tradicional dentro do grupo. Entáo esse é um perigo
que existe. Entáo como contornar isso? 8... acho que tem que ter esco-
la, a escola formal, que vai desde o prédio, até os recursos, o instrumen-
tal que eles podem ter, que vai de banco... giz... até computador, e tudo
assim por diante. Entáo tem que se assumir, enteo tem que realmente
se ver que náo represente uma distorgáo muito forte dentro do grupo.
Alguns dizem: náo, mas essa distorgáo sempre vai vir, assim como o
trator vai representar uma distorgáo. Mas náo por isso váo deixar de
usar o trator... Pois é, mas mesmo assim, tem que ter consciéncia disto.
Agora, para encurtar, eu acho que a escola faz parte de um programa
mais amplo que eu chamaria de "bilinguismo". Entáo, escola, mesmo na
língua indígena, náo deixa de ser implicitamente um Programa de bi-
linguismo. Entáo a nogáo de "bilinguismo" é uma nogáo epistemológi-
ca: é um modo de pensar a sociedade indígena no sentido de que, pro-
vavelmente, em vez de pretender assimilar muito a escola ao modo de
ser indlgena, adaptá-la, inculturá-la, etc... talvez seria melhor ter a
consciéncia de que a escola é uma linguagem paralela, é outra lingua-
gem! E assumir como outra linguagem. Senáo, al, facilmente a escola
vem substituir a pedagogia indlgena. E por enquanto, embora aparen-
temente é um paralelismo, é uma dupla, uma via dupla que náo conse-
gue a síntese... eu, cada vez mais, estou convencido de que, Por um tem-
po cumprido, as comunidades indlgenas tem que ser bilíngües. Essa es-
pécie de "bilinguismo radical" ou seja, eles tem que ter, ou eles querem
ter essa consciéncia e esse recurso de duas linguagens, duas economias,
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 267

até duas religióes, duas organizagóes políticas. Dentro dessa espécie de


teoria quase, do bilinguismo, aí a escola assume o papel de outra lin-
guagem, outra pedagogia, que é necessária, é muito conveniente, faz
parte da comunicagáo global do grupo, neste momento da comunida-
de, uma comunicagáo que ele precisa, que ele quer. Mas entáo precisa-
mente, dentro de um bilinguismo, mas náo um bilinguismo de transi-
gáo, mas esse outro bilinguismo que é de abertura, nem sequer é de
manutengáo das duas línguas. Nesse bilinguismo que eu veio como um
diálogo, os dois sistemas se abrem para novas categorias, etc... Entáo is-
so náo é sincretismo, mas é mais manter as duas linguagens".

Pergunta: Uma das preocupagóes que os professores atualmente


estáo manifestando é a tentativa de pensar um currículo que expresse
um pouco mais os desejos, as aspiragóes, o modo de ser, enfim, a pers-
pectiva de futuro deles. Como vocé vé essa questáo dos currículos das
escolas indígenas?

MELIA:'Acho que é importante que a escola náo seja como foi


tantas vezes: um instrumento de desculturagáo, ou de desnaturaliza-
gáo, como diriam os antigos. Agora, eu também, mantendo essa pers-
pectiva de bilinguismo, eu acho que até pode se manter como dois cu-
rrículos, ou seja, saber muito bem que tem matérias, tem formas, tem
uma pedagogia que é indígena e que talvez nem sequer é necessário le-
var para a escola; e tem outra que é propriamente escolar. Por exemplo,
na matemática. Na matemática, eu pessoalmente, acho que náo é ne-
cessário fazer o esforgo de traduzir as fungóes matemáticas, os núme-
ros, tudo isso, na língua, por exemplo. Náo, é outra linguagem! Entáo
tudo bem. Eu fago tudo isso numa outra linguagem. Assim como ás ve-
zes eu uso o computador, que tem um programa em inglés, entáo a
minha mente tem que funcionar em inglés. E nem por isso eu renego
e acho que está em perigo a minha identidade em portugués. Entáo di-
zem: ah!... como fazer matemática, como fazer estudos de ftsica, como
integrar nos currículos, agricultura, mecánica? Agora também a gente
náo tem que manter muito dividido os dois. Tem que manter separa-
do, como diria o mexicano: "no juntos pero no revueltos". A pessoa,
gragas a Deus, a pessoa humana tem a capacidade para falar muito bem
até duas ou trés línguas. Consegue separar os sistemas. Com isso a pes-
soa, ela cresce, porque sua capacidade de dialogar consigo mesma e de
268 Rosa Helena Dias da Silva

dialogar com os outros é muito grande. Nem por isso ela necessaria-
mente, o que fala numa llngua, ela fala na outra. As vezes ela vai eleger
uma língua como a mais própria que outra para determinados campos
semánticos. Entáo isso, eu também acho seria uma solugáo para que
precisamente os professores náo se sintam tentados deles, depois de ter
feito esta espécie de adaptagáo moderna, facilmente se constituir no
exemplo e no controle da modernidade, o que pode criar uma reagáo,
que já está criada ás vezes, seja de llderes, seja da comunidade, nos as-
pectos tradicionais".

Pergunta: Nesse aspecto dos professores indlgenas, é claro que


existe toda uma série de discussóes que se poderia fazer. Mas o fato em
si das comunidades estarem reivindicando professores do seu povo,
professores indígenas, como vocé vé esse papel desses professores, nes-
se fenómeno assim?

MELIA: "Em parte já foi falado. Dirlamos, do lado negativo, o


papel deles é que, pelo fato deles terem o saber mais moderno, etc... náo
usem esse poder de forma a querer conquistar o poder que eles náo te-
riam naturalmente. Entáo, pelo fato de ter essa modernidade, essa ca-
pacidade, entáo eles náo deveriam pretender assumir lideranga, etc...
que náo sáo próprias deles. Isso náo quer dizer que alguns deles, por
outros motivos, náo possam ser llderes. Mas já desde outras ralzes, por
exemplo: se é filho, no caso onde tem uma certa hereditariedade' Entáo
al sim ele poderia.Isso por uma parte. Agora eles precisamente tém que
ter essa consciéncia de bilinguismo' que aliás, eles tém de fato. Os ín-
dios sáo muito mais bilíngües que nós pensamos. Mesmo quando só fa-
lam uma llngua, eles conceituam, eles conceitualizam muito bem os
dois mundos nos quais eles se movem. Entáo nesse bilinguismo' o Pro-
fessor ele tem até uma fun9áo crltica, uma fungáo consciente e reflexi-
va do que é o bilinguismo efetivamente. Ele está em dois mundos. Ele
assegura, eu diria, náo tanto a passagem, quanto o diálogo. O bilinguis-
mo nunca deve ser pensado como Passagem, mas como diálogo. E no
diálogo, é como duas pessoas que dialogando, elas, cada uma delas cres-
ce por si mesma. Depois de ter dialogado, duas pessoas' elas sáo mais
do que antes do diálogo. Cada uma delas é mais, precisamente Porque
dialogou. Entáo essa pessoa náo renunciou a sua identidade, porque al'
ela seria menos'1
A autonomia como valor e a articuhgAo de possibilidades 269

Pergunta: Vamos agradecer por essa sua contribuigáo e só gosta-


ria de pedir se vocé gostaria de deixar uma mensagem ao VII Encontro
- aos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, que váo es-
tar reunidos no seu Movimento.

MELIÁ: "Eu acho que existe uma pedagogia inügena que cien-
tificamente é muito válida e esses professores indígenas náo deveriam
esquecer essa pedagogia indígena. Eventualmente até refletir e trabal-
har essa pedagogia indígena de modo que ela se torne científica, no
sentido de (ela já é cientifica) mas se torne também científica no uso
que se faz dela. E isso por uma parte, e eles podem fazer muito bem e
deveriam fazer isso. Em segundo lugar, que náo usem a escola como
instrumento de poder, porque o po{er é quase sempre uma via de co-
rrupgáo. Entáo o poder como tal, como domlnio, o poder é sempre pe-
rifoso. Entáo a escola náo tem que ser o lugar do poder. E terceiro lu-
gar, efetivamente, nessa espécie de dupla linguagem, de linguagem de
dois, seja esse bilinguismo, seja um diálogo entre pessoas que faz com
que o povo indígena possa se abrir a novas realidades, sem renunciar as
próprias. Quando um pesquisador, uma pessoa de nossa sociedade
aprende outra língua, quer ser bilíngüe, isso náo representa que ele re-
nuncia a própria língua. Ao contrário, muitas vezes o biünguismo ser-
ve até para potencializar o próprio ser da pessoa. Eu vejo a escola co-
mo uma linguagem nova que permite esse bilinguismo e um bilinguis-
mo que pode, vai sea bilinguismo económico, bilinguismo de línguas,
bilinguismo até de culturas. Por isso geralmente os programas de edu-
cagáo bilíngüe sáo chamados de "educagáo bilíngüe e intercultural".
270 Rosa Helena Dias da Silva

ANEXO 2

TRANSCRIqAO DAS ENTREVISTAS


VI Encontro dos Professores Indlgenas do AM, RR e AC - BoaVista/RR
- 1993

Entrevista n"l
Entrevistada: ProF Marilene Cordeiro, Miranha/Médio Solimóes
Boa Vista, 07 de outubro de 1993

Apresentagáo:
Eu me chamo Marilene Cordeiro Ferreira, eu sou da tribo Miran-
ha e trabalho na Aldeia Miratú. Thmbém sou coordenadora da Organiza-
gño das Mulheres e trabalho como professora indígena da minha aldeia. O
que eu acho de prioridade é nos Municípios, por causa que eles ficam co-
brando de mim, que esse órgao indígena nño paga o meu salário e fica em-
patando o meu teffipo'. e isso mais... eles ficam falando prá mim. Eles es-
tño cobrando também o curiculo e a lei, o regimento, que a gente setnpre
fala com eles, e o qual eu sentei com a coordenadora do Município, ela diz
que isso nño é válido para nós, por causa que a gente tetn que sair da es-
cravidño..., que se ficar ainda voltando, nño vai adiantar nada. Vai ter que
ir para afrente. Mas pelo que eu vejo, assim prá mim, tá melhorando, por
meio desse estudo indígena que a gente faz aqui por Roraima, Mantus,
Tefe. Prá mim já melhorou assim bastante porque eu aprendi nessa reci-
clagem indígena que a gente faz, fazer tinto caseira: de barro, de carvño,
de veln (lápis de cera). E as criangas na classe, eles ficam bem animados
com materiais que a gente aprendeu e agora eles também fazem. Só
esses
o que a gente comPra é a cartolina, que é muito cara e o órgño municipal
nño passa prá gente. Thmbém agora a FUNAI nño ajuda mais, que antes
ela ajudava e hoje a FUNAI só ficou corl, a terra' Eu sinto falta Porque eu
tinha uma ajuda dali sobre esses materiais, a merenda que a gente tinha
e agora separou a FUNAI e ficou só com a demarcagño da terra. E o nos-
so estudo, pelo menos pró nós adiantar mais, o qual as criangas num sabe
o que é avido, que num é do conhecimento deles. E a gente já teffi a nossa
cartilha que fala pros nossos alunos que antigamente os pais deles viaja-
A autonomia como valor e a articuhgAo de possibilidades 271

vam de ctnoa, num era ern aviAo, né? Meninos la, na minha classe, nós
trabalhamos na ünta caseira, eles falnram: o que era cortifn? De tño ino-
cente que eles sño, que frca escondida a nossa origem, que nño tem quem
pode esclarecer prá eles. A crianga ficou perdida querendo saber o que era
cortiga. E aí eu fui e peguei a cortiga e mostrei pró ele. Aí ele disse que ele
via muito no mato, quando ele ia pescar com o pai dele, mas ele nño sa-
bia o que era cortiga... aí é que ele ficou sabendo. Entño para nós profes-
sores indígenas, esses estudos que a gente esta tendo é muito válido, por-
que muita coisa que já está esquecida, a gente tenta resgatar noyamentq
principalmente na parte da língua que cada povo fala. Isso também a
gente é cobrado pela Secretaria Municipal, porque eles ficam cobrando.,
Entdo a gente tá lutando para yer se a gente consegue esse professor de lin-
guística. No meu município, quando o pessoal da UM e do CIMI e da
COIAB foram lá junto comigo, até a coordenadora tomou um susto, por-
que ela disse que eu nño deveria chamar aquele povo prá ir hi junto com
ela, que ela nño sabia como se encontrar com eles...pró que é que eu tin-
ha feito isso...Mas isso ela falou particular comigo, fora deles. Ela mudou
até de cor... Aí eu falei prá ela que eu tinha chamado o pessoal aí, porque
ela tinha chegado la na minha área e eu nño estava, aí ela comegou a bo-
tar urn montño de regras lá, o qual, quando eu cheguei, o meu pessoal ta-
va revoltado comigo... e taffibéffi eu me revoltei com ela. Chamei esses
meus assessores, o qual a gente foi ló junto, aí depois ela ficou assim...es-
pantada! E eu disse: olha, só foi esses aí que puderam yim, mas viria ain-
da desde até advogado, prá advogar o tneu cAso, no caso que a senhora
nño liberar as minhas saídas pros Tneus estudos indígenas, prás minhas
organimgóes. E ela disse: nño, eles vdo ter que mandar uma carta de li-
cenga oficial, aí vocé vem e assina, por causa que o prefeito me cobra e eu
também fico cobrando vocé... Eu disse outra: quando vocé quiser ir lá na
minha área, a senhora teffi que procurar o tuxaua e avisar ele e pedindo
uma licenga, porque assim como vocé exige uma licenga da minha saída
de sala de aula, eu também exijo uma licenga de vocé pró entrar na min-
ha área pró fazer qualquer tipo de reuniño. Ela disse: ah!... mas foi umas
pessoas que vieram aqui lhe denunciar, da sua comunidade mesmo. É,, é
Porque eles sdo contra o meu trabalho, eles sdo índio da minha mesma tri-
bo, mas eles nño tem o conhecimento. Porque vocés branco só quer ensinar
do jeito de vocés, como vocés querem e o qual o nosso indígena vai sendo
apagodo, esquecido. Doqui uns dias ninguém sabe mais nem como é que
é a pesca... Porque vocés ficam pondo só do branco, e do lado do índio, na-
272 Rosa Helena Dias da Silva

da! Ela pediu desculpa, que ela nño iria ir lá por conta própria, só se eu
chamasse ou entdo pedisse uma licenga.
Pergunta: Dentro disso que vocé está falando, como vocé enxer-
ga o papel da escola. Quais as características, como vocé acha que deve
ser a escola indígena para ser desse jeito que vocé está falando - que sir-
va para a questáo do povo. Como vocé vé a escola, vocé como profes-
sora e também o Movimento?
Marilene: Para mim, eu vejo que é melhor a gente dar conünuida-
de nesses estudos que a gente vem participando, prá ter melhores informa-
góds do lado do índio e do lado do branco. Porque tem que aprender os dois
lados. E pró mim, melhora... tem sido bem melhor quando chega essas
pessoas brancas dos órgños municipais, eu já tenho alguma coisa prá mos-
trar, que possa provar prá eles, que quando eles chegam ló na sala de au'
la, que eu uso artesanato, cerhmica, né? Tudo isso tem l.a dentro da min-
ha sala de aula: as ffiaquera de envira, o qual eles nño conhecem também,
entño isso é uma prova... eu posso provar prá eles que a gente também tá
tendo um desenvolvimento. No lugar daquela cadeira de embalo que eles
usam (o qual o índio nño pode comprar mesmo, porque é cara e nño con-
hece) fica aquelas maquera ali. Aí eles fica querendo comprar...a gente diz
que vai fazer pró eles... A gente pode fazer, mas depende também do trato
cotn eles, porque eles querem dado e a gente ndo pode dar, de jeito nen-
hum.
Pergunta: Fala um pouco entáo como vocé vé a questáo do ma-
terial, mesmo a questáo dos livros. Porque prá gente o livro é muito im-
portante. Prá vocé, como vocé está vendo, como é essa questáo do liv-
ro, ou outro material que vocé quiser falar.
Marilene: Sim, porque ela, a coordenadora, me deu uma apostila
só pro primeiro ano. Só é desenho e pintura e as criangas num gostaram...
Af eles pediratn que era melhor a gente trabalhar com a noturem. Porque
com a natureza, a gente ia pro campo, aí eles pegava folhas, eles desenha-
vatn... se fosse matemática, eles contavam as folhas. Aí quando a gente
voltava prá sala de aula, eles traziam a quanüa de folhas que eles tinham
contado. Aí eu pedia prá eles assim: quem tem cinco folhas na mño? O
aluno dizia: eu! Quer escrever o número cinco? Vai lá,,.Aí ele ia, escrevia
e ficava todo contente. Entño nessa Parte aí eu acho'que ajuda tanto prá
mim como para o aluno, Porque a folha ele conhece prá contar e outras
coisas al eles nño sabiam desenhar e nem contar quantos tinha. Al eu acho
assim que esses üvros didóticos que eles estño dando prá gente num é tan-
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades 273

to válido e também que eles estAo cobrando uma pajela preenchida com
200 planos de aula, o qual nós, como professores indígenas nño temos con-
hecimento desta pajela... e eles estño cobrando. E outra coisa, que a min-
ha sala é sala única, entño eu num vou poder colocar tantos planos de au-
la que ela tdo pedindo, o qual só tem uma sala única. Eu ndo sei como é
que eu vou fazcr. Eu tenho aí a minha pajela, eu you mostrar prá vocé co-
mo é que é.
Pergunta: Lendo os relatórios dos outros Encontros, percebi
duas coisas e eu queria que vocé falasse se prá vocé essas coisas sáo im-
portantes ou náo. Lendo desde o primeiro, sempre aparece muito for-
te a questáo da tradigáo das culturas e a questáo da organizagáo como
duas coisas importantes. Vocé concorda com isso?
Marilene: Da parte da organizagño, é muito válido porque prá nós,
pOvos indígenas, setye de orientagño e a gente pode ver as coisas bem de
Perto, e melhorar o nosso estudo diferenciado, como fala na lei..,E eles nño
querem aceitar, Essa coordenadora de lá do meu município, eh diz: Poxa!
como é que vocés ficam falando do branco.., Todos nós somos iguais...ela
disse. E eu disse: Nño, se fosse iguais, nño tinha essa discriminagño, de vo-
cé nño querer aceitar os tneus diüticos e nño me daria outro. EIa disse:
Nñ0, é a SEDUC que estó cobrando, ndo somos nós ndo.
Pergunta: E a tradigáo,16 na situagáo de vocés, como é que vocé
vé a questáo das culturas. Como elas estáo agora, o que é que represen-
ta?
Marilene: Porque quando a gente já tomou o conhecimento das
culturas e tradigóes e que a gente ját passou e yamos passar ainda muito
mais... no Ato Público, nas manifestagóes, porque ainda tem municlpio
que a gente ainda nño fez. Isso aí a gente vai demonstrando e aí chama
muito a atengño dos brancos, dos órgños municipnis e federais, aqueles
que quereffi discriminar o índio, eles vño ficando mais acreditados nessa
parte aí, que existe esse lado: a cubura e as tradigóes. A gente já foi pro Ato
Público, já apresentou aquele pouquinho que a gente sabe, né. Entño eles
ficaram gostando. Tem município que a gente fez a manifestagño, que pe-
diram novamente, A gente falou que ndo podia fazer duas yezez num mu-
nicípio só porque tinha vórios municípios o qual ficavam uiticando a
gente, colocando na parede, e a gente queria também demonstrar como
nño é tudo aquilo que eles pensam, que o índio nño é mais índio...e nun-
ca o índio vai deixar de ser índio mesmo... ele pode ser o que
for, lnas as
caracterísücas ndo mudam. Entño a gente vai fazer naqueles aonde ainda
274 Rosa Helena Dias da Silva

nño fizemos, para que eles ficam acreditando. E uma coisa ffiuito válida,
pela parte das organizagóes que nos acompanham, nas assessorias, o qual
eles também dño os ensinamentos, aulas sobre a cultura e a origem, é mui-
to vóIido prá nós.
Per$unta: Vocé acha que é possível a escola indígena estar a favor
dos povos indígenas, ser uma coisa boa?
Marilene: Porque se a gente chegar a concluir que este estudo indí-
gena pró nós vai ser uma coisa muito boa, por causa que tem coffio mos-
trar para aquelas pessoas queficam em dúvida, se a gente ndo demonstrar
todo esse estudo que a gente tó fazendo, já vai ser assim uma coisa meio
chata, num vai ser acreditado. Entño a gente tem que ver isso al bem de
perto e dar continuidade, ndo parar.
Pergunta: Como vocé vé a questáo de pesquisas com os Povos
indlgenas... assim, pessoas estudando sobre vocés?
Marilene: Muitas vezes eles ficam falando prá gente assim: se é um
estudo indígena, por que é que tern assim aquelas Pessoas branca lá no
meio? Isso eles querem fazer uma distingdo e o qual sempre nunca nin-
guém aceitou. Eles fala assim que os padres sdo uns mentirosos, que só
querem ganhar a favor do índio e porisso é que eles ficam inventando to-
dos esses estudos; mas a gente nño se cala. A gente fala pró eles que eles sño
os nossos orientadores, Deles é que vem esses conhecitnentos desses estudos
que a gente tó tendo. Senño a gente ndo tinha esse tipo de estudo que a
gente tá tendo. E porisso que o gente conünua ligado con essas entidades,
que chamam de branco. Serve e é válido pro trabalho da gente, que a gen-
te tá tendo este estudo até agora,
Pergunta: O que vocé gostaria de acrescentar?
Marilene: O que eu quero falar é que com esse choque que a gente
jó vem dando la no IEMM, junto com a Secretaria, a coordenadora, ela
ficou assim meio assustada e fez assim um convite prá gente trabalhar com
a tinta caseira dentro das escolas municipais. Que ela ia falar cotn o pre-
feito prá dar esse espago prá mim. Alfalei prá ela que eu aceitava, mas
eu
tinha que depender de uma parte financeira" por causa que a gente preci-
sava de coffiprar outros didáticos. Muitas vezes o que eu exigia do IERAM
era a cartolina e já nño ocupava os lápis netn as tintas, a gente mesmo faz.

Ela disse: Ai que bom, Marilene, eu vott falar com o prefeito prá que ele
possa aceitar e dar condigóes prá vocé ir de escola em escola. Eu disse: tá!

Quando for o tempo, me chama, e eu vou, E uma contribuigño que fica h


dentro.
A autonomia como valor e a articulagáo de possibilidades 275

Entrevista n"2
Entrevistado: Prof. Sebastiáo Duarte, Tucano/Alto Rio Negro
Boa Vista, 08 de outubro de 1993

Apresentagáo:
Eu sou o Prof. Sebastido Duarte, da nagdo Tucano. Moro no Alto
Rio Negro, no estado do Amazonas e município de Sño Gabriel da Ca-
choeira.

Pergunta: Como vocé vé o Movimento dos Professores Indíge-


nas e como vocé se vé nesse Movimento?
Sebastiáo: Bom, o Movimento dos Professores Indígenas, desde o
primeiro Encontro... no primeiro Encontro foi uma distorgño de conheci-
mento. Porque a gente sempre fomos conhecedores da educagdo voltada
geralmente para a política dos brancos, né? A gente nem imaginava de ter
um conhecimento de si próprio, da cultura própria sua língua, a valori-
zagño; até certo ponto deu prá gente levar, sentir que isso nño deveria ser
utn atraso.... (certa mentalidade que os militares tinham colocado na nos-
sa cabega, né?). E até no mornento, eu acho que os Encontros, com as vó-
rias atividades que os Encontros vém promovendo nas escolas e até nos
municípios de nosso estado, está se manifestando a educagfio voltada d
tradigdo de cada povo, resgatando a sua cultura, porque muitas pessoas já
perderam sua língua. Neste sentido que os professores indígenas do Ama-
zonas e Roraima, eu acho que.,, eu garanto que estño fazendo do mesmo
jeito, da mesma forma que a gente vem atuando. Agora, uma coisa que
nós estamos sentindo dificuldade de se movimefltar mesmo realmente é a
questño do currículo apropriado, né? Parque fica difícil é da gente, se for
querer fazer nosso próprio currículo, enquanto que ainda o sistema de
educagño é diretamente ligado ao estado. Entño é porisso que... a lei...
existe a lei sim, mas assim diretrizes mesmo aprovada que garanta ffies-
mo, nño existe. Por causa disto que a gente tern essa dificuldade prá ter es-
sa própria escola. O cutículo é um desafio muito grande ainda: porque
nós entendemos que o currículo é muito complexo, muito difícil de elabo-
rar. Porque tem que ser consenso do povo, da escola com professores e os
própios alunos, que é dos próprios alunos, que estamos querendo levar
para a frente. Entdo como eu falei antes, até no momento existe ainda
professores, existe pais, existe ainda os brancos que nño aceitam esse negó-
cio, sabe? Isso dificulta, principalmente na Secretaria de Educagño, talvez,
276 Rosa Helena Dias da Silva

ainda eu nunca tive conhecimento pessoalmente, mc.s eu ouQo muito falar


que tem certas pessoas que nño entendem, que acha que isso é burrice, é
atraso e tal... sabe? De qualquer forma, a gente trabalha paralelamente,
certo? a gente dá a aula sobre a matéria que a gente foi designado prá dar
aula e transmite a nosst educagño também, paralela, né?
Pergunta: O que vocé acha que já mudou, que já avangou na sua
regiáo e que vocé acha que é a partir da articulagáo dos professores?
Sebastiáo: Bom, desde o I Encontro dos professores, como eu falei,
no início teve uma distorgño, teve utna briga, uma divisño de idéias, cer-
to?'No I Encontro a gente nño conseguiu nada. Também a gente falamos,
muitas pessoas entenderatn, ftr*s entenderam mal. No II Encontro a gen-
te veio de novo, prá mais experiéncia, né? E aí sentimos forgas de outros
parentes que impulsionaram a gente, voltamos novamente com essa forga.
Dessa vez eu trouxe mais um companheiro que ajudou bastante. Bom, até
o momento, a gente vimos que a gente estava no caminho errad\, em ter-
mos de educagño, certo? Nós conseguimos, pelo menos (porque a escola é
conveniada com o estado, né, conveniada pelos padres, a diocese, etc... é
deles M!) conseguimos fazer uma escola de intercámbio, quer dizer, uma
troca... a escola coftt o povo, cotn A comunidade, né? Levou Para entender
que a necessidade da comunidade dentro de uma escola é muito impor-
tante. Onde o pai, o aluno, enfim, a comunidade educativa participa da
evolugño da cianga, do desenvolvimento cultural da crianga, Entño essa
realizagño levou da gente fazer festas, festas culturais dentro da escola,
junto com os olunos. Entño é isso aí que eu achei que é um avango, porque
nunca existia essas coisas dentro da escola, a ndo ser bater palma para o
general que chegava, ou marchar, fazer uma marcha assim, ou desfile dos
militares no sete de setembro, era setnPre certo: saldar aqueles herolsmos
do passado... dos militares,,. Entño mudou, até neste exato ftlomento, sern-
pre a gente fazia um movimento sobre a independéncia e a gente vimos
que dentro do Brasil...ló fora... num sei que lá mais... No momento a gen-
te nño faz mais a independéncia. A gente coftremora de outra forma- Cla-
ro que o Brasil tá independente, mas economicamente, essas coisas...ain-
da nño tá independente. E nós, porque estamos levando essa independén'
cia? E questño da gente se perguntar esse quesüonnmento, a partir do Mo-
vimento dos professores. Inclusive eu e o Gersem estamos direto arüculan-
do dentro da área do Rio Negro, até o momento já encutimos bastante, já
levamos essa mentalidade, Tem cefta pessoa que nño acreditava nisso e
acabou acreditando e dao a maior forga' Aquela lrmñ Firmina' por exem-
A autonomia como valor e a articulaEdo de possibilidades 277

plo. Al sentiram que estavam no caminho errado. E agom mudou. Agora


falta mesmo é ter a sua própria escola. Como aqui em Roraima, eles tem
sua própria escola, etc... E isso que tá mudando... a realidade nossa tá um
pouquinho melhorzinha, certo? Nño é que a questAo nossa é muito baixa
em temos de desenvolvimento cultural, por exeffiplo. Nño é nño! Mas em
termos de consciéncia, certo? E isso o que tamos tentando.
Pergunta: Nessa sua experiéncia já de um tempo grande como
professor, na educagáo da escola mesmo, como vocé enxerga assim a
questáo da escola indlgena. Quais as características que vocé acha que
esta escola deve ter?
Sebastiáo: No meu ponto de vista, e todos podem imaginar... por-
que a escola indígena deve ter a sua própria educagño voltada puramen-
te d tradigño. Bom, a escola indígena para mim é uma escola que leva
uma educagdo indígena propiamente dita, sem interferéncia nenhuma.
Por exemplo: tanto na educagdo cultural, educogño económica, educagño
política, dentro dos padróes indígenas, certo? Porque a educagño indígena
deve conter também seus trabalhos escolares dentro de sua realidade, É,
porisso que até o momento...nossa escola já é muito antiga, né, em forma-
gAo, Até no momento.,,como é que se diz.,,economia de subsisténcia, nño
tem. Por que? A escola nño ensina. Entño a escola indígena em si, deveria
Preparar os alunos para tais destinos, para tal formagño. A nossa escola, a
gente ndo sabe porque estamos estudando, Por que estamos dando aquela
formogño. Porque até o momento quais as pessoas se formam, a oitava sé-
rie, assim, etc... qual a profissño dela mais tarde? Vai ficar em casa. É, nes-
se asPecto assim, deveria mudar dentro da escola indígena ter uma visño:
porque estó dando, porque estño aprendendo, prá qual finalidade. É isso
daí que no meu ponto de vista deve ser a escola indígena.
Pergunta: Dentro dessa questáo da escola, como vocé vé a tarefa
do professor?
Sebastiáo: A tarefa do professor, primeiro em si, o professor tem
que estar preparado paro o assunto que leciona. Nño é preciso preparar
muito, mas ele jó está dentro, tti convivendo, né? Mas da maneira como
ele se formou, acho que nño dá. Entño a tarefa do professor deveria ser
realmente a pessoa que dedica no assunto mesmo, na realidade mesmo,
que convive, convive e vive com sua vivéncia, Trabalho, junto cotn sua
for-
magño, posteriormente. Entño o trabalho do professor é uma tarefa mui-
prá nño levar pelos caminhos errados. por-
to grande, de responsabilidade,
que tem certos momento, certas pessoas..,que entño pronto: yamos deixar
278 Rosa Helena Dias da Silva

tudo pró có, ou entñ0, vatnos aqui! Nño, porque tem que ser conhecimen-
to paralelo.E isso daí que é a tarefa do professor.
Pergunta: E sobre o material? A gente sabe que tem uma discus-
sáo grande. Fala um pouco como vocé vé o material e destaca também
a questáo do livro.
Sebastiáo: Os materiais didáticos, até o momento a gente conse-
guiu elaborar pouco. Mas tem as cartilhas Tucano, né, voltadas para a
nossa cultura, tem sim! A questño é a seguinte, nós ló em Toracuá, nós es-
tamos alfobeüzando na lfngua portugtesa. Entño, para a alfabetinfro, é
clnro que a gente precisa de livro de fora. 8... mas já que temos material
didótico da nossa própria língua cultura tnesmo, eu acho que foi um
avango muito grande de tais conhecimentos; Porque no conhecimento, a
preocupagño também é... varia. A preocupagño nossa varia porque a pes-
soa teffi direito de estudar, se formar até certo ponto e partir para conhe-
cimentos em nível nacional, né? Tem, por exetnplo, geografia, história, es-
sas coisas... E, preciso ter esse material didáüco do Brasil. Agora, a partir
da l" série até a 4" série, eu acho que deveria ser só material didático da
regiño, da própria cultura mesmo; pró poder depois, a partir da 5o série,
deveria mudar para ilaí poder ampliar mais as coisas. Entño nesse senü'
do que eu vejo em termos de material didático.
Pergunta: Tem algum üvro que marcou vocé?
Sebastiáo: O que marcou mais foi o curso de OSPB mesmo, quan-
do eu estava fazendo o 2o grau, lá em Sño Gabriel da Cachoeira, quando
comegava a discutir os problemas do Brasil... foi esse livro que me mArcou.
Pergunta: Nos relatórios dos outros cinco encontros, eu desta-
quei coisas que queria ouvir se vocé acha importante ou náo: a questáo
da tradigáo e a organízagáo, aparecem muito forte em todos os Encon-
tros. Vocé concorda que essas sáo coisas que pro Movimento sáo im-
portantes? Se concorda, ou náo, porqué?
Sebastiáo: Tradigño e organizagdo, né? Bom, nos Encontros que a
gente tamos tendo, no decorrer desses anos, al eu acho que a gente sempre
falamos, costumarnos falar sobre tradigño. A gente nño quer a escola tra-
dicional do branco, nño é isso, A gente queremos uma escola voltada d tra-
digño: tradigño que significa transmitir de heranga em heranga. Mas isso
dal dificulta bastante porque certas coisas, certas histórias, certas cren7as,
a gente já perdemos. Até certas partes do linguagem também. Estño opa-
gadas, entño fica difícil...Mas a escola assim em terrnos de tradigdo, existe
para nós oralmente, sem ser na escola, né? Os pais, os avós vño ttansmi-
A autonomia como valor e a articulagAo de possibilidades 279

tindo, Isso assim, nossa inten7ño deveria ser assim neste sentido, de trans-
mitir nossa crengas, nossos valores culturais, enfim, etnia em geral, Em
terfttos de organizagño, é muito importante a organimfro porque nós
acreditamos que organizando é uma forma de desenvolver mais, levar a
coisa prá frente. Organizando, por exemplo, no ponto de vista da organi-
zagño dos missionários, por exemplo, onde quer que seja, os missionórios
estño lá, acolhidos na sua organizagño, na sua própria organizagdo, sua
própria articulagño própria. Entño nesse sentido, porque a organizagño é
muito importante porque até no momento os professores indígenas do
Amazonas... bom, do Amazonas num sei, mas do Rio Negro, num estño
organizados, ndo tem a sua organizagdo. Essa dependéncia faz maL Tal-
vez a gente vamos falar de organizagdo dos professores indígen*s, com A
palavra indígena no meio... prá eles já tem assim um certo sentido muito
inferior, essas coisas, sabe? Entño é essa divisño. Isso também dificulta ter
uma organizagdo própria do Alto Rio Negro. Até no momento, nós lá no
Rio Negro temos dois Encontros só dos professores indígenas riesmo, Dois
ndo, urn só, A partir de.., acho que dezembro, vai ter outro: a gente tamos
tentando organizar e acho que vai sair uma organizagdo mestno. É, bom
que tenhamos essa organizagño própria, prá poder articular melhor. Isso
é importante.
Pergunta: A idéia inicial do meu trabalho é mostrar que é possí-
vel uma escola indígena que náo seja contra os índios, mas consiga ser
a favor. Vocé concorda com essa hipótese, acha que é possível? Como
vocé vé?
Sebastiáo: Prá mim, essa escola indígena seria muito boa, muito
importante, realmente do agrado do próprio índio. Porque como eu aca-
bei de falar, até agora, a escola... nño sabe o que está estudando...porque
está se formando. Entño a partir da escola indígena, já saberia porque es-
tá estudando, prá qué... no futuro, né? Certo? Seria uma escola muito
ideal para os povos indígenas, mas dependendo de determinado lugar, né,
no qual...da situagño, etc... nño imposta, como os padres já vinham fazen-
do... imposigño direto! Entño seria de suma importdncia a escola indíge-
na. Mas só que infelizmente a gente ainda nño temos. Só sei que somos
professores indígenas, mas nño temos uma escola indígena. Está sendo in-
troduzida a língua indígena... mas nño é uma escola indígena.
Pergunta: Como vocé vé a questáo de pesquisa, de pessoas que
ficam estudando a questáo dos povos indígenas, no geral. E depois, co-
mo vocé está conseguindo ver esta pesquisa. Quais os problemas que
280 Rosa Helena Dias da Silva

vocé vé, de pessoas de fora, pessoas náo-índias estarem estudando...


Como vocé sente isso lá na realidade de vocés?
Sebastiáo: Porque eu nilo sei porque os brancos estño estudando,
né? Eu ndo sei porque... Mas uma coisa eu tenho que dizer, e é o seguinte:
eles tém tentado ajuda¡ conscientizar o próprio lndio, vendo que os índios
estño sendo massacrados, escravizados ou outra forma de discriminagño.
E eu acho que essa pesquisa para nós é muito importante, porque a parür
dessas pessoas, de fora mesmo, desses questionumentos, dessas entrevistas,
dessas coisas de trabalho, de Movimento, dal a gente tomamos conheci-
mento jd, através deles. Porque conforme a nossa educafio, a nossa cultu-
ra, a gente nño se preocupava em forman. em estar preocupados corn as
áreas indfgenas... essas coisas. Num ünha que se preocuPar. A gente pen-
sava assim: nós aí no Rio Negro, a gente pensava que nossa terra - é terra
- é nossa! Vivemos aqui! Nño se colocava como problem*, era de todos nós!
Entño a parür dessas pesquisas, dessas entrevistas, Movimento, principal-
mente do CIMI, que veio mostrando: oh!, tá tendo problema com vocés
a1... Entño, a Partir deles mesmos, tomatnos conhecimento, a consciéncia
de que a terra é problema..., que a educagño era problema...
Pergunta: O que vocé gostaria de acrescentar?
Sebastiáo: É, bom que vaffios lembrar que no currículo, no regi-
mento, que seja assim... nós tamos precisando de uma assessoria boa que
convivesse coffi a gente, Porque, prá poder .,. Elaboramos, mas chega lá na
mño do outro... já aquilo tá errado... Principalmente o desenvolvimento
do currículo.
A autonomia como valor e a articubgao de possibilidades 28L

Entrevista n"3
Entrevistado: Prof. Pedro Mariano, KokamaiMédio Solimóes
Boa Vista, 09 de outubro de 1993

Apresentagáo:
Eu sou Pedro Mariano Filho, eu sou da aldeia Kokama, eu trabal-
ho no Médio Solimóes, no município de Tefe.Inclusive eu tenho jó 10 anos
que trabalho como professor. Sou contratado e eu gosto do meu trabalho.
Inclusive a minha comunidade, o pessoal apoia e é porisso que eu estou
aqui hoje em Roraima, participando deste Encontro. Quer dizer, esse é o
terceiro Encontro que participo.

Pergunta: Como vocé vé esse Movimento dos professores, esses


encontros, e como vocé se sente dentro deste Movimento?
Pedrinho: Eu vejo assim: o Encontro de professores a gente consi-
dera assim uma Assembléia, do qual a gente gosta muito, e leva muita coi-
sa, aprende mais pró gente repassar para as nossas comunidades.

Pergunta: O que é que já conseguiu mudar na sua regiáo com re-


lagáo á educagáo escolar indígena e que vocé acha que foi depois da ar-
ticulagáo dos professores. O que vocé acha que avangou?
Pedrinho: Do meu ver, jó passou um pouco, né? Nós nño tínhamos
conhecimento que a escola indígena... na própria língua materna. A gen-
te nño tinha assim uma cultura segura. Entño eu achei que foi assim um
bom passo, que já cresceu e a gente já fez movimento e estamos levando
até nossa própria língua, com as poucas palnvras que nós temos.
Pergunta: O que vocé vé de problema, de dificuldade: coisas que
ainda precisa resolver?
Pedrinho: Aí no meu município de Tefé, eu tenho problema pri-
meiro devido d Secretaria de educagdo do Município. Outra, que a gente
nño pode sair sem comunicagdo. O branco ainda ndo entendeu que somos
livres. A outra coisa que nós somos livres na nossa própria aldeia, e o po-
vo conhece, né? E já por parte dos brancos, o Movimento é ainda assim fe-
chado.
Pergunta: Prá vocé, qual sáo as principais caracterlsticas da esco-
la indígena, prá ser uma escola boa, assim do jeito que vocé imagina
Pedrinho:.Nós tamos recomegando assim um trabalho de artesa-
nato na escola, nós mesmos, alunos e eu juntamente com os alunos,
282 Rosa Helena Dias da Silva

aPrendemos a fazer os trangados, as talas Para fazer os paneiros, os tipiüs,


fazemos também cerámica'e tamos trabalhando aos poucos assim. Sinto
que tem mais um pouco, no sentido de aprender mais.
Pergunta: E sobre os materiais em geral, e como vocé yé a ques-
táo do livro?
Pedrinho: Nós recebemos material da Secretaria de educagño do
Municlpio. Nós vamos usando uln Pouco o material do branco, mas taffi-
bém temos cartilha que nós fizemos, da nossa aldeia. lá colocamos tam-
bém cartilhas prá recome7ar o nossa trabalho, Nós usamos também tinta
de folhas, que tem muito. A gente faz pintura, desenhos, com as tintas que
nós usamos. Quase ninguém coffiprarn no comércio. Usamos lápis de ce-
ra, inclusive a lara já deu ponto prá nos, ensinou uffi pouco prá nós.
Pergunta: Como vocé vé a relagáo da escola e da famllia; como
vocé vé essas duas educagóes?
Pedrinho: Nós... eu vejo assim que tá mais ou menos..., né? Com a
educagdo vivapara nós, nós puxa um pouco a nossa cultura, A outra edu-
cagño, a gente vé assim também inclusive as duas juntas, se liga ufirA com
a outra. Mas nós nño esquecemos a nossa cultura na nossa aldeia. Usamos
sempre, sem parada.
Pergunta: Nos relatórios dos Encontros aparecem duas coisas e
eu queria saber se vocé acha que sáo coisas imPortantes; semPre apate-
ce a questáo da tradigáo e a organizagáo; essas duas coisas como forga.
Eu quero saber se vocé acha que sáo importantes, se sim ou náo e o que
vocé pensa sobre elas, na sua experiéncia.
Pedrinho: Na nossa experiéncia, essa organizagño ela é muito sé-
ria, muito boa. Dá um crescimento, dá um desenvolvimento prá nós. A
nossa cultura a gente deixa assim um pouco no esquecimento, porque nós
somos novos dentro da aldeia. Agora, os nossos avós, os nossos pais, eles fa-
lam a sua própria llngua materna. Entño pró mim eles sño os meus pro-
fessores, que eu tó aprendendo com eles
entño para resgatar a llngta com
os meus alunos. Nós jó tamos colocando esse ponto aí. Ajuda muito...tem

sido muito bom.


Pergunta: Este trabalho tem como idéia inicial, mostrar se a es-
cola indígena pode ajudar os índios. Vocé acredita que possa existir
uma escola indígena que seja boa para os lndios, ou náo?
Pedrinho: Pode sim! Pode existir porque nós, no nosso pensamen-
to, quando nós faz a nossas própria reunido, nós telembra isso aí, que é is-
A autonomia como valor e a articulaQdo de possibilidades 283

so que nós queremos. Nós queremos é uffi espago prá gente montar o que
nós queria resgatar, de nós mesmos.
Pergunta: Como vocé vé a questáo de pesquisa, de pessoa de fo-
ra, náo-índia, estar estudando sobre vocés?
Pedrinho: No nosso ver, tem algumas pessoas branca que vai no
nosso Município, vai até pisar na nossa comunidade... e alguém ainda vé
que ele está criando...tó sendo o geral que mais ou menos a gente espera-
va. Alguém até se admira quando vé o nosso Movimento, como é na nos-
sa aldeia. Eu fico assim satisfeito. _s vezes entra com vergonha de entrar
no meio de índio... índio possa ser que nño aceita o branco... Entño a gen-
te recebe mesmo, de coragño.
Pergunta: O que vocé gostaria de acrescentar?
Pedrinho: Eu queia dizer assim que prá nós, e para mim, que eu
me encontro aqui reunido nessa Assembléia aqui em Roraima, pela pri-
meira vez prá mim foi um passo melhor, parece assim que aplicamos al-
guma coisa prá criar... e setnear através do nosso pensaffiento e a gente
agradece mesmo, de coragño a nossa entrevista de hoje.

Entrevista n" 4
Entrevistada: Profu Pedrina dos Santos, S.Gabriel da Cachoeira
Boa Vista, l0 de outubro de 1993

Apresentagáo:
Eu sou professora do Município de Sño Gabriel da Cachoeira, sede,
eu, flo momento atual estou como diretora de uma Escola de I e II grau,
que é a área profissional de h é a área de enfermogem. E eu sinto assim,
eu fiquei até emocionada de ver esta reunido, porque pela primeira vez
que eu t6 participando, eu nunca tive oportunidade de sair assim para
participar, Quer dizer, eu participo assim de encontros, mas de professo-
res que nño faz parte de área indígena. Entño eu me sinto feliz vendo o
progresso que esta havendo na área indígena, principalmente aqui em Ro-
raima. E coisa que nño está acontecendo em nossa regiño, né? Que eu até
estive conversando com meus colegas professores da órea do Rio Negro,
que a gente estó muito atrasado... apesar de que a gente tem muitas co-
munidades que sño da área indígena, eles só querem aprender coisa do
branco,,. Enquanto que aqui jó tó havendo na pré-escola, né, na língua
284 Rosa Helena Dias da Silva

indígena rlraterna, estÁo sendo iniciadas. Enquanto que nós ainda esta-
mos... Eu penso que daqui pró frente a gente poderá fazer alguma coisa,
uma caminhada. Principalmente porque eu estive vendo, verificando, e eu
pude observar que a gente que trabalha assim na nossa sede do município,
aonde tern uma mistura de povos, de ragas, que é branca,. é... de todos os
níveis..., acho que a gente também pode fazer alguma coisa, como por
exemPlo, na Parte de artes industriais... que esse ano a gente nño ünha lá.
Apareceu uma professora lá de Cucuí que veio e eu tive que... ela era efe-
tiva... eu nño poderia deixar ela na rua, né? Entño eu tinha que acolher.
Entdo eln ficou la e eu arranjei a classe. Porque nós temos hoje...como eu
conversei hoje com um professor, tem tanta adolescente, jovens que se
prostituem, porque ndo tem o que fazer, entño saem, prá bem dizer, se jo-
gam na vida! Entño eu estive vendo essa parte , Porque em Sño Gabriel,
como todos sabem é uma órea de garimpo, que nós temos vários tipos de
gente lá, que ningtém sabe se sño bons ou nño... entño aparece tanto que
até ultimamente a gente anda assustado. Pelo menos eu sinto assim: que
eu tenho muita responsabilidade perante o povo daquela regiño. A gente
que dirige assim uma coisa, assim um cargo, a gente tem muita responsa-
bilidade. Entdo al nós comegamos a fazer um trabalho. Eu conversei com
essa professora: vatnos ver se a gente faz alguma coisa por essa juventude,
principalmente, na parte feminina. Entdo nós comegatnos e inclusive tive-
mos sucesso na festa de Sño Gabriel" que aconteceu ultimamente no més
de setembro. Nós fizemos uma exposigño. A gente conseguiu fazer borda-
dos, pinturas e eu aqui esüve verificando que a gente tem muito mais a fa-
zer por essa juventude, nño só assim na parte indlgena, mas também com
outras pessoas que vivem, que convivem aí com a gente, que a gente pode
passar muita coisa, Principalmente nesta parte de artesanato.
Pergunta: E a primeira vez que vocé vem, mas de certa forma vo-
cé já conhecia o Movimento dos professores...
Pedrina: Eu conhecia sim, porque, nño sei se foi nesse ano retrasa-
do, teve um Encontro de professores indígenas em Sño Gabriel, onde foi
convidado todos os alunos do curso de Filosofia: entño nós fomos convida-
dos: aí a gente foi. Nós nos apresentarnos Iá, mas a gente também nño po'
dia ficar porque a gente tinha aula e é muito puxado... é intensivo. E aí
que eu jó conhego mais ou menos, mas eu estou comegando...
Pergunta: No que vocé está vendo lá no Rio Negro, qual a impor-
táncia, ou náo da escola indígena? Vocé acha que tem uma tarefa dife-
A autonomia como valor e a articuhgAo de possibilidades 285

rente a questáo da escola indígena e neste sentido, como seria o papel


do professor?
Pedrina: Eu acho assim que no interior é coisa mais fócil de se tra-
balhar. Mas ali na sede mesmo é um pouco difícil, mas a gente vai tentar
pelo menos fazer alguma coisa prá que a gente possa introduzir esse tra-
balho junto ds pessoas e conscientiza-las. Porque muita gente diz: ah! que
o pessoal quer que a gente volte ao nosso passado, coisa que já ndo existe
mais... coisa que a gente já nño sabe... A gente jó nño sabe mais nem a nos-
sa tradigño, a gente já nño sabe mais nem a que povos a gente pertence...
Acontece comigo mesmo: porque eu nño sei... e como eu estava dizendo
pro pessoal, o que é que eu vou fahr ló pro pessoal? Eu vou mentir? Eu nño
vou mentir, porque eu nño sei mentir. Aí o pessoal até diz brincando co-
migo: inventa qualquer coisa... Mas vou inventar? nño posso! eu vou fazer
uma pesquisa pró eu saber a minha origem, pra poder falar pros outros.
Eu, por enquonto eu vou observar e ficar vendo o trabalho dos outros prá
depois eu também procurar entrar, né?
Pergunta: Como vocé vé a questáo do livro? Porque na cultura
do branco, o livro é importante: lá, vocés que tem essa mistura, como
vocé está falando, vocés já convivem muito com essa questáo do livro...
Como vocé vé o livro nas escolas indígenas e se tem ulgo- que marcou
vocé.
Pedrina: Quanto d livro... sinceramente eu leio tantos livrinhos...
prá bem dizer: eu acho que muitas coisas deixa a desejar, pró gente. Se é
que a gente quer viver assim, ter aquele resgate cultural, coisa que a gen-
te fala, né? Só se fala de outras regi6es, só se vé coisas de branco e que de

fato eu acho que nAo tum nada a yer cotn a cultura da gente, infelizmen-
te...
Pergunta: Quais os problemas maiores que vocé vé entre a edu-
cagáo da escola e a educagáo da família? temconflito entre a educagáo
da escola e da família?
Pedrina: Olhq, eu acho que o pessoal que reside, que mora ali na
sede do municfpio, eles tem já aquela mania de querer ser branco, num
querer ser mais índio... num ter mais aquilo... e muitas vezes dizem por
aí... eu vejo muito, sabe? mocinhas lá dizem: ah! eu ndo tomo mais chi-
'4s
bé... ai, eu ndo falo a língua geral... Rejeitam. Rejeitam tudo, parece que
é uma coisa feia para eles. Eu sempre digo, até eu fiz um curso, um trei-
namento de Fundamentos de Geografia do Amazonas, onde fala muito a
respeito dessas coisas, culturas e tudo... Entño eu sempre falava para eles:
286 Rosa Helena Dias da Silva

a gente nAo rcm que se envergonhar o que a gente é nño... isso nño é uma
vergonha nño. Isso é uma coisa que é muito bonita, eu chegar e dizer as-
sim: olha, eu sou descendente, ou num seja... eu sou índia... e pronto! Aca-
bou.
Pergunta: Porque vocé acha que acontece da pessoa rejeitar,
principalmente na cidade?
Pedrina: Porque o pessoal pensa que é de classe baixa, né? Entño ín-
dio é inferior a qualquer ser humano... Aí eu digo: a gente tem que dizer
que nós somos seres humanos igual como a eles. A gente tem os nossos cos-
tumes diferentes aos deles, mas a gente é gente como eles tnesmol Até um
tempo desses, eu estava até discutindo coflr um senhor lá, e ele disse: ah! o
índio sempre foi inferior. Quem disse? eu disse assim: oh! tem uma coisa
que eu digo pro senhor, eu sou filha aqui da regiño, eu falo na minha lfn-
gua - falo língua geral - porque infelizmnete a minha língua que seja da
minha oigem, eu nño sei, o que eu falo é língua geral, até hoje minha mñe
fala comigo. Eu digo, sabe, eu nño tenho vergonha de dizer prá ninguém
nño. Aí eu disse: qual é o curso que o senhor tem? Ah! eu só tenho de 1" a
4" série. Pois eu estou fazendo o curso de Filosofia, Só pro senhor saber".
Entño quer dizer que, na parte de educagdo, eu sotr mais alta do que o sen-
hor. O que que o senhor acha? Ah!... é mesmo. Entño o índio nño tem na-
da a ver de ser mais bako que o branco, simplesmente porque ele tem a
pele branca... Agora nós temos um prefeito que é filho da regiño, entño o
pessoal... tá o maior reboligo lá. Num faziam nada também la, nunca nin-
guém reclamou... simplesrnente agora, porque ele é filho da regiño, todo
mundo reclama. Eu defendo, sabe? Eu defendo mesmo. Eu digo assim: ol-
ha gente, vocés nño tem que estar reclnmando, ele nño tem.', nño fez nem
um ano de administragño, Está no início ainda. E é uma pessoa nova, sño
pessoas que nunca trabalharam assim na área de administragño, estño en-
trando pela primeira yez na polltica. Al a gente tem que considerar tudo
isso. A gente nño deve jogar pedra simplesmente porque a pessoa assumiu
um cargo. A mesma coisa sou eu, eu nño tenho experiéncia, eu sou apenas
uma professora que já trabalhou e que simplesffiente agora". nño tinha
ninguém para assumir esse cafgo de diregño do colégio lá da Escola Muni-
cipal. Porque disseram: ah! porque eu ndo daria conta... coisa e tal--- Eu
pras lrmñs: eu aceitei prá mostrar prá muita gente aqui que nós
disse até
também somos capazes de dirigir uma escola. Eu estou abrindo esse ca-
minho pfos meus colegas, pró que eles mais tarde tatnbém tenham cora'
gem de assumir. Que se até agora ninguém teve coragem de assumir.'. Por-
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 287

que inclusive a diregño da Unidade Educacional de Sño Gabriel está sen'


do dirigida por uma colega que veio o ano passado aqui... a Madalena.
Ela está aí na frente. A Secretaria de Educafio do Município também é
uma colega de origem indígena também. Entño quer dizer que a gente tó
tomando um pouquinho de espago, prá que a gente dé uma caminhada
mais ao pessoal. Principalmente tem que comegar pelo interior porque eles
quando chegam aqui, comecem também... porque quando eles vem... aí
eles se consideram como pessoas inferiores. Ah! isso nño é porque vocés sño
do interior que vocés sño menos coisa que a gente. Vocés sño iguais a gen-
te. Entño por aí que a gente tó indo.
Pergunta: O meu trabalho quer saber se é possível conseguir
construir uma escola indígena que seja boa para os índios. O que vocé
acha desta hipótese: existir uma escola indígena que seja a favor dos
próprios índios?
Pedrina: Eu acho que é possível, desde que a gente lute por aquele
objetivo que a gente quer conseguir. Porque no mornento a gente até tava
até discutindo ali fora com rneus colegas que por enquanto a gente só tem
escolas que sño dirigidas pela lrmñs... e nuncA uma escola própria, onde a
gente pudesse ter aquela liberdade de expor todo nossos problemas, falar
a nossa linguagem pró eles, né? Porque a gente tem que ter... muitas vezes
medir certas palavras pró que ndo de repente a gente possa até ofender...
Entño eu acho que se gente se organizar e formar uma escola indígena
mesmo... é possível fazer alguma coisa.
Pergunta: O que vocé gostaria de acrescentar?
Pedrina: Eu acho que esses movimentos de organizagño sño bas-
tante importante porque da maneira que a gente tamos vivendo em nos-
so país, nesse imenso Brasil, tño rico,,, mas com essa pobrem... é triste.
Muito triste. Porque a gente vé nos jornais, é prostituigdo...é violéncia...
Entño eu acho que os índios, que hó muitos anos atras viviam tranquilos,
porque nño tinham nada de perturbalño, essas coisas... Hoje em dia eles
também tem que lutar para que eles mantenham uma sobrevivéncia mel-
hor, perante a sociedade envolvente. Que a gente consiga fazer também a
nossa parte no meio desta sociedade que nos envolve.
288 Rosa Helena Dias da Silva

ANEXO 3

Mesa redonda: "Os Povos Inügenas e a educagáo na América Latina''

II Congresso Ibero-Americano de História da Educagáo


Latino-americana
UNICAMP I4IO9I94
Exposigáo de Gersem dos Santos Luciano (*)

' Recentemente, na Amazónia, sobretudo na regiño Norte, uma das


grandes preocupagdes, inclusive como sequelas deixadas, foram as várias
tentativas coloniais da prática educacional de assimihr, de integrar os po-
vos indígenas ao que se chamava de'comunhño nacional'. lsso sempre,
através seja das insütuigóes religiosas, mas sobretudo de órgños do Gover-
no, e o que é mais forte na regiño, seria a instituigño militar, as forgas ar-
madas.
Neste contexto de dez anos atrás, houve um grande avango no sen-
tido dos próprios povos indígenas, que até entño eram mantidos sob uma
total dominagño, nño só política, mas sobretudo cultural, e essa prática
provinha diretomente da prática educacional. A própria caminhada, a
própria estratégia utilimda, seja pelos órgños federais, seja pelas institui-
góes religiosas, a tentativa de educar, de'civilizar', como se dizia... os ín'
dios, né, acabou certo ffiomento fugindo do controle desses mesmos órgdos,
na medida em que os lndios comegaram a tomar consciéncia da situagño
em que se encontravam, comegaram também a surgir inquietagÓes em ttá-
rias partes, que gerararn uma nova visño, uma nova caminhada, uma no-
va perspectiva.
Ao mesmo temPo em que, apartir davisño educacional setinha es'
sa inquietagño, no meio das liderangas indígenas, que acabaram surgindo
também nesse processo de escapar desse processo civilizatório, iuntou-se
essas forgas, tanto das liderangas políticas dos índios, como dos próprios
educadores indígenas, que cada vez mais aumentava em diversas áreas in-
dígenas.
Entdo, a partir da década de 80, teve esse início dessa nova camin-
hada onde a idéia central agora era tentar rediscutir, refletir, analisar a si-
tuagAo presente dos povos indígenas. Para isso, tínhamos que conhecer um
pouco as razóes porque tínhamos levado, estdvamos colocados naquela si-
A autonomia como valor e a articula7Ao de possibilidades 289

tuagño de dominagño - dominagño e exploragño. E percebemos que urna


das forgas mais graves ücistentes para o nosso futuro e para o presente, era
justamente esseenfraquecimento cultural dos nossos povos. E qualquer
iniciativa de uma nova caminhada, de uma novA perspectiva de futuro
para nossos povos, teria que partir a partir daí Percebemos que o mal
maior para os povos indígenas era justamente a descaracterizagño - a do-
minagño cultural. Aquela idéia de'trocar todo novo pelo velho' (e o velho
nesse sentido eram as culturas indígenas, eram os elementos dessas cultu-
ras indígenas). A partir dessa consciéncia, juntava-se
essas forgas, tanto de
quem trabalhava na área educacional, como quanto as liderangas indlge-
nas que no Brasil inteiro, mas especificaffiente rta Amazónia, se fortale-
ciam cada dia mais. Em todos os povos indígenas, em todas as regióes, co-
megaram a surgir diversas liderangas, e essas liderangas entño acabaram
se reunindo, formando associagóes, formando organizagóes, Mas, mais
ainda do que organizagóes, buscando espago de discussño com todas as di-
ferentes organizagóes, dos diversos povos indígen*s, em diferentes níveis de
contato, para buscar algum caminho único que pudesse dar um novo mo-
delo de trabalho e de lutapara os povos indígenas.
Um dos pontos centrais que se pode ter de início desta caminhada,
foi a necessidade de repensar a própia situagño dos povos indígenas. En-
tdo, as discussíes em torno da educagdo, eram também redescobrir, plane-
jar o que hoje os povos indígenas querellt para o seu futuro. Entño foi o
início de planejar, de construir o futuro, a partir da realidade em que os
diversos grupos étnicos se encontrflvam. E esse compromisso foi sendo as-
sumido a partir dos professoreg dos educadores e das organizagóes indíge-
nas, das liderangas indígenas.
O marco fundamental sño alguns princípios que orientam essa lu-
ta. Princípios como, estando numa mesma situagdo, formar aliangas. Es-
sas aliangas, seja com órgños públicos, inclusive, que tenham alguma in-
tengdo agora de ajudar, a recuperar, alguma coisa que pudesse agora dar
uma nova forga para essa perspecüva dos povos indígenas, E a partir daí,
os próprios agentes pensantes deste novo projeto histórico para os povos
indígenas tém assumido essa tarefa de reconstruir uma nova história, a
partir dos elementos que agora estavam na cabega de cada índio, de cada
grupo étnico, de cada regiño.
Alpns princípios, jó na década de 80, foram tomados, dentro das
vórias iniciativas que vinham surgindo seja nas escolas, seja nas comuni-
dades, seja em diversas instáncias de organizagóes populares, de organiza-
290 Rosa Helena Dias da Silva

góes indígenas. E esses princípios nortearom, basicamente nesses últimos


anos, essa busca de fortalecer essa caminhada que se pretende dar, um im-
pulso muito grande para os povos indígenas. Esses princípios estño resu-
midos em alguns pontos que sAo muito mais pollticas, mas que no fundo
tem importhncia cultural também.
A gente percebia que a dominagdo cultural tem deixado muito iso-
lado os grupos indfgenas, e muito fracos também. Entño, a primeira con-
quista seria poder isso: tornar os próprios povos indígenas capaz.es de ser
os protagonistas, sujeitos de sua história. Mas para isso teria de ter claro
na consciéncia, nño só das liderangas indlgenas, ftras dos povos indlgenas
em geral. Porque sem isso ficaria muito diflcil, até porque a regiño Ama-
zónica ainda hoje conta com forgas diversas, que inclusive trabolham e lu-
tam contra esse processo dos povos indígenas. Os próprios órgños federais,
as forgas militares, por exeffiplo, sempre trabalharam e continuam trabal-
hando, remando contra esse processo, ndo reconhecendo os povos indíge-
nas, apesar de ser clara a Constituigño hoje. Mas continunm com aquelas
práticas msimilacionistas, integracionistas. E a gente, ds vezes, fica bas-
tante chocado quando a gente ouve.,. e ainda parece que ainda esse més,
um grande pensador do Brasil (digamos assim...), proPóe a tese da extin-
gño dos índios, prevendo até o limite temporal de quando exisürño os ín-
dios no Brasil. Quer dizer, é justamente aquilo que é contrório ao que ho-
je os índios estño pensando. Talvez pelo próprio preconceito, a discrimina-
gño que se foi generalizando na própria sociedade brasileira - isso parece
piada! Mas do ponto de vista de cada povo, a parür de sua concepgao, de
sua história - isso é ffiuito difícil. Porque os próprios índios hoje, sobretu-
do os da regiño norte, que é onde a gente tem mais conhecimento, também
nño tem uma visño limitada da questño cultural. A gente sabe que a cul-
tura é uma coisa que modifica, é uma coisa que é dinámica, e porisso, nño
se pode ver apenas a cultura como utna coisa estdtica' como uma coisa que
vocé apenas tem que recuperar, resgatar.' mas sem entretanto dar uma vi-
sño da concepgao nova prá ela, sobretudo da situagño de que fomos colo-
cados hoje - que cada povo indígena tetn o seu estágio cultural diferente,
tem diversos nlveis de contato, inclusive, na regiño norte' por exemplo, nós
nño podemos comparar a cultura Tikuna com a culturaYanomami, por'
que sño completamente diversas e tem persPectivas também diversas. Mes-
ffio que tenha uma linha de avangar politicamente a tnestna. Mas a pró-
pria concepgño daquilo que o Tikuna quer, daquilo que o Yanomami quer,
é completamente diversa. Entño ndo dó para vocé definir linhas únicas pa-
A autonomia conto valor e a articulagáo de possibilidades 291

ra os diversos povo* Entño essa é uma questAo que se colocahoje. E quan-


do a gente vé pessoas da sociedade branca tentando eles desenhar o perfil,
o caminho para os povos indígenas, jó cometem erro por aí. Porque pode-
ria até tragar uffi caminho, por exemplo, para o povo Baré, que é um po-
vo altamente (na regiño do Rio Negro) 'civilizado', digamos assim - entre
aspas. Mas é difícil tragar essa mesma linha para o povo Yanomami, in-
clusive em diversas regióes, tem se fortalecido (como é na regiño do Rio
Negro, no Amazonas), essa perspectiva dos próprios Yanomami serem
protagonistas de sua histório, e eles estdo construindo isso, no seu dia-a-
dia, na luta, no limite de sua concepgño e daquilo que querern.
Entño, nessa caminhada, hoje prá nós, na questño específica da
educagño, existe uma coisa muito clara: nós nño podemos separar a prá-
tica educacional, ou seja, aquilo que se faz, seja no ensino, na escola, mas
sobretudo que está na comunidade, ndo dá para separar da própria ca-
minhada p olítica do s p ov os indígenas.
Uma das grandes conquistas que tivemos nos últimos dois, trés
anos, n*s diversas esferas da educagño escolar indígena é de que um dos
grandes valorcs a gente tinha quase perdido, ao longo de quase cem anos,
que era justamente isto: entender a educagño, nño como normalmente se
entende no sistema educacional brasileiro, sobretudo aquelas mais tradi-
cionais, a qual a gente sentou na cadeira, estudou, e que a qual a gente
nño sabia prá que servia a educagño. A gente nño acabava, por exemplo,
entendendo a educagño dentro de uma fórmula de sobreviver e hoje se vé
muito, educar para o mercado de trabalho - utna que$Ao puramente de
sobrevivéncia. Mas na nossa própria cubura tradicional, a educagño era
muito mais que isso, era a própria realizagño, a própria auto-realizagño
do indivíduo, no seio de sua comunidade, no seio de sua cultura.
Entño isso precisova ser recuperado. É necessório colocar a educa-
gño, seja ela a educagño formal, aqueh recebida da escola, mas aquela
também vivida na família, comunidade, na aldeia, seja colocada a seryi-
go da própria auto-realimgño do indivíduo, mas sobretudo da coletivida-
de, Porque as nossas culturas sdo muito mais coletivas do que individua-
listas, e gragas ao esforgo das próprias pessoas, isso tem se mantida, Entño,
esta é uma característica fundamental.
A partir dessa concepgño, a nossa luta política hoje é para que o
Governo, é pró que a sociedade brasileira nño só reconhega isso, mas pelo
menos abra a liberdade para isso. Porque se a gente hoje tem uma lei bas-
tante favoróvel nessas iniciativas, mas a prática está muito longe, está bas-
292 Rosa Helena Dias da Silva

tante longe. E tem que ser continuada entdo para que se conquiste isso. E
se isso hoje é um desafio, um comprotnisso dos povos indígenas, tem alguns
elementos, alguns desafios que precisam ser superados. E uma delas entño
é como nessa mesma abertura oficial hoje da sociedade brasileira, sobre-
tudo quanto ds leis, como tentar colocar hoje nas nossas escolas indígenas,
onde jó tem mais de 100 anos de uffi modelo de sistema que nño tinha na-
da a ver com isso. Quer dizer, corno a gente, de uma hora para outra, quer
transforma¡ quer mudar essa realidade, no sentido de dar uma nova pers-
pectiva educacional Para nossos povos indígenas? E uma coisa que ainda
se esta discutindo, mas creio que o ponto central, o ponto mais importan-
te foi justamente ter resgatado essa concepgÁo de educagño. Essa concepgño
de ligar a prática educacional d prática de luta, daquilo que os povos in-
dígenas proPóe lutar e querem projetar para seu futuro. Porque nño é só
necessário planejar ou projetar, mas é necessório também iniciar a cons-
trugño dessa nova história que se quer.
E comumente as pessoas perguntam, me lembro até que eu estava
falando disso na lI Semana Social Brasileira, promovida pela CNBB, e as
pessoas semPre me perguntavam: coftro que a gente pensa isso, tnas que
posigóes a gente tem de que, no futuro, isso seja uma garantia de sobrevi-
véncia para os povos indígenas? Isso, na cabega, na visdo das pessoas, prin-
cipalmente mais ligadas d educagño indígena, me parece uma coisa que os
próprios povos indígenas precisam construir. Porque o que a gente quer
garantir poliücamente é que isso seja posslve\ vióvel, que a gente tenha es-
sas condigóes políticas de fazer isso. Porque aí volta-se noYamente d pró-
pria concepgño de cada povo indígena. E o essencial nesse campo é levar
isso na maior naturalidade. Nño se quer agora também introduzir ou im-
por aos próprios povos indígenas, a parür das liderangas, ou a partir de al-
gumas iniciativas, algo que nño esteja ao alcance de cada comunidade ou
de cada povo indlgena. E em termos de futuro, essa perspectiva entdo é vis-
ta coflo algo que seja capaz de atingir essas necessidodes jó utgentes hoje
paro ospovos indígenas.
Nño podemos mais pensar como podeiafios pensar há 50 ou 100
anos atrás. Precisamos pens¡r o hoje - a situagdo de cada comunidade, de
cada povo indígena, que também é diversa. Mas o essencial é que se ten-
ha essa nofio hoje de que através da educagño, talvez sobretudo d.a edu-
cagdo escolar, que é uma coisa mais séria,.. porque a educagdo tradicional
- ela está! Está na alma, na própria vida da comunidade. Mas a educagño
escolar ela precisa dar esse salto qualitativo no sentido de deixar de impor
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 293

aquilo que se quer da sociedade, mas aquilo que a própria comunidade


quer atingir através da educagño, que é a sua própria condigño de vive6
mas viver com dignidade - aquilo que é entendido como dignidade para
os povos indígenas. Porque vocé nño pode comparar na própria prática
educacional dos índios, o que é viver com dignidade para a sociedade
branca - que pode ser viver luxuosamente, ou outra idéia... Mas para os
povos indígenas é aquilo que lhes garante a sua auto-realizagño como in-
divíduo, mas também como poyo, como comunidade - que pode ser de
uma forma simples, mas algo que dé sentido d vida.
Sobretudo nas regióes de uma escolaridade mais avangada, como
na regiño norte, umas das grandes preocupagóes que a educagño, o mode-
lo educacional implantado já hó 100 anos, deixou gravemente marcado
no coragño, na mente, na cabega dos índios, foi justamente isso - perde-
ram o sentido davida! que é uma coiso muito séria... E daí surgem diver-
sos problemas, de diversas partes das comunidades indígenas, nesse senti-

do. Porque se colocava novos valores, se colocava novos objetivos e que es-
ses objetivos nem setnpre eram conhecidos, e segundo, que era impossível:
ds vezes eram apenas'farsantes', apenas para tentar escolarizar, para ten-
tar ocidentalizar. Porque os objetivos nño eram aquilo que se dizia, mas
era o próprio fato de fazer com que os índios perdessem a sua cultura, pa-
ra que deixassem de ser. E isso é uma situafro muito grave hoje, sobretu-
do nas regiíes fronteirigas da Amazónia, com essa idéia de integrar, uma
idéia estratégica militar. E entño se luta bastante no sistema educacional,
sobretudo nos Municípios e nos Estodos, para que essa idüa continue -
que aprópria educagño seja um instrumento que, entño, possa, o mais ra-
pidamente posslvel, extinguir os povos indígenas enquanto povos diferen-
ciados, com seus direitos específicos, com todas suas potencialidades espe-
cíficas. E um desafio muito grande, que a partir da própria educagdo, nós
precisamos resgatar,
E acho que a caminhada estó sendo bastante boa, e pró isso a gen-
te procura entño, nas própias escolas que temos hoje, apesar de muitas te-
rem ainda aquelas características integracionistas, civilizatóriiu... tentar,
dentro de seu próprio conteúdo metodológico, incluir vório3 elementos,
que vá mudando essa perspectiva. Porisso nós tentamos dar essa linha, a
parür de diversas experiéncias existentes na Amazónia, e o trabalho obje-
tivo praticamente dessa articulagdo dos professores da Amazónia é nesse
sentido aí: servir.como um ambiente de discussño, de um laboratório de
294 Rosa Helena Dias da Silva

idéias que possam estar orientando as diversas práüca5 das vórias inicia-
tivas educacionais existentés entre os povos indígenas naquela regiño.
E nós realizamos todo ano um Encontro á nlvel de Amazónia, pa-
ra nño só reavaliar, mas justamente tentar costurar essa possibilidade en-
tño de mudar essa perspecüva para os povos indígenas. Porque eu acho
que hoje há uma situagño boa, mas ao mestno tempo, também delicada.
Porque também se a gente ndo ganhar tempo, nño ganhar espago, nño
ganhar avangos, cada vez mais fica difícil a própria luta dos povos indíge-
nas, urna vez que a sociedade caminha muito rapidamente, e os povos in-
dígenas precisam acompanhar, para que nño percam de vista - ou percam
de vez essa possibilidade.
Esse ano, Por exemPlo (para ter uma idéia de como a gente procu-
ra introduzir esses elementos), esse ano terá o Encontro effi outubro, em
Manaus - Encontro dos Professores Indígenas de toda a Amazónia, e o te-
ma central desse Encontro é, por exemplo, a medicina, a medicina tradi-
cional. Nós acreditamos que a educagño, sendo ela uma linha mestra, um
ponto essencial para a vida de utn povo, para a história de um povo, é ne-
cessario entño que se tenha todas as dimensóes que fazem parte da vida de
uffi povo. E a medicina, por etceffiplo, é uma coisa fundamental, sobretu-
do na regiño amazónica, onde as próprias condigóes de assisténcia d saú-
de oferecida pelos órgños públicos, é hmentável. Mas acho que é assim em
todo o Brasil, né? Entño essa discussño será muito importante, porque ca-
da tema deste, ele tem uma repercussdo muito grande na vida diória das
nossas escolas, e também das nossas comunidades. Até parece que a gente
coloca um tema como medicina tradicional...parece sitnples, uma coisa fá-
cil, pequena, ou um tema só... Mas no hmbito daquilo que vai levar na
prótica, através das próticas metodológicas dos nossas escolas, é funda-
mental isso, porque se pulveriza isso no seio das comunidades, e através
dela, entño, se vai atingindo outras dimensóes que a gente pretendeu, que
formamos um corpo, e esse corpo é que deve dar essa perspectiva de ca'
minhada, de resgatar aqueles valores que precisam ser resgatados, para
que se possa garantir a sobrevivéncia dos povos indígenas, dos vórios gru-
pos, nño somente coffio pessoas, como inditíduos, mas sobretudo coffio Po-
yos, cotno povos diferenciados, que tem seus valores' sua identidade, ter
tudo aquilo que ele precisa para se auto-realizar.
Do contrário, nós só podemos caminhar para o inverso, que em al-
guns casos, chega até ao desespero dos povos, cotno tetn acontecido muito
- os suicldios, no Brasil inteiro. Fruto, com certeza, desta falta de perspec-
A autonomia como valor e a arficulagío de possibilidades 295

tiva, e para que se tenha essa perspectiva, nAo é uma coisa fácil, é uma coi-
sa que se tem que costurar no dia-a-dia, e considerando também a parü-
cipagño sobretudo da comunidade branca que normalmente estó nos
acompanhando, nos apoiando, o pessoal das Universidades, dos Centros
de Pesquisas e outros demais órgños.
foi, entño, a experiéncia que nós podemos contribuir aqui,
Essa
uma experiéncia ainda nov*, seis, sete anos prá cá.., e a gente espera tril-
har nesse caminho e poder cada vez melhor nos conhecer - a nossa situa-
gño, e poder enxergar melhor também o nosso futuro, Porque acho isso in-
teressante.
296 Rosa Helena Dias da Silva

ANEXO 4

coMrrÉ AssESsoR DE EDUCAqAO ESCOLAR INDÍGENA


DO MEC
Ministérid da Educagáo e do Desporto

Eu, Sebastiáo Duarte Tukano, professor do distrito de Thracuá,


Município de Sáo Gabriel da Cachoeira - AM, a convite do Comité As-
sessor de Educagáo Escolar Indlgena do MEC, estive participando um
Encontro com os membros de setor, em Brasília, nos dias 4,5 e 6 de
maio de 1994.
Foi pela primeira vez que participei deste tipo de encontro táo
delicado, onde se trata a questáo da polltica da Educagáo Escolar Indí-
gena a nível Nacional. Senti no dislocamento algumas dificuldades, as
quais náo devem faltar, mas senti-me de perto que os anseios das po-
pulagóes indlgenas de ter uma educagáo escolar diferente está chegan-
do nos órgáos do Governo. Náo foi estranho, porque já estive partici-
pando dos seis Encontros da COPIAR - Coordenagáo das Organizagóes
dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, nos quais dis-
cutimos bastante demonstrando os nossos pareceres para as escolas in-
dígenas. Inclusive fui eu e o José Franga Makuxi de Roraima, Qü€ €Íl
1988,levamos para o Congresso Nacional, as propostas para LDB dos
professores do Amazonas e Roraima.

HISTÓRICO

A partir do Decreto Presidencial no 26 de 04 de fevereiro de


1991, o Ministério da Educagáo e do Desporto passou a ser responsá-
vel pela coordenagáo das agóes referentes á educagáo escolar indígena
no País.
A partir da Portaria do MEC n" 60, de 08 de julho de 1992, ins-
tituiu Comité de Educagáo Escolar Indígena, vinculado ao Departa-
o
mento de Política Educacional (DPE), da Secretaria da Educagáo Fun-
damental (SEF).
Pela mesma portaria, igualmente vinculada ao DPE, criou-se a
Assessoria de Educagáo Escolar Indígena, com finalidade de dar curso
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 297

is recomendagóes do Comité, acompanhar e avaliar as agóes referentes


i educagáo indígena nos estados.
O comité tem como finalidade de subsidiar as agóes e proporcio-
nar apoio técnico-científico ás decisóes que envolvem a adogáo de nor-
mas e procedimento dos relacionamentos com Programas de educagáo
Escolar indígena.

A PAUTA DO ENCONTRO

Para 4,5 e 6 de maio de 1994, os trés dias de encontro foi apre-


sentado esta pauta:
I - Informe
2 - Correspondéncia recebida
3 - Elaboragáo de pauta do encontro da Organizagóes Governa-
mentais (articulagáo do trabalho de ONGs, Secretarias, Univer-
sidades, FUNAI).
4 - O Seminário de Formadores de Formadores.
5 - Apresentagáo do "Folder" sobre o Comité e assessoria Indíge-
na do MEC.
6 - Discussáo sobre Encontro Nacional: Educagáo, Saúde, De-
senvolvimento e auto-sustentagáo nas comunidades indlgenas -
FUNAI.
7 - Atuagáo de Missóes Religiosas nas áreas indígenas.
8 - A L.D.B. e o Estatuto do índio (estágio e tramitagáo).
9 - Critério de distribuigáo das publicagóes (sistematizagáo).
l0- Sistemática de financiamento (Folder a ser feito após o en-
contro do item 3 - ONGs - Critérios de Mérito) - Espago aber-
to.
l1- Materiais escolares para as escolas indígenas.
12- Publicagóes.
13- Proposta GT - Discriminagáo do fndio.

O ENCONTRO

Com a ajuda da FOIRN, um empréstimo de dinheiro, cheguei


em Brasllia no término do dia da abertura do encontro. Agradego mui-
to a pessoa do Senhor Brás de Oliveira e do Senhor Gersem dos Santos,
os diretores da FOIRN.
298 Rosa Helena Dias da Silva

Na elaboragáo da pauta do encontro de Órgáos Governamentais


sobre a Educagáo Escolar Indígena, ficou assim:
Participantes:
- Representante de Delegacias Regionais do MEC.
- Representantes da Administragáo Regional da FUNAI.
- Membros do Comité da educagáo Escolar Indígena.
Programa ou Pauta:
I - Legislagáo concernente I Educagáo Escolar Indígena.
2 - Diretrizes da Política Nacional de educagáo escolar Indlgena.
3 - Sessáo de vldeos etnográficos sobre índios.
4 - Sistemática de Financiamento da educagáo: recursos Para
educagáo escolar indlgena.
5 - Programa da FAE e a educagáo escolar indlgena: material di-
dático, quitas escolares, merenda escolar - outros programas.
6 - Experiéncias de Educ. Escolar Indlgena' As escolas do MS e
PR
7 - Cadastramento e reconhecimento de escolas indígenas.
8 - Parceiros da Educagáo Indlgena.
9 - Papel da FUNAI no novo contexto da Educagáo Indígena.
10- A participagáo dos órgáos Náo Governamentais em Progra-
mas de Educagáo escolar Indígena.
ll- O papel do Comité de Educagáo Escolar Indlgena.
A L.D.B. e o estatuto do lndio. a LDB está aprovada e o Estatuto
está no estágio de tramitagáo. Parece-me que tem muitas propostas das
entidades sobre o Estatuto do fndio, como: do CIMI, NDI, do próprio
lndio, etc. no Congresso para ser votado.
Nesse encontro do Comité discutiu-se bastante sobre o estatuto
do Índio em relagáo da educagáo escolar indlgena, do parecer do NDI.
Houve muito confronto e umas das partes náo estava de acordo
com as idéias ou das realidades pollticas do Brasil, de alguns membros
do grupo em discussáo. Reelaboram acrescentando ou retirando algu-
mas partes do estatuto. Sra. Ivete Campos ficou encarregada de levar no
Congresso Nacional nos próximos dias.
Foi anunciado também a Conferéncia Nacional de Educagáo pa-
ra Todos, em Brasllia, no período de 29-08 a O2-09 de 1994. Esta con-
feréncia será promovida pelo Ministério da Educagáo e do Desporto
A autonomia como valor e a articulagío de possibilidades 299

com o apoio UNESCO, UNICER UNDIME. Os objetivos da Conferén=


cia sáo:
I - Discutir estratégias de implementagáo e sustentagáo do Pla-
no Decenal de Educagáo para todos da Uniáo, nos Estados e Mu-
nicípios;
2 - Conhecer e discutir a experiéncia da política de educagáo pa-
ra todos dos países do EFA - 9;
3 - Propor estratégia e mecanismo de aperfeigoamento da polí-
tica de educagáo para todos nas instáncias de sua formulagáo e
sua execugáo.

PARTICIPANTES DA CONFERÉ,NCIA

- Países do EFA - 9 e organismos internacional;


- Dirigentes e Técnicos do MEC;
- Secretários dos Municípios, capitais e de porte médio;
- Presidentes das UNDIMES estaduais;
- Órgáos Governamentais
- Representantes dos Poderes Legislativos e Judiciários.
- Delegados do MEC
- Delegados ou chefes do Núcleo regionais de educagáo dos es-
tados.
- Reitores e dirigentes Universitários
- Liderangas empresariais
Foi apresentado, inclusive o Curso da FUNAI, sob responsabili-
dade do Neon Roquer, do setor de educagáo da FUNAI Nacional. Acho
que já aconteceu porque ficou marcado nos dias 13, 14 e 15-05 de 94.
O título do Curso é: Curso de Capacitagáo de recursos Humanos para
educagáo Indígena.

PARTICIPANTES DO ENCONTRO DO COMITÉ


Ivete Campos - MEC; Marineuza Gazetta - MEC; Nelmo Roquer
- FUNAI; |ussara Gomes - ONGs; Luis Donizzetti - ABAiUSP; Bruna
Franchetto - Universidade do RJ; Ilza - UNESCO; Aladin ou Aládio -
Secretário da Educagáo de Tocantins e Sebastiáo Duarte Tukano - Re-
giáo Norte.
300 Rosa Helena Dias da Silva

CONCTUSAO

Este presente relatório é por mim elaborado para ser publicado


para todas as organizagóes indígenas, de modo especial a COPIAR e
COIAB, via FOIRN.
O próximo encontro está previsto, nos dias 12 a 14 de setembro
de 1994.

Sebastiño Duarte
' Membro do Comité da Ed. Escolar Indlgena do MEC
Taracuá, 14 de junho de 1994.
ANEXO 5

DOCUMENTO DO I ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDÍGENAS DO AM E RR

Nós, professores das diferentes tribos indígenas do Estado do


Amazonas e Roraima, estivemos reunidos em Manaus, nos dias 15 a 18
de outubro do corrente ano, com participagáo de 14 nagóes, somando
um total de 42 professores para debatermos a situagáo da Educagáo ad-
ministradas nas comunidades indígenas.
Nestes dias estivemos debatendo os seguintes temas:
l) Como se aprende a viver?
2) Se já existia a educagáo na originalidade, para que funciona a
escola atual?
3) Que tipo de escolas queremos?
4) Como deve ser a escola que queremos?
5) Quais os passos que devemos dar para conseguir a escola que
queremos?

CONCLUSAO

Chegamos a conclusáo de que a escola deve ser:

1) BILINGUE - língua materna (indígena)


- língua nacional
2) VOLTADA A CULTURA DE CADA POVO.
3)'TRADICIONAU'- ügada as tradigóes de cada povo.
4) CONSCIENTIZADOM - tendo em vista a auto-determina-
gáo
5) EM DEFESA DOS DIREITOS INDÍGENAS.
6) AVALTANDO OS SEUS OBIETTVOS PELA pRópRIA CO-
MUNIDADE
7) QUE A ESCOLA INDfGENA SEJA REGULAMENTADA A
NfVEL DE LEI FEDERAL.

Manaus, l8 de outubro de 1988


302 Rosa Helena Dias da Silva

DOCUMENTO DO II ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDÍGENAS DO AM E RR

PROPOSTAS DOS PROFESSORES INDfGENAS DO AMMONAS E


RORAIMA SOBRE EDUCAQÁO INDfGENA

Orientagáo para os deputados e senadores que iráo elaborar a


nova Lei de Diretrizes e Bases da Educagáo Nacional.

TNTRODUgAO

Este documento foi produzido durante o "II Encontro de Profes-


sores Indígenas do Amazonas e Roraima" realizado em Manaus, de 11
a 14 de julho de 1989. Estiveram presentes 24 professores e 12 organi-
zagóes indlgenas da regiáo amazónica, representando 73 na9óes indíge-
nas.

Queremos que este documento sirva como base para a nova Lei
de Diretrizes da Educagáo Nacional.

A ESCOTA INDIGENA

A escola indígena que queremos deve ser voltada i cultura de ca-


da povo, respeitando os costumes, tradigóes, llnguas e crengas dos po-
vos indígenas.
As organizagóes e liderangas indlgenas devem participar das de-
cisóes sobre as escolas.
A escola deve ser crítica e transformadora, em defesa dos nossos
direitos. E importante que a escola indígena seja reconhecida a nlvel fe-
deral.
A escola indígena deve respeitar as características lingulsticas de
cada povo, assegurando o uso e o ensino das nossas línguas.
Os professores das escolas indígenas devem ser índios' Todos os
professores indígenas teráo direito ao curso billngue. Fica a critério das
comunidades e liderangas a contratagáo de professores lndios. Os bilín-
gues teráo preferéncia. A formagáo bilíngue deve ser garantida em cur-
sos de capacitagáo.
A autonomia como valor e a articulaEóo de possibilidades 303

O material didático deve ser bilíngue, o Estado deve garantir o


dinheiro paraa elaboragáo e publicagáo desse material.
Os currículos das escolas devem ser elaborados com as comuni-
dades, organizagóes e liderangas indígenas, que poderáo contar com a
ajuda de entidades públicas ou náo-governamentais, a critério dos ín-
dios.
O calendário escolar deve respeitar o modo de viver de cada po-
vo indígena.
E obrigagáo do estado dar dinheiro para a criagáo e manutengáo
de nossas escolas, para contratar e pagar os professores, os superviso-
res, os coordenadores de ensino e outros funcionários ligados á escola.
Além disso, o estado deve dar dinheiro para pesquisas de apoio i edu-
cagáo indígena.

DOCUMENTO DO IV ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDIGENAS DO AM C RR

DECLARAQÁO O¡ PRTNCf PrOS

As escolas indlgenas deveráo ter currículos e regimentos especí-


ficos, elaborados pelos professores indígenas, juntamente com
suas comunidades, liderangas, organizagóes e assessorias.
2- As comunidades indígenas devem juntamente com os professo-
res e organizagóes, indicar a diregáo e supervisáo das escolas.
3- As escolas indígenas deveráo valorizar as culturas, línguas e tra-
digóes de seus povos.
É garantida aos professores, comunidades e organizagóes indíge-
nas a participagáo paritária em todas as instáncias - consultivas
e deliberativas - de órgáos públicos governÍrmentais responsáveis
pela educagáo escolar indígena.
5- É garantida aos professores indlgenas uma formagáo específica,
atividades de reciclagem e capacitagáo periódica para o seu apri-
moramento profissional.
6- É garantida a isonomia salarial entre professores lndios e náo-
índios.
7- É garantida a continuidade escolar em todos os níveis aos alunos
das escolas indígenas.
304 Rosa Helena Dias da Silva

8 - As escolas indígenas deveráo integrar a saúde em seus currículos,


promovendo a pesquisa da medicina indlgena e o uso correto
dos medicamentos alopáticos.
9 - O Estado deverá equipar as escolas com laboratórios onde os
alunos possam ser treinados para desempenhar papel esclarece-
dor junto ás comunidades no sentido de prevenir e cuidar da
saúde.
l0 - As escolas indlgenas seráo criativas, promovendo fortalecimento
das artes como formas de expressáo de seus povos.
I I - É garantido o uso das llnguas indígenas e dos processos próprios
de aprendizagem nas escolas indígenas.
12 - As escolas indígenas deveráo atuar junto ls comunidades na de-
fesa, conservagáo, preservagáo e protegáo de seus territórios.
13 - Nas escolas dos náo-índios será corretamente tratada e veiculada
a história e cultura dos povos indígenas brasiléiros, a fim de aca-
bar com os preconceitos e o racismo.
14 - Todos os municípios e Estados onde houver escolas e professores
indlgenas devem dar apoio e material aos encontros e reunióes
dos professores indígenas, quando forem realizados em áreas in-
dlgenas e propiciar toda a infra-estrutura necessária, inclusive
cedendo locais, quando forem realizados nas cidades.

O sistema de ensino das escolas indlgenas deverá ser o federal.

DOCUMENTO DO V ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDIGENAS DO AM, RR E AC

Boa Vista, 12 de outubro de 1992


500 Anos de Resisténcia dos Povos Indígenas

Os professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, reuni-


dos em Boa Vista, de O7 a 12 de outubro de 1992, tomaram conheci-
mento da Portaria do MEC - SNEB n" 60 de 08.07.92,que cria o Comi-
té de Educagáo Indígena, e reivindicam o seguinte:
l. A metade dos membros deste Comité deve ser composta de
professores indígenas, de todas as regióes do Pals, conforme princípio
firmado em nossa Declaragáo de Manaus, 1991, Art. 4o.
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades 305

2. Todos os nomes dos professores indlgenas indicados para o


Comité podem ser substituldos, em fungáo das decisóes de cada regiáo;
3. A indicagáo dos professores indígenas para este Comité deve
ser feita, em todas as regióes do Brasil, pelos próprios professores, or-
ganizagóes e comunidades indígenas, e seráo nomeados os profissio-
nais com maior experiéncia no movimento de educagáo escolar;
4. O MEC deverá assegurar os recursos financeiros necessários
para o bom cumprimento da representagáo, o que inclui viagens de
acompanhamento ás escolas existentes nas áreas representadas por ca-
da professor;
5. Sáo indicados os seguintes nomes para compor este Comité:
Prof. Euclides Pereira (RR)
ProF Idelvánia Rodrigues de Oliveira (RR)
Prof. Lrlcio Ferreira Menezes (AM)
Prof. Sebastiáo Mário Lemos da Costa (AM)
Prof. Adelmo Fernandes (AC)

Subscrevem este documento as seguintes Organizagóes Indíge-


nas através de seus representantesl

Nome Organizagdo

DOCUMENTO DO V ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDÍGENAS DO AM, RR E AC

Exmo. Sr. Deputado Domingos Juvenil


Presidente da Comissáo Especial de Anáüse da Nova Legislagáo Indige-
nista
Cámara dos Deputados - Brasília - DF

Nós, Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, reu-


nidos na cidade de Boa Vista, RR, de O7 a 12 de outubro de 1992, ana-
lisamos as propostas de nova legislagáo indigenista em tramitagáo na
Cámara dos Deputados e firmamos as seguintes posigóes relativas ao
tema Educagáo Escolar Indígena:
1. A educagáo escolar indígena deve assegurar is comunidades
indígenas conhecimentos gerais e relativos a outros povos e sociedades
306 Rosa Helena Dias da Silva

para que possam defender seus interesses em igualdade de condigóes


com quem venham a se relacionar;
2. A educagáo escolar indígena deve ser de competéncia do Sis-
tema de Ensino da Uniáo, através de uma Coordenagáo Nacional;
3. Deveráo ser criados Distritos de EducaSo Escolar Indlgena
como instáncias administrativas e técnicas no Sistema de Ensino da
Uniáo cujas áreas de atuagáo sejam definidas, levando-se em conta as
especificidades étnicas dos povos indígenas;
4. Sáo atribuigóes dos Distritos de Educagáo Escolar Indígena:
a) publicar materiais didáticos nas llnguas indígenas e em por-
tugués;
b) coordenar, acompanhar e avaliar as agóes pedagógicas desen-
volvidas pelas escolas indlgenas e seus currlculos e regimen-
tos;
c) elaborar e manter programas de formagáo e reciclagem para
professores, destinados á educagáo escolar indlgena, garan-
tindo aos índios o acesso preferencial a estes programas;
d) habilitar os professores indígenas, indicados por suas comu-
nidades, assegurando-lhes a preferéncia em caso de contrata-
gáo;
e) desenvolver programas de formagáo em recursos humanos,
preferencialmente índios, especializados em educagáo escolar
indígena;
f) definir e executar as diretrizes e políticas locais da educagáo
escolar indígena;
g) definir critérios paraa elaboragáo de currículos e regimen-
tos das escolas indígenas.

5. Os currículos e regimentos das escolas indígenas deveráo ser


elaborados pelos professores, comunidades, liderangas e organizagóes
indígenas, cabendo a estes a diregáo destas escolas;
6. Deve ser garantida aos professores, comunidades e organiza-
góes indígenas a participagáo paritária - 5oo/o de seus membros consti-
tuídos por representantes indlgenas, em todas as instáncias responsá-
veis pela educagáo escolar indígena - Coordenagáo Nacional de Educa-
gáo Escolar Indígena.
7.Deve ser assegurada aos Distritos de Educagáo Escolar Indíge-
na autonomia financeira e administrativa;
A autonomia como valor e a articulaQáo de possibilidades 307

8. Deve ser garantido o direito das escolas indígenas se localiza-


rem nas terras indígenas;
9. Cabe i Coordenagáo Nacional de Educagáo Escolar Indígena:
a) harmonizar e formular os princípios, diretrizes e estratégias
da política de educagáo escolar indígena no Brasil;
b) deñnir, com as comunidades indígenas envolvidas, as áreas
de jurisdigáo dos Distritos de Educagáo Escolar Indígena;

10. Os professores indígenas contratados por Estados e Municí-


pios, com a promulgagáo da nova Lei Indigenista devem ser absolvidos
pela Uniáo Federal.
Considerando a importáncia cada vez maior da participagáo de
todos os professores, comunidades e organizagóes indígenas, os profes-
sores indígenas se reservam o direito, após novas discussóes e estudos,
apresentarem outras sugestóes ou modificarem as acima expostas.

Boa Vista, 12 de outubro de 1992


500 Anos de resisténcia dos Povos Indígenas

DOCUMENTO DO VI ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDfGENAS DO AM, RR E AC

Ao Comité Assessor de Educagño Indígena do MEC

Os professores indígenas do Amazonas, Acre e Roraima abaixo


assinados, reunidos em Boa Vista, em 10 de outubro de 1993, indicam
os seguintes representantes neste Comité Assessor, a partir de 0l de no-
vembro p.f., por um período de um ano:

TitulanProf. Sebastiño Mório Lemos Duarte da Costa (Tukano)

Rg n.
865.601 - SSP/AM
CIC no 287492432-68
conta bancária: Banco do Estado da Amazonas SA (BEA)
agéncia 0015, conta n.0004475-0
enderego: Aos cuidados da Federagño das Organizagóes Indígenas
do Rio Negro
308 Rosa Helena Dias da Silva

Avenida Alvaro Maia, no 79


Caixa Postal3l
Sáo Gabriel da Cachoeira-AM - 69750-000
teVfax 092-471-1349

Suplente Prof . Sebastido Cruz (Wapixana)

Rg no27035 - SSPiRR
CIC no 063860162-20
conta bancária: Banco do Estado de Roraima (BANER)
agéncia OO2-5, conta no2133-0
enderego: Aos cuidados do Conselho Indígena de Roraima
Avenida Sebastiáo Diniz n" 1672
Sáo Vicente, Boa Vista-RR - 69750-000
tel/fax: 095-2245761

DOCUMENTO DO VT ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDIGENAS DO AM, RR E AC

Senador Humberto Lucena


Presidente do Congresso Nacional

Nós, professores e liderangas indígenas reunidos no VI Encontro


de professores indlgenas do Amazonas, Acre e Roraima, em Boa Vista,
RR, e, l0 de outubro de 1993, somos contra a revisáo constitucional,
por isso, repudiamos o início de seus trabalhos.
Queremos ter assegurados os nossos direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocuPamos' nossas organizagóes sociais,
costumes, línguas, crengas e tradigóes, garantidos nos artigos 23I,232,
2I0 e 215 da Constituigáo de 1988.
Repudiamos também a náo demarcagáo das terras indlgenas no
prazo estabelecido pelo artigo 67 das disposigóes Constitucionais tan-
sitórias.
Exigimos a imediata demarcagáo das terras indígenas para que
náo ocorram mais massacres como o dos Yanomami, em agosto de
1993 e o do Capacete, quando catorze Tikuna foram assassinados em
margo de 1988; invasóes frequentes de garimpeiros causando epide-
A autonomia como valor e a articulaQao de possibilidades 309

mias como as que estáo ocorrendo no Alto Rio Negro; conflitos e mor-
tes provocados por fazendeiros e garimpeiros na área Raposa Serra do
Sol; choques violentos entre madeireiros e os povos indlgenas do Vale
do Javari e de Rondónia, e tantas outras violéncias contra os índios.

DOCUMENTO DO VII ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDÍGENAS DO AM,RR E AC

Manaus,20 de outubro de 1994


Senhor Governador do Estado do Mato Grosso do Sul

Durante o VII Encontro de Professores e Liderangas indígenas


do Amazonas, Acre e Roraima, realizado entre os dias 16 a 20 de outu-
bro de 1994, em Manaus/AM, estiveram participando conosco os Pro-
fessores Guarani e Kaiová. Nesta ocasiáo, tomamos conhecimento das
duas propostas de regimento que foram elaborados por estes professo-
res (Regimento da escola de Amambai e da Comissáo de Professores
Guarani-kaiová).
Achamos muito importante este trabalho pois acredit¿rmos que
os povos indígenas do Brasil tém o direito de elaborar seus próprios
currículos e regimentos escolares. Este direito está garantido nos Arts.
210 e 231 da Constituigáo Federal e na Portaria Interministerial
5s9l9r.
Neste sentido, vimos a priblico apoiar a luta dos Povos Guarani
e Kaiová para terem os seus currículos e regimentos escolares respeita-
dos e aprovados pelas instáncias oficiais (Governo Estadual, Munici-
pais e FUNAI).
ClCpara
- Secretária de Educagáo do Estado de Mato Grosso do Sul
- Secretaria Municipal de Educagáo de Amambai
- Secretaria Municipal de Educagáo de faporá
- Administragáo da FLINAI / ADR Amambai
- Profa. Marineuza Gazetta (Presidente do Comité de Educagáo
Escolar Indígena -MEC)
310 Rosa Helena Dias da Silva

DOCUMENTO DO VII ENCONTRO DOS PROFESSORES INDI-


GENAS DO AM, RR E AC

Manaus, 19 de outubro de 1994


VII Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre

O Movimento dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima


e Acre articula atualmente o total de 1.067 professores indígenas res-
ponsáveis por 25.258 alunos indígenas, das seguintes regióes: Alto Rio
Negro, Alto SolimOes, Médio Solimóes, Madeira, Baixo Amazonas, Ro-
raima, Acre; segundo levantamento realizado no nosso VII Encontro
(quadro anexo).
Nós professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, reuni-
dos no nosso VII Encontro Anual, realizado nos dias 16 a 2O de outu-
bro, na cidade de Manaus, elaboramos esse documento para assegurar
junto ao Comité de Educagáo Indígena no Ministério de Educagáo, os
seguintes critérios de nossa participagáo:

1) A permanéncia dos representantes da regiáo norte, os profes-


sores Sebastiáo Duarte Tükano do Amazonas e Sebastiáo Cruz
Wapixana de Roraima, por mais quatro anos no Comité.
2) O Comité náo pode deliberar quaisquer reunióes sem a pre-
senga de nossos representantes.
3) Que o MEC dé condigóes financeiras adequadas aos nossos
representantes quando estes forem viajar para as reunióes do
Comité, ou sejar
- O professor Sebastiáo Duarte Tukano de Taracuá, necessita de
2 ou 3 dias de viagem de barco de sua residéncia até Sáo Gabriel
da Cachoeira. De Sáo Gabriel da Cachoeira até Manaus náo exis-
te vóo da TABA todos os dias, os vóos sáo ás tergas, quintas e sá-
bados, o que obriga muitas vezes o professor Sebastiáo a esperar
pelo dia do vóo de um a trés dias.

Orgamento:
a) Taracuá - S. Gabrie1............R$ 40,00 (óleo para o barco
............R$ 20,00 (alimentagáo pl 2 d.)
b) em Sáo Gabrie1...................R$ 15,00 (táxi para aeroporto)
..................R$ 10,00 (alimentagáo p/ I d.)
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 3ll

c ) em Mana"'
j
: :.. :::::: :. :::::: :. :.. l$ ; ,:3 tÍ,t*lri*í1, -]

Total das despesas além das diárias dos dias de reuniáo em Bra-
sília:
Ida.......................R$ I I 6,00
VoIta....................R$ I I 6,00
Total....................R$ 232,00

obs. Esse gastos sáo independentes das diárias referentes aos dias
de permanéncia em Brasília.

DOCUMENTO DO VII ENCONTRO DOS PROFESSORES INDI-


GENAS DO AM, RR E AC

DECLARAQÁO DE PRJNCÍ PIOS

VII Encontro dos Professores indígenas do AM, RR e AC-Manaus,94

As escolas indígenas deveráo ter currículos e regimentos especí-


ficos, elaborados pelos professores indlgenas, juntamente com
suas comunidades, liderangas, or ganizagóes e assessorias.
2- As comunidades indígenas devem juntamente com os professo-
res e organizagóes, indicar a diregáo e supervisáo das escolas.
3- As escolas indígenas deveráo valorizar as culturas, línguas e tra-
digóes de seus povos.
4- E garantida aos professores, comunidades e organizaqóes indíge-
nas a participagáo paritária em todas as instáncias - consultivas
e deliberativas - de órgáos públicos governamentais responsáveis
pela educagáo escolar indígena.
5- E garantida aos professores indígenas uma formagáo específica,
atividades de reciclagem e capacitagáo periódica para o seu apri-
moramento profissional.
É garantida a isonomia salarial entre professores índios e náo-
índios.
312 Rosa Helena Dias da Silva

7 - E garantida a continuidade escolar em todos os nlveis aos alunos


das escolas indígenas.
8 - As escolas indígenas deveráo integrar a saúde em seus currlculos,
promovendo a pesquisa da medicina indígena e o uso correto
dos medicamentos alopáticos.
9 - O Estado deverá equipar as escolas com laboratórios onde os
alunos possam ser treinados para desempenhar papel esclarece-
dor junto ás comunidades no sentido de prevenir e cuidar da
saúde.
10 - As escolas indígenas seráo criativas, promovendo fortalecimento
das artes como formas de expressáo de seus povos.
I I- É garantido o uso das línguas indígenas e dos processos próprios
de aprendizagem nas escolas indígenas.
12 - As escolas indlgenas deveráo atuar junto ás comunidades na de-
fesa, conservagáo, preservagáo e protegáo de seus territórios.
t3 - Nas escolas dos náo-índios será corretamente tratada e veiculada
a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de aca-
bar com os preconceitos e o racismo.
14 - Os municlpios, os Estados e a Uniáo devem garantir a educagáo
escolar específica ds comunidades indígenas, reconhecendo ofi-
cialmente suas escolas indlgenas de acordo com a Constituigáo
Federal.
15 - Garantir uma Coordenagáo Nacional de educagáo escolar indl-
gena, interinstitucional, com a participagáo paritária de repre-
sentantes dos professores indígenas.

DOCUMENTO DO VIII ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDÍGENAS DO AM, RR E AC

Ao Comité Assessor de Educagáo Indlgena do MEC

Nós, professores e liderangas abaixo assinados, reunidos no VII


Encontro de Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, reu-
nidos em Boa Vista/RR, de 23 a 27 de outubro de 1995, reivindicamos
que este Comité crie efetivas condigóes para o pleno exerclcio de repre-
sentagáo de seus membros titular e suplente, professores indlgenas da
regiáo Norte. A participagáo de um representante dos professores indí-
A autonomia como valor e a articulagdo de possibilidades 313

genas na Amazónia neste Comité exige que o MEC garanta os recursos


para a tarefa. E preciso assegurar que os nossos representantes (titular
e suplente) possam estar em permanente contato com o movimento, o
que implica despesas de viagens, correspondéncias, materiais de divul-
gagáo. Caso contrário, a nossa representagáo náo terá condigóes de ser
exercida corretamente.

Nome Povo

DOCUMENTO DO IX ENCONTRO DOS PROFESSORES INDfGE-


NAS DO AM, RR E AC

"Nós professores indígenas dos povos Mura, Munduruku, Sate-


ré-Maué, Parintintin, Torá, Tenharim, Tikuna, Kambeba, Mayoruna,
Miranha, Tariano, Tukano, Desana, Pira-Thpuia,Baré, Arapaso, Bani-
wa, Macuxi,Wapixana,Yanomami,Wanano e Diahoí, reunidos no nos-
so IX Encontro dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e
Acre, realizado em Sáo Gabriel da Cachoeira, entre os dias t8 a 21 de
julho deste ano, tivemos como tema principal a questáo das Escolas in-
dígenas e os Projetos de Futuro dos Povos.
Após refletirmos bastante sobre esta problemática, depois de
trocar experiéncias e ouvir os diferentes desafios enfrentados nas re-
gióes e nos locais de trabalho, concluímos gue:
- os currlculos, regimentos e calendários das escolas indlgenas
devem ser elaborados pelos professores, organizagóes, comunidades e
liderangas indígenas, juntamente com suas assessorias, e devem ser re-
conhecidos oficialmente;
- é necessário formar e valorizar profissionais para a própria co-
munidade, visando a nossa autonomia e para que as escolas sirvam co-
mo instrumento para a permanéncia dos jovens em nossas aldeias, e
náo como portas de saída;
- é importante termos assessorias permanentes que possam
acompanhar a evolugáo do trabalho dos professores nas escolas.
As organizagóes indígenas devem fortalecer a luta pela constru-
9áo das escolas indígenas:
- sensibilizando as autoridades e órgáos ligados á educagáo esco-
lar indígena para que reconhegam e respeitem a nossa Declaragáo de
314 Rosa Helena Dias da Silva

Princípios, elaborada e aprovada no IV Encontro dos Professores Indl-


genas do AM e RR (Manaus, l99l), reafirmada no VII Encontro dos
Professores Indígenas do AM, RR e AC (Manaus, 1994) e cujo cartaz foi
langado no VII Encontro (Boa Vista, 1995);
- divulgando estes princlpios no movimento indlgena;
- participando dentro das escolas, com objetivo de valorizar as
culturas, acompanhando de perto os processos de aprendizagem e
apoiando a elaboragáo de materiais didáticos;
- apoiando a luta pela inclusáo dos nomes indígenas nas matrí-
culas e documentos escolares, dos povos que assim o reivindicarem;
- buscando a liberagáo de professores indígenas, sem prejufuo de
salário, para negociar a concretizagáo do reconhecimento das escolas
indígenas junto aos órgáos competentes".

DOCUMENTO DO X ENCONTRO DOS PROFESSORES INDIGE-


NAS DO AM, RR E AC

Comissáo dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre -


COPIAR

A todos os membros do
Comité de Educagáo Escolar Indígena do Ministério de Educagáo

Manaus, 31 de julho de 1997


Prezados Srs. e Sras.

Nós, professores indígenas dos povos Makuxi, Wapixana, Taure-


pang, Waimiri-Atroari, Yanomami, Tikuna, Kaxinawa, Shanenawa, Ku-
üna, Kanamari, Munduruku, Torá, Tenharim, Parintintim, Diahói, Sa-
teré-Mawé, Mura, Tucano, Arapaso, Bare, Baniwa, Tariano, Pira-Th-
puia, Kambeba, Mayoruna, Kokama, Karipuna, Marubo, Manchinéri e
Guarani, reunidos no nosso X Encontro dos Professores Indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre, realizado entre os dias 28 a 3l de julho des-
te ano, em Manaus (AM), conforme fazemos todos os anos, durante
nossos encontros anuais, discutimos sobre nossa participagáo como re-
presentantes inügenas nesse Comité. Avaliamos que a representagáo
dos professores indígenas está fragilizada, em primeiro lugar, pelo nú-
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 315

mero pequeno de representantes, e, em segundo lugar, pelas dificulda-


des práticas que os professores enfrentam para chegar ) Brasília.
Frente a essa situagáo, e conforme o ponto 4 da nossa Declara,
gáo de Princípios: "é garantida aos professores, comunidades e organi-
zagóes indígenas a participagño paritária em todas as instáncias - con'
sultivas e deliberativas - de órgños públicos governamentais responsáveis
pela educagño escolar indígena", gostaríamos de confirmar o professor
Sebastiáo Duarte (Tucano) como nosso representante e indicamos
mais trés nomes como representantes a fim de que nossa participagáo
possa ser paritária e mais eficiente para a defesa de nossos interesses.
Sáo eles:

Constantino Ramos Lopes (Ticuna)


Av. Castelo Branco,24i
69630-000 - Benjamin Constant - AM

Jadir Neves da Silva


Rua H, 1272 - Bairro Caraná
69300-130 - BoaVista /RR

Auricélio Batista Brandáo


Av. Castelo Branco, 374 - Bairro Segundo Distrito
69960-000-Feijó-AC

Gostaríamos ainda de dizer que para que possamos realmente


exercer a fungáo de representantes da regiáo norte, teríamos que ter
condigóes de viajar pela regiáo para que possamos conhecer melhor
nossa realidade.
Sugerimos que os representantes indígenas no Comité cheguem
um dia antes da reuniáo para que possamos trocar idéias e nos conhe-
cer melho6 visto que cada um é de uma regiáo totalmente distante da
outra. Essa é uma sugestáo que acreditamos estar dentro das possibili-
dades deste ministério; e que irá fortalecer o objetivo do mesmo de rea-
lizar uma educagáo cadavez mais participativa.

Atenciosamente.
316 Rosa Helena Dias da Silva

DOCUMENTO DO X ENCONTRO DOS PROFESSORES


INDÍGENAS DO AM, RR E AC

Comissáo dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e


Acre - COPIAR

ProF Nietta L. Monte


Coordenadora da Equipe do MEC para elaboragáo dos RCIs

Manaus, 3l de julho de 1997


Prezada Professora,

Nós, professores indígenas dos povos Makuxi, Wapixana, Taure-


pang, Waimiri-Atroari, Yanomami, Tikuna, Kaxinawa, Shanenawa, Ku-
lina, Kanamari, Munduruku, Torá, Tenharim, Parintintim, Diahói, Sa-
teré-Mawé, Mura, Tucano, Arapaso, Bare, Baniwa, Tariano, Pira-Ta-
puia, Kambeba, Mayoruna, Kokama, Karipuna, Marubo, Manchinéri e
Guarani, reunidos no nosso X Encontro dos Professores Indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre, realizado entre os dias 28 a 3l de julho des-
te ano, em Manaus (AM), discutimos sobre a nossa participagáo na ela-
boragáo dos referenciais curriculares indlgenas e chegamos ás seguin-
tes conclusóes:

. antes de mais nada queremosreafirmar que temos discutido es-


se tema da elaboragáo de currlculos próprios desde nosso pri-
meiro encontro em 1988;
. na prática cotidiana de nossas escolas muitas experiéncias tém
sido feitas no sentido de que nossas comunidades, organizagóes,
liderangas, em conjunto com os professores indlgenas, partici-
pem ativamente das propostas pedagógicas de nossas escolas,
conforme ponto i de nossa Declaragáo de Princlpiosz'As escolas
indígenas deverño ter carrículos e regimentos específicos elaborados
pelos professores indígenas, juntamente com suas comunidades, or-
ganimgóes e assessorias".

Assim, questionamos o método proposto dos questionários in-


dividuais. Achamos importante esses questionários, mas acreditamos
que náo somos só nós professores que temos essa responsabilidade de
A autonomia como valor e a articulagóo de possibilidades 3I7

pensar esses currículos: as liderangas, os pajés, as comunidades como


um todo tém que participar desse processo, para que no final todos se
considerem donos de nossas escolas, e para que as mesmas sejam real-
mente voltadas para as necessidades de cada comunidade ou povo.
Para que essa discussáo mais ampla acontega, reivindicamos um
tempo maior para discussáo com nossas comunidades e organizagóes,
no sentido de que os questionários náo sejam individualmente respon-
didos, mas resultado de uma produgáo coletiva. Além disso, gostarla-
mos de informar que para termos melhores condigóes de nos articular
em fungáo deste trabalho, estaremos enviando, em outubro, um proje-
to para o MEC, para realizagáo de encontros regionais, nos estados do
Amazonas, Roraima e Acre. Gostarlamos ainda de lembrar aos com-
panheiros do MEC que táo importante quanto os currículos sáo os re-
gimentos, que dizem respeito á gestáo e administragáo de nossas esco-
las, porque, conforme o ponto 2 de nossa declaragáo, nossas escolas só
seráo indígenas quando forem pensadas e geridas por nós.
Agradecemos sua participagáo no nosso X Encontro e reafirma-
mos nosso compromisso para a concretizagáo de escolas verdadeira-
mente indígenas.

Sem mais, despedimo-nos atenciosamente,

Você também pode gostar