PODERES MACABROS AMEAÇAM A HERMENÊUTICA COMO ABORDAGEM
EPISTEMOLÓGICO-METODOLÓGICA
A abordagem epistemológica hermenêutica ou compreensiva foi enredada
pelas teorias contemporâneas da administração e na própria gestão das escolas e cursos de formação de professores. Por suposição, isso ocorreu em função da priorização da autoverdade relativamente à verdade objetiva. A hermenêutica se originou como método para auxiliar os humanos a melhor se autoexpressarem e se entenderem. Contraria sua vocação originária o uso dela para sofisticar a manipulação dos seres humanos nas empresas, nas igrejas, nas escolas, nas mídias, nas redes sociais, etc. Tendo emergido do interesse dialógico, a hermenêutica parece estar sendo enleada numa dinâmica ideológica que, sob o signo da “inovação”, incentiva a criação de significações e de saberes alternativos com o objetivo de serem imediatamente sequestrados pela lógica da reprodução ampliada do capital. Em sua origem filosófica, a abordagem hermenêutica emergiu dos debates sobre os limites da abordagem empírico-analítica para tratar dos objetos de conhecimento das ciências humanas. A modernidade engendrou formas culturais e institucionais que dificultam a revelação das coisas a partir delas mesmas, tendendo a rejeitar o humanismo que justifica argumentativamente a autoexpressão e a singularização dos sujeitos, o que pode ser visto como uma amputação violenta do ser humano como tal. No âmbito ontológico do humano, aquilo que é dado ao pesquisador tem características diferentes dos dados das ciências naturais, devendo ser constituído a partir de uma postura simultaneamente comunicativa e reflexiva, ou seja, hermenêutica. Do ponto de vista da reflexão sobre as condições de possibilidade de produção do sentido, é válida a pretensão de universalidade da hermenêutica pois o mundo-da-vida já sempre se exprime linguisticamente e isto é condição de possibilidade de qualquer reflexão, inclusive da crítica. A hermenêutica pretende interpretar os fenômenos sociais mediante a discussão aberta, em que cada interlocutor se esforça por compreender o outro. No entanto, tem-se dificuldades como: a linguagem a ser interpretada que, além de esconder aspectos da cultura, pode mascarar as motivações reais dos autores. A vertente filosófica hermenêutica emergiu como crítica à metafísica do objeto e como avalizadora da auto-expressão dos existentes no mundo humano. Educar não se reduz a disciplinar e instruir (iluminismo racionalista), mas também é dar incremento à autexpressão, promover a tomada da palavra pelos educandos (fenomenologia, personalismo, existencialismo, psicologia humanista, pedagogia libertadora, pedagogia institucional). O desvirtuamento da hermenêutica passa pelo fenômeno comunicacional da autoverdade, a verdade pessoal e autoproclamada, surge quando a autoexpressão desdenha a justificação racional. O valor da autoverdade está menos no que é dito e mais no ato de dizer; fato que mais importa não é o que é referido no dito, mas o ato de dizer tudo o que tem que ser dito, dando a entender que quem está com a palavra fala o que pensa e não está nem aí. Os discursos religiosos, administrativos e pedagógicos exercem efetivamente um poder sem freios sobre a maioria da população brasileira. Esses poderes são macabros, primeiro, porque atentam contra a dignidade universal do ser humano; segundo, porque, refuncionalizam a hermenêutica para finalidades frontalmente opostas a seu leitmotiv originário. A compreensão adequada do fundamentalismo religioso tem que levar em consideração o reavivamento religioso sob as diferentes formas de fundamentalismo, incrementado por poderosas empresas capitalistas a partir da crise econômica estrutural dos anos 60. Além dos meios de comunicação de massa, o capital passou a usar e financiar, com ostensivo interesse ideológico-manipulador, a autoexpressão religiosa da agonia das pessoas. É inegável que os ideólogos do capitalismo se aproveitaram da efervescência religiosa do século XX para somar forças contra as propostas socialistas da população latino-americana. Criaram-se muitas instituições educativas confessionais, canais televisivos religiosos, revistas, jornais, etc. com o intuito de propagar ininterruptamente a ideologia capitalista travestida do manto religioso. No entanto, no interior desses movimentos religiosos, é fortemente incentivada a autoexpressão dos sentimentos das pessoas. No Brasil, atualmente, há uma particularidade que parece impactar de forma decisiva a autoverdade. Essa particularidade é o crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas e sua narrativa do mundo a partir de uma leitura propositalmente tosca da Bíblia. A autoverdade atravessa o discurso fundamentalista como conceito e como estética, o que importa é a retórica e a forma. Na visão maniqueísta do universo, quem questiona o inquestionável é automaticamente alguém do mal a perseguir os homens do bem. No âmbito das organizações empresariais, em resposta à demanda expressivista, procura-se criar produtos e serviços que satisfaçam essa demanda e, assim, possam ser vendidos. Passa-se a atender às reivindicações de autenticidade e oferecer aos consumidores produtos autênticos e tão diferenciados, a fim de reduzir a impressão de massificação. No mundo conexionista, a fidelidade a si mesmo é vista como rigidez; a resistência dos outros, como recusa a conectar-se. A afirmação de que tudo é ilusão abole as referências ao mundo objetivo. A partir daí que surge o subjetivismo, horizontalismo semântico e gnosiológico, ceticismo, paranoia, populismo pedagógico. A colonização sistêmica dos mundos socioculturais vividos desconvencionalizou toda e qualquer instituição, de modo que se reativa uma referência à autenticidade formulada em termos de sinceridade (do coração), emprenho, confiança. A tensão entre a valorização da autenticidade nas relações pessoais e a exigência de adaptabilidade e mobilidade está no âmago da nova gestão empresarial. Justificando sociologicamente o redesenho dos principais processos de trabalho, no Brasil, a razão hermenêutica é o critério principal para a formulação de uma teoria de vida humana associada. Há também contraposição ao caráter instrumental da racionalidade moderna, uma possibilidade de entendimento e pesquisa das associações humanas que contemple o papel das interações simbólicas nas relações interpessoais e resgate a dimensão humana nas organizações. No paradigma subjetivista, a ciência das organizações permite compreender as novas circunstâncias nas quais precisamos, mais uma vez começar a dar ouvidos ao nosso eu mais íntimo. A abordagem hermenêutica não se garante por si só. Ela necessita de se articular com o conhecimento objetivo, empírico-analítico, crítico-dialético, complexo- paradoxal e/ou outro. Para não sucumbir às ameaças sedutoras dos poderes macabros referidos, a hermenêutica deve se articular com as abordagens empírico- analíticas, crítico-dialéticas ou outras, mas sem perder sua identidade epistemológico-metodológica. A abordagem analítica fundamenta as pesquisas movidas pelo interesse de controle técnico, as quais visam providenciar informações que permitam manipular e controlar os objetos, por meio de processos também controlados e objetivados. Nesta abordagem, os conflitos de interpretações pressupõem a coerência universal como algo previamente dado e não como princípio deôntico no sentido de que as contradições devem ser evitadas na linguagem e na ação. A abordagem hermenêutica atua na base das pesquisas movidas pelo interesse dialógico de consenso, no mundo vivido sociocultural, onde e quando a finalidade é auxiliar a investigação e a interação dos sujeitos. As pesquisas hermenêuticas tomam a história dos fenômenos como fio condutor da interpretação, privilegiando a existência viva e dinâmica à essência coisificada. Veem a realidade como movimento, como mundo inacabado, estão preocupadas em perceber os fenômenos no seu devir. Comparando com a dialética, a hermenêutica como pensamento reflexivo sobre o nosso tempo visa primeiramente a mediação e a unificação com o mesmo. A abordagem hermenêutica, acerca do nosso tempo histórico, busca nos muitos sentidos a unidade perdida, a hermenêutica seria uma possibilidade de que a reflexão dispõe para se encontrar com a realidade histórica presente, procurando cautelosamente penetrar nela. A abordagem dialética conecta-se ao interesse humano crítico-emancipador. Rege as pesquisas visando desenvolver a crítica e alimentar a práxis que transforma a realidade e liberta os sujeitos das diferentes formas de instrumentalização, dominação e enganação. Seu procedimento investigativo dominante é explicitar as contradições, diagnosticar os bloqueios à emancipação e as possibilidades desta. As pesquisas dialéticas consideram a história como eixo da explicação científica, e têm na ação social e política uma das principais categorias epistemológicas. A dialética como método de apreensão conceitual de nosso tempo acentua a diferença, o contraste; por meio dela, a reflexão encontra-se com a realidade histórica, dirigindo- se contra seu tempo; a crítica das ideologias produz racionalmente diagnosticando as patologias sociais, detectando a ruptura do sentido.